Entremeio sem babado

Kizzy perguntava muito. “Perguntadeira” como ninguém. Chegava a encher a paciência da mãe, do pai, do irmão, da avó e da tia. [...]

Menina-menininha com o cabelo de cada dia de um jeito: com birotes enfeitados, com gominha coloridas, de trancinhas com borboletinhas, de rabo-de-cavalo, de tranças e solto com baião-de-dois. [...]

E foi logo entrando no meio da conversa dos outros.

Era conversa de nome: quem escolheu o nome de quem, os significados dos nomes das pessoas. E quis saber o que significava Kizzy, seu nome.

Descobriu que seu nome tinha um significado bonito, “aquela que fica, que não vai embora”. E também que esse nome era de origem africana, mesma origem de toda a família.

(Entremeio sem babado, s/n)

 

Minha mãe é negra sim

Desde o dia em que a professora de Artes disse a ele que pintasse sua mãe de amarelo, que ficava mais bonito, Eno ficou entristecido. Uma tristeza fininha que doía e doía, e ele sem saber falar por quê. [...]

Amuado pelos cantos, Eno pensava no sentido de tudo. E não encontrava respostas. Ele era preto, seu pai e sua mãe também. Por que não podia pintar sua mãe de preto? Já ficava chateado com os apelidos que alguns meninos lhe davam, tudo coisa ou bicho. Mas a professora dizer a ele que pintasse a mãe de amarelo? Era demais! [...]

Eno foi direto procurar no dicionário o significado da palavra preto. Lá não viu muita coisa boa, achou de novo tudo muito esquisito. [...]

Vovô Damião já estava sentado no banquinho, na frente da casa, com seu chapéu no colo e guarda-chuva do lado. O vô logo viu a tristeza do menino-neto. “Que banzo é esse, menino?” Eno já sabia que banzo era uma tristeza de preto, vinha do tempo da escravidão, a saudade da terra, o medo da solidão em outros mares... Eno não suportava mais tanto silêncio e resolveu contar ao avô o motivo da agonia. [...]

Eno ouvia, fazia perguntas. Vô Damião disse do orgulho que tinha de sua família, que lutava para viver com dignidade. E disse uma coisa a Eno, de que ele nunca mais esqueceu: “A boniteza deste mundo está nas diferenças, diferenças de tudo quanto é jeito: de pessoas, de cores de gente e flores, de tamanhos, de línguas e costumes, de sotaques, de jeitos de ficar alegre ou triste”. Eno era motivo de alegria para sua família, era um presente divino para todos. Não podia ficar triste para sempre.

Naquela sexta-feira, Dia do Pai, dia de força e energia, resolveu voltar para a escola e enfrentar a professora. No dia anterior, ele tinha ficado até tarde caprichando em seu desenho, desenho de mãe negra, como era a sua. [...]

A professora, no corredor, recebeu o desenho feito com orgulho e dignidade: “Professora, meu desenho de mãe, não pintei de amarelo, pintei de preto em negro como é a minha mãe, como é jabuticaba, o ébano, a beleza da noite escura. Pintei com a cor de mim mesmo”.

A professora olhou espantada, mas percebeu a seriedade da situação. E Eno completou: “Qualquer dia desses meu vô vem aqui dar aula, pra todos aprenderem sobre a nossa história”.

(Minha mãe é negra sim, p. 6-25)

 

Cheirinho de neném

O quarto não seria só dela, a mãe e o pai também não. Teria mais uma festa de aniversário, mais uma escova de dentes no banheiro, mais um copinho perto do filtro.

Estava tão feliz que queria aprender a música de ninar que seu pai cantava pra ela:

“A lua girou, girou, traçou no céu um

Compasso... Eu bem queria fazer um

Travesseiro dos seus braços.”

[...]

Um cheirinho de alecrim do campo, cheirinho de chuva na terra, cheirinho de açúcar caramelado. Ai, que cheirinho de neném!

(Cheirinho de neném, s/n)

 

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