Mahin Amanhã

Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanha”
A cidade toda se prepara
Malês
bantus
geges
nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
é aminhã, aminhã”
sussuram
Malês
bantus
geges
nagôs
“é aminhã, Luiza Mahin falô”

(Cadernos negros: melhores poemas, p. 104)

 

 Gotas

Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
a chuva e o vento
purificam a terra
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
Orixás iluminam e refletem-me
derramando
gotas
iluminadas de Axé no meu Ori

( (De) Clamar, p. 27)

 

Pedra no cachimbo

A pedra quando chega acerta
acerta bem no meio dos meus sonhos
bem nos olhos da esperança
e cega
a pedra quando chega
é fumaça em cachimbos improvisados
é cinco segundos de noia eufórica

 fúria em descontrole
A pedra quando chega é demo-crática
acerta brancos negros pobre e ricos

 Mas os poderes públicos só se sensibilizam
quando a pedra no cachimbo acerta
a vidraça das coberturas dos jardins
à beira-mar
E ameaça transbordar
somando todas as lágrimas de verdes olhos
aos das piscinas de sonhos
senhoriais.

( (De) Clamar, p. 10)

 

A cega e a negra – uma fábula

Observava a aranha em suas peripécias acrobáticas. Pendia do teto num estranho equilibrismo. O fio que sustentava era tênue, invisível. Os olhos hipnotizados acompanhavam o sobe e desce do inseto. Às vezes, a pequena aranha, como a provocá-la, descia próximo a sua cabeça e, com movimentos rápidos e graciosos, retornava, aproximando-se do teto. Poderia ficar ali por horas, dias, meses a fio. Ela e a aranha tecendo fios infinitos, brincando com a gravidade. Cecília tecendo fios invisíveis, a aranha fabricando fios reais.

Olhos fechados, via a aranha movimentar-se em silêncio, absorta. Manhã de um inverno tipicamente tropical. O sol envolto em nuvens, não aquecia. O vento matinal cortava o espaço, batendo na janela como pancadas de alguém que pede para entrar.

Entrar! Ali residia o mistério das coisas. Entrar, apenas uma ação. Sair, outra ação. Ações desconhecidas para a aranha no seu sobe e desce, não entrava nem saía... Tecia, em acrobacias. Acrobacias determinadas pela magia do fazer e não do viver. Ela e Flora faziam acrobacias do viver, dependuradas no fio aparentemente tênue da vida. Fio invisível, resistente, frágil.

Abriu os olhos, a aranha tecia. Um fio branco saído de suas entranhas unia-se a outros fios. Cecília igualou-se àquela criatura. Um estranho destino as unia naquele espaço. Pensou em Flora. Chamava-a assim por nunca ter entendido o porquê do nome Floresta Brasileira que lhe deram. Quando se apresentaram, guardou um sorriso de deboche e de curiosidade, segurando a pergunta: por quê? Floresta a intrigava por causa da forma com que via o mundo. Via? Floresta não via, era cega. Movimentava-se nos espaços como se os soubesse por definição. Flora e Cecília, um dia o acaso as colocara frente a frente.

Cecília olhava a aranha no teto, espantava o pensamento difuso. Hoje cansará de acrobacias; recusava-se a seguir o seu destino, tecer a própria teia. Encantava-se com o equilíbrio da aranha. Equilíbrio que ela própria achava ter perdido. Fazia uma semana que não via Flora.

Conheceram-se num dia comum. Cecília corria atrasada para pagar uma conta no banco. Previa que de novo aquela maldita porta giratória travaria para ela. Pelo alto-falante ouviria a voz metálica do segurança dizer: ”Tem objetos metálicos? Celular? Chaves? Moedas?” não, não possuía nada disso. Porém, passaria pelo constrangimento de abrir a bolsa e procurar. Ou melhor, fazer-se de quem procura o que não perdeu. Depois, olhando para o segurança apreensivo, imporia no rosto um semblante que traduziria em: “Tô limpa!”.

Não entendia por que as portas giratórias não giravam na sua vez de adentrar aos recintos. Passou a não portar mais bolsa, somente o necessário nos bolsos. Mesmo assim, lá vinha voz do segurança: “Tem chave? Guarda-chuva? Celular? Moedas? Objetos metálicos?”.

Naquele dia rebelara-se, sem paciência para submeter-se mais uma vez ao constrangimento de ser barrada. Fora barrada quase que a sua vida toda. Naquele dia: “O escambal para tudo!!!”, pensou. Parada a porta do banco, respirou fundo, numa atitude de: “É hoje!”.

Entrou com tudo pela porta giratória. Uma força de romper paredes, levar tudo no peito, na valentona, como dizia sua mãe. A porta não travou, girou na violência. Ela foi lançada para dentro do recinto. O corpo, acostumado ao cotidiano obstáculo, não o encontrando projetou-se no espaço. Tropeçou na bengala de Flora, que saía dominando o ambiente, como se tivesse olhos nos pés. Para não derrubá-la, instintivamente a abraçou. Gesto tido como ameaçador pelos seguranças, que a seguraram com truculência, protegendo o patrimônio bancário e a integridade de Flora.

Agora a aranha já tinha tecido geometricamente o centro de seu trabalho-natureza. Flora não poderia ver a aranha tecer, pensou. Mas Flora sentia a vida tecendo destinos. Seu destino. Aparentemente frágil qual o fio da teia, Flora defendeu Cecília contra a incompreensão dos seguranças. Na confusão que se armara, era a única que via com a nitidez dos sábios. Ordenou: “Soltem-na!” “Mas, doutora...”, tentou argumentar o chefe dos seguranças. Palavras ficaram no ar, inconclusas.

Cecília, refeita do susto, desculpou-se com Flora, com a intenção de livrar-se o mais rápido possível da nova situação de constrangimento. “Espere, eu te ajudo”, disse Flora, dominadora. “Ajudar?” Cecília a olhou, um ser aparentando fragilidade na sua escuridão. Ajudá-la como? Aspirou o ar, suspirando resignada. Guiaram-na até um assento. Acalmaram-se. Apesar de não demonstrar, o esbarrão abalara Flora de modo diferente do que fizera com Cecília. O gerente mandou servir cafezinho para a doutora, sinônimo de boa conta, e, sem outra alternativa, também para Cecília.

A aranha no seu crochê incessante ia e vinha tirando de dentro das entranhas a linha para o artesanato ao qual fadava-se para sempre. Cecília pensava em Flora e naquele dia em que os estigmas delas se encontraram. Refletia: “Para que aquele encontro?” O que sabia é que nunca lhe haviam servido cafezinho no banco. O que sempre a recepcionou foi a voz metálica após a trava da porta giratória. O mundo girava para todos, para ela travava.

A amizade crescera entre elas, viajavam, passeavam, parecia amizade antiga, prenhe de cumplicidade e camaradagem. Cecília interpretava o mundo da visão para Flora. Fazia-a ver a beleza de pôr-de-sol derramando-se sobre o mar, com suas cores de mistérios. Interpretava a escuridão da noite com estrelas verdadeiras e falsas – as luzes dos edifícios − misturadas no céu. Às vezes, Flora guardava a bengala-guia e apoiava-se no braço de Cecília e perambulavam pelas calçadas. Ela tinha a sensação de que enxergava através dos olhos da amiga. A solidão da escuridão, naqueles momentos, transformava-se só numa triste lembrança. Dependiam-se. Por sua vez, Cecília livrava-se das travas das portas do mundo. Os porteiros e seguranças, com salamaleques, as abriam envoltos em piedade e puxa-saquismo. Conversavam sobre isso, às vezes, e riam e riam.

Certa feita, jantavam numa dessas cantinas estilo italiano que Flora apreciava tanto. Conversavam sobre o sabor e o odor das iguarias. Cecília, embalada pelo torpor do vinho, tagarelava à solta, descrevia as pessoas ao redor da mesa. Flora ria como uma criança, redescobria o mundo. A um dado momento, pediu para a amiga guiá-la até o banheiro. Cecília prontamente atendeu. Ao passarem por entre as mesas, um freguês do restaurante resolveu interpelar-lhes o caminho. Avançou sobre Cecília como se ela fosse transparente. Já acostumada a isto, preparou-se para sair da frente, dar-lhe passagem, ou seriam atropeladas pelo homem, maior e mais forte que as duas. Colocou seu corpo protegendo o da amiga. Com um discreto meneio de cabeça e comunicação sutil entre os olhares, o garçom avisou ao homem que ela guiava uma cega. Desobstruiu o caminho andando de afasto e gesticulando as mãos como quem se desculpa.

A cena se dera na sutileza dos olhares, Flora nada percebera. No entanto, notou que a amiga ao retornar à mesa ficou muda. Aquela alegria de quem está à vontade desvaneceu. Mais tarde no carro, que pertencia a Flora mas era dirigido por Cecília, esta lhe contou o ocorrido. Não riu. Não achou engraçado. Por mais que Flora perguntasse o motivo da tristeza, ela, muda, não revelava. Nem ela mesma, naquele momento, saberia dizer o turbilhão passado por seus pensamentos.

A aranha, terminando sua teia, parou. Cansada da tarefa árdua a que estava predestinada desde sempre e para o sempre. Desta teia dependia a sua vida, breve vida das aranhas, tecendo úteis frágeis belezas simétricas, despercebidas na voragem do cotidiano.

Beleza. Era isso! Beleza! Cecília e Flora teceram sua amizade nas teias do viver. Transformaram o destino árduo, os estigmas, como insistia em afirmar Flora, no prazer de ver. Isto! Ver! A aranha supera-se a cada teia, por mais que a simetria dos fios pareça sempre a mesma.

Cecília ligou para flora: “Alô, descobri o segredo da teia”.

Flora respondeu: “Ainda bem, eu já sabia”, e emendou: “Almoçamos amanhã”.

(Cadernos negros 24, p. 89-93)

 

Amigas

O elevador chegou ao térreo. O alarido do vozerio, logo que a porta se abriu, dominou o hall de entrada do prédio, estridente como canto de cigarra ao sol. Não condizia aquela felicidade de piquenique num dia que amanheceu nublado; agora, chovia garoa fina e irritante. Elas sorriam, falavam alto. Carregavam nas mãos objetos coloridos di­fíceis de distinguir. Alguma coisa brilhava, não só nelas, mas também em suas vestes, ao seu redor.

Não tive tempo de me arrepender. Notei pedaços humanos espalhados por toda a sala, forravam o tapete e as paredes como enfeites, bibelôs, pareciam ofertados. Minha cabeça doía. Foi tudo muito rápido.

A garoa molhava as cabeças das ruidosas transeuntes. As vestes coloridas e vistosas brilhavam como se o sol reinasse naquele dia nublado. Falavam ao mesmo tempo. A linguagem era incompreensível aos demais, que corriam meio a esmo para esconder-se do vento que jogava as gotas finas da chuva contra os passantes. Elas não se incomodavam com a chuva, sorriam, falavam, gesticulavam.

Não, não foi rápido. Demorou para acontecer. O encontro tecido há anos nas entranhas do tempo, sem sabermos. Aquele dia mudaria as nossas vidas. Encostei o pensamento em algum espaço neutro. Dirigi-me à cozinha, copos de vinho sujos na pia.

Quem trouxe o vinho? Não me lembro. Preocupei-me com a faxina, sem esquecer ou lembrar. Pelo estado da casa, havia sido uma revolução. Aglomerei as louças na pia. Abri a torneira, a água escorria forte e constante. Ao virar-me para a mesa imponente no centro do cômodo, deparei com um ser sentado sobre ela, com as pernas entrelaçadas, os braços cruzados sobre o peito e um olhar zombeteiro, imóvel qual um vaso.

Sorri entre espantos. Qual delas teria deixado aquela criatura ali, esquecendo de levá-la? Sorriu-me com os olhos fechados, mantendo a posição de meditação. Havia algo de indecifrável nela. Abriu os olhos e, sem abrir a boca, afirmou ir embora. "Bom mesmo que fosse" – pensei. Não tinha serventia, ao contrário, estorvava-me. Eu estava tão cansada, os sentimentos em torvelinho, a paciência se extinguia. A criatura sentada em posição peculiar repetia em comunicação muda, falava dentro da minha cabeça que iria embora, porém não se movia.

Elas atravessavam agora uma larga avenida. O asfalto molhado brilhava. E a noite descia mansa e silenciosa. Sobre elas pairava uma luz. Emanava de cada uma um brilho especial, inexplicável, próprio das pessoas que encontravam suas próprias vidas. Irradiavam um bem-estar vindo de um tempo. Um Tempo! Movimentavam-se mais leves, mais certas.

Aquele ser ali sentado, sem serventia, não me pertencia. Eu conhecia todos os meus fantasmas, não era nenhum deles. Ignorei-o. Disse-me: "Vou embora".

Que fosse, porém não se movia. A cozinha cheirava a alho. Tudo cheirava a alho! Lembrei: "Alho purifica o sangue e o ambiente". A julgar pelo odor de alho e a quantidade de alho que ingerimos, tudo estava purificado. Ele ali aparentemente inútil, incomodando e estorvando. Fiz menção de tocá-lo. Impediu-me, levantando o dedo indicador numa ordem silenciosa. Apontou-me um seio vazando leite sobre a cadeira, era mais um pedaço humano que forrava a casa sem cerimônia.

O seio vazava leite, fazendo uma poça que escorria para o infinito, rompendo o limite do pequeno apartamento. Impedia minha passagem para fora do aposento. Lembrei que, na conversa ruidosa no encontro daquela tarde, uma das cinco o havia tirado, mostrando a todas como relíquia, dizendo: "Às vezes, me faz sonhar. Leva-me ao infinito da imaginação". Tirava-o, fazia com que todas o acariciassem como talismã, afirmava: "É preciso navegar, ir mais longe". Fiquei comovida por ela querer dividir emoções e sentimentos tão importantes, tão íntimos. Todas, cada qual na sua vez, acariciaram, experimentando sensações próprias e únicas. Agradeci a oferta, num sorriso, e acariciei tímida, sentindo a maciez e o calor da pele.

Caminhando nas ruas da cidade, elas agora relutavam em se separar e seguir seus destinos de pássaras. E eu ali no espaço, que, naquela tarde, serviu para quebrarmos limites. E os pedaços dessa quebra espalhavam-se por todos os cantos. E ficou aquela estranha criatura sobre a mesa. E acreditar que aquela tarde diáfana, de encontro de existências, aconteceu apenas para nos alimentar naquilo que teríamos que fazer na vida. O caminhar. Na passagem do plural do ser para a singularidade de ir, prolongando sensações, adiando a separação. Eu fiquei, elas foram per­correr outros mundos. Havíamos nos reconhecido como um clã distinto. Quem sabe éramos herdeiras das sacerdotisas Geledes, e por uma trajetória trágica tínhamos comido do fruto da árvore do esquecimento. E naquela tarde juntaram -se em nós os murmúrios de vozes seculares, infundindo verdades, quem sabe?

Apesar do mau tempo, riam, um bem-estar percorria-lhes as veias. Pararam um pouco na esquina. O momento chegava. Hora de ir, não dava mais para adiar. Tarde de muitas descobertas, de muitos sonhos, como se o invisível nos tivesse reunido ali com intenções secretas, separando-nos depois para vivermos nossas importâncias. Eu ali fisicamente em meu apartamento, mas ligada a elas por um fulgor de intensa magia; de olhos fechados vi as luzes arco-íris, igual à cauda de um cometa, magnetizá-las lá na distância da rua e alastrar-se irrompendo em minha pequena residência, onde conhecemos a certeza de não estarmos sós.

Elas, as pontas de um pentagrama, estrela do cometa, vieram de longe, de muito longe para além delas mesmas, para encontrar-me cadente a procurar esperanças. Percorremos dúvidas e certezas; juntas, misturamos nossas marcas, trocamos e espalhamos belezas. Abri os olhos, deparei com a estranha figura instalada em minha casa; sem abandonar a postura corporal, moveu um dedo, e todos os pedaços humanos espalhados na casa grudaram-se a ela de maneira desordenada.

Uma luz, uma breve luz colorida qual relâmpago acendeu-se no ambiente no centro de tudo; assistia, via e ouvia, porém sem poder interromper. Depois, tudo se apagara. Quando tudo voltou ao real, minha casa reluzia.

Eu sabia que não tinha sido um sonho. Eu sabia! Sentia-me mais forte, capaz de voar, flutuar, dançar. Na esquina, elas também criaram asas, foram cada uma para um lado deixando um rastro de luz na paisagem.

(Cadernos Negros 2, p.103)

 

Bará na trilha do vento

O ar, ao adentrar abrupto nas fendas estreitas do poço do elevador, fez vibrar objetos metálicos soltos, reverberou qual agogôs, como a despertar sensibilidades adormecidas. Ela abriu a mão, aspirou o odor do sumo da folha, uma vertigem acometeu-lhe, teve a impressão de girar no eixo do próprio corpo, o medo a apossou. Desapareceram os contornos do corpo, um tilintar estridente, qual chamado, inicialmente distante, mais próximo e forte na medida em que a sensação de ser mais leve que o ar a dominava. Flutuava em direção ao tilintar de campainha que soava alto. Os pés tocaram o chão, reconheceu cada canto, cada cheiro, fez menção de levar as mãos em concha aos ouvidos, para abafar o ruído, não concretizou a intenção. Espantada, percebeu que não trajava mais o robe confortável de seda azul, com estampas sutis de estrelas e nuvens brancas, sobre a camisola curta, azul claro, sensual, com sofisticado brilho e suave caimento, atada aos ombros por alças finas, delicadas e enfeitadas com detalhes de strass e pérolas. Embaixo da camisola os seios firmes, livres do sutiã, balançavam discretos e naturais, roçando docemente o tecido fluido escorregadio.

O tilintar de um relógio despertador ecoava intermitente, com pausas breves. Através da névoa que se dissipava lentamente, ela entrevia detalhes do ambiente e caminhou às cegas pelos cômodos da casa. Pisando o assoalho de tábuas de peroba encerado, guiada pelo ruído, encaminhou-se em direção a uma porta robusta, de madeira pintada, fechada. Ao chegar à soleira, reteve um gritinho quando o despertador, dentro do cômodo, tornou a soar. Aproximou, com dificuldade, a mão até a maçaneta, não a alcançando; a estrutura corporal tinha diminuído para a de uma criança de sete anos. Nas pontas dos pés, esforçou-se para girá-­la e a porta, ressoando um clique, destrancou. Empurrou-a lentamente, espiou pela abertura, o coração batendo descompassado; vislumbrou a cama de casal de seus pais, em madeira escura, a cabeceira sustentada por duas colunas em forma de lança. A colcha violácea bordada à mão, flores brancas, e os babados franjados, quase até o chão, tudo intacto, como se, num capricho inexplicável, o tempo tivesse perpetuado o cenário vivenciado na infância. "Mas, como?". Abismou-se, os anos se passaram, ela cresceu, tornou-se mulher, no entanto, encontrava-se na sua antiga casa, criança ainda. Cabelos trançados, enfeitados com grande laço de fita branca, esmerado na goma do tecido e no capricho da amarradura da laçada, vestidinho sempre bem passado, as meias soquete brancas e sapatos pretos engraxados e lustrados, por obra e arte de Dona Trude.

Emoção mista apossou-se dela, a criança temerosa em ser flagrada a bisbilhotar, a adulta, presa no corpo criança, impotente. Confusa, desejou voltar à segurança do confortável apartamento, respirar o ar morno e umedecido após a chuva. Mas, presa ao passado, vivenciava o pretérito do futuro, mergulhada, impulsionada por desejos e curiosidades infantis; apesar da presença da consciência adulta, perdera o comando das ações. Guiada pelo som do despertador, reconheceu de imediato o relógio preto sobre o criado-mudo, se encaminhou até ele e o apanhou. "O despertador preto. Os números e ponteiros verdes brilham no escuro". Balbuciou, assustando­-se com o timbre acriançado da fala. "O despertador preto". Repetiu mais alto, tentando reconhecer, naquele tom infantil, a voz aveludada, com um quê rouco e sedutor, que possuía e do qual se orgulhava. Utilizava­-se deste recurso natural, como os antigos flautistas hindus valiam-se do instrumento para neutralizar o instinto de ataque do ofídio venenoso que, encantado, aquietava-se tornando-se aparentemente inofensivo.

(Bará na trilha do vento, p. 31-33).

 

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