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No dezoito de julho de nosso senhor fugou da casa dos gonçalves sem motivo aparente a parda escura de nome anagilda lavadeira pequena estatura olhos de azulejo pouco falante quase muda idade entre quatorze vistosa feito alguma helen de santa lucia também engomadeira também cozinheira também planchadeira também de pés tão inchados e sumarentos quanto a promessa de algum domingo.

“Mão de milho e marulho”. Não calçava chinelos. Não sofria castigos.
Gostava de certas horas, como às quinze para cinco.

 Suspeita-se que sobre cada um dos ombros sacos de juta cheios de arroz branco suspeita-se que sobre cada um dos ombros tigela com água e pano de prato e a cristaleira que com tanta diligência e o serviço de chá com margaridas nas bordas suspeita-se que entre os dez dedos um caco de cerâmica portuguesa suspeita-se.

Não calçava chinelos. Não sofria castigos. Usava saia comprida de algodão bata encarnada e no coração de ferro em brasa o preço do crucifixo doado pela senhora.

Seu senhor é de beira.
Seu senhor é de tribeira.
Manda assim a quem apreendê-Ia que faça sua entrega.

A promessa é da lei para quem a acoutar.
A promessa é da boa paga para quem a devolver.

"Mão de milho e marulho". A fugitiva não calçava chinelos. A fugitiva não recebia castigos. No entorno das cadeiras um saiote de algodão o batom encarnado e no pescoço de garganta dilatada o crucifixo de madeira bem usado contra a senhora.

 Soube-se que assim vai vai quase acocorada.

(e se alguém o pano, p. 19)

 

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o descasque da quinaria dos cântaros
até que o tric tric
a negra nega fulo
como se já não bastasse
do Alabama para roubar nossa pele
ê eta molambos apossados
a nega moura a negra fulo ao prelo
mais que o protocolo dos casacos o baque dos talheres
heeiiiaaa os cosongos à sopa
banquete feito colheradas de terra
judiaria essa negrinha lhe mediram boas as três braças
por que nervo
quer dizer metades de lua com a guarda-baixa
não se trata de a raiz – cascas as medalhas
a era do sôngoro cujo son ecoou na falta
há muito se abasta
com o refugo das línguas (com molho)
com o metiê dos dois pés na taça
ê eta a nega ê eta a negra fulana
termo de pregação dos cabelos a prêmoi
pré-molares esquecidos do braseiro
heeiiiaaa
em qualquer saco (de novo)
o pan pan pan dos martelos

(e se alguém o pano, p. 21)

- 4 -

 

se mancenilhas na língua
norma de pedra e sabão
se às prontas tortilhas
dois pulos
sobre as patas do boi

se o sôngoro sabe
se contra o couro
querela a savana

e se irene não-à-lei
e se irene não-sinhô
e se não-tão-preta
e nem-tão-boa
e se ainda aos piores mortos
o amém das moças

e se não-não-iá-iá
e se tome
e se ainda o amontoado atamanca

e se alguém o pano

disfarça-lo com um manto
a animália-dilúvio
a cruz-escudo
a rotina dos túmulos pela última vez

au-delá
oh gente do Alabama

tombem as louças contra a lâmina
seu manuseio – a convenção mais antiga
banida dos brasões (aqueles)
ranhura na sala dos infantes

(e se alguém o pano, p. 23 - 24)

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Mil réis a quem (com vida) aos seus donos (família brochado) braço da fazenda.
A senhora sem fome e fortes dores no peito.

A negrinha na primeira noite de abril – em sua posse o lampião a querosene da cozinha.
Ossuda alta a cabeça guirlanda.
A boca um pote de terra.
Ainda com anjos maometanos e outras bobagens.
Atrevida. Desconhece dinheiro.

 Pelo nome justina que talvez ainda atenda.

(e se alguém o pano, p. 27).

 

 

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a mais negra a mais dura
com sua boca de tomates
amarrada até as unhas

que se vistam desse traje
os braços já sem donos
o café cada vez mais negro
o nó da madeira mais pura

que se vistam desse traje
o lombo de oito cavalos
os lenços mais vermelhos
os oito cravos de chumbo

que se vistam desse traje
os cigarros do coveiro
as raízes ontem camélias
as tortilhas mais tontas

que se vista desse traje
o cocheiro mais bêbado
o mais negro o mais lúgubre

e bem antes de anoitecer
e bem antes de amanhecer
que se adone a morte de tudo
do mais antigo e negro
do mais negro e chumbo

(e se alguém o pano, p. 71)

 

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o que jamais se pronuncia
o que não se conta ou canta
o som que não se dá ou tira 

um grito comprimido pílulas
esguicho de espuma seringa

dor que dormida se surpreende
colônias de leprosos ou loucos
feridas de sol nas boquilhas

o que se mendiga as louças escondem
têm palhetas nomes vozes vento
têm a bandeira dos ferros na camisa

sabem do rancor que se fatiga
do que se espera e extravia antigas cidades
com suas praças onde os suicidas

pompeia e seu jardim seus quartos de cinza
surdas aos ecos de sexta-feira sapatos e domingos
ruínas que não se abalam às notas das lavadeiras e dia
dia a dia de escassas campânulas, dó e anestesias

(e se alguém o pano, p. 77)

- 35 -

 

acocorado sobre as missangas
mais que laissez-faire nas savanas
pelos calcanhares, em pêndulo, o trem de carga
arauto ou naufrágio os seus vagões, quem sabe
ante as conchas argonautas, quem sabe
um mundo à plancha – lume para os éditos em tesoura
quem sabe a morada do carimbo nas costas
o valor (bruto) – uma nota de quinhentos, quem sabe
os cotovelos canhotos em santa bárbara, quem sabe
queda de três – nenhuma que derrube a tarde
o xique xique xique (só) a uma
e ainda no lugar da cicuta
já os estilhaços a léguas: dinheiro anônimo com seus gumes no colo
(alguém deve ter trabalhado nessa linha) uma estação de coisas
feito a ponta da língua na tentativa dos pássaros
ui ui ui oh oh seu maquinista atenção o suicidado c.p nos comboios
agora a picumã mais quente baloiça os mouros
onde o diabo de pura preguiça depôs seu sono
opa, opa, cruzamento, um odor à menta, rosas sobre as cabeças
e logo um desvio pelos seios das candongas
e também o carneiro com velos de ouro (a quem importa)
e uma garrafa de cana para aquietar os mortos
o mastiga mastiga (bem) as balas de pistola ou de morango
e o pão caseiro das cambonas como efeito do que não se pode
a redoma das rodas, âncora de cada uma das prestações de contas
um dia com mil dívidas – de certo modo uma locomotiva e sua xerazzade
com a boca cheia de sardinhas, ora ora quem sabe cocaína ou Antígona
que entre nós se amouca
e palha na levada tão velha

(e se alguém o pano, p. 85)

 

- 37 -

 

que ficasse dez anos
o seu braço – o remador – o tempo de me ver outro
mas desde que decido o meu da vida
não sei que torta vontade vem a mim
que não sei dizer as estrelas ou explicar o outono
que imbecilidade querer que ficasse
já eu não rasgaria a certidão de nascimento
no máximo uma ou outra xícara de café o mais negro
as pérolas? as pérolas aos retratos da parede
cômodos com essa doença de mariscos entre os dentes
eu – como se falasse a voz de parto difícil
eu – que a palavra custasse o copo de leite
os nomes dos faros dos reis assírios filósofos anaximandros
todos a única árvore cuja raiz não encontra terreno
e se negou a ficar se negou às romãs domésticas
a ocupação dos sapatos
se negou à visão de “B.A.” muito limpa
se negou aos cocheiros aos engraxates
às criadas louras como se viam na vogue de Londres
se negou ao arrastar do mundo com o pescoço
como se o redondo fosse uma trouxa (de roupas)

(e se alguém o pano, p. 89)

 

 

- 38 -

 

como a flecha acerta o alvo
o braço não erra
onde os dedos roçam

braço cego (que assim nasce)
é louça que ferve o leite
com seu engomado traje

de sua cegueira o ver-se alforriado
o emparedas as fronteiras
qual pasto do minotauro

e por cima ainda a prataria
a burocracia das fístulas cateteres
o solene ato – a doação das fraldas

arco que bateu roupas ora boneco de trapo

que se lavre o mais perfeito auto
tal se lavou perfeitamente
a mais limpa camisa do mascate

mas o corte que depõe o prato
mas o ribombar das camélias banidas pela morte
apenas isso é verdade

(e se alguém o pano, p. 91).

 

 

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atenta e espera atenta e espera
como quem cruza a linha férrea

fundidas as peças
és o dono do teu cachorro
o dono do linho que apodrece no teu corpo
escombro e chumbo
ainda o dono das sobras
grossas duras solas soldadas na roupa

naufrágio que replanta o chão e o socorro
até que a pisada escura
que não a de um santo
marulhe as coisa e te faça novamente amo

até que a raiz daquele grito
vistorie o destino
e te ensine o saber do fogo

(e se alguém o pano, p. 95)


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