Da gata
 
Era uma vez a gata.
Prenha gata.
Sozinha no fim-de-semana
deu à luz quatro gatinhos.
Sem trauma, sem parteira, sem curativo.
 
Agora cinco gatos vagueiam pelo palácio
Saudáveis. Negros. Independentes como nunca fui.
(Biombo, 1989, p. 13).
 
 
Cena rodoviária
 
No ônibus
a moça branca faceira
flerta
o moço preto bonito
 
Trocam bancos se avizinham
se dão mãos braços bocas
se bolinam publicamente
contam moedas dos bolsos
- poucas para o motel
 
Súbito
ela se pinta
se penteia
se afasta
O ônibus alcança
a última ponte
a última parte
 
O moço preto bonito
guarda moedas no bolso
guarda mãos no bolso
guarda os beiços no bolso
 
Vê a faceira donzela sair
se afastar célere
maquiada
sem olhar para trás
 
O moço preto bonito
suspira
aprende e
aprende
(Seminovos em bom estado, 2003, p. 36).
 
 
Cena da madrugada
 
Madrugada. Casais forasteiros
passeiam e em seus braços há
negros bebês retintos. Que choram.
Crianças atônitas ouvem
texto sem mensagem (exportação de negrinhos)
 
Madrugada. Gigantescas baratas
passeiam e, em seus dentes há
alimentos de outros filhos. Que fogem.
Saem do quarto, procuram seus pais.
 
Madrugada. E portanto gordos morcegos
(aladas codornas) sobrevoam por alimento.
Brilham famintos seus olhos e esperam.
E vigiam.
 
Longa madrugada: há negro doberman
à espreita de nossos filhos. Seus e meus filhos.
 
Há muito do que fugir: da rede, do inseto,
do vampiro e do cão. Cabeças explodem
em mil e o sangue,
 
o sangue se espalha pela cama.
Ainda é madrugada
(Seminovos em bom estado, 2003, p. 37).
 
 
Da raça
 
Puseram vestido de seda na negra
pano da costa sobre o blazer
 
Alisaram a carapinha da negra
de bandós em edemas
 
Calçaram saltos na negra
que brinca descalça -
perna aberta sob a mesa
 
Intelectualizou-se a negra
e ela brinca
faz chiste
com essas palavras tristes
((re)confesso poesia, 2009, p. 44).
 
 
Separação de corpos
 
Há sempre um mar
separando dois corpos
Certas vezes há ilhas
arquipélagos desunidos
que afastam suas almas
Mares de todo tipo
separam sempre dois corpos
revoltos de espuma calmos na espera
Há raras pontes sobre mares
mares de muitas cores
afastam corpos distintos
Oceanos frios e espumosos trazem
cadáveres à praia, um por vez
é o que fazem enquanto venta
é o que dizem se silenciam
 
Corpos vivos são sempre
separados por mares
A distância maior é aquela
que sempre separa dois corpos
(porque às vezes
os mares
são de lágrimas)
((re)confesso poesia, 2009, p. 64).
 
 
Cena sertaneja
 
Serpentes negras foscas invadem
ameaçando o sertão
incompreensíveis na paisagem
avançam canaviais adentro
rebolando sinuosas no ventre
miserável. A fome
se instala às margens de
mãos e rostos enegrecidos
 
Sol, fuligem e muita dor
sugam canas impróprias
não mais caules em fruto
apenas seca matéria-prima
rostos e mãos carregam armas
afiadas (para o trabalho) e cegas
(na parelha com a justiça)
 
A serpente asfáltica
plana e lisa ressalta na paisagem
(estrada do coronel
asfalto do coronel)
fazendas canaviais usina.
Por enquanto a Miséria estende o braço
e implora por mais um dia
((re)confesso poesia, 2009, p. 78).
 
 

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