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Aiwê! Aiwê!¹
Aiwê é uma palavra em quimbundo, uma das línguas faladas em Angola, na África.
Aiwé traz dois significados, contraditórios, mas que carregam a mesma energia.
Aiwê significa dor e alegria. Dois sentimentos formados pela energia que vem daqui de dentro. É awiê que diz quem somos. Do que temos medo e do que nos faz feliz.
É essa a energia que envolve a história que eu vou te contar hoje.
A história de um menino chamado Kiluanji.
Kiluanji era um menino, um garoto nascido e criado pelas terras de Cabinda, lá no norte de Angola. Seu nome foi dado pelo seu avô e significa “corajoso”.
O avô de Kiluanji era um velho sábio de Cabinda e preservava muito da cultura ancestral, especialmente as línguas de Angola e os ensinamentos.
Mas Kiluanji, apesar da pouca idade, era muito ligado aos acontecimentos que ocorriam em toda Angola. Kiluanji queria fazer algo, queria ajudar seu povo. Mas ele era muito intempestivo,
O avô de Kiluanji, vendo a agitação do neto que estava prestes a se envolver na guerrilha, chamou sua atenção com uma palavra: Xê!
Kiluanji e seu avô foram conversar no centro da mbala, a aldeia onde moravam. Lá, o avô de Kiluanji fez com que ele olhasse tudo a sua volta e disse: za kuku, vem cá, za kuku.
Kiluanji, obediente ao avô, olhou para onde ele apontava e ouviu o seu avô dizer: “nada vai te fazer fugir do teu destino. Tu és guerreiro e um guerreiro sempre encontra outro no caminho. E quando isso acontecer, seu espírito vai xinguilar! Sacudir, tremer. E você deixará de ser menino para se tornar homem”.
Kiluanji ouviu atentamente e respeitosamente as palavras de seu avô. O velho já sabia do destino de seu neto.
Naquela noite, Kiluanji partiu em busca de seu destino. Ele se filiou a guerrilha que lutava pela liberdade de seu povo. Logo no primeiro dia, se viu em uma emboscada. Kiluanji nunca havia pegado em uma arma e estava com um rifle em suas mãos, sem saber o que fazer. Seus companheiros, um pouco mais experientes, decidiram fugir na moto em que estavam. Três jovens soldados, numa moto voando por entre as areias de uma longa estrada. Fugindo de balas, fugindo do seu próprio medo.
O coração de Kiluanji estava pra saltar! Aiwê! Era emoção e medo voando naquela moto. De repente a moto bate em um monte de areia e cai. Os dois companheiros conseguiram se levantar rapidamente, subiram na moto e continuaram a fuga.
Kiluanji ficou. No meio da estrada cercada pela mata densa. Mas não estava já tão só. À espreita estava nkosi, o leão. Que aguardava o melhor momento para atacar.
Aiwê novamente. Tensão, medo e coragem misturados. Kiluanji segurou o rifle e apontou.
Será que ele teria coragem?
Mas nkosi, o leão, não seria único alvo de Kiluanji. Ele sentiu a presença de alguém e, quando virou, estava ali, parado, diante dele um homem que ele nunca tinha visto. Provavelmente, um morador daquela região de mata, um criador de animais. Ele trajava vestes tradicionais da região. Tecido amarrado em seu corpo de forma simples, pés no chão. Mas o que chamou mesmo a atenção de Kiluani foi a lança que ele carregava.
Kiluanji lembrou de uma das histórias de seu avô que disse que um guerreiro de verdade carregaria consigo a lança mais forte do mundo. Não sei como, acho que nem ele, naquela hora foi isso que veio a sua mente.
Kiluanji desejou a lança do homem. Desejou tanto que esqueceu de nkosi, o leão.
Kiluanji tentou tirar a força a lança do homem que imediatamente pegou em seu braço e disse: kana! não.
Kiluanji tentava se sair das mãos daquele homem gritando: “tunda, tunda”, sai, sai.
E nkosi, alí à espreita, assistindo a cena e esperando sua deixa.
Kiluanji, como sabemos, é um jovem intempestivo, impaciente, não quis ouvir o que o homem tinha para lhe dizer e tomou sua lança e fugiu.
Essa era a deixa para nkosi! Que o perseguiu com toda sua rapidez de caçador. Os olhos de nkosi estavam vermelhos como chamas, enquanto os olhos de Kiluanji, estavam vermelhos, mas de medo.
O homem então, temendo o que aconteceria, entrou nessa perseguição também.
A lança ficou para traz pois agora Kiluanji queria se salvar e isso lhe deu coragem para apertar o gatilho.
Mas não seria tão fácil assim derrubar nkosi. Precisaria destreza, força e muita coragem.
A munição de kuluanji acabou no exato momento em que nkosi saltou em sua direção. Também no mesmo momento o homem desconhecido alcançou a lança e a jogou.
Nem queiram imaginar o que aconteceu!
Nkosi caiu. A lança que tanto Kiluanji queria, o salvou. Ou melhor. O homem desconhecido carregava consigo tanta coragem que a lança parecia que fazia parte de seu corpo ao voar em direção ao leão para salvar Kiluanji.
A lança fincada no chão, nkossi derrotado. O homem desconhecido, sentiu naquele momento que sua missão estaria cumprida. Ele também encontrou quem estava procurando e sumiu em meio as montanhas.
Kiluanji, olhando para a lança, se lembrou do seu avô e do xinguilar dos espíritos quando um guerreiro encontra outro.
Nessa estrada, três guerreiros se encontraram e seguiram seus destinos: Kiluanji, nkosi e o homem desconhecido.
A lança, a extensão do corpo de um guerreiro, é também a extensão da energia vital que corre em nossas veias para o medo e para a alegria.
Kiluanji resolveu voltar para o seu lar. Desta vez não era mais um menino. Seu avô, sentado à somra de um imbondeiro, lhe sorriu com orgulho.
E toda mbala pulava e cantava:
Aiwê!Aiwê!
Zuela aiwê!
Glossário
Kiluanji: Nome de pessoa na língua quimbundo que significa corajoso;
Imbondeiro: árvore sagrada, o mesmo que baobá;
Aiwê: expressão de dor, de aflição, mas ao mesmo tempo pode ser de felicidade;
Xê: expressão para chamar a atenção de alguém, grito de espanto, susto;
Nkosi: leão, na língua Kikongo – Angola;
Mbala: aldeia, sanzala, na língua Limbundo – Angola;
Kana: não, na língua Kimbundo – Angola;
Xinguilar: dançar, tremer, entrar em transe, ser atingido por espíritos, na língua Kimbundo – Angola;
Za Kuku!: Vem cá!, na na língua Kimbundo – Angola;
Tunda!: Sai!, na na língua Kimbundo – Angola;
Zuela!: Fala!, na língua Kimbundo – Angola.
(In: Coletânea de Contos Africanos: práticas de um processo criativo. p. 51-59)
(Re)Existências: historicidade e militância ²
Ei! Vou te contar uma história.
Eu sou do Maranhão, uma terra de lutas e de resistências que movimentam a nossa identidade.
Aqui no Maranhão, nossos movimentos significam andar, cantar, falar, fazer arte para exigir nossos direitos. Território, educação e saúde sempre fizeram parte das lutas do povo negro maranhense. E nossa ancestralidade nos acompanha em cada passo que a gente dá.
É na pungada do tambor de crioula e no urro do boi que nossas histórias giram e se encontram. A pungada é o encontro de umbigos das coreiras no tambor de crioula que reverenciam a vida em comunidade. O urro do boi é um grito de resistência que no bumba-boi do Maranhão chama todo mundo para guarnecer, para se organizar. E assim, a gente percebe que nossa luta se faz no coletivo. E que cada encontro é sagrado. É assim que a gente organiza nossas lutas todo dia. Sabia que somos herdeiras e herdeiros de grandes lutadoras e lutadores?
Somos herdeiras e herdeiros de Negro Cosme, o Cosme Bento das Chagas que no século XIX liderou uma das maiores rebeliões populares do Brasil, a Balaiada e que fez da educação uma arma contra a escravidão. Também somos guiadas e guiados pelo Axé!
Nossos corpos se movimentam, dançam e reverenciam a força dos encantados, dos orixás, das yabás e dos caboclos pelos caminhos da justiça, da liberdade e da irmandade.
E é assim que o Maranhão se movimenta!
Em cada canto dessa terra o povo negro organizado resiste e (re)existe. Entidades, organizações, gerações que se cruzam para ensinar e aprender ao mesmo tempo.
Para entender essa história de luta, você precisa conhecer as organizações e pessoas importantes nesse caminhar: como o Movimento Quilombola do Maranhão, que representa quilombolas da cidade e do interior resistindo pelos seus territórios.
Nossos corpos falam, e como falam, dançam e cantam! Conheça o Bloco Afro Akomabu, o Movimento Hip Hop Quilombo Urbano, os grupos de tambor de crioula, a capoeira e o reggae que trazem em suas linguagens as denúncias e os desejos pela liberdade.
Mulheres sempre à frente. Grupo de Mulheres Mãe Andresa, presente! Os movimentos da maternidade e da comunidade nos trouxeram até aqui: Ana Silvia Cantanhede, Mãe Andresa, Mãe Dudu, Catarina Mina, Maria Aragão e tantas outras que nos dão a mão em nossos primeiros passos na militância.
Na gira dos movimentos, a luta se faz presente e sempre retorna ao passado para beber da fonte e costurar um futuro justo.
O movimento negro já possui muitas vitórias conquistadas com empenho coletivo e respeito a quem veio antes de nós. Conquistas como a Lei 10639/2003, o Estatuto da Igualdade Racial e a lei de Cotas são exemplos de como o movimento negro no Brasil luta desde sempre e se fortalece em quem vem chegando para somar.
Agora, até você entra na roda e faz girar esse movimento de luta. Resistir e lutar são os verbos que mantêm vivo o movimento negro no Brasil e no Maranhão. Aqui sua voz também traz história e mostra que mesmo pequeno, temos o poder da mudança.
(In: (Re)Existências: historicidade e militância)
Notas
¹ Texto publicado originalmente no livro Coletânea de Contos Africanos: práticas de um processo criativo (2020).
² Texto publicado originalmente no livro (Re)Existências: historicidade e militância (2023).