Identidade
Meu nome é Elizandra
Filha do trovão e do vento...
Gosto de pensar as palavras
... ler os silêncios
... brincar com os livros
... amar é o verbo que mais sei conjugar
Passado, presente, futuro...
Eis que um dia rascunho... maré e terra...
Terra e maré... sou de água, mas sou de terra...
Sou de terra e de mar
Quero sentar na areia, receber de leve uma maré
Amar com calma e velocidade
Com velocidade amar...
(Águas da Cabaça, p. 14).
Espelhos de Iara
Todas as nascentes
Confluentes do meu ser
São doces águas
Enchendo minha cabaça
Sou toda cachoeira
Gingando nas pedras
Respingando no infinito...
Sou rara no universo
Liquidez dessa humana
Existência...
As águas do meu corpo
Suores, salivas, sabores...
Sou jarra de gotas cristalinas
Águas doces que brotam
Dos meus olhos d’água
Sou espelho de Iara...
(Águas da Cabaça, p. 16).
Abelha Mandaçaia
Tão solitária e negra como eu
Abelha Mandaçaia...
... sem produção de mel?
Desabitada a procura de flor
Para bebericar do seu encanto...
Lápis de olhos...
... a esconder águas salgadas
Como não consolidar
Este isolamento, que me consome?
Esta falta de mãos grudadas
... pele que não afaga
Estou rifando essa soledade!
Trançar, eu quero, mãos pretas...
É querência de mar, e não de oásis
Perenidade entrelaçadas...
Em estações lunares e solares...
Meu viver tornou-se deserto
Os dias quentes e as noites congelantes
Um corpo sem afeto...
Repleto de roedoras,
Serpentes
E lagartas...
Peles bem alvas...
Alvejando-me por serem preferidas...
Será mesmo que eles resolvem
Esses traumas de pretos meninos?
Em outras facetas, sou eu, serpente
Cascavel do deserto, como queira...
Movimentando-me em silêncio
Para que as inimigas não me vejam...
Sentimentos fósseis...
...expostos pelas erosões
A vida inteira sem beber águas...
Longos jejuns sem morrer...
Força bruta que me dilacera
Estes secos dias, sem chuvas...
Só poeiras machucando minhas retinas.
(Águas da Cabaça, p. 27).
Violação
Toca viola, toca vitrola...
Arranca esse pedregulho
Esse mal estar social
Essa democracia racial
Presa na minha garganta
Toca viola, toca vitrola
Gira a roleta e atira
Mata esse avesso racismo
Este isto, este aquilo
Viola esta concepção
Toca viola, toca vitrola
Troque este disco riscado
Cale este cantor engasgado
Estrangule o opressor
Encerre este espetáculo.
Toca viola, toca vitrola...
Despida dessa máscara branca
Dessa falsa dança
Do estupro nos crespos
Deste modelo de mucama
Que não deito e nem te sirvo na cama
Toca viola, toca vitrola...
Porque já não me serve
Este arranhado disco!
(Águas da cabaça, p. 68, 69.)