MARIA

"Terrível e lastimosa sorte é a de um escravo.
Se some, é sempre
o pior e a mais vil iguaria,
se Veste, o pano é miais grosseiro e o traio
o mais desprezível,
se Dorme, o leito é muitas vezes a terra fria ou
uma tábua dura.
O trabalho é contínuo, a lida sem sossego,
o descanso
inquieto e assustado, o alivio pouco e quase nenhum;
quando se descui­
da, teme, quando não pode, violenta-se,
e tira da fraqueza força.”

Jones
Racismo e Preconceito
 

Sim, dizia ele, nós trazemos, dentro de nós, este espírito de luta de nossos antepassados.

Maria adora quando Jorge lhe declama este trecho, tirado não sabe de que livro mas que a encanta muito. Ele sempre lhe diz, mas ela sempre esquece. E ela cada vez mais se encantava com aquele rapaz, pois ele apresentava qualidades que até então ela só encontrara em brancos, mas também, dizia ela, é que ele fizera até o segundo ano de filosofia; não continuara devido a alguns problemas de família. Esta explicação era sempre dada quando Jorge impressionava também suas amigas.

Maria já não pensava em mais nada a não ser ter aquele cara que a impressionara tanto, não só a ela mas a sua família, amigos. Como era desembaraçado, como sabe dialogar, como parece saber a respeito de tudo, diziam todos.

Jorge, por sua vez, se sentia cada vez mais orgulhoso por ter despertado paixão naquela criatura aparentemente tão frágil, bem inde­fesa, com tudo para aprender, menina de família – estava quase sempre acompanhada de sua mãe, senhora já de meia idade ou de sua irmã bem mais nova que ela.

Maria encontra em Jorge tudo o que sempre procurara no negro e que foi sempre negado pela sociedade na qual vivemos, uma inteligência, um QI, como querem eles. Jorge encontra em Maria tudo aquilo que dignifica um homem, uma menina de família, nem muito inteli­gente e nem muito burra, e sobretudo com uma virgindade acima de qualquer suspeita; dizia sempre ele, virgindade é algo muito raro hoje em dia. Quando ele dizia isto ela sempre ficava um tanto confusa, pois varias vezes o escutara dizendo coisas contra virgindade, no centro comunitário do qual ele fazia parte, mas ela jamais ousou contestar o que quer que seja dito por ele, pois quem era ela para discutir com ele? As poucas vezes que tentara, saira mal, sobretudo no entender dele.

A idéia de casamento, cada vez mais, tomava vulto nos dois, mas como nem toda felicidade é completa, ambos se encontravam diante de um sério problema: mesmo com a grande inteligência e capacidade de apreensão da realidade social em que vive, Jorge não consegue um bom emprego. E Maria como toda boa moça de família costuma frequentar missas, e, como boa cristã, faz sempre promessas, pedindo isto e aquilo aos santos; pede pois, com todo fervor, para que Nossa Senhora, Mãe e padroeira deste imenso Brasil, ajude o seu Jorge conseguir uma boa colocação, graça esta que, acredita ela, não ser difícil para a Santa realizar, uma vez que Jorge é um cara instruído e de boa aparência.

Em maio e realizado o grande sonho de Maria, no dia 25, para ser mais precisa. Maria jamais irá esquecer este dia, sem dúvida o mais lindo de sua vida. A igreja fora toda enfeitada de margaridas brancas, estava linda, quase todos os convidados foram à igreja, sua mãe ficou bastante satisfeita pois até o candidato a deputado do bairro compa­receu às cerimônias. Jorge estava lindo. Não ficou nem um pouco nervoso durante as cerimônias. Neste dia, a família de Maria gastou nulo o que tinha e o que não tinha. Seu pai fizera questão de arcar com a festa e toda sua despesa sozinho, e já havia dito que não queria saber de qualquer comentário que não fosse favorável à festa, e realmente, tudo correu muito bem.

Maria, como havia prometido, um mês após o casamento, leva a Aparecida do Norte, conforme prometera, uma fotografia do seu grande dia, e deixa-a aos pés da Santa, isto pela graça concedida: O “emprego” de Jorge e seu casamento. Hoje, após 4 anos de casada, Maria com três filhos, na véspera do 4o, tem plena consciência da falta de sorte de Jorge, a inveja, disse uma comadre dela, deve ser o que mais atrapalha, por ser ele bonito, inteligente. Pois é, diz ela sempre com pesar: o máximo de tempo que ele conseguiu ficar em um emprego foram cinco meses. Às vezes, quando falta o que comer em casa, Maria chega até pensar que seria melhor se seu marido não fosse nem tão inteligente e nem tão bonito, mas logo ela apaga este pensamento de sua cabeça, ela ama em Jorge, sobretudo, sua grande inteligência. Em horas de grande desespero seu marido tem sempre palavras de alento. "Tudo, querida, tem remédio", e Maria sabe que po­de contar com sua mãe. Ela durante todos estes anos não lhe decepcio­nou nenhuma vez, como o próprio Jorge diz. Sua mãe é ponta, nunca dá furo. O que mais deixa Maria magoada são certos tipos de comentários. Por exemplo: sua irmã teve a ousadia de dizer, outro dia, que o seu Jorge é um grande vagabundo. Diante da infâmia, Maria deixou de conversar com sua irmã durante 5 meses. Uma amiga, outro dia, disse ter visto Jorge em uma festa com uma outra garota. Mas Maria não acredita nestes tipos de comentários a pedido mesmo do próprio Jorge, que diz sempre e com muito carinho: "Só quem pode realmente saber o que sou, ou quem sou é você, que convive comigo 24 horas no dia. Me diga, amor, quem mais pode saber?" Jorge, diz ela, é muito mais que um marido, é um amigo, um amante, a ele só falta um pouco mais de sorte que, sem dúvida nenhuma, um dia ele terá. Maria tem hoje mais certeza disto do que ontem, pois isto lhe foi dito por uma Mãe de Santo de um terreiro muito bom que lhe indicara a madrinha de sua filha mais nova que costuma frequentar terreiro. Quem não gosta deste tipo de coisa é sua mãe; seu maior desgosto, diz ela, é ver sua filha atrás disto. Diz ela ser crendice de preto ignorante. Mas na verdade Maria já não acredita na força destes Santos de Igreja, só oração ela acredita que não funciona, e outra coisa que ela costuma dizer é que neste mundo onde o dinheiro impera, todos, inclusive os Santos, só lhes prestarão favores mediante pagamentos. Jorge costuma também dizer que ignorância é achar que as religiões africanas são crendice. Apesar de Jorge lhe dizer sempre isto, ele não gosta também que Maria vá a centros, o que ela sempre faz escondido para não vê-lo nervoso.

Jorge sempre lhe explica o porquê de não gostar que ela frequente isto mas ela nunca entendeu. Em dias chuvosos ela se angustia muito, mas ela sempre fora assim, os dias de chuva foram sempre os piores. E é nestes dias que ela maldiz sua sorte, sente vontade de deixar tudo, mesmo o bonito e inteligente Jorge, chega mesmo a pensar que sua irmã tem razão, de que ele deveria se esforçar um pouco mais, que beleza, como diz o outro, não vai à mesa. Ma$ assim que Jorge chega, todo mal pensamento se vai. Jorge tem um poder mágico de lhe aliviar a canseira quando ela chega da faxina da casa de alguma branca azeda; de lhe aliviar o cansaço depois de um tanque de roupa lavado, de uma noite mal dormida devido ao choro de uma criança que quer mamar, que sujou as fraldas ou que está com dor de barriga. Enfim ele tem o poder mágico de aliviar o cansaço da luta pela manutenção do lar que, claro, ele só não o faz devido à falta de sorte, sorte que hoje ele não tem mas que terá amanhã, assim lhe dissera uma cartomante e, mais recentemente uma Mãe de Santo.

Maria de vez em quando, aproveitando o humor de Jorge, pede para que ele declame aquele trecho. Jorge é muito bom, quase sempre entende, e a parte mais comovente é a final, pois toca-lhe bem no fundo, diz ela.

“Quando não pode, violenta e tira da fraqueza força”. 

(Cadernos Negros 4, p. 97-100)