OBSESSÃO

 Ao amigo

Alfredo Boulos Júnior

 O coração comanda meus atos. Sob seu compasso reviro de forma desordenada a gaveta da antiga cômoda. Angustio-me ante a busca inútil. Cansado, sinto o suor verter em minha fronte, enquanto um vento bom atravessa rápido a janela. Meu olhar circula lento o quarto todo. Sinto ternura ao visualizar cada peça de roupa, cada gaveta, cada armário. A velha escultura africana presa à parede do quarto, deixa-me bem. Reanimado, volto a buscar ansioso e: nada!

Cerquei-me de desconfianças. Um receio me trouxe dor, tristeza. Teria mexido em minhas coisas? Teria cumprido a promessa idiota de sumir com mi­nha camisa? Desapontado com meus pensamentos, retornei à procura.

Retirei pacientemente peça por peça da gaveta. Em alguns momentos a ansiedade da busca roubava os meus sentidos e, traído pelos meus nervos, não sabia mais o que estava procurando. A visão embaralhava-se diante das diferentes cores das rou­pas na gaveta. Minhas mãos tremiam. Em meio ao enorme mal-estar, o copo de água com alecrim sobre o criado-mudo pareceu uma luz. Aproximei-me do móvel. Segurei com firmeza o pequeno copo. Sorvi um gole. Um bem-estar percorreu meu corpo. Sen­ti-me forte. Estaria na lavanderia? Meu rosto quei­mava, sentia coceira na cabeça. Cravei firme as unhas no couro cabeludo deixando em desalinho mi­nha carapinha. A aflição tomou novas proporções, novos pensamentos dançavam em minha mente: dú­vidas, raiva. . .

– L A U R A A A A! – gritei, assustando o pequeno gato, único espectador da cena.

– Um instante, querido.

Percebi que sua voz era melodiosa apesar da tensão. Respirando ofegante e arrastando o peque­no chinelo, ela se aproximou. Em poucos segundos atravessou a cozinha e a sala.

Foi de forma tímida que a ação do tempo fez frente à sua beleza. Ela trazia sempre a delicadeza e a força dos canteiros de alecrim, arruda, guiné, que cuidava, com carinho, toda tarde. Laura é linda! Seus olhos, no momento cheios de apreensão, da­vam luz ao seu rosto.

– O que foi, homem de Deus? Você quer me matar do coração?

– Você deu fim à minha camisa?

– Que camisa?

– Você sabe muito bem.

– Q U A L? – insiste ela, disfarçando um riso no canto da boca.

– A xadrez de flanela.

Laura permaneceu firme. Nos olhos um misto: riso e medo.

Sua implicância com minha camisa era antiga. Ora era o tipo de xadrez, muito caipira; ora as cores berrantes que não combinavam com nada, dizia ela. A ausência da minha camisa xadrez fazia com que meu apego a esse objeto aumentasse ainda mais.

Meu coração tolo, desajustado, deu para apegar-se de forma estranha às coisas. Era assim com aquela camisa, pois o prazer que sentia ao vesti-la era algo inexplicável.

Foi numa manhã de sábado que a comprei. Nenhum dos meus argumentos fez com que Laura deixasse os seus afazeres para acompanhar-me às compras naquela manhã. Os movimentos de luz, cores e pessoas naquela loja me deixaram inseguro, tornando ainda mais insuportável sua ausência. Mas senti tranquilidade ao ver a camisa sobre o balcão entre muitas outras. Bem atendido, fiz a compra de forma rápida, segura. Sentia-me satisfeito e, em nenhum momento pensei que Laura pudesse não gostar.

– Sua camisa está no quartinho de costura. Peguei para cerzir os punhos. Estavam esgarçando.

Havia desdém no tom de sua voz. Minha necessidade de vestir sempre aquela camisa deixava Laura irritada.

– O que vão pensar os outros? Este pobre infeliz não tem mulher?

Minha atitude incomodava seu coração, pois os vizinhos eram cruéis, não poupavam comentários, colocando em dúvida sua condição de perfeita dona do lar.

O tempo fez germinar em mim as manias. Sentia medo diante dos limites do seu poder, pois vinha num crescendo me roubando coisas. Já não era a mesma agilidade a mover braços, pernas. A visão titubeava, se escondia, a cabeça enganava de forma dura. A velhice chegava carregada de crueldade, fragilidade, criando falsas expectativas.

As dificuldades, a labuta do dia-a-dia faziam com que muitas vezes Laura não me entendesse. Em certos momentos era compreensiva, carinhosa buscava formas para me fazer mudar:

– Você precisa parar com isto. Só por causa homem!

Às vezes, como naquele momento, ela era tão somente crueldade:

– Você precisa parar com isto. Só por causa de uma camisa? Olhe para o seu estado, homem de Deus! Assim você acaba morrendo antes do seu neto virar homem.

Laura sabia como atingir. Falar do neto era trazer à tona minha impotência. Era mostrar de forma fria que o tempo tinha me roubado poder. Meu coração enchia-se de tristeza diante desse assunto.

Por mais que tento, não consigo entender. O carinho, a ternura alimentou Laura durante a gestação. Nada explica a atitude de Marcos. Eu amei com intensidade cada forma que ele desenhou na barriga de sua mãe. Eu e Laura sentíamos juntos os seus chutes desmedidos. O cabelo de Laura ganhou intensidade durante a gravidez, contrariando o que dizem:

– Grávidas perdem cabelo.

E nós, felizes, ríamos desta inverdade, em nosso estado grávido.

O tempo seguiu calmo, preciso. A casa preparou-se para a chegada do rebento. Com as pessoas chegaram esperanças, fraldas, risos, brinquedos... Cores vivas enfeitaram o pequeno quarto.

– Cores estimulam, ajudam a desenvolver a mente das crianças.

Marcos aconteceu em nossas vidas num outono. Caía uma chuva pesada.

– Sorte – diziam alguns.

– Desenganos – outros.

Ele era forte, bonito, porém inquietava-me o tom claro de sua pele.

– Verifiquem se são escuros o saquinho e a ponta da orelha. São eles que determinam a cor. Ouvíamos atentos, porém a felicidade era tanta que chegávamos a esquecer tal questão.

O pequeno crescia confirmando as previsões.. A cor tomava consistência. As formas de Laura projetavam-se no pequeno rosto. Como dois espectadores assistíamos impassíveis as transformações de cada dia. Nós o invadíamos com nossa presença e ficávamos tomados da sua. Comemorávamos cada novo gesto, cada balbucio. A alegria foi muitas vezes substituída pelo medo diante de uma febre que não cedia. Era imensa a felicidade diante da descoberta do chá para cura de uma dor qualquer.

O pequeno crescia e nossas mãos já não continham suas novas formas. Somos os dois a conter os seus impulsos. Suamos e muito ante as brincadeiras intermináveis:

– Mais uma vez... Só mais uma... – Rolavam-se bolas, carrinhos, alegria. O pequeno não se cansava. Queria mais, sempre mais.

O riso de Laura diante da situação me fazia sonhar com Marcos adulto, vitorioso, transpondo de forma ímpar os obstáculos que atravessam em nossas vidas.

Passaram-se vários outonos. O pequeno trans­formou-se. Tornou-se homem. Uma ternura imensa me invadia ao vê-lo tomar entre as mãos o rosto da mãe. Os dois eram lindos em cada uma das partes e proporções.

Outros outonos aconteceram, outras chuvas. Meus cabelos começaram a embranquecer. Os sinais da velhice acentuavam-se. Meus pés não suportavam o calor. Tomavam proporções imensas, inchavam, incomodando demais.

Laura parecia inatingível pelo tempo. Manti­nha-se firme. Buscava sempre meios de conciliar idéias, posições conflitantes.

– Casa onde só tem homem dá nisto: todos querem a razão.

Estas palavras acabavam sempre por nos fazer rir e esquecer por algum tempo os desentendimentos que ocorriam por um motivo ou outro.

Meu coração já não suportava mais entrar em desacordo com Marcos. Cheio de medos, sentia-me próximo de um desgosto maior. A calma, a tranqüilidade do lar parecia prestes a se quebrar. Apesar do amor que sentia por nós, Marcos não recuava frente às suas posições. Eu sofria. Laura buscava formas de atenuar meu sofrimento, assim amenizava também sua própria dor.

Ela chegou numa tarde de sol. Marcos tinha suas mãos fortes presas às dela. Sorriram. Laura cor­respondeu ao riso de forma tranquila. A decepção expressou-se em meu rosto. Marcos percebeu e o sofrimento do seu coração espelhou-se através do olhar. Foi inevitável o choque. Ela não trazia, nem de longe, a forma bela de Laura. Um rosto pálido, sem vida. Um cabelo sem energia, força ou ousadia. Uma expressão pobre no olhar.

O que aconteceu com o conceito de beleza de Marcos? Em que momento apagou-se em sua me­mória a beleza da forma dos seus?

O sol parecia queimar a tarde, o ar quente, pa­rado, fazia sofrer as plantas que enfeitavam a sala. Desfalecidas, pareciam também sofrer junto comigo. O que explica esta radical rejeição? O que teriam dito aos seus ouvidos nas esquinas?

Como pôde? Como pôde Marcos trair de forma tão cruel a beleza de Laura? Um ato de violência é o que vejo. Marcos, sem dúvida, decepou diante de nós cada um dos seus membros.

Hoje mais que nunca tenho toda certeza: vive­mos o tempo todo uma mentira. Essa que agora re­velou-se.

Era uma armadilha. Já não tinha o controle da situação. Não percebi a intensidade das forças que ocultavam-se entre os espaços da rua, jardins e va­randas de minha casa. Mascaradas, envolventes, prenderam Marcos de forma irremediável. Estava certo disto.

A amargura tomou o meu Ser. Não conseguia aceitar minha parcela de culpa na história. Às ve­zes, desatinado, imaginava rumos novos, favoráveis para o fato. Laura, sempre paciente amiga, trazia-me à razão. Aliviava a dor que cheguei a esquecer, em muitas tardes de domingo, diante da inquietude do meu neto correndo entre os espaços da varanda e cozinha, buscando sempre algo que o agradasse. Esta cena emocionava-me e enchia de ternura o olhar de Laura. A mesma inquietude agita meus pen­samentos. O tempo não apagou em meu peito o anseio por uma explicação lógica para a traição de Marcos.

Tenho desejado com a alma que meu filho não tenha, simplesmente, apostado sua dignidade neste tipo de aliança.

– Beba um gole desta água com alecrim e se acalme. Trago já sua camisa.

– Sim, querida – respondo aliviado, embora o suor ainda brote em minha fronte.

(Cadernos negros 16, p. 93-101)