Segredos
A cidade voltara a ter cinema. O Cine Santa Clara estava de volta. É isso! Volta da alegria perdida em anos de espera, prejuízo sem conta. A história, nesses anos, fez-se sem o cinema; isso não se calcula, não se paga. Dignidade perdida. Naquele dia, a cidade era uma senhora robusta, farta, saudável e feliz, abrindo a janela e sacudindo a toalha de mesa com farelos de pão, prostrando-se sobre o peitoril da janela, sorrindo.
Jorge caminhava pelas ruas com vigor nos passos, brilho nos olhos e mexeção nervosa nos dedos. Sorria para todos, como se em todos houvesse a partilha do entusiasmo pela notícia. A cidade voltara a ter cinema, e Jorge era elegante, bonito, magro, óculos, músculos naturalmente definidos e seguros, duro e flexível, assim era Jorge, negro. Queria encontrar pares para a comunhão do patrimônio afetivo. Sorria aos paralelepípedos, às amendoeiras, às acácias-dos-cachos-dourados, aos postes, pedintes, à escadaria do sétimo-céu, às lojas, esquinas, casas, mãos-de-vaca na calçada, ao casarão da esquina que, desde a infância na escolinha, tem aquele tom de rosa desbotado, onde os cães de pedra vigiam do alto o que não se soube nunca.
Pudesse, ele pularia, ímpeto brabo de correr. Mas como? Estava sozinho e era elegante. As meninas foram-se. Iria ao cinema sozinho, as meninas viraram umas mulheres casadas, donas de filhos, maridos estranhos, filhos que não seriam as mães, eram outros seres, estranhos. As meninas dançaram, mesmo as que não casaram eram outras, solidificadas, como ele próprio, na permanência da solidão propalada por todo o grupo, elas também eram outras. Era sabido que havia uma mulher-amor, mas ele era, fundamentalmente, só, e pronto. Iria ao cinema sozinho, era o primeiro filme, após tantos anos... e os comentários? Não importava! Adoraria ir sozinho e, depois, contar os detalhes da trama, tudo. Adoraria ver nos olhos dos amigos a ignorância.
Jorge era o Amigo. Conseguia nutrir uma amizade, cultivá-la com todos os ritos que a eleição exige: dominava a difícil tarefa de ligar-Ihes frequentemente, batizava seus filhos ou comparecia às cerimônias, lembrava dos aniversários, reconciliava os casais, dava-lhes conselhos, ouvia-os, fazia-lhes visitas constantes. Ele aprendera a lidar com a amizade sem contaminar-se, sabia onde os amigos são lâminas e onde são beijos, e respondia a um e a outro com a mesma matéria-prima, sem, entretanto, perdê-los ou deixar de amá-los. Evitava, dessa forma, o câncer e o desespero.
Via-se, agora, Jorge saltando em passo largo, para não pisar na correição de formigas vermelhas que tomava metros do passeio da casa de Ada. Como resistiam às construções, aos automóveis (donos supremos, legais e perenes das calçadas), aos transeuntes apressados? Logo aqui, está a casa de Ada, velha amiga. Abriu o portão de ferro e, antes de bater à porta, olhou a roseira, o canteiro de malmequer, a grama e achou tudo tão bonito que sentiu saudade.
Da sua boca saiu o pensamento que o tomava sempre que pensava nela:
– Ada e esse excesso de desvelo em revelar segredos do que não viveu...
– Não, não são arrepios de desejo. Há de ser o frio, há de ser o barulho da rua, o ruído dos pássaros, a música que vem de longe, as vozes das mulheres que comemoram o aniversário da amiga, há de ser o vento, há de ser o cheiro da comida, o medo da vida. Estou em plena erupção, afinal, Jorge, você bem sabe o quanto sou erótica.
Ambos riram. Nessas tardes, tomavam chá de erva-cidreira com torradinhas finíssimas preparadas por ela mesma. Ada tentara o casamento uma única vez, mas desistira, assim que constatou, triste, que não sabia ser branda, consensual, não tinha paciência pra homem. Casada, olhava para a janela e queria voar, sair voando, e voava. Ada voou. Desde pequena, Ada criava personagens para amar; uma alma de atriz ajudava-a a viver outras vidas, escapando da sua, tão sem graça; inventava dores. Depois, vieram os romances baratos, antes as novelas de rádio, depois as televisivas, a literatura clássica, filmes e canções. Uma inadaptada, cria de um romantismo inviável, alheia ao léu da existência, uma desertora da concretude besta do mundo. Mulher de namoro tardio, sexo fortuito, escorregadio, ou coisa parecida. Amava mais a distância que o corpo. Nada, nada aprendia da arte da conversação, da relação ou do contato, mas sonhava tudo!
– Eu quero delicadeza, Jorge. A humanidade me dá tão pouco; sou órfã de conforto, de requinte, desde que nasci. Quero delicadeza, delicadeza, delicadeza, finura de trato. Mas não quando estou cansada, indisposta; desse jeito, só sei ser grosseira, bruta, rude, chego mesmo a ser violenta. Você sabe.
Abandonada no seu universo pessoal, frequentava o único sebo da cidade e levava para casa – isso já nos últimos anos – autores, títulos e ... dedicatórias. Procurava livros usados que tivessem... dedicatórias, e se debruçava sobre elas, chorava-as, como na infância chorava ao ouvir velhas baladas românticas. Ada chorou tudo, perdeu, viveu e sentiu todas aquelas dores. Não haveria fôlego para as dores reais que viriam no futuro. Agora, as dedicatórias. Lia-as e, de alguma forma, sentia-se útil por proteger os livros e aquelas pessoas. Contorcia-se ao imaginar quem tivera a coragem de vender, doar, trocar declarações tão fiéis de amizade, amor; de expor ao desconhecido palavras que permearam relações. Alguns livros tinham as páginas arrancadas; esses, ela não os levava. Ada lia e relia as dedicatórias e sentia-se acompanhada por aquelas vidas desconhecidas que se amontoavam pelas estantes todas da casa.
– Uma Musa precisa deixar de existir para ser perene, senão afunda na solidez humana e vira gente, vira pessoa e morre. Preciso perpetuar minha natureza de Musa, mesmo pros meus fantasmas, Jorge. A mulher sem segredo não existe, Jorge, é preciso tê-los, isso é o que torna uma mulher uma mulher, e eu estou cansada de ser mulher, estou cansada de ser. Preciso contar tudo. Você entende, não é, Jorge? Uma mulher precisa resguardar-se; para continuar sendo novelo, melhor que seja embaraçado, cheio de nós, senão vira nada, vira pó, algodão em pó. Sinto-me arrefecida, cansada, o estar no mundo verdadeiramente apavora-me.
Achara, numa velha gramática francesa, adquirida recentemente, um nome: Eubs Carlos Amoroso. Passa seus dias com a criação que fez desse homem-nome e dedica-lhe versos: Eubs, a urbs chama-me fêmea, quero beijar o cadáver da tua boca e acordar nua na fábrica de gelo onde era nossa casa. O amor me diz passará, e eu travo os dentes em teus pés pétreos. Sozinha diante da noite. Restos de amanhã. O porto, a paisagem. Ele partira pra não mais se ir de mim. Jamais iria. Era eu a mulher de preto, cruzados os braços e pernas frias e finas e negras. Ele ficava no navio que ia. Indo, eu ficava nas mãos, talhando a madeira morta. Prenhe do teu perfil, prenhe da morte que me vinha, nas ondas que te levavam. Atalhei os fios dessa pauta para certificar-me das marcas, das datas, da volta de quem partiu. Ada apaixonara-se por um nome e criara um homem para amar. Ou coisa parecida.
Jorge insinuou o cinema, mas ela, com gestos firmes e silenciosos, distante, tocou uma xícara no pires, ergueu-se sem pressa, abriu uma banda da janela onde não batia sol e recostou-se.
– Ontem, enquanto lavava os pratos, olhei através da janela da cozinha e vi telhados, os de sempre. Senti vontade de morrer; não, não foi isso, foi vontade de não estar viva, ou nem isso: vi que tudo era nada, bem assim, a sensação de nulidade. Senti medo, espécie de arrependimento por aquela invasão. Mas ela era tão exterior a mim, como se fosse uma visita sem convite, vinda dos telhados, com o vento. Afastei o pensamento como pude. Tive medo de perder o sabor que tenho, em muitos momentos, pela vida. Tive medo de ver a vida assim, e assim parecia ser a verdade. A existência me traíra. Eu soubera. Agora, vá. Preciso fazer versos para Eubs.
Jorge despediu-se, mas, antes que a porta se fechasse, olhou Ada daquele jeito, sentada com as mãos nos braços da cadeira, recostada no espaldar, relaxada. O olhar perdera o brilho, a nitidez, e Jorge aprendera cedo que a aproximação da morte furta o viço dos olhos. Era uma leitura difícil.
– Jorge! – era ela, à janela, a dizer, como sempre, alguma coisa após o fim da conversa, às vezes gritada no meio da rua – meu amigo, preciso de velas, traga-me velas na próxima visita. Meu quarto tem estado escuro e tenho medo. Meu medo só foge quando toco um corpo, por isso as velas.
Iria ao cinema sozinho. No caminho, passaria por essas crentes protestantes sonsas, com saias tão longas e justas, amassando a carne de forma voluptuosa. Esqueceria por um momento o cinema, Ada e tudo, o membro religiosamente intumesceria.
Na tela, surgiram os primeiros caracteres, e Jorge fechou os olhos e cruzou as mãos, tendo os polegares como suporte da fronte inclinada. E Jorge viu sua parede ser invadida por girassóis amarelíssimos, plantação vasta, ao fundo uma casa com uma mulher sem rosto, um homem fardado chegando através das flores; viu o barranco de barro bem vermelho em frente à sua casa, os primos maiores e sabidos, o empurrão, seu corpo no chão fingindo um desmaio, tanta vergonha, tanta vergonha; e a vida seria tantas vezes esse desmaio fingido da infância. Viu-se negro na sala de aula, imaginando que o menino mais bonito namoraria com a menina mais bonita, e nunca era ele o escolhido por si mesmo; viu o seu silêncio de menino negro na escola, tantos anos com ele, segunda pele: silêncio; viu o primeiro estojo de lápis cera grande, acordando o belo; viu as meninas atrizes surgirem certas de que seriam grandes, escreveriam, atuariam; viu seus pais envelhecendo, adoecendo; viu-se a si mesmo diante do espelho a envelhecer, e ele, que antes pensara em morrer a ver esses tempos chegarem, tempos de colheita e armazenamento, tempos de registro e recordações, alegrou-se de uma alegria pungente, dessas que se confundem com a dor, dessas que envidraçam os olhos.
Viu que não nos tornamos grandes, éramos apenas pessoas, simples pessoas e, como as outras, tão cheias de sonhos, desejos, frustrações e complexidades. Olhei para Jorge, eu estava sozinha, sem os fantasmas, sem os conspiradores da Musa, sem ninguém. Olhei o meu amigo, e ele olhou-me, e estava tudo bem. A nossa amizade e as nossas idiossincrasias. Assistimos ao filme. Depois haveria o mar esperando por Jorge, esperando por mim, esperando por nós, o mar da nossa terra, maior e mais bonito que qualquer outro, o consolo-colo que só o mar, o chão, os cactos, as pedras da terra natal podem dar.
(Tramela, p. 51-59)