A  Copa Frondosa da Árvore                                                                                                      

O chão criteriosamente encerado. A máquina de costura preta, com aqueles pedais que ela pres­sionava com seus hábeis e pequenos pés, que eram o perfeito acabamento para as pernas grossas e bem torneadas. A mobília pés de palito. O óleo Seiva de Mutamba. O pente. Os laços de fita cuidadosamente passados. Naquela sala da casa da zona oeste carioca, quando o relógio batia onze horas, ela religiosamente largava as linhas e alfinetes para me prender em suas coxas. 

O ritual incluía girar o botão do rádio e im­pregnar o ar com o Concerto Nº 1 de Tchaikovsky, a abertura do repórter Haroldo de Andrade. As notas da peça musical mesclavam-se com o cheiro do óleo besuntando suas mãos, e eram a senha para que o pânico se instalasse em meu olhar, pois, àquela altura dos meus oito anos de vida, minha cabeleira já assumia o volume das copas frondosas das árvores mais densas; e o pente, as feições de armamento pesado; a motosserra de plástico.

Eu, sentada no chão, presa naquelas coxas negras de tom suavemente amarelado, evidenciando a api­mentada mistura que descendia de alguém que talvez viesse do Sudão com outro alguém nascido dos Maracás ou Cariris, da região de suas raízes - a Chapada Diamantina -, tinha a revolta do bicho doméstico aprisionado para uma vacina ou um banho indesejado.

Ela era silenciosa e tinha a "chave de pernas" mais poderosa do universo. Impossível escapar. O óleo penetrando fundo nas folhas da minha árvore. O cabo do pente dividindo tudo em mechas, como um vento raivoso descabela a folhagem. Pronto. A luta ia começar.

Os dentes do pente cravando na base da cabeça e lá vinham suas mãos de costureira de madame, pu­xando e trançando, puxando e trançando. Eu sentia como se em cada recolher do punho dela saíssem junto todos os meus neurônios. Tchaikovsky e sua trombeta. O piano dominando. Os violinos. As vozes da vinheta. O andamento acelerava, caía e entravam as notícias, com a voz marcante do Haroldo de Andrade.

Ela afrouxava as coxas. Já não havia o perigo de fuga. A cabeleira estava tão rigorosamente presa em (rançados elaborados e amarrados com laços de fitas, que os olhos puxavam nos cantos, como os dos orien­tais... Ou seria como os dos índios da baiana Lençóis? Ela me mirava com um ar de aprovação. Eu, passado o drama infantil, também gostava.

Em segundos não restariam vestígios da "sessão de tortura", ao som do compositor romântico russo. O arsenal era guardado numa caixa de madeira, que seria reaberta no dia seguinte com o mesmo drama teatral, e vinha daí, desta rotina cômica, o seu silêncio resignado e irônico.

 Na mesa fumegava o escaldado de peixe, a frita­da com camarão seco ou alguma de suas delícias. Eu entraria no ônibus da escola e dele desceria algumas horas mais tarde, com uma meia descendo no sapato e outra na altura dos joelhos ralados, parte da blusa para fora do cós da saia e com minha copa de árvore completamente livre das amarras. Sem poda.

 Minha avó me receberia pontualmente no portão de casa e, com a sabedoria dos índios e dos negros do seu sangue, se abaixaria para nivelar o olhar ao meu, mas também não diria nada. Apenas acariciaria as folhas no alto de minha cabeça e me daria um beijo, convidando para a sopa de legumes que já estaria pos­ta na mesa coberta com uma toalha florida, a esfriar perfumando o ambiente, como uma suave brisa na floresta da minha infância.

                                                                                                                                                                          (Cadernos negros 40, p.179-181)

 

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