DADOS BIOGRÁFICOS

Heleine Fernandes de Souza nasceu e foi criada no Rio de Janeiro, na favela da Rocinha, onde ainda mora a sua família. É poeta, professora, doutora em Letras: Teoria Literária pela UFRJ. Sua tese de doutorado: Poesia Afro-Feminina e resistência ao epistemicídio através das poéticas de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento foi publicada pela Editora Malê em 2020, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte. 

O seu primeiro projeto poético - Nascente - foi publicado em 2021 pelas editoras Garupa e Ksal. Nele, a autora se inscreve como forma de descobrir-se na narrativa poética de sua ancestralidade e na própria imagética dessa descoberta.

Além disso, ela possui poemas publicados em diversas antologias e revistas literárias, como em “Mulheres que escrevem”, na Revista Escamandro, nRuído Manifesto, nas antologias Cult #1Ato poético, este último da editora Oficina Raquel.

Heleine Fernandes demonstra seu empenho de pesquisadora da literatura afro-brasileira em inúmeros trabalhos e publicações, sendo o sua atividade desenvolvida por meio do Laboratório de Estudos Negros, pertencente ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea PACC/UFRJ. Como destaca Maria do Rosário A. Pereira (2020), sua escrita possui sensibilidade e apuro acadêmico, de modo que a poeta e a pesquisadora que habitam a autora permitem-nos compreender, seja pela linguagem poética, seja pela retórica, todo potencial crítico e criativo de suas abordagens.

O trato cuidadoso de sua pesquisa sobre a resistência ao epistemicídio não apenas revela uma análise comprometida com o estudo da poética afro-feminina, mas discorre, nas entrelinhas, sobre a experiência de retomada da subjetividade da própria autora: “Assim, a obra propõe uma reflexão sobre as especificidades dos discursos de três mulheres negras que anunciam, via texto literário, seu lugar de pertencimento no mundo, filiando-se a uma estética afrodiaspórica” (PEREIRA, 2020).

Como Heleine nos explica, em sua entrevista publicada em Mulheres que escrevem, a escolha pela formação em Letras foi impulsionada a partir de sua relação com a escrita. Desde muito cedo, tal processo integrou o seu modo de se colocar no mundo. Uma vez inserida na academia, estuda poetas contemporâneas, como Ana Cristina Cesar, Angélica Freitas, Anita Costa Malufe e Marília Garcia - vozes femininas de importante destaque na cena contemporânea. Heleine relata que a sua pesquisa sobre poetas negras teve início no doutorado, após ter se questionado sobre o seu papel enquanto pesquisadora e poeta negra. A autora comenta que, ao buscar escritas afro-femininas, passa a relativizar a perspectiva hegemônica vigente na academia, a encontrar sentido para os estudos e a se conectar melhor com a sua escrita acadêmica e, sobretudo, poética.

O trabalho estético de Heleine Fernandes se projeta como um rio subterrâneo que se impõe sobre o solo, fazendo-se leito em superfície. Ser nascente é o gesto de sua (des)coberta pessoal, é marco de seu íntimo (des)silenciamento. O curso que as suas obras têm seguido, desde então, mostra-se profundo e tem se espalhado em fluxo contínuo.

Na já citada Nascente, plaquete composta de 16 poemas, a poeta se propõe, em seu projeto estético e político, a abordar elementos das tradições culturais afro-brasileiras, além de percorrer a própria infância, os trajetos afetivos de uma íntima relação familiar. Temos acesso, nesse sentido, a fotobiografias, imagens (ou biografemas) de uma história pessoal, de entes – mãe, avó, avô, irmão e tios – que fizeram parte da vida da autora e que hoje se formam e se performam como camadas criativas e modos de resistência ao tempo presente. Outro aspecto importante dessa poesia é a denúncia da violência contra os corpos negros – praticada pelo Estado e pela sociedade civil –, como se lê, por exemplo, em “Operação colonial”:

acordar com o som dos helicópteros
espanta-pássaros.
difícil sentir-se em casa
quando sobrevoa
o caveirão voador.
o que quer a operação?
os meus rins?
o meu útero?
o meu coração?

[...]

onde é aqui
quando a bala canta?

diáspora.

(FERNANDES, Heleine. 2021, p. 20).

 

A relação conceitual entre diáspora e violência se estabelece a partir de uma percepção histórica da imigração forçada, da opressão sistêmica dos negros no Brasil, que vai se deslocando no tempo e se projeta contemporaneamente nas periferias das cidades, nas bordas dos centros urbanos, espaços onde a truculência policial se faz presente. Qual corpo o Estado mais mata? Qual espaço o Estado mais invade?

Tais proposições, sugeridas na centralidade do poema, apontam uma condição que parte de um aparelho estabelecido, do establishment, de uma elite econômica e política para quem o extermínio da população negra parece ser ainda a regra. Em Nascente, é possível notar que Heleine não dispensa a teoria para sugerir a prática: o que lemos são poemas que se constroem por uma linguagem atravessada pela construção do corpo negro – como o de quem cria – e, por isso, bastante consciente do que precisa ser escrito.

Crédito da foto: Cristian Maciel 

 

DEPOIMENTO

Por Heleine Fernandes

Aprendi a gargalhar com ela: uma assinatura vocal através do tempo*

“Se você se esquecer, não é proibido voltar atrás e reconstruir” ou “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”. Essas são traduções para o provérbio do povo Akan, sabedoria oral muito antiga, ancestral, proveniente de Gana e da Costa do Marfim. Este provérbio ficou gravado no ideograma Sankofa, um dos signos da escrita Adinkra, criada por este povo. A Sankofa traz o desenho estilizado de um pássaro migratório que tem o corpo voltado para frente enquanto a cabeça está voltada para trás, por vezes se alimentando de algo que está sobre o seu dorso. Também pode ser representado pelo desenho de um coração ornado com arabescos, um padrão gráfico bastante presente em grades que compõem as paisagens da cidade do Rio de Janeiro. Esse movimento de voltar e buscar algo que ficou esquecido foi o que precisei fazer em um momento de crise, em que me senti muito perdida, confusa, solitária, sem conseguir enxergar caminhos e sentido para muito do que eu me dedicava e valorizava. A necessidade de me reencontrar comigo mesma e escolher novos caminhos de vida foi o que me fez olhar para trás e me reconectar com a minha ancestralidade. Dessa experiência vem o meu livro de poemas “nascente”, em que escrevo algumas histórias de minha família.

Minha família é francamente matriarcal. Nela, as mulheres é que mandam desde sempre, são elas a principal referência de todos. Na minha memória de criança, elas é que eu via trabalhar duro, trazer dinheiro para casa. Elas é que cuidavam (e ainda cuidam) de todos, educavam as crianças, davam os contornos e limites, resolviam os problemas. Era delas a palavra final. Delas é que nós, as crianças, tínhamos mais medo. Orientadoras e administradoras da vida, as minhas muitas mães (mãe, tias, avós) mantém viva e atual a memória ancestral do matriarcado africano na minha formação como sujeito e como mulher. A principal base de sustentação da minha família, ainda hoje, é a Dona Maria do Socorro de Freitas, vulgo “Corrinha” (apelido que já usei como pseudônimo), minha avó materna. 

Mesmo já bastante idosa, sem a disposição física que sempre lhe foi característica, bem menos vaidosa, bem-humorada, e com a saúde mental debilitada, ainda hoje, ela ocupa esse lugar de base de sustentação para todos da minha família materna. A instabilidade dela produz a instabilidade de todos. Quando falei sobre isso com a minha analista, ela usou uma imagem que achei muito exata: “claro, quando o tronco balança, todos os galhos vão balançar também”. Dona Socorro é um poderoso tronco, lenhoso e antigo, que balança minha família inteira no mais íntimo de cada um. Quando minha avó chora, a terra treme. Gosto mais de lembrar dos momentos em que minha avó sorri. A gargalhada dela também faz a terra tremer. Gargalhada sonora, escandalosa, pintada de batom vermelho e com perfume de alfazema e tabaco. Aprendi com ela como chegar nos lugares e conquistar espaço sem sentir vergonha de quem eu sou. Escrevi um poema sobre isso:

Socorro

aprendi a gargalhar com ela.

o som que faz as pessoas me reconhecerem

de longe

é uma assinatura vocal dela

de quem meus músculos recordam

e rendem homenagem.

ela sim

soltava boas gargalhadas insanas

onde quer que estivesse

e tirava à força

quem quer que fosse

da indiferença.

sua gargalhada era quente

minha avó borbulhava

e ficava com os seios nus

a boca vermelha aberta

toda entregue à vocalização

toda ela coberta

de vermelho e ouro

transfigurada.

 

Esse poema grava uma imagem recorrente nas minhas memórias de infância. A imagem de um corpo feminino negro entregue ao prazer, à alegria e também a algo misterioso, poderoso, que transcende a experiência de mundo cartesiana racional eurocentrada. Depois de escrever este poema e relê-lo muitas vezes, pude entender melhor a intensidade da experiência da minha avó com a sua espiritualidade, algo que ela sempre viveu com muitos conflitos. No final deste poema, minha avó é e não é mais ela mesma. Transfigurada, é possível ouvir, através dela, uma gargalhada de outros tempos que se fazem ainda presentes, mantendo vivas, sonoras e interventivas histórias apagadas de mulheres. A resistência ao apagamento intencionalmente realizado pela empresa colonial brasileira, marcadamente racista e patriarcal, é o gesto transgressor que esta gargalhada me deixou de herança. Só depois de publicar o poema, entoá-lo diversas vezes em performance e perceber a reação das pessoas atravessadas por ele, entendi que esse era um poema para uma encantada, Dona Sete Saias, a pombo gira que acompanha minha avó desde que me entendo por gente.

Para reativar este conhecimento em mim, precisei desaprender muito do que me foi ensinado nas instituições de saber, notadamente guiadas por uma visão eurocentrada e colonial, mantendo intocadas as conquistas e privilégios dos vencedores brancos. Neste momento, me lembro do professor Luis Rufino, que na “Pedagogia das encruzilhadas” diz que é preciso “mais do que ler a história a contrapelo, como nos sugere o filósofo alemão, hoje precisamos tirar os ‘demônios das garrafas’”. Tirar os demônios das garrafas significa liberar saberes não-brancos, especialmente os de herança africana, do olhar exotizante que produz demonização, desconfiança e menosvalia.

Para tornar audíveis as vozes negras e indígenas silenciadas pela sociedade colonial racista patriarcal e misógina, é preciso validar epistemes não brancas, não europeias, reconhecer a produção de saber de povos que foram produzidos como inferiores pelo sistema colonial eurofalocêntrico.

Tal qual os lamentos, silêncios e revoltas do poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, a gargalhada transgressora de minha avó continua a ecoar nas encruzilhadas do tempo. Ela transgride, sobretudo, uma lógica de tempo linear, fragmentado e estanque, que serviu (e ainda serve) para bloquear o acesso a uma memória ancestral não-branca, pré-colonial, complexa, gravada nos genes dos africanos da diáspora e dos integrantes dos povos originários deste território que chamamos, hoje, Brasil. Atacar esta memória ancestral foi e é uma das estratégias coloniais de desumanização e desarticulação de povos não-brancos.

A poesia tem me ajudado a acessar esta memória que permite ressignificar a vida e reinventar relações, comportamentos e escolhas. A escrita de ouvidos apurados tem me ensinado a dar de comer e reverenciar esta memória ancestral. Encerro a minha fala com outro poema para minha avó, também publicado no “nascente”. Nele, gravo um ritual diário da minha infância, da minha avó me alimentando e ensinando a comer mais gostoso, como faziam nossos ancestrais:

comer da mão

pedia à minha avó

que me desse de comer

e de sua mão brotavam

bolos úmidos deliciosos

que ela chamava capitão.

apertava na palma

os bolinhos de feijão e farinha

temperados e perfumados

pelo calor de seus dedos

de manicure.

suas unhas longas e duras

faziam cócegas

no meu corpo faminto

e a comida se multiplicava.

o alimento vinha junto com o sono

e minha avó sorria satisfeita

como quem me desse os seios

fartos de leite.

 

*Depoimento lido durante o minicurso “Dos avessos das genealogias – avós, silêncio, memória e transmissão”, ministrado pelas professoras Danielle Magalhães e Flávia Trocolli em 2021 na Letras da UFRJ.

Referências

FERNANDES, Heleine. Nascente. Rio de Janeiro, Garupa; Ksal, 2021.

FERNANDES, Heleine. Entrevista a Valeska Torres em Mulheres que escrevem. Disponível em: https://medium.com/mulheres-que-escrevem/uma-conversa-entre-escritoras-valeska-torres-entrevista-heleine-fernandes-1d43d998bd46.

PEREIRA, Maria do R. A. A poesia de mulheres negras como enfrentamento necessário ao epistemicídio. Literafro, 2020.
Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ensaio/1502-heleine-fernandes-de-souza-a-poesia-negra-feminina.


PUBLICAÇÕES

 

Obra individual

Nascente. Rio de Janeiro: Garupa; Ksal, 2021 (poesia).

 

Antologias e Revistas

Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo/FLUP, 2020. 

Versão Brasileira: a voz da mulher (47 poemas sobre a independência). Rio de Janeiro: Teatro de Mente, 2023.

Poemas sem título. In: Vernaculum - Flor do Lácio, site, 08 dez. 2010.

Cinco poemas de Heleine Fernandes. In: Mulheres que escrevem, 23 maio 2019. Disponível em: https://medium.com/mulheres-que-escrevem/cinco-poemas-de-heleine-fernandes-317647083f6. Acesso em 10 de agosto de 2023. 

Antologia poética 1. In: Revista CULT, 28 ago. 2019.

Poemas na Escamandro. In: Revista Escamandro, 06 mar. 2020. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2020/03/06/heleine-fernandes/. Acesso em 20 de julho de 2023.

Cinco poemas de Heleine Fernandes. In: Revista Ruído Manifesto, 12 mar. 2020. Disponível em: https://ruidomanifesto.org/cinco-poemas-de-heleine-fernandes/. Acesso em 10 de agosto de 2023.

 

Não ficção/ Ensaios

A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: Malê, 2020.

Cartas Marcadas: a escrita de si e o corpo na poética de Ana Cristina Cesar. Orientador: Alberto Pucheu Neto. 2014. 135f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Letras, Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014.

Macala Acesa. In: Mahin - Revista Literária, v. ano 4, p. 21-23, 2022.

Acuírlombamento e cura em um poema de Tatiana Nascimento. In: Revista Z Cultural (UFRJ), v. 01, p. 07, 2021.

Arquivos Afro-diaspóricos: a voz do enigma na literatura negra-feminina brasileira. Elyra: Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, v. 18, p. 29, 2021.

Caio das páginas nos teus braços. In: Polichinello, Revista Literária, v. 14, p. 83-85, 2013.

Da toca de bebê sem cabeça à cabeça de bebê sem toca: um percurso de leitura em 'Companhia', de Samuel Beckett. In: Revista Athena, v. 03, 2012.

Corte e deriva: a poética anfíbia de Ana Cristina. In: Revista Garrafa (PPGL/UFRJ), v. 25, p. 1, 2011.

O indiscreto charme da poesia contemporânea. In: Revista Cult, Rio de Janeiro, p. 15 - 20, 01 jun. 2016.

Um convite à câmara clara. In: Revista Grampo Canoa, Rio de Janeiro, p. 1 - 2, 01 out. 2016.

Uma escrita a se fazer. In: O cuidado da poesia, blog da revista CULT, 19 jan. 2017.

 

Coautoria / Coorganização

Ato poético. Com TIBURI, M.; MAFFEI, L. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2020.

Poéticas como políticas do gesto. Com GOMES, D. O. São Paulo: Paco Editorial, 2020.


TEXTOS


CRÍTICA


FONTES DE CONSULTA

Digitais

FELIX, Daniela Baiense. Poesia que brota do ventre e deságua em nascente: uma análise afrocentrada da poesia de Heleine Fernandes, (TCC). Disponível em:

http://hdl.handle.net/11422/19613

ALKMIN, Marta. Contra isso mantenho-me viva - A poesia negra em nascente, de Heleine Fernandes. In: Revista Dobra, n. 10


LINKS

Resenha – “A linguagem como encontro de afluentes — Nascente, de Heleine Fernandes” (Revista Medium)

Resenha – “A nascente poética de Heleine Fernandes” (Blog Letras Pretas)

Resenha – “Revolver a história com sílabas de água: “Nascente”, de Heleine Fernandes, e outros lançamentos” (Revista Cult)

Perfil da autora – Lattes

Perfil da autora – Instragran

Performance da autora – Lançamento de "nascente" (Vídeo do YouTube)

Entrevista da autora para “Mulheres que escrevem” (Revista Medium)