A poesia de Rita Santana:
Afrescos, Nebulosas e Cortesanias

 

Aleilton Fonseca*

Em mim, a rebeldia da existência acontece:

Ergo-me esguia sobre o porvir.

Devasto - no fundo de mim - coragens e âncoras.

 

Rita Santana

 

A poesia de Rita Santana convida o leitor a um diálogo denso e instigante, através de um discurso consubstanciado num lirismo de dicção oracular e tom expressionista. O livro reúne poemas que podem ser declamados ao público, com voz impostada, a fim de infundir aos versos a gravidade das máximas e das epifanias. São textos que quebram a previsibilidade, refazem os sentidos, incitam a imaginação e desafiam o logos do leitor.

A partitura da obra divide-se em três movimentos, como uma sonata: Afrescos, Nebulosas, Cortesanias. Uma tríade temática que se harmoniza pela linguagem e pela atitude da voz lírica perante a própria poesia como expressão da experiência e da imaginação.

A palavra afrescos sugere uma conjunção do poético com o pictórico por similitude imagética e alusão formal. Afresco designa a técnica de pintura com os pigmentos das tintas dissolvidos em água, os quais são aplicados sobre o revestimento úmido da parede. Por extensão, assim denominamos as pinturas murais feitas por esse processo. Por uma relação alusiva, aqui a técnica poética está associada à textura das palavras, na formação de imagens líricas que dialogam com o discurso da pintura.

O primeiro poema invoca o expressionismo de Vicent Van Gogh (1853-1890), ao alegorizar a condição humana representada em sua pintura. O título do poema, “As comedoras de batata”, dedicado a Van Gogh, é uma referência direta ao quadro do pintor, de 1885, que representa uma ceia de camponeses. A apropriação da cena e o redimensionamento da condição social das personagens estabelecem, entre o quadro e o poema, uma correlação étnica, de solidariedade e de condição de classe:

Minhas mãos negras estão pretas de terra!

Cozinho batatas! Sirvo-as sôfregas àqueles

Que dividem o pão comigo!

Como batatas com meus companheiros,

Como batatas com meus camaradas

Como batatas com outras escribas:

- aquelas que também plantam.

Há outras, mas estão – alhures- do outro lado do front!

São donas de vastas terras improdutivas.

O poema pluraliza o significado do objeto: as batatas são o alimento que se divide à mesa dos humildes, e também representa a poesia que se doa e se compartilha como o pão estético dos que comungam a palavra e a leitura. A voz lírica demarca seu lugar social de fala, ao afirmar que cozinha batatas, ou seja, prepara poesias; e as serve àqueles que dividem “o pão/a poesia”, de forma comunitária. De fato, diante dos discursos que mantêm o mundo desigual e injusto, a poesia é a “outra voz”, que alimenta e garante o porvir, num ato de fraternidade, como nos lembra Octavio Paz.

Aqui a poesia é concebida como fala cotidiana de uma mulher que assume a condição de poeta e afirma: “busco os desvãos da condição humana”. No poema “A Colorista”, confirma-se o seu diálogo com a pintura, nas duas estrofes iniciais:

Faço-me Colorista do Verbo

E em minha casa, ergo uma oficina

De experimentos com tintas.

Como aspargos, alcachofras,

Afago o sabor das palavras.

Sou toda uma magenta crua

A destilar desatinos sobre a Aurora.

 

Fascina-me saber de iluminuras!

Uma pintora me frequenta,

Exige-me pincéis, palhetas

E uma vocação muralista!

Explora-me em fauna e flora.

Arte de oficina/atelier, essa poesia resguarda intenções e propósitos. Colorir o verbo é injetar-lhe novos sentidos, expandir suas nuanças e matizes, de modo a desconstruir os signos/objetos convencionais e atribuir-lhes novas possibilidades expressivas, para uma reconfiguração do mundo. Nessa palheta de palavras/cores, o trabalho poético assemelha-se ao esmero do pintor, pois é onde se dispõem e se combinam as novas ligas de expressão e sentido. Os resultados do processo de criação são, portanto, estes “Afrescos”, em sua profusão de detalhes e efeitos que tocam e encantam os olhos do leitor.

No segundo movimento, intitulado “Nebulosas”, o olhar lírico descortina outros mistérios, igualmente plásticos e também envoltos em cores e sensações. A consciência de existir desde sempre, num universo dinâmico, em contínua mutação, aflora em todos os poemas. A lua é o signo mais marcado dessa passagem, com suas evocações líricas e suas sugestões existenciais.

Há um eclipse lunar, lá fora!

A Lua de sangue explora a imensidão do Universo.

Dentro de mim, moléculas se expandem

Em prados, ditirambos, pandeiros.

Sou toda a evidência de um sonho

Cuja implosão testemunhei nas origens.

Invado a estratosfera em busca de delírios.

O terceiro movimento, intitulado “Cortesanias”, nos lembra um universo histórico-cultural muito conhecido desde a poesia trovadoresca, pois remete ao amor cortês, do Sul da França e da Península Ibérica, na altura do século 12. Trata-se de um protocolo social refinado, com as maneiras e atitudes do fino trato. Já no século 16, a palavra passa a evocar a condição ambígua da mulher dita cortesã, disponível aos homens, ora desejada, ora desprezada, por sua servil condição amorosa. O sentido, porém, se estende ainda a uma ideia de civilidade, o tratar bem, a urbanidade, a gentileza, a cortesia. A poética de Rita Santana resgata a ambiência social, erótica e amorosa da cortesania, valoriza a condição da mulher cortesã, reinterpreta seu papel social, mostra seus sonhos e angústias, e assim restaura sua condição humana. Os poemas intitulados “Cortesanias de Verônica Franco” e “Conversa entre Waly Salomão e Verônica Franco” são emblemáticos desse movimento. Verônica Franco (1546-1591) foi uma cortesã e poeta italiana, que viveu em Veneza, no século XVI, e cujo nome está contido no sobrenome da autora Rita Verônica Franco de Santana. O poema traça um perfil lírico da italiana, com o qual a voz da poeta se identifica:

Ela, a Louca, mergulha em qualquer rio, que lhe traga Similitudes

consigo mesma e com seus ecos narcísicos.

De suas glândulas, nascem flores e abismos!

Naufraga em algas marinhas, faz-se fragata

E navega, como flor, por águas doces.

Seus epítetos são: rita, verônica, narcisa, jacinta, margarida, tulipa,

dália, adair, virgínia e beatriz.

Ancora-se em ânforas das vaidades, enamora-se de pavões,

Bardos, dândis travestidos de artistas: pífios! patifes! patetas!

Só eu sei dos meus desejos e das minhas imposições.

O resgate da personagem histórica, em sua condição de mulher cortesã e poeta, parece ter uma dupla motivação: uma inicial, de natureza onomástica, devido ao jogo especular dos nomes; e outra de natureza lírica, pela evocação da condição dúplice da italiana, em que lirismo e sexualidade se amalgamam, como atributos de uma mulher à frente de sua época. Esse olhar da escrita valoriza a expressão lírica do erotismo feminino, como se pode observar nos demais poemas de “Cortesanias”.

Enfim, este livro é roteiro de um recital, uma dramatização. Ao lê-lo imaginamos estar ouvindo a poeta recitar num palco aparelhado de luzes, cores, sombras e sonoridades. Cada um de seus cantos eclodem em versos lapidares, em fluxos e refluxos de espasmos e sensações teatrais. A poeta se define, enquanto sujeito histórico-cultural, como artista, e também atriz, qual persona que se inventa a cada canto, sempre “disposta a fingimentos de Poeta”. Assim afirma:

Provenho da imensidão dos Ilhéus,

Sou uma quilombola do Engenho de Santana,

Onde houve a rebelião das missivas!

Daí, talvez, uma ligação íntima com algodões.

Nasci em terras grapiúnas e de lá parti para outras capitanias.

Decidi exercer a Existência sobre a Terra,

Como Artista!

Por isso, pinto telas com pigmentos que colho

Em solos diversos, modelo cerâmicas

E cozo o barro na temperatura certa; canto e danço:

Sou uma Atriz!

Disposta a fingimentos de Poeta!

Ao percorrer os três movimentos desta sonata, percebemos que a poesia de Rita Santana é sempre vigorosa e marcante. Sua verve lírica provém do âmago do ser, e se projeta em jorros decisivos, revelando cores e sentidos espectrais. Sua arte é um jogo de espelhos, em que as palavras são feixes de luz que revelam o oculto, desafiando o leitor à catarse da decifração. Um jogo de luzes, breus e sutilezas, epifanias e abismos, metáforas e ambivalências. Ou pinturas sonoras, nas quais as tintas são as palavras ditas, com as nuanças de seus matizes semânticos, gestuais e lírico-visuais.

Os seus poemas capturam a atenção do leitor/ouvinte com suas sonoridades fluidas e envolventes, embora não sejam de fácil assimilação. Essa poesia requer um tempo de maturação da leitura, de modo que se possa afinar o ouvido com a vibração de seu ritmo, sua oralidade solene, seus feixes de sentidos alusivos e alegóricos.

Trata-se de uma poesia que se manifesta em tom dramático, com coesão entre corpo e palavra, e imanta a voz e o discurso da poeta nas suas experiências e saberes acumulados. Quem nos fala é uma voz visceralmente lírica, que estende sobre o universo um olhar perquiridor e oracular. A poeta dirige a palavra a uma plateia envolta na penumbra, tensionando a sua zona de conforto e acomodação. Sua récita revela os saberes acerca da vida, do existir e do ser em contínuo estado de construção/demolição. Assim, afirma:

Existir é ser arquiteta de si mesma,

Refazer-se inteira com madeira de demolição.

Tornar-se Outra é testemunhar a ressurreição

Da carne.

Como ensina Octavio Paz, a palavra é uma criação que promove a revelação do ser. Todo poeta acredita que “a consciência das palavras leva à consciência de si: a conhecer-se e a reconhecer-se”. Rita Santana move-se nesse espaço de criação e auto-revelação, sabendo-se existir num mundo de significados movediços e intercambiáveis, conforme nos explica Zygmunt Bauman. Nesse sentido são eloquentes os versos: “A solidão líquida dos tempos/Inunda-me de vastidões e incertezas.” De fato, soltos no fluxo dessa liquidez, somos seres solitários e inseguros, com destinos maleáveis e desdobráveis, em risco constante de perdermos as nossas referências. A poesia constitui um farmakon, um remédio poderoso contra a dissolução que ameaça nossa subjetividade e nosso centro existencial.

Rita Santana é uma poeta de sensibilidade holística, plástica, musical, dramática, expressionista. Na sua poética, as palavras são as tintas e as notas que ela dissolve na água e na pauta para compor uma sonata de afrescos, nebulosas e cortesanias. Cada poema de sua partitura é uma liga fluida de sons e cores, dizeres e sensações, mistérios e decifrações. Seu discurso lírico é uma amálgama de sinestesias, figurações, texturas e plasticidades. Ao ouvir seu canto, o leitor se sente mais lírico e humano, porque sua voz ecoa de um lugar íntimo e solene, de onde fluem as divinações da poesia.

Referência

SANTANA, Rita. Cortesanias. Salvador: FB Publicações, 2019.

 

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*Aleilton Fonseca é Doutor em Letras, Literatura Brasileira (USP), Professor Titular da UEFS, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia de Letras de Ilhéus. Dentre suas publicações, destacam-se: O olhar de Castro Alves (2008); Guimarães Rosa (1908-2008): écrivain brésilien centenaire (2008); O Arlequim da Pauliceia (2012);

 

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