Oswaldo de Camargo: poesia, ficção, autoficção

Eduardo de Assis Duarte*

 

O lançamento, em 1972, do volume de contos O carro do êxito revela a faceta ficcionista de um Oswaldo de Camargo conhecido até então como o poeta de Um homem tenta ser anjo e de 15 poemas negros, livros publicados em 1959 e 1961, respectivamente, além do Oswaldo de Camargo músico e compositor admirado por seu talento. Com efeito, nas quatorze narrativas de que se compõe, O carro do êxito traz para o leitor muito mais do que a força de enredos plenos de humanidade. Indica também a intimidade autoral com códigos distintos de expressão, caracterizada por uma sensibilidade afeita ao verso e à melodia a interferir positivamente nas opções formais do prosador.

Um homem tenta ser anjo e 15 poemas negros reúnem textos da juventude do autor, ainda próximos do discurso religioso presente em sua formação. O primeiro é marcado pela deambulação do eu poético em busca de afirmação identitária e do sentido da própria existência: “sinto que sou um fosco e baço,/e dói-me a solução de conhecer-me” (1959, p. 47). Ou ainda: “Enxuto do naufrágio de que volto,/aonde irei nesta cidade?/Ah, que se abrigue ao menos neste Instante/meu corpo, alma e o que trago:/bagagens mal-lavadas de um naufrágio!” (1959, p. 89). Essa angústia de existir, que remete à derrota, ao abandono e a um penoso desnudamento de si, convive, no entanto, com a crença no futuro: “e eu me crescerei, sofra embora. (...) /E aguardo o meu surgir, a cada hora.” (1959, p. 29).

Já em 15 poemas negros, esse sujeito em trânsito cresce e traz para o verso sua condição de afrodescendente submetido ao racismo nem sempre silencioso vigente no país desde os tempos da senzala. Não se trata ainda do ímpeto afirmativo do movimento negro estadunidense a celebrar o black is beautiful, que só mais tarde aportaria por aqui. Mas, em pleno 1961, enquanto, no Brasil profundo, muitas localidades sequer tinham luz elétrica e, no campo político, a posse de um vice-presidente eleito democraticamente ainda dependia da concordância das forças armadas, Oswaldo de Camargo solta seu verbo: “Eu tenho dentro de mim anseio e glória/que roubaram a meus pais./ Meu coração pode mover o mundo,/ porque é o mesmo coração dos congos,/ bantos e outros desgraçados,/ é o mesmo.” E prossegue: “É o mesmo coração dos que são cinzas/ e dormem debaixo da capela dos enforcados.../ é o coração da mucama/ e do moleque;” (1961, p. 51). Aqui a negritude – negrura ou negrícia – surge em tom de lamento do sujeito “emparedado” pela falta de perspectivas, tom que persiste em textos como “Canção amarga” e “A modo de súplica”. Ao final, prepondera o “Grito de Angústia” que dá nome ao poema: “Sou um negro, Senhor, sou um... negro!” (1961, p. 52).

Essa consciência de si e de sua condição social surge mais tarde na ficção de Oswaldo de Camargo depurada da retórica combativa que marca a produção de alguns poetas e prosadores das décadas seguintes, presentes na série Cadernos Negros, iniciada em 1978. Em seus contos, nota-se o traço irônico e a insinuação substituírem muitas vezes a denúncia explícita, e isto sem prejuízo da reflexão que se quer provocar no leitor.

Do menino da roça “doado” pelo pai ao bom senhor, no conto “Maralinga”; até o jovem músico sem eira nem beira igualmente “adotado” pelo bom patrão, que o exibe aos clientes como prova de benemerência, em “Civilização”; O carro do êxito narra o doloroso percurso desse sujeito em busca de sobrevivência, e, quiçá, respeito e reconhecimento. A prova de fogo representada pela “integração do negro na sociedade de classes”, para ficarmos com o título do estudo de Florestan Fernandes, ganha corpo e alma nas páginas de Oswaldo de Camargo. Seus contos trazem ambientes acolhedores e até festivos, mas também fazem o negro percorrer espaços por vezes sufocantes, que apontam para a desigualdade e a discriminação.

O carro do êxito se organiza feito melodia, por um engenhoso processo reiterativo pelo qual elementos constituintes de determinado personagem reaparecem em outros, sendo encarnados em protagonistas de enredos, cenários e tempos distintos. Irmanadas pelo foco narrativo em primeira pessoa, tais subjetividades dialogam e, mais que isto, se aglutinam na construção de um sujeito étnico ao mesmo tempo singular e plural, individual e coletivo. A partir dessa orquestração, que faz o narrador mergulhar nas encruzilhadas e caminhos percorridos pela comunidade com a qual se identifica, o livro de Oswaldo de Camargo de pronto se insere na tradição da literatura negra ocidental, que surge nos Estados Unidos em começos do século XX, chega ao Caribe e à França nos anos 30 para, em seguida, enegrecer as páginas da literatura de inúmeros países. E não custa lembrar a inclusão do autor na antologia Nouvelle somme de poésie du monde noir, organizada por Léon Damas, destacado ativista do movimento da Negritude francófona, e publicada em Paris em 1967.

Oswaldo de Camargo, a exemplo de grandes autoras e autores afrodescendentes do século XX, assume o desafio da narração em primeira pessoa. Isto implica não apenas trazer o negro para o centro da cena, mas encarná-lo de dentro para fora, percorrer seu interior, dotá-lo de humanidade e verossimilhança. E, de acordo com a tradição que remonta a precursores como Lima Barreto e outros, adotar o seu olhar, sua perspectiva, seu modo de ver o mundo, de baixo para cima, da periferia para o centro. Os contos de O carro do êxito trazem o subalterno na intensidade de suas angústias e sofrimentos, da mesma forma que apontam para a consciência crítica da realidade de sua condição.

Em “Maralinga”, conto em que o tempo da narrativa incorpora o trauma e faz com que um determinado dia se prolongue vida afora, o narrador-personagem volta à infância para relatar os momentos em que ele – pequeno ainda, mas já órfão de mãe –, é entregue pelo pai a um velho de olhos azuis, “dono” do povoado que dá nome ao conto, para “lá servir e tentar ser alguém” (p. 21). Ou, ainda, segundo a confissão do narrador adulto/criança, para lá “tentar me arrancar do desamparo” (p. 22). Na cena final, o pai desconsolado não vê outro caminho:

– O menino então fica, doutor. É bom menino, o senhor pediu, eu trouxe ele. O que o senhor fizer...
E meu pai susteve a palavra, pôs a mão na minha cabeça, pegou o saco com minhas coisas:
– O menino é bom, sem luxo de mãe...
Pegou meus boizinhos:
– Brinca pouco, pode usar ele doutor.
                                                       (CAMARGO: 1972, p. 24)

Pelo exemplo acima, percebe-se o quanto a economia verbal expressa, na precisão contundente da frase, a crueldade do momento da separação. Ao se referir à presença da mãe como “luxo” da criança, a voz paterna expressa sem rodeios o quão próximos ainda estão da ideologia e das práticas escravistas tanto o pai quanto o caridoso benfeitor. O menino é “doado” não apenas para crescer ao abrigo da caridade do homem de posses, mas, sobretudo, como força de trabalho submissa. A cena – e o conto como um todo – chamam a atenção mais ainda pelo tom do narrador. Este ajusta as contas com a vida e declara: “hoje estou me observando lá” (p. 22). E, ao contrário do que pediria o gosto dominante por desfechos de folhetim, a ruptura do laço familiar não se traduz em desespero nem em condenação por parte da criança rememorada pelo adulto. O menino pensa menos em si e mais naquele viúvo que é obrigado a dar o filho para o outro criar logo após ter perdido a esposa: “meu pai, na estrada, tremia o corpo, de tanto chorar.” (p. 24).

As histórias nem sempre mudam de tom em enredos que encenam níveis distintos de tensão. Em “Medo”, o menino está num orfanato católico, todavia numa condição distinta dos colegas: presta serviços braçais à instituição. Por que ele e não outros têm que esfregar o chão, tirar a poeira dos móveis? O texto silencia. E, de imediato, o plot remete à biografia de Dom Silvério Gomes Pimenta, primeiro bispo negro brasileiro, também escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. Consta de sua biografia que, para custear seus estudos, prestava serviços de limpeza durante o dia e dava plantão na portaria do seminário à noite. No conto, o menino negro, para espanto geral, é escolhido para representar um dos doze apóstolos e tem seus pés lavados pelo Cônego Leonídio, na cerimônia em que este representa Jesus.

Já em “Civilização”, o leitor é arremessado de volta ao tema do desamparo a partir das primeiras linhas do conto. E se depara com Paulinho – um jovem músico negro “expulso” de casa, ou melhor, do quarto que alugava na casa do maestro que o acolhera, misto de senhorio e patrão. Momentaneamente sem teto, o narrador não se furta de comentar a frase final do personagem, que soa como sentença moral:

– Assim não dá, Paulinho, a gente quer ajudar, mas vocês...
Aí está, vocês, pretos, pessoal de cor... Se traiu o maestro, claro, se traiu. Vocês... ou seria: vocês, músicos, artistas? Não! O maestro Borino não me aguentou, claro, na sua sala deslumbrante. Alguém lembrou a ele o destoo, o equilíbrio no ambiente...
é claro.
                (CAMARGO, 1972, p. 63)

De início, salta aos olhos o tenso dialogismo entre os discursos do branco e o do negro, acoplados lado a lado, a modo de discussão. Só que este último exerce o poder de narrar e, portanto, conduzir a exposição de acordo com seu ponto de vista. E é nessas condições que transcreve a palavra de seu Outro – o branco, para sobre ela refletir e prontamente detectar o preconceito. A repetição de “claro”, ainda seguida de um “é claro”, reforça o sarcasmo subjacente ao tom irônico que perpassa a narrativa.

De “Maralinga” a “Civilização” vai o leitor acompanhando o percurso desse sujeito, antes criança, agora precocemente adulto. “Civilização” traz a narrativa para a metrópole moderna e cosmopolita, em lugar da paisagem infantil cujo centro é a fazenda Sinhazinha Félix. Porém, o leitor vê repetir, no que seria o futuro daquela criança, a mesma condição de desamparo que motiva o deslocamento forçado do adulto precoce. Oswaldo de Camargo retoma o leit motif do despejo – forma de sequestro do lar, presente em escritos de autores negros os mais diversos, de Patrick Chamoiseau a Conceição Evaristo, além de remeter à memória da diáspora negra de tantos tempos e lugares.

Mas “Civilização” narra também o outro lado da moeda. E aborda a ascensão social do negro como problema – via e veia abertas à alienação e à cooptação: “– Gostei de você, preto, gostei mesmo...”, brada em praça pública, aos pés da estátua de José do Patrocínio, outro branco, também de olhos azuis, Fred, proprietário da Neurotic’s House. Ele “adota” o jovem músico e faz dele garoto propaganda de sua benemerência. Resiliente, Paulinho se ajeita e “sobe na neurotic’s house”. Após “fugir do desamparo”, por que não perseguir o êxito? Tocar piano na hora do almoço é apenas detalhe, sua principal função é contar aos clientes lorotas românticas sobre a própria indigência a fim de exaltar o bom coração do branco. Machadianamente, Oswaldo de Camargo sai da ironia fina para o sarcasmo cortante ao concluir:

Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara, foi e ainda vai: 
– Gosto de você, preto, você provou que um preto pode livrar-se de sua carga... Gosto de você, preto, gosto mesmo...
E ele me ajeita o nó da gravata, sorrindo, muito loiro, muito fino e bonito, como um branco.
E sua mão no meu ombro, me belisca a carne até o osso, testando a resistência...
– Gosto de você, preto, gosto mesmo...
*
Um odor áspero de colônia me envolve, como nuvens de civilização.
                                                                                                 (CAMARGO, 1972, p. 71)

A alienação surge emoldurada por uma ironia cínica que remete ao preço que o sujeito paga por sua condição numa sociedade sob hegemonia da branquitude. O personagem acredita estar no “carro do êxito”, não ainda no volante, mas certamente no assento do carona. Assim, o título do livro cresce, vai além do nome e se torna metáfora estruturante, recorrente e articuladora de enredos.1

Enquanto lado sombrio da subalternidade, a exclusão leva tanto à negação de si quanto à superação altiva do status quo. Em O carro do êxito, o narrador nos conduz a ambos os extremos, com a maestria de quem domina o ofício e rege as tensões. Na arena das relações interétnicas, o antagonismo conduz a reações que passam pelo confronto, mas também pela tolerância envergonhada, daí à aceitação e até à coexistência pacífica.

Em “Louçã”, o menino de Maralinga ressurge adolescente na metrópole, a entregar, em mansões da burguesia paulista, os doces feitos pela tia que trabalhara na região como cozinheira por mais de vinte anos. E o sobrinho, amante de livros e versos, ao cumprir seu papel na economia familiar, penetra no espaço do branco rico para ali encontrar uma jovem solitária em busca de preencher o fim de tarde. Na conversa, ele profere a palavra “louçã”, bebida nos livros, o que intriga a jovem, ignorante do sentido do termo. Ao final, depois de percorrer estantes cheias de capas e letras douradas, o rapazinho não encontra naquela biblioteca sequer um dicionário...

Assim, as narrativas de O carro do êxito terminam por construir um painel dos cenários sociais negros de São Paulo em meados do século XX: entidades como a Associação Cultural do Negro, clubes e imprensa negra emolduram o quadro onde se movimenta uma elite afrodescendente integrada por antigos militantes, dirigentes de associações, políticos. Os ambientes festivos convivem, no entanto, com a pobreza dos botecos e do quarto de pensão onde um jovem solitário se refugia com seus livros e discos. Contos como “Negritude”, “Esperando o embaixador” ou “Negrícia” assumem tom de crônica desse momento e remetem a fatos e pessoas da memória histórica e cultural afro-brasileira. O jornal Niger, que integrou a imprensa negra e abrigou o escritor em sua redação, dá título ao conto homônimo. E poetas como Carlos de Assumpção, Lino Guedes e Bélsiva são lembrados como referências do narrador que os admira e insere seus versos nas narrativas.

A questão torna-se mais complexa quando se percebe que alguns desses traços, que habitam diferentes personae do livro e, mesmo, cenas e referências históricas, passam a remeter à própria biografia do autor empírico, nisto se configurando o principal desafio à presente reflexão. Até que ponto existiria um “pacto autobiográfico”, para ficarmos nos termos de Philippe Lejeune, a salpicar pelos caminhos do “carro do êxito” as marcas do testemunho e do discurso memorialístico? Vejamos.

No início do livro, nota biográfica informa ter Oswaldo de Camargo nascido em Bragança Paulista, mais precisamente na “Fazenda Sinhazinha Félix”, onde ficou até os seis anos, quando perde a mãe. Tanto o local quanto à orfandade integram, como vimos, o enredo do conto “Maralinga”. Já em “Deodato”, o autor, além de inserir na fala do narrador-personagem menção de pertencimento ao “Reino da Garotada Dom Bosco de Poá”, que a citada nota introdutória indica ter sido onde o escritor estudou antes de entrar no seminário, inclui versos de seu livro Um homem tenta ser anjo como sendo de autoria de um poeta que recebe na narrativa o nome de Leonardo Bravo... Essas e outras referências atuam como biografemas barthesianos inseridos aparentemente de forma aleatória na ficção, e agregam lastro histórico e memorialístico ao painel de época a que me referi.

É preciso desde já descartar, no entanto, ser O carro do êxito uma autobiografia. Mateus, Paulinho, Benedito e outros não seriam simples máscaras a representar o autor na sua trajetória de migrante em busca de um lugar na metrópole. O biografismo, que tanto iludiu certa crítica de Machado de Assis, levando-a a equívocos históricos, se adotado aqui implicaria reduzir a ficção a mero depoimento. O biografismo, nunca é demais ressaltar, tem, inclusive, vitimado autores e textos afro-brasileiros empenhados em resgatar uma memória comunitária ausente da história dos vencedores.

Por outro lado, não se pode ignorar a importância do testemunho e do memorialismo negro, vigente desde que este escritor se põe a lançar no papel sua história de vida. Olaudah Equiano, no século XVIII, Mahomed Baquaqua e Frederick Douglass, no século XIX, entre outros, ao tomarem para si a palavra do branco, o fazem antes de tudo para externar sua história de indivíduos cuja liberdade tem que ser conquistada a cada dia. O ímpeto memorialístico marca igualmente a escrita das mulheres de muitos tempos e lugares, e o melhor exemplo é aqui o de uma contemporânea, a também migrante Carolina Maria de Jesus, que chega a São Paulo em meados do século, assim como o nosso autor e milhões de outros brasileiros. Oswaldo e Carolina, dois estranhos na metrópole; duas histórias, duas escrituras distintas. Mas, algo aproxima essas vozes negras que falam e enfrentam o dilema: pode o subalterno falar? Sim, cada qual a seu modo, eles falam. E, ao falar, superam a subalternidade. A condição subalterna, que no diário de Carolina surge abrupta, feito soco no estômago, no conto de Oswaldo passa por formas outras de expressão, não menos impactantes.

Mas afinal qual seria o peso da memória autoral na conformação das narrativas? Ao contrário do dado bruto jogado no diário, a autor de ficção percorre o vivido para transformá-lo em invenção, ao mesmo tempo em que se distancia da ordem exigida pela narração autobiográfica. Assim, traços memorialísticos são semeados na tessitura da ficção e esse entrelaçamento tanto confere historicidade aos enredos quanto remete a um passado não apenas vivido, mas também imaginado na rememoração. Eu-vivido e eu-narrado se imbricam, o poeta-músico-escritor é também cidadão e testemunha. Mas, mesmo como “homem de seu tempo e de seu país”, guarda a memória do vivido no aconchego da imaginação. Aliás, como todo ser humano.

O resultado desse diálogo da narrativa de si com a ficção, apesar de antigo de séculos, é nomeado contemporaneamente de autoficção – conceito objeto ainda de debate, e procedimento narrativo a meu ver próprio de um tempo em que a experiência passada se dilui e se desconecta de um presente marcado pela instabilidade líquida de relações e identidades. Quem primeiro se utiliza do termo é o escritor e crítico francês Serge Doubrovsky, que o coloca na contracapa de seu romance Fils, lançado em 1977, cinco anos depois de O carro do êxito. Mais tarde, declara ele: “pessoalmente, limito-me à definição que dei – e que foi, aliás, reproduzida pelo dicionário Robert culturel: ‘Ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais.’ Esse eixo referencial me parece ser a essência do gênero, se é que existe gênero.” (DOUBROVSKY, 2014, p. 120).

Por esta via de entendimento, fato e ficção, em vez de antípodas colocados em extremos antagônicos, se irmanam na narrativa – lugar em que o inventado passa a existir justamente para realçar o real. Pode-se dizer que o mesmo acontece nos contos de Oswaldo de Camargo, se não em todos, certamente nos mais impactantes. Em seus textos, Serge Doubrovsky chega a inserir o próprio nome nas tramas, numa atitude própria ao “pacto autobiográfico” lejeuniano. Mais comedido, o autor afro-brasileiro traz a memória de si para os núcleos dos enredos, enredando-a, todavia a um vigoroso painel em que despontam outros atores de uma história comunitária escrita a contrapelo.

Oswaldo de Camargo não apenas colhe os frutos da memória negra brasileira e ocidental arquivada num extenso repertório de leituras. A estes adiciona a escuta atenta do que ficou contido na oralidade dos dramas anônimos e dos feitos que não têm lugar no discurso da história. Porém, mais do que colher, é ele alguém que faz do fruto semente que germina e cresce. E que, pela via da palavra, constrói um mosaico não de identidades negras fixas feito essências, mas identificações em processo, com suas nuances e contradições. Sob a batuta do maestro, tais faces múltiplas se encontram e soltam suas vozes, que remetem a um passado/presente que muitos desconhecemos, apesar de com ele conviver praticamente todos os dias.

Nota

1. A propósito, comenta Brookshaw: “o progresso social, o aburguesamento envolve um inevitável processo de branqueamento cultural e a troca da alma por uma outra que não é autêntica, enquanto a preservação da herança negra, da ‘negrícia’, é um obstáculo para a ascensão social em um mundo onde o controle financeiro está em poder dos brancos. É a tensão entre estes fatores que constitui o tema do livro.” (1983, p. 216-7).

Referências

BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

CAMARGO, Oswaldo. O carro do êxito. São Paulo: Martins, 1972.

_____. Um homem tenta ser anjo. São Paulo: Supertipo, 1959.

_____. 15 poemas negros. São Paulo: Associação Cultural do Negro, 1961.

DOUBROVSKY, Serge. O último eu. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Trad. de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2008.

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Eduardo de Assis Duarte integra o Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da FALE-UFMG e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed., Record, 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (3. ed. rev. ampl., 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. Reimpr., 2021, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira” e o Portal literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.

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