Maria: reflexões sobre gênero, raça e classe
no conto de Conceição Evaristo

 

Túlio Romualdo Magalhães¹

Resumo

Pelo menos desde os últimos vinte anos, chama a atenção como a obra literária da escritora mineira Conceição Evaristo vem crescentemente se destacando. Provas disso se dão na grande procura do público pela literatura evaristiana, diversas homenagens à escritora e dezenas de prêmios. Certamente, esse sucesso passa pelas questões abordadas por Evaristo em sua escrita, as quais são tão pungentes na sociedade brasileira. Nesse contexto, este artigo busca refletir sobre como as questões de gênero, raça e classe aparecem no conto Maria (2016), ao trazer à tona as dores, as violências e as dificuldades enfrentadas pela protagonista homônima ao título do conto: uma mulher, negra e pobre. Para tanto, dialoga-se com autores e autoras que auxiliam a entender os traços marcantes que surgem no interior da narrativa, uma vez que se dedicam a pensar teorias sobre as questões feministas, raciais e sociais.

Palavras-chave: Conceição Evaristo; Gênero; Raça; Classe; Memória.

Introdução

Se houvesse um monumento à memória negra, deveria ser construído no fundo do mar, em homenagem àqueles que se perderam na travessia.
Na impossibilidade de levantar tal monumento, me dedico a construir
uma obra literária sobre o tema.

Conceição Evaristo
Folha S.
Paulo, 04/05/17

 

A literatura da escritora negra Conceição Evaristo cada vez mais vem ganhando público, um fato que demonstra a contundência de sua escrita para as questões sociais que (re)surgem com ampla força no contemporâneo, a exemplo das lutas contra o racismo, o machismo e os privilégios de classe. É relevante como o contorno da recepção da obra evaristiana vem se dando, pois a autora tem conquistado um público diverso, de várias idades, etnias, sexos e até países, já que possui tradução em italiano, francês, árabe e outras línguas. Dentre várias explicações possíveis para esse fenômeno, acredito que a característica mais marcante da escrita de Evaristo se concentra em um desnudamento de realidades há muito silenciadas, o que a autora faz com maestria, ao construir ficções que se comunicam com uma experiência individual e, ao mesmo tempo, coletiva, pela qual os indivíduos e os grupos subalternizados têm passado. Assim, não incomumente as pessoas, ao lerem a obra evaristiana, dizem se sentir impactadas, transformadas e com suas vidas ressignificadas.

Outro aspecto da escrita de Evaristo que chama atenção é a linguagem. A escritora tem modificado e (con)fundido normas tradicionais que configuram os gêneros literários, desestabilizando os paradigmas em torno do conto, do romance e do poema. A partir da construção do conceito de escrevivência, em meados da década de 1990, em sua dissertação de mestrado, a autora não uma ou duas vezes tem construído obras ensaísticas, ficcionais e poéticas que imprimem na escrita uma forte perspectiva feminina, o que sacode as bases de uma sociedade narrada historicamente pelo olhar patriarcal. Esse ponto de vista outro trazido pelo protagonismo feminino desnuda realidades silenciadas ao longo do tempo, ao trazer para o centro da cena, muitas vezes, mulheres negras das classes populares. Em acordo com o que aqui se afirma, a pesquisadora Constância Duarte explica que:

Em suas produções, Conceição constrói uma perspectiva que se fortalece no protagonismo feminino, pois é do seu ponto de vista que as histórias são contadas. Se, geralmente, nos textos assinados por mulheres costuma predominar a busca de identidade nas personagens, Evaristo trabalha incessantemente questões relacionadas ao “ser mulher” e ao “estar no mundo”, fortalecendo o sentimento de irmandade entre elas, com a peculiaridade de deixar marcado o seu lugar de fala enquanto negra, feminista, oriunda das classes populares. (DUARTE, 2020, p. 136)

Nesse contexto, ainda refletindo sobre os aspectos complexos envolvidos na linguagem construída por Evaristo, temos o brutalismo poético, conceito comumente comentado pelo pesquisador Eduardo de Assis Duarte para descrever a obra evaristiana. É inegável a habilidade da autora em construir cenas de violência, dor e sofrimento através de uma linguagem poética, aspecto que faz de sua escrita algo ainda mais forte, potente.

Dessa forma, Conceição Evaristo tem sido um dos expoentes contemporâneos do fortalecimento e do crescimento de uma literatura afro-brasileira, que, em contraste com grande parte da tradição da série literária brasileira, vem se preocupando em edificar ficções que tematizem de maneira não estereotipada o negro, a mulher, o pobre e todos aqueles que, historicamente, tiveram sua humanidade solapada, na realidade e na ficção. A partir de 1990, quando a autora estreia sua carreira literária com contos e poemas sendo publicados pela série Cadernos Negros, sob responsabilidade do grupo Quilombhoje, podemos dizer que Evaristo vem, a cada publicação, quebrando barreiras e se inserindo em uma tradição dentro da literatura afro-brasileira, ao lado de outros escritores e de outras escritoras como Maria Firmina dos Reis, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Miriam Alves, Cristiane Sobral, Solano Trindade e tantos outros.

A escritora, ao produzir suas ficções e pensar estéticas próprias, tem (con)fundido escrita, vivência, literatura e realidade. Ao construir contos, romances e poemas que compõem um novo marco dentro da literatura, a obra evaristiana tem sido caracterizada pela expressão de vozes silenciadas por muito tempo ao longo da história, como a feminina, a do pobre, a do negro e a de outros grupos subalternizados. Não à toa Evaristo tem se destacado tanto pelo menos desde as duas últimas décadas, as quais foram marcadas por diversas organizações de lutas sociais, políticas, feministas e antirracistas no Brasil. Nessa seara, o professor Eduardo de Assis Duarte, ao refletir sobre o impacto da escrita de Evaristo, vai dizer que:

Com efeito, os textos de Evaristo se destacam por expressar um território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade, mas também pela maternagem e pela sororidade, que provêm as vozes-mulheres que remetem aos ecos das correntes arrastadas e aos seus sucedâneos modernos e contemporâneos. Desde Ponciá Vicêncio (2003) até Canção para ninar menino grande (2018), fala nos textos um sujeito negro, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado/presente, em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas fala, sobretudo, um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela um “segundo sexo” específico, pois vítima de comportamentos nascidos do passado escravista. A escrevivência evaristiana é afro-gendrada, seja pela presença esmagadora de dramas e personagens femininos, seja pela explicitação das “vozes-mulheres” como lugar de pertencimento a construir a representação, mesmo em se tratando de figuras do sexo oposto, meninos ou adultos. (DUARTE, 2020, p. 83-84)

Nesse contexto, este artigo pretende analisar alguns aspectos relevantes sobre gênero, raça e classe que atravessam Maria, conto de Conceição Evaristo publicado originalmente no número 14 dos Cadernos Negros, em 1991, e, posteriormente, na coletânea de contos Olhos d’água (2016), ao trazer à tona as dores, as violências e as dificuldades enfrentadas pela personagem feminina e protagonista homônima ao título do conto: uma mulher, negra e pobre. Em que medida essa narrativa dialoga com a realidade social brasileira? Como o sexismo, o racismo e a hierarquia social de um país como o Brasil aparecem no conto? De que maneira o encadeamento dramático-narrativo envolve o leitor e a leitora? Essas e outras questões serão aqui colocadas em debate a fim de que se alcance o objetivo deste artigo: compreender de que forma a escrita evaristiana lida com aspectos violentamente silenciados em nossa história e em nossa cultura, ao trazer para o centro da discussão as questões de gênero, raça e classe. Para tanto, busca-se ainda dialogar com autores e autoras que auxiliam a entender os traços marcantes que surgem no interior da curta narrativa de Evaristo, uma vez que se dedicam a pensar teorias sobre as questões feministas, raciais e sociais.

Brasil: uma sociedade estruturada pela opressão

A realidade social do Brasil na contemporaneidade é estruturada por várias opressões historicamente construídas, desenvolvidas e cultivadas no país. Dentre elas, as opressões de gênero, raça e classe não raramente nos saltam aos olhos, com notícias e mais notícias de episódios reveladores de violências do cotidiano. A título de exemplificação, basta que se pesquise os números do genocídio da população negra, do feminicídio e as precárias condições em que vivem as camadas populares. Segundo o Atlas da Violência (2019), em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras, ainda que esse grupo represente somente 56% da população. A mesma pesquisa ainda revelou que as mulheres negras morrem mais se comparadas às brancas, que, em 2018, das 4.519 vítimas do feminicídio, 68% eram mulheres negras.

Assim, percebemos que as desigualdades abismais entre grupos sociais em nosso país não são coisa do passado, mas sim uma consequência dele, ao evidenciar, no presente, as mazelas deixadas pela escravidão e pela lógica patriarcal desde o período colonial. Na obra intitulada O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2016), o dramaturgo, ator, professor e ativista Abdias do Nascimento promove uma longa reflexão que evidencia como o processo histórico de racismo no Brasil vem se dando de maneira disfarçada e, assim, perpetuando-se. Como resultado, mantem-se o genocídio de um grupo há séculos violentado: o povo negro. Diante desse cenário de violência, dor e sofrimento pelo qual passam muitas famílias, resta somente a luta e a resistência. Como o próprio escritor nos explica:

Caracteriza-se o racismo brasileiro por uma aparência mutável, polivalente, que o torna único; entretanto, para enfrentá-lo, faz-se necessário travar a luta característica de todo e qualquer combate antirracista e antigenocida. Porque sua unicidade está só na superfície; seu objetivo último é a obliteração dos negros como entidade física e cultural. (NASCIMENTO, 2016, p. 121)

Contudo, sabemos que, embora essas desigualdades sejam denunciadas há muito pelos grupos do Movimento Negro ou grupos feministas e, mais recentemente, venham sendo retratadas na grande mídia, a maior parte da população brasileira ainda resiste em assumir que o Brasil é um país machista, racista e socioeconomicamente desigual. Dentro desse contexto, a negação da ocorrência de um processo histórico de violência e de silenciamento contra negros, mulheres e pobres em nosso país continua se perpetuando, fato que fortalece ainda mais essas opressões.

Sabe-se que as opressões das quais tratamos aqui, por seu próprio caráter histórico de construção paulatina, são estruturas fortes de nossa sociedade contemporânea, difíceis de serem balançadas e combatidas. Angela Davis (2018, p. 32), ao tratar do preconceito étnico-racial, já nos chamou a atenção para o fato de que “não é fácil erradicar o racismo, tão profundamente arraigado nas estruturas de nossa sociedade e por isso é importante produzir uma análise que vá além da compreensão dos atos individuais de racismo, por isso precisamos de reivindicações que vão além da instauração de processos contra pessoas que cometem atos racistas”. É interessante notar que a sociedade de que fala Davis não é a brasileira, mas suas colocações se aplicam bem a ela.

Nesse sentido, podemos dizer que o início do combate a toda e qualquer opressão passaria, necessariamente, pelo entendimento de que essas opressões estruturam nossa sociedade. Dessa forma, elas são complexas e duras de serem combatidas, ainda que possíveis e urgentes. Sílvio de Almeida, ao tratar do racismo, reflete que:

[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição. (ALMEIDA, 2018, p. 38-39)

Ao ter em perspectiva esse cenário de nossa realidade, passa-se, pois, a discutir a ficção. Para tanto, este artigo conta com uma análise das quatro principais cenas do conto Maria (2016), ao tentar pensar questões suscitadas pelo texto que nos tocam no momento da leitura. Na narrativa, de que forma a violência e a dor aparecem? Como a protagonista do conto de Evaristo é atravessada pelas violências de gênero, de raça e de classe? Em que medida o enredo da ficção se coaduna com as histórias de dor e sofrimento das mulheres, negras e pobres da realidade brasileira?

Maria: mulheres da ficção, mulheres da realidade

No início do conto, a narrativa em terceira pessoa traz à cena uma situação pela qual passa a personagem Maria. Assim, a partir das informações inicias, já conseguimos compreender aspectos da vida da protagonista, como a classe social a que ela pertence, sua profissão e a relação com os filhos.

Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. Os ônibus estavam aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam de melão? (EVARISTO, 2016, p. 39-40)

No trecho supracitado, percebe-se que a cena inicial do conto já denuncia a difícil condição de vida enfrentada por Maria, a qual, sabe-se, é também uma condição cotidianamente vivida pelas classes populares: as cansativas horas perdidas à espera do transporte público para ir ou vir do trabalho e o pesado custo que a tarifa da passagem pode representar para aqueles que têm um orçamento tão pequeno. Além disso, consegue-se saber que Maria tem como profissão ser empregada doméstica, pois a ela pertencem agora os restos de comida da festa acontecida na casa de sua patroa no dia anterior, o que evidencia o abismo econômico e social entre a família da protagonista, pertencente a uma classe popular, e a família da patroa, provavelmente composta por brancos e pertencente a uma classe média alta.

O que representa o trabalho para as famílias das classes populares? Ora, dentro de nossa sociedade capitalista com seu processo de mais-valia, sabemos que aqueles pertencentes às camadas mais baixas da sociedade trabalham pela sobrevivência de suas famílias, ao passo que a venda de seu labor, muitas vezes, representa o enriquecimento das famílias donas dos meios de produção. A profissão de Maria empregada doméstica – foi um trabalho desregulamentado por muitos anos em nosso país e ainda é marcado pela exploração, visto que, principalmente nos grandes centros, ainda é tão comum que essas mulheres trabalhem períodos integrais para famílias ricas e morem em pequenos quartos de empregada, representativos das senzalas contemporâneas. Assim como Maria, quantas outras mulheres, negras e pobres da sociedade atual estão nessa condição? Não por acaso bell hooks diz: “aprendi com minha própria experiência que trabalhar por salários baixos não libertava mulheres pobres da classe trabalhadora da dominação [...]” (2018, p. 63).

Ainda, pode-se ver no trecho citado que, apesar do cansaço, Maria estava se sentindo feliz e poderia cuidar da alimentação e da gripe de seus dois filhos menores, o que nos leva a refletir sobre a protagonista em sua condição materna, sendo aquela que cuida da família, que não mede esforços para a criação dos filhos e sonha para sua prole uma condição de vida melhor no futuro. Nesse sentido, é inescapável em nossa mente a lembrança dos diários de Carolina Maria de Jesus, ao registrar em sua literatura a luta diária para criar sua família, demonstrando que a maternagem, para a mulher, negra, pobre e favelada representa, antes de tudo, um grande desafio movido pelo amor aos seus.

Em uma segunda cena do conto, quando Maria se encontra dentro do transporte pelo qual tanto esperou, surge uma surpresa: ela se encontra com um homem, pai do primeiro de seus três filhos, pelo qual tinha sido apaixonada. Nesse momento da narrativa, podemos depreender da leitura informações sobre o passado da vida da protagonista, como o tempo em que dividiu um barraco na favela com aquele homem que acabara de reencontrar por acaso no ônibus depois de anos de abandono, o relacionamento amoroso que tivera com ele e a feliz descoberta da gravidez do primeiro filho.

Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais ninguém. Você teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também! Homens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito... (EVARISTO, 2016, p. 40)

É interessante observar a descrição do homem como um sujeito bonito e grande, o que demonstraria virilidade e masculinidade, características essenciais à figura do macho dentro do patriarcado. Contudo, ao mesmo tempo, o ex-homem de Maria é caracterizado como um homem de olhar assustado, o que nos remete à fragilidade e à vulnerabilidade, aspectos geralmente tão distantes do imaginário da figura do macho dentro desse mesmo discurso patriarcal. Evaristo, dessa forma, confere, na narrativa, uma complexa humanização para esse sujeito que, ao mesmo tempo que possui seus privilégios por ser homem, sofre em demasia numa sociedade racista e classista, na qual ele é constantemente subalternizado. Esse homem, ainda, ao indagar Maria sobre os filhos e a vida da família que ele havia abandonado, demonstra se sentir arrependido, pois sente saudades e diz ter um buraco no peito, o que nos permite pensar sobre a difícil vida enfrentada pelo homem-personagem.

A narrativa transcorre com uma breve conversa entre Maria e seu ex-homem, cujo nome nós nunca ficamos sabendo. Contudo, em meio à intranquilidade e ao barulho do ônibus, a protagonista do conto não consegue ouvir bem os cochichos de seu ex-companheiro. Dessa forma, cabia-lhe somente tentar adivinhar os assuntos sussurrados pelo pai de seu primeiro filho. Faz-se importante notar que, nesse momento da história, o enredo toma um ritmo mais acelerado e tumultuado, o que imprime na leitura uma sensação de angústia.

Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das pessoas. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil cruzeiros. Não tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. (EVARISTO, 2016, p. 41)

Nesse trecho da narrativa, em que se configura uma terceira cena, ao analisar alguns aspectos relevantes, primeiramente, podemos perceber o sofrimento de Maria devido à situação de um assalto sendo realizado pelo próprio pai de um dos seus filhos, aquele seu ex-homem que, naquele momento, segurava uma arma na mão. Se, por um lado, os demais passageiros do ônibus temiam a morte e/ou o roubo, a protagonista do conto pensava na criação de seus filhos, em um gesto preocupado de quem conhece as dificuldades da vida e sabe o que é criar sua prole sem o pai. Secundariamente, vemos um agravamento de emoções dentro de Maria que se justifica pelo fato de seu ex-companheiro ser um dos responsáveis pelo assalto dentro do ônibus. Nesse sentido, ele representa, ao mesmo tempo, o assaltante responsável pelo pânico no ônibus e o homem com quem um dia ela dividira sua vida, o qual se atualizava em sua memória por meio de seu primeiro filho, fruto da relação entre os dois.

O assalto, como uma situação naturalmente violenta, poderia nos levar, assim como comumente acontece na sociedade, a desenvolver um sentimento de asco, medo e repugnância com relação aos assaltantes. Entretanto, sabendo da condição de vida do ex-homem de Maria e seus comparsas no que tange à discriminação sofrida diariamente por eles devido ao racismo e às dificuldades no mercado de trabalho, seja pela falta de qualificação seja pela cor da pele, somos convidados a refletir se esses personagens são mesmo tão vilões assim. Dessa forma, em um momento de compaixão por esses personagens, nos questionamos: será que o assalto foi uma escolha ou uma necessidade? Assim, em um encadeamento narrativo arrebatador, chega-se à quarta cena do conto:

Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz ainda do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembrava vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção a Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. (EVARISTO, 2016, p. 41-42)

Ao atingir o clímax da narrativa, a quarta cena do conto narra de que forma acontece a tragédia que acomete a protagonista. Após os assaltantes deixarem o ônibus, Maria é então surpreendida pelo comportamento do restante dos passageiros, que começam a ofendê-la. Nesse contexto, merece relevo o fato de que as palavras puta, negra e safada foram os xingamentos utilizados para acusar a protagonista do conto dizendo que ela fazia parte do assalto ocorrido, o que evidencia, sociolinguisticamente, que a revolta e a vontade que alguns passageiros tiveram de violentar Maria passava, além do fato de seu ex-companheiro ter se sentado ao seu lado no ônibus antes do assalto, pelas questões de gênero, raça e classe. Maria, naquela situação, para além da suspeita de seu envolvimento no assalto, foi acusada por ser mulher, por ser negra e por ser pobre, fatores que, interseccionalmente, eram responsáveis por seu lugar na sociedade: uma doméstica que lutava para criar seus filhos sozinha.

Dessa forma, por mais que Maria dissesse que não tinha nada que ver com o assalto ou que o motorista tentasse a defender, a personagem já estava condenada por tudo o que o seu corpo representa para uma sociedade machista, racista e classista, que, através de estereótipos, discrimina mulheres, negros e pobres, ao colocá-los em lugares subalternos. Assim, para além da violência simbólica sofrida por Maria a partir de vários e injustos xingamentos e acusações, a personagem, através das mãos de quem a discriminou, é linchada até a morte, caracterizando também o sofrimento de uma violência física.

Portanto, na ficção, se analisarmos a história do conto no que tange às dificuldades enfrentadas por Maria devido a sua condição de mulher, negra, pobre, mãe e doméstica, logo pensaremos também nas Marias do mundo real, que veem a vida se impor tão cruelmente sobre si e sobre os seus. Dessa forma, a escrita de Evaristo constrói uma mulher na ficção com uma experiência que, infelizmente, muito dialoga com as mulheres da realidade de nosso país, ao evidenciar como as opressões de gênero, raça e classe podem causar dor, violência e sofrimento aos grupos subalternizados.

Algumas considerações

Tendo em vista as constantes e numerosas pesquisas sobre a obra evaristiana e as variadas camadas de leitura sobre as quais o conto Maria pode ser analisado, não tenho a pretensão, aqui, de tecer considerações finais. Contudo, em virtude de tudo que foi dito, julgo possível empreender algumas considerações no que tange ao modo como o gênero, a raça e a classe aparecem no conto.

Não resta dúvidas de que o povo negro brasileiro, por toda sua história na condição de escravizado, tem seu cotidiano e sua identidade ainda hoje marcados pela discriminação étnico-racial. Em nossa sociedade, sabemos que a esse povo foi negado o direito à memória e o direito à própria história, uma vez que o processo de subalternização imposto ao negro desde sua chegada à América o destituiu de toda sua humanidade. Culturalmente, além das perseguições e punições sofridas em virtude de manifestações religiosas, o negro, na maior parte de nossa história, foi objeto de tematização, mas quase nunca sujeito de sua própria ficcionalização.

Em um processo de desumanização semelhante, as mulheres e os pobres, pela opressão de gênero e de classe, respectivamente, tiveram em grande parte da história seus direitos solapados, cabendo-lhes somente o cumprimento dos deveres impostos por uma sociedade patriarcal e capitalista. Negou-se a esses grupos a possibilidade da liberdade, do estudo, do trabalho, do acesso a arte e tantas outras escolhas. Georges Didi-Huberman os definiria, certamente, como figurantes da história.

Os figurantes constituem, no cinema, um acessório de humanidade que serve de moldura para o jogo central dos heróis, os verdadeiros atores do discurso, os protagonistas, como costumamos dizer. Eles são, para história que se conta, algo como um pano de fundo, constituído de faces, corpos, gestos. Eles configuram portanto um paradoxo de ser apenas um simples cenário, porém humano. (DIDI- HUBERMAN, 2010, p. 129)

Em comum, podemos dizer que todos os grupos historicamente silenciados e subalternizados em nossa sociedade lutaram e resistiram. Não por escolha, mas essencialmente pela sobrevivência própria e dos seus. Contudo, a força do opressor é severa, reprime aqueles que perturbam a ordem social, mesmo que ela signifique dor, morte, sofrimento e violência para os grupos oprimidos, como os negros, as mulheres e os pobres.

Nesse contexto, Conceição Evaristo, uma escritora negra, mulher e originária de camadas populares, por meio de sua literatura proporciona o protagonismo àqueles a quem o silenciamento foi dado como regra. A obra evaristiana sacode as estruturas tão solidamente perversas de nossa sociedade para dar lugar à autoria negra, à voz feminina e à discussão da árida vida enfrentada pelas famílias pobres. Esse movimento representa parte de uma revolução, tanto social como culturalmente, uma vez que contribui para o desnudamento das chagas deixadas por nosso passado colonial e ainda traz à tona ficções marcadamente conduzidas por aqueles que não habitualmente têm voz e vez, como é o caso dos negros, das mulheres e dos pobres.

Em Maria, a criação e a representação de uma trágica história ocorrida com uma doméstica, mulher, negra e pobre diz muito além de um plano apenas individual, como se o caso fosse isolado. Pode-se dizer que a narrativa edificada no conto diz sobre um nós coletivo, com o perdão da aparente redundância, ao transpor a ficção e dialogar com a triste realidade de muitas outras mulheres, negras e pobres de nosso país. Assim como Djamila Ribeiro, intelectual do feminismo negro no Brasil, vem tratando em suas obras e explanando em variadas entrevistas, a visão da mulher, negra e pobre como lutadora e forte não pode funcionar como caracterização positiva, pois ela é fruto de um grave processo histórico de desumanização e violência contra esse grupo. Nas próprias palavras da filósofa:

[...] a construção da mulher negra como inerentemente forte [é] desumana. Somos fortes porque o Estado é omisso, porque precisamos enfrentar uma realidade violenta. Internalizar a guerreira, na verdade, pode ser mais uma forma de morrer. Reconhecer fragilidades, dores e saber pedir ajuda são formas de restituir as humanidades negadas. Nem subalternizada nem guerreira natural: humana. Aprendi que reconhecer as subjetividades faz parte de um processo importante de transformação. (RIBEIRO, 2018, p. 14)

Dessa forma, ao desnudarmos a história oficial dos vencedores e analisarmos as experiências dos grupos historicamente subalternizados em nossa sociedade, nos depararemos com realidades outras que igualmente constituem a memória do Brasil. Quando Gayatri Spivak (2010) dedica suas reflexões a responder à pergunta Pode o subalterno falar?, categoricamente sabemos que a resposta deveria ser positiva, não fossem tantas as opressões que estruturam nossa sociedade. Basta olharmos em volta para perceber que os grupos subalternizados, como os negros, as mulheres e os pobres, têm falado há muito através da arte, do samba, da capoeira, dos congados, dos slams e na literatura. Portanto, sabendo-se que o subalterno pode falar, tomo a liberdade de modificar a pergunta de Spivak e questionar: quem escuta a fala do subalterno?


Referências

ALMEIDA, Silvio de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros, 2018. 256 p.

Atlas da violência 2019. Organizadores: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Org. Frank Barat. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018. 150 p.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Os figurantes. In: Ética e imagem. Orgs. Vera Casa Nova e Andréa Casa Nova Maia. Belo Horizonte: C/ Arte, 2010, 200p.

DUARTE, Constância Lima. Canção para ninar menino grande: o homem na berlinda da Escrevivência. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado (Org.). Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 134-150.

DUARTE, Eduardo de Assis. Escrevivência, Quilombismo e a tradição da escrita afrodiaspórica. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado (Org.). Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 74-94.

EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016. 116 p.

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. 144 p.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 120 p.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. 232 p.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010. 133 p.

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¹Túlio Romualdo Magalhães é graduado em Letras pela UFOP, Especialista em Ensino da Língua Portuguesa pelo IFMG-OP, mestrando em Letras, Estudos Literários, pela UFMG, professor da rede pública de Ensino e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do portal literafro, desta Instituição. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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