ANAIS DO SIMPÓSIO


Victor Hugo: a face oculta de um gênio

Maria do Carmo M. Schneider
UFES

Esta carta, enviada por Victor Hugo a Mme de Girardin em 4/1/1855, prova a continuidade das experiências:

As mesas nos dizem, com efeito, coisas surpreendentes. Como gostaria de conversar com a senhora, beijar-lhe as mãos, os pés, ou as asas. Paul Meurice contou-lhe que todo um sistema quase cosmogônico de palavras ocultas, e escrito pela metade, há vinte anos, foi confirmado pelas mesas, com explanações magníficas? Estamos vivendo em um horizonte misterioso, que muda as perspectivas do exílio, e pensamos na senhora, a quem devemos essa janela aberta. (Hugo, Correspondência, p. 91)

O literato francês Paul Meurice, amigo íntimo e grande admirador de Hugo, um dos executores testamentários da bagagem literária do escritor, encontra os referidos cadernos, dá conhecimento dos mesmos a Camille Flammarion que, em 1899, afirmava que eles existiam ainda, pois ele os havia folheado pouco tempo antes (Flammarion, 1899).

As anotações das reuniões espíritas eram feitas por Hugo, que exercia o papel de secretário. Sua esposa, seus filhos Carlos, Francisco Victor, Adélia, seus amigos Augusto Vacquerie, Teófilo e Emílio Guérin e Júlio Allix, Adolfo le Flôt e outros exilados sentavam-se à mesa como médiuns.

Hugo, que não duvidava da identidade desses interlocutores, tinha o cuidado de improvisar para eles estrofes e parágrafos, realizando um extraordinário diálogo com o mundo espiritual que se caracterizava ora por páginas de elevada filosofia consoladora, ora por respostas de franca ironia.

Vejamos, por exemplo, uma dessas trocas poéticas entre as duas partes, quando Hugo apresenta perguntas em versos a Molière, insistindo para que o escritor lhe responda:

Tu, que do velho Shakespeare aceitaste o desafio,
Tu que, perto de Othello, esculpiste o sombrio Alceste,
Astro que resplandece sob um duplo horizonte,
Poeta no Louvre, arcanjo no céu, ó grande Molière,
Tua visita esplêndida minha casa engrandece.
Me estenderás, lá no alto, tua mão hospitaleira?
Porque a fossa se abre para mim no chão,
Eu vejo sem medo o túmulo nas sombras eternas,
Pois eu sei que o corpo aí encontra uma prisão,
Mas que a alma encontra aí suas asas.

Mas é o espírito que se nomeia "A Sombra do Sepulcro" quem responde:

Espírito que quer saber o segredo das trevas,
E que, segurando nas mãos a terrestre chama,
Vem, furtivo, apalpando nossas fúnebres sombras,
Espicaçar a imensa tumba,
Retorna ao teu silêncio e sopra tuas velas,
Retorna à noite de onde algumas vezes sais;
O olho dos vivos não lê as coisas eternas
Por sobre os ombros dos que não vivem mais.
(Flammarion, 1899: 29l)

As afirmações dos espíritos eram em geral relativas, parciais e com uma linguagem adaptada ao nível do conhecimento e da compreensão dos homens (encarnados). Hugo exigia sempre que esta comunicação fosse transcendental, igualada ao divino. Como seus desejos fossem contrariados, o eminente poeta se aborrecia, o que levou certa feita o espírito de Galileu a advertir-lhe: "Se imperioso fosse que a mesa falasse, não a linguagem humana, mas a linguagem celeste, vós não a compreenderíeis!..." (Wantuil, 1994: 167)

Hugo acreditava plenamente nas manifestações dos mortos através das mesas e prova sua crença quando escreve, por ocasião de seus estudos sobre Shakespeare, em 1867:

A mesa girante ou falante foi bastante ridicularizada. Falemos claro. Esta zombaria é injustificável. Substituir o exame pelo menosprezo é cômodo, mas pouco científico.

Acreditamos que o dever elementar da Ciência é verificar todos os fenômenos, pois a Ciência, se os ignora, não tem o direito de rir deles. Um sábio que ri do possível está bem perto de ser um idiota.

Sejamos reverentes diante do possível, cujo limite ninguém conhece, fiquemos atentos e sérios na presença do extra-humano, de onde viemos e para onde caminhamos. (Hugo, Shakespeare, p. 183)

É ainda pelas anotações feitas por Adèle Hugo, filha do poeta, durante uma conversação entre Hugo e Augusto Vacquerie, a propósito da utilidade do diálogo com o invisível, que percebemos a posição do escritor diante dos fenômenos das trocas com o outro mundo.(1)

Não creio nos fenômenos das mesas de u’a maneira cega. Se o livro que preparamos for dado a público, ver-se-á que sempre discuti com os espíritos; discuti respeitosamente, mas discuti; trago comigo duas luzes: minha consciência, que vem de Deus, e minha razão.(2)

(1) Adèle Hugo apud Wantuil, 1944, p. 171.
(2) Victor Hugo foi aconselhado pelo espírito que se nomeava "A Sombra do Sepulcro" a não publicar essas comunicações; caso o fossem, deveriam ser póstumas (Robb, 1997: 338).

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