ANAIS DO SIMPÓSIO


Victor Hugo: a face oculta de um gênio

Maria do Carmo M. Schneider
UFES

É necessário esclarecer que certos analistas supõem que o próprio Hugo, se permanecia longe das mesas falantes, era o autor inconsciente das famosas composições de Jersey. Ele transmitiria seus pensamentos a seu filho Carlos que, por sua vez, os transmitiria à mesa. O pesquisador Jacques de Valay encontrou no manuscrito de La Légende des siècles uma anotação feita à margem por Hugo, e que consiste em uma resposta incisiva e indireta àqueles que consideravam esses escritos como uma fraude inconsciente:

É confirmado o fenômeno do velho tripé, estranho fenômeno a que tenho assistido amiudadamente: uma mesa de três pés dita versos por meio de batidas, e estrofes saem da sombra. Escusado é dizer que jamais misturei aos meus versos um único desses versos que provêm do mistério; estes religiosamente sempre os deixei ao desconhecido, que deles é o único autor; não lhes acolhi nem mesmo a sugestão; evitei-lhes mesmo a influência. O trabalho do cérebro humano deve conservar-se à parte e nada pedir de empréstimo aos fenômenos. As manifestações exteriores do invisível são um fato, e as criações interiores do pensamento são outro. A muralha que separa os dois fatos deve ser respeitada no interesse da observação e da Ciência. Nenhuma brecha deve ser feita, e um empréstimo seria uma brecha. Ao lado da Ciência, que defende o fenômeno, manifesta-se também a religião, a grande, a verdadeira, a obscura, a incerta, que o proíbe. É, então, repito-o, tanto por consciência religiosa, quanto por consciência literária, é por respeito para com o próprio fenômeno, que dele me isolei, impondo-me a mim mesmo não admitir nenhuma mistura em minha inspiração, de modo a conservar minha obra tal como é, absolutamente minha e pessoal ...(3)

Hugo definiu, assim a produção do seu espírito, separando-a daquela que vem do mundo desconhecido, dos pseudomortos. Entretanto, é através das revelações das mesas falantes que ele observa a impressionante confirmação de muitas de suas idéias filosóficas e religiosas, o que o leva a escrever em 19 de setembro de 1854:

Os seres que povoam o Invisível, e que vêem os nossos pensamentos, sabem que há vinte cinco anos me ocupo dos assuntos que a mesa suscita e aprofunda. Mais de uma vez a mesa me tem falado desse trabalho; a "Sombra do Sepulcro" incitou-me a terminá-lo. Nesse trabalho, evidentemente conhecido no Além, nesse trabalho de vinte e cinco anos eu encontrara, apenas pela meditação, muitos dos resultados que compõem hoje a revelação da mesa; vira distintamente confirmados alguns desses resultados sublimes; entrevira outros que viviam no meu espírito num estado de embrião confuso. Os seres misteriosos e grandes que me escutam vêem, quando querem, no meu pensamento, como se vê numa gruta com um archote; conhecem a minha consciência e sabem quanto tudo o que eu acabo de dizer é rigorosamente exato. E isto é tão exato, que fiquei por um momento contrariado, no meu miserável amor-próprio humano, com a revelação atual, que veio lançar à volta de minha lampadazinha de mineiro o clarão dum raio ou de um meteoro. Hoje, tudo o que eu vira, é de todo confirmado pela mesa: e as meias revelações a mesa as completa.(4)

Apesar de seu cuidado em não se deixar influenciar pelos seres que povoam o mundo invisível, a comunicação permanente com os mortos durante seu exílio em Jersey influenciou sensivelmente as obras escritas nos anos que se seguiram a 1853, sobretudo os principais poemas do livro Les contemplations e as páginas apresentadas abaixo.

Em uma belíssima página poética de Les Contemplations, escrita em 1854, intitulada "O que é a morte", ele dedica este verso aos incrédulos: "Não diga morrer: diga nascer; acredite" (Hugo, Contemplations, p. 412).

É mais uma vez em Les contemplations que ele canta a submissão do homem diante da vontade de Deus, em face das dores que afetam a humanidade; Hugo afirma, então, no poema À Villequier:

Eu digo que o túmulo que sobre os mortos se fecha
Abre o firmamento;
E o que acreditamos aqui em baixo ser o fim
É o começo.
(Hugo, Contemplations, p. 255).

Infinitamente angustiado pela ausência de sua filha morta, Hugo escreve os versos "Amanhã, ao alvorecer", nos quais dialoga, ternamente e em voz baixa, com sua filha morta, que sente ainda muito próxima a ele:

Amanhã, ao alvorecer, à hora em que clareia o campo
Eu partirei. Vê, eu sei que me esperas,
Eu irei pela floresta, pela montanha,
Eu não posso ficar longe de ti muito tempo.
(Hugo, Contemplations, p. 253).

Em um manuscrito endereçado ao escritor Arsène Houssaye, Hugo envia uma bela poesia cujo tema é a reencarnação e a evolução progressiva do espírito, intitulada "Os destinos da alma", cujos versos apresentados resumem perfeitamente a temática:

O homem é o único ponto da criação Onde para tornar-se livre, fazendo-se melhor,
A alma deve esquecer sua vida anterior.
Ele se diz: morrer é conhecer.(5)

Nós procuramos a saída às cegas;
Eu era, eu sou, eu serei.
A sombra é uma escada, subamos.
(Hugo apud Dupouy, p. 217-218)

(3) Hugo, 28 de fevereiro de 1854, apud Malgras, 1906, p. 43-44.
(4) Hugo apud Escholier, 1928, p. 326-327.
(5) Possivelmente no original deve estar escrito "renaître" (renascer).

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