ANAIS DO SIMPÓSIO


Vitor Hugo e o cânone brasileiro

Flávio Kothe
UnB

Os canudenses praticaram a separação entre Igreja e Estado, que havia sido decidida pela República, e defenderam assim o princípio da liberdade de crença, o que levou a cúpula da Igreja Católica a exigir a ação genocida do exército; os canudenses organizaram a produção em forma de cooperativas agrícolas, o que constituiu uma reforma agrária que passou a atrair os antigos escravos e os novos servos dos latifúndios da região, e isso fez com que a oligarquia quisesse o seu aniquilamento; os conselheiristas organizaram a prioridade do social sobre o individual, desenvolveram programas de recuperação de criminosos e de ressocialização de elementos marginalizados, política que postulava o princípio da igualdade republicana, ainda que sob a bandeira de que todos seriam irmãos em Cristo; os canudenses passaram a escolher a sua liderança, o que pleiteava o princípio democrático do governo ser a representação da vontade do povo, ao invés de o poder ser dominado por uma aristocracia de sangue como a "república dos coronéis" e "a aristocracia dos barões do império".

Os canudenses permitiram que os padres católicos viessem pregar entre eles e permitiram que partissem. Quando Belmonte encomendou madeira para construção, o material não foi entregue, numa atitude intencional do governo no sentido de provocar conflitos. Os sertanejos foram atacados pelo exército, que tinha canhões e metralhadoras. Faz-se de conta que houve um conflito de igual para igual: de fato houve um massacre sistemático e planejado dos sertanejos, contra os quais Euclides levantou o argumento racista de que seriam constituídos por raças inferiores e cruzamentos infelizes, formando pessoas incapazes para o progresso. Os sertões foi escrito da perspectiva do exército, para justificar o genocídio de 25.000 pessoas, inclusive mulheres, velhos e crianças.

Vitor Hugo jamais teria escrito isso que foi escrito como se fosse em nome dele. Se foi, porém, usado como modelo, isso é sintomático quanto ao cinismo do cânone brasileiro e à hipocrisia dos seus defensores. O problema básico não é um oficial do gabinete da ditadura militar ter escrito a obra: o grande problema é ela ter sido e continuar sendo canonizada, endossando-se o genocídio nela endossado, falsificando-a como se fosse o enaltecimento do sertanejo pobre e oprimido.

Vitor Hugo é um autor importante na literatura francesa, sim, e importante para a formação da literatura brasileira, sim. Ele foi importante na poesia, no teatro e no romance, mas a obra sua mais lida e conhecida tem sido a romanesca. Ele é importante como perfil de autor, um engajado com qualidade. Ele exerceu um forte influxo na poesia brasileira, mas foi sempre traído por seus discípulos, que sempre fizeram uma tradução dele para a direita, o que também aconteceu com outros autores como Shakespeare, Goethe, Heine, Flaubert, Baudelaire, Mallarmé.

Isso gera um problema de método, como se só a ficção fosse a possibilidade de ciência. Já não se rastreiam mais apenas influências detectáveis por identidade, dentro das normas do positivismo da antiga escola francesa da comparatística. A "influência" ressurge por não-identidade, por oposição. A falta de certas influências se torna mais importante de constatar do que o registro de referências em obras. Constata-se uma sintomática ausência, como se fosse o avesso da presença. Essa ausência não é apenas fantasia, projeção do analista: o perfil possível da obra está no autor tomado como referência primária, no caso Hugo. Ela está ainda configurada em outras literaturas nacionais ou em épocas posteriores da mesma literatura nacional, nas quais tais aspectos tenham sido desenvolvidos, por exemplo, a opção pelos pobres e oprimidos na literatura.

Esse impulso de Hugo não se mostra nos autores brasileiros do século XIX que o citam como mestre: só com autores como Lima Barreto, Graciliano Ramos e Jorge Amado é que, no século XX, vai se configurar esse gesto constitutivo, em que sua opção política se torna opção de escrita. O seu gesto básico aparece nos autores que não o citam, e não aparece naqueles que o citam. Ainda que se constate assim um atraso intencional na periferia brasileira, já é um progresso poder constatar, no atraso, a existência do influxo. Só no século XXI se consegue declará-lo em voz baixa, já que o ensino da literatura francesa no Brasil tem servido antes para reforçar a distinção de casta da oligarquia do que para.

É preciso assumir que se assumem os valores republicanos e a valorização dos socialmente desvalorizados, para depois verificar se a literatura fica aí submetida à política e à intenção moralizante ou se ela se salva como arte. É preciso desconfiar dos "bonzinhos", que pretendem ser superiores porque se declaram corporificadores daquilo que supõem ser virtude. Em nome dela, crimes imensos têm sido cometidos. Inclusive genocídios. Ao se assumir a maldade como constitutiva da vida – afinal, toda vida se mantém às custas da morte alheia –, é preciso despir-se da hipocrisia de se apresentar como "bonzinho" para melhor não o ser.

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