ANAIS DO SIMPÓSIO


Vitor Hugo e o cânone brasileiro

Flávio Kothe
UnB

Ainda que Vítor Hugo tenha começado com amplo fascínio pela aristocracia – peças como Hernani e Gil Blas revelam isso –, ele se define por sua conversão à causa republicana: optando pela igualdade, assumiu a luta de elevar os inferiorizados e marginalizados na sociedade. Com certas páginas que escreveu, ele deu dignidade ao próprio ser humano: a dignidade de reconhecer que ele pode ser muito indigno.

São lembradas passagens antológicas de Hugo como, no Quatrevingt-treize, a famosa cena do canhão solto no navio durante uma tempestade. A cena é alegórica e dialética. O canhão é mais que um canhão: pode ser lido como o povo amotinado, fora de controle, destruindo tudo, como o medo dos proprietários diante da revolução, medo que poderia unir burguesia e aristocracia. O canhoneiro que consegue segurar o canhão é premiado e, a seguir, fuzilado por ter deixado o canhão solto. A dialética não cessa aí. O navio naufraga e, no mesmo bote, estão o autor da sentença e o irmão do fuzilado, o que propicia um forte diálogo. O oxímoron é, mais que a mímese, a figura retórica chave para entender a construção romanesca de Hugo.

A repercussão na França e no mundo de Hugo deu-se sobretudo pelos romances. No Brasil, isso vale antes para o público do que para os autores. No século XIX, a sua poesia foi aqui mais imitada. O romance foi em parte traduzido, e totalmente evitado: estava à esquerda dos canônicos brasileiros. Não se teve no Brasil, durante o Império, um autor que fosse exilado por ser republicano: e isso não só porque Dom Pedro II, que chegou a se corresponder com autores como Hugo, foi mais tolerante e esclarecido do que Napoleão III, mas porque os autores brasileiros eram mais reacionários que os franceses: eles não só compactuaram com o escravagismo de um modo que não passava pela cabeça de nenhum intelectual francês esclarecido, como fizeram uma literatura favorável à escravidão, como Alencar e Machado de Assis, ou discriminadora do negro, como Gonçalves Dias, Castro Alves, Bernardo Guimarães e Graça Aranha.

A "crítica literária brasileira" não costuma perceber isso: ela existe antes para ocultar tais fatos. Falta-lhe espírito crítico e melhor noção da grandeza literária. Finge que repetir preconceitos metropolitanos e traduzir à direita autores europeus seria a melhor forma de ser brasileiro. O cânone brasileiro faz de conta que apenas sofreu um leve influxo da literatura européia – especialmente da francesa – para ter feito, a seguir, algo melhor que a metrópole, já porque seria uma literatura mais adequada ao Brasil, refletindo a realidade local. Não se costuma fazer, porém, um confronto com os grandes originais, pois aí não só o cânone dito nacional perde na qualidade literária, como se torna evidente que há uma neutralização da crítica social existente no original. Nesse sentido, Hugo é uma figura sintomática.

Nos cursos de Letras brasileiros, primeiro se ensina com Aristóteles, na disciplina Teoria Literária, que arte é imitação e que a imitação é a essência do humano; em seguida, ensina-se o cânone brasileiro, fazendo de conta que ele é o reflexo exato da história e da realidade do país (exatamente por não ser). Assim, a "literatura" é institucionalizada nas escolas como ideologia do Estado. A oligarquia passa a ser vista como ela gostaria de ser vista, sacrificando-se a arte e o senso crítico.

Na medida em que os poemas de Hugo se caracterizam pelo palavreado abundante, por certa falta de densidade, pela falta de elaboração das conexões mais sutis, ela tem sido usada nesse cânone para confundir poesia com retórica, assim como seus romances têm servido para confundir literatura com jornalismo. Hugo foi traído por seus discípulos no Brasil: converteram o seu esquerdismo crítico em direita conformista, o seu patriotismo em patriotada. Traído pelos discípulos, seu espírito crítico foi neutralizado, seu esforço foi esquecido, sua generosidade social foi usada para incrementar a espoliação social. Ressuscitou como paródia de si mesmo.

A França tem gozado, no Brasil, a fama de país da liberdade, assim como a Alemanha tem sido vista como a terra dos nazistas. Tais simplórios estereótipos têm redundado, na universidade, em preconceito contra os teuto-brasileiros, minoria capaz de representar concorrência à oligarquia luso-brasileira, coisa impossível aos franco-brasileiros, já que eles praticamente não existem. A França descarregou seus excedentes e inconformados nas colônias de ultra-mar, o que não foi possível à Alemanha, já que esta só se formou em 1870 como Estado, chegando demasiado tarde à história para ter êxito em uma política colonialista.

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