ANAIS DO SIMPÓSIO


Vitor Hugo e o cânone brasileiro

Flávio Kothe
UnB

A história é, sobretudo, olvido. Metamorfose da tragédia dos vencidos em epopéia dos vencedores, consagração da injustiça: no fazer, no lembrar e no esquecer. Quando algo ou alguém é lembrado, isso deveria causar espanto, embora seja considerado natural: a história costuma ser confundida com aquilo que é lembrado na historiografia. Toda efeméride é comemorada quando o objeto da comemoração serve para reafirmar valores que interessam ao sistema vigente, mas eles precisam ser reafirmados porque correm o risco de ser esquecidos e negados.

Em Vitor Hugo, mais se costuma comemorar o republicano, defensor dos oprimidos e marginalizados, do que apenas o escritor, mesmo quando se declara estar comemorando tão somente o autor. Ser lembrado ou ser esquecido são dois passos que dependem das normas sociais vigentes e que fazem um fato ser um fato histórico ou ser um nada.

Há vários autores brasileiros do século XIX que citam Hugo. Segundo levantamento de Anderson Braga Horta, entre os poetas românticos podem ser encontradas referências e epígrafes em Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves e Sousândrade, mas não em Laurindo Rabelo, Junqueira Freire e Fagundes Varela. (1) Citar um autor francês de sucesso era um modo de se abençoar, esperando ter o mesmo sucesso. Não significava aderir à virada tardia de Hugo, por volta de 1850, aos ideais da Revolução Liberal de 1848.

Castro Alves citou Hugo como epígrafe para ornamentar e legitimar diversos poemas, mas o que se tem nele – ainda que seja apresentado como "O poeta dos escravos" – é uma atitude antitética à do republicano francês: em "O navio negreiro", Castro Alves diz que lugar de negro é na África, onde ele teria toda a liberdade para caçar leões; em "A cachoeira de Paulo Afonso", quando o negro descobre que sua noiva foi violentada pelo filho do fazendeiro, é dito que ele não deve fazer nada porque o outro seria seu irmão, ou seja, na hora de exigir justiça, todos são irmãos; em "Lúcia", o poeta não faz nada, não dá um passo pela "cria da fazenda" que havia sido revendida como escrava. (2)

Machado de Assis traduziu Os trabalhadores do mar, mas não escreveu nenhuma obra equivalente, uma obra voltada centralmente para as camadas mais pobres dos trabalhadores: ele fez a opção pelos ricos. Foi um bom funcionário público do Império, nunca chegou perto de ser perseguido e exilado pelo Imperador como Hugo. O escritor francês era admirado por Dom Pedro II. Entre um adultério e uma revolução, Machado preferiu sempre o primeiro, mas para condenar ambos, não para propor uma linha emancipatória e crítica como Flaubert e Tolstói. Não há nada nele equivalente a Quatrevingt-treize, uma obra sobre uma radical mudança histórica (como a luta pela independência, as tensões da unificação do país, o abolicionismo, a campanha pela república).

Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura – obra escrita sob o influxo de A cabana do pai Tomás e do poema "Lucie" de Musset com ajuda da variante de Castro Alves feita a partir de uma tradução de Machado de Assis –, apresenta Álvaro, o mocinho, rico herdeiro de pais mortos, como "quase socialista" por suas "idéias avançadas": esse "quase socialismo" não deixa de ser "revolucionário": no lugar da escravidão, propõe aos negros o sistema feudal da "plantação à meia", em que os latifúndios continua nas mesmas mãos de sempre. (3)

Euclides da Cunha, em Os sertões, refere-se a Guerra de Canudos como "a nossa Vendéia", uma clara indicação de que teria por "modelo" o romance Quatrevingt-treize, de Vitor Hugo. Aparentemente, ambos pretendem a mesma coisa: defender a república contra o reacionarismo dos monarquistas. Será que, no entanto, é assim? Quem representava, no conflito de Canudos, o espírito republicano? A resposta oficial é: o exército. Os sertões foi escrito para afirmar essa versão. É a mentira institucionalizada, como ocorre em todo o cânone brasileiro.

(1) HORTA, VIANNA e RIVERA, 2002. p. 23-32.
(2) KOTHE, 2000. p. 271 e ss.
(3) KOTHE, p.315 e ss.

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