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Pós-Colonialismo


Paraíso Perdido encontra a Cena: uma conversação Pós-Colonial

Luiz Fernando Ferreira Sá.


Essa terapêutica da criação (quase uma propedêutica de leitura) se encontra, no final do épico, na possibilidade de um paraíso interno. O épico de Milton, ao falar de um paraíso interno e de sua possibilidade, é político e conclama a uma ação política e agora também ação pós-colonial, mas num cenário pessoal ético delicado, sem o estardalhaço daqueles que falam em cima de plataformas políticas ou plataformas acadêmicas sobre “dignidade humana” e “direito ao saber”.

Direito e indignidade e nação e império estão intimamente ligados no épico e tanto narrativas nacionais quanto imperiais parecem ser re-co(r)ntadas dentro de um escopo maior de narração, o épico em si, como eventos que sua própria narratividade recalcou. Paraíso Perdido pode ligar-se às teorias pós-coloniais, depois de ter discutido uma política de leitura que é uma desleitura crítica, a partir do momento em que a noção de nação é seqüestrada no épico. Desconstruimos uma oposição binária não ao revertermos as hierarquias de um pólo ao outro, mas ao negarmos a cada pólo uma independência que serve como base de oposição. Nação não se opõe a império como também comércio não se opõe a conquista. Comércio, e não conquista, foi o ponto de distinção entre os interesses ingleses no além-mar e as proezas espanholas do além-mar. O império é uma seqüela da nação e, como Said tem apontado em toda a sua obra, para os povos invadidos, despossuídos, humilhados e escravizados pensar o Êxodo pode não ser uma alternativa atraente de um Éden nos céus.

O mundo em “êxodo” ou “globalizado” de Milton parece ter um único bem “triunfando” sobre os demais. Num primeiro momento o império é dividido (entre Deus e Satã) e num segundo momento o seqüestro da nação é perpetrado. Numa narrativa que tenta justificar os meios de Deus em relação ao Homem, e ao fazê-lo, magnifica a autoridade e poder terrenos num manuseio barroco, tal “globalização” ou hegemonia do bem pode ser aceitável; como também o seria para o idoso Milton, sofrendo de gota, desgostoso da ditadura cromwelliana e tendo de aturar as retaliações de um Charles II desejoso do mais cruel ostracismo para com o “antiquado” poeta. Mas a fábula pós-nacional, ou o seqüestro da nação em Paraíso Perdido, se dá no trabalho cultural de uma narração que é construída dentro de narrativas nacionais enquanto eventos que sua “narratividade recalcou”, e a narração pós-nacional ou “globalizada” de tal vulto emerge como lugar de articulação do referido recalque. A unidade imaginada nacional “triunfante” ou “derrotada” (porque num determinado momento “deixa de existir”, como o Pandemônio infernal no épico) são novamente imagens pré-constituídas, performativos religioso-culturais e identidades nacionais que suturam os sujeitos angélicos ao estado-nação divina. Nação essa construída retroativamente no espelho da imagem da política exterior do Estado autocrático de um paraíso perdido e que não parece poder se repetir em nações não paradisíacas ou historicamente inseridas no período do pós-queda.

Por outro lado e num entendimento pós-imperial do épico, o foco recai sobre uma vida doméstica e privada cuja atividade política, em vez de ser dispensada, é re-locada nessa mesma intimidade ou interioridade doméstica. Essas re-locações, ou topoi, domésticas do épico, como também suas redefinições de poder e comando esclarecem o poema mais como anti-imperial, nessa perspectiva pós-imperial, e abre ainda mais espaço para podermos entendê-lo como inserido numa conversação pós-colonial. Tal conversação se dá ainda mais no momento em que eu argumento que a geopolítica de Paraíso Perdido, ou seja, seus espaços, topoi, de liberdade e liberação, não serviram a um projeto colonial ou imperial.

Os topoi de Paraíso Perdido estão em crise: desequilíbrio e autonomia levam então à tentação e queda. Após ter provado do fruto proibido, Eva garante que sua mudança foi algo para “add what wants / In female sex [...] / And render me more equal, and perhaps, / A thing not undesirable, sometime / Superior; for inferior who is free?” (9.821-25). O ponto crucial da queda e do épico é exatamente esse. E como Eva supõe, a resposta é ninguém. Paraíso Perdido prossegue tentando responder negativamente a tal pergunta e asseverando para a história humana vindoura que ninguém que é inferior é livre. Aqui épico e império, e lembrando que o segundo pressupõe uma relação superior vs. inferior, parecem ter sido completa e conclusivamente desconectados, tanto na esfera pública, quanto na esfera privada. Paraíso Perdido parece transformar interioridade e interiorização em texto icônico (corpo de luta ou corpo de conflito) e representar o discurso imperialista com mais ambigüidade, dificuldade de leitura e impossibilidade de uma interpretação.

Os mundos em Paraíso Perdido estão fundamentalmente em conflito estratégico e em crise. Em cada espaço desses mundos, do corpo ao jardim domesticado, do Céu ao Éden, os sujeitos desse conflito estão atentos ao “lurking enemy / that lay in wait” (9.1172-73). O inimigo é imperial no seu desejo de extensão e domínio. Como Paraíso Perdido representa e localiza o inimigo nesse conflito sobre espaço e geografia está diretamente relacionado com uma oportunidade ambígua de acesso e excesso. Acesso a espaço, conhecimento e liberdade, contra excesso de espaço, conhecimento e também liberdade. Geopolítica em Paraíso Perdido não serviu ao projeto imperial ou colonial também porque o sujeito-no-mundo de Milton se esforça para se manter e se manter em relação a uma dose de acesso equilibrada e responsável. Se a emergência da terra como espaço de conflito é paralela à emergência do sujeito autor dele/a mesmo/a, Paraíso Perdido mostra que essa transformação é um fenômeno universal e que a definição de terra, espaço e subjetividade está diretamente ligada à essa tênue linha que separa acesso de excesso (imperial, colonial, pós-colonial). Mais especificamente, inteligência e agência, estratégicas ou não, sobre espaço, de territorialidade ou subjetividade, estão conectadas a acesso como meio de ação, intervenção. Caso contrário esse espaço será excesso como fim nele mesmo e no sentido de auctoritas – superioridade moral, inerente ao indivíduo ou instituição a que muitos estão sujeitos.

A concepção de espaço no épico de Milton se abre, de maneira desafiante e conflitante, a toda possibilidade; seu paraíso evoca menos inclusão e fechamento e mais panorama, um “vast design” desde “Cambalu” até o “El Dorado”. Essa paisagem miltoniana está repleta de antinomia numa geografia providencial. A paisagem no jardim retém o destino manifesto de todos os que se encontram “aprisionados” dentro dos contornos dos jo(u)gos de significação. A geografia de Milton é sub-escrita pela grande narrativa da reforma universal de Cristo, mas seu jardim produz um solo onde é possível discutir e criticar, via espaço, o vasto complexo de conflitos, contingências e, sobretudo, o vasto potencial de corrupção que é o império.

A escolha de imagens em Paraíso Perdido para um momento crucial na história da vida humana – a queda – desafia o leitor ou crítico bem informado a considerar a relação entre a condição adquirida por Adão e Eva e os discursos de poder e colonização frente ao Novo Mundo. A passagem surpreendente no épico, a imagem da perda de Adão e Eva de sua “first naked glory” (9. 115), desvela a que ponto a narrativa da queda está associada à perda de liberdade dos povos do Novo Mundo. Paraíso Perdido expõe uma e outra estória como uma história da vida humana. Ao se vestirem, Adão e Eva simbolizam a queda também em termos de civilidade. Os valores do épico de Milton que suportam uma visão pós-colonial continuam à disposição do crítico e leitor bem informado na geografia de seu paraíso. Como domesticar a natureza paradisíaca e os animais da criação, de acordo com o mandato em Gênesis e as instruções de Rafael em Paraíso Perdido, sem com isso incorrer em domínio e tirania em relação a seres humanos? Antes da queda, o arcanjo Rafael, investido por Deus, instrui Adão e Eva a cuidar do jardim numa linguagem que um monarca europeu poderia usar para iniciar os seus sujeitos colonizadores no Novo Mundo: “Be fruitful, multiply, and fill the Earth, / Subdue it, and throughout dominion hold / Over fish of the sea, and fowl of the air, / And every living thing that moves on the Earth” (7.531-34). Nos livros históricos (11 e 12) do pós-queda, Adão, sob a tutela do arcanjo Miguel, responde à visão do diorama sobrenatural que no momento enfoca a tirania do bravo caçador Nimrod, exclamando: “O execrable son, so to aspire / Above his brethen, to himself assuming / Authority usurped, from God not given; / He gave us only over beast, fish, fowl / Dominion absolute; that right we hold / By his donation; but man over men / He made not lord; such title to himself / Reserving, human left from human free” (12.64-71). “Reserving” ou “deserving” o título de senhor, Deus é o único a exercer domínio absoluto e de direito por sobre os seres humanos, sua “última” criação. Paraíso Perdido, numa desconstrução ou refinamento do mandato de domesticação e dominação das “coisas” criadas no Gênesis, é um texto que pode ser deslido numa conversação pós-colonial ao se colocar como um terceiro espaço entre império (civilidade) e natureza e se bater contra tirania, colonização e imperialismo.

O jogo de significação no épico de Milton, com suas alusões ambivalentes e suas imagens em camadas, nos oferece um espaço amplo de negociação. Domínio e tirania são duas expansões dessas ambivalências e camadas sobrepostas que contracenam numa geografia paradisíaca repleta de benefício e benevolência. Nessa representação de império, domínio corrupto e tirania, Milton expande a ambivalência da subjetivação, sugere novamente que o estado de coisas entre seres humanos deveria ser fraternal e traça um “projeto ocidental” no combate da despossessão humana da concórdia e da paz. A fábrica do texto imperial criou e ainda cria produtos que visam mundificar um mundo previamente descrito, sem texto ou textualidade próprios. No entanto, o que mostra o épico de Milton na nossa conversação pós-colonial é que o tecido divino, esse texto pós-imperial, mundifica mundos, mas como processo de escrita, como um caminho de inscrição, como uma fatura de arte e uma f(r)atura do sujeito. O projeto ocidental do épico de Milton é cada vez mais pós-colonial exatamente nesse mo(vi)mento de constituição do “paraíso interno”: a posse do texto (no sentido de re-conhecimento), a re-tomada da textualidade (no sentido de negociação) e a busca incessante de textualização (no sentido de jogo de significação). A riqueza de possibilidades invocadas só pode estar ligada à liberdade: de batalha, de esforço e de escolha, de produção de sentido.

Bibliografia

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