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Pós-Colonialismo


Paraíso Perdido encontra a Cena: uma conversação Pós-Colonial

Luiz Fernando Ferreira Sá.


RESUMO

Em Paraíso Perdido, de John Milton, épico e império se encontram dissociados. Ao contrário de muitas leituras, esse texto magistral da Renascença Inglesa pode intersectar o pensamento pós-colonial de várias maneiras.Uma vez que toda leitura é também uma desleitura, a minha (des)leitura do paraíso de Milton se dá como mo(vi)mento de resistência contra, e intervenção por sobre, uma suposta grande narrativa de poder (o épico de Milton). Mantenho como meus objetivos principais: primeiro, proporcionar uma conversação pós-colonial com essa obra do século XVII Inglês e, segundo, propiciar uma contracena pós-colonial para esse texto no século XXI.
Palavras-Chave: Milton, John; Poesia Inglesa; Pós-Colonialismo.

Crise é a palavra de ordem na Inglaterra do seiscentos, crise é a conseqüência indelével de Paraíso Perdido de Milton e crise também é o índex infame dos estudos pós-coloniais. Milton somente iria finalizar e publicar o seu épico dos épicos em 1667, depois de haver participado ativamente nas discussões “pré-revolucionárias”, depois de haver participado do governo de Cromwell e depois de haver se decepcionado com a política inglesa. Jogado no ostracismo e praticamente esquecido, sofrendo de gota e cego, o velho poeta não tinha o hábito de colocar os seus inimigos políticos no inferno, como Dante o havia feito. Mas o velho poeta parecia pensar que todos aqueles que não deram conta de sua liberdade de escolha, ou não exerceram sua fé e razão respeitando sua liberdade e uma possibilidade de escolha, independente de seus méritos individuais, esses sim passariam a eternidade prostrados num profundo golfo infernal. De uma história em crise e de um texto que fala de perdas, faltas e crises, é que começo a minha leitura de Paraíso Perdido frente ao momento (também de crise) pós-colonial.

Em Milton’s Imperial Epic (1996) Martin Evans discute como os textos ligados à literatura do colonialismo tratam de temas recorrentes – da colônia em si, do status do colonizado, dos colonizadores e seus motivos – e partilham de um corpus comum delineado a partir de práticas lingüísticas, tropos descritivos, organização narrativa e categorias conceituais. É desse discurso compartilhado entre os textos colonialistas que Evans parte para conectá-lo ao “Grande Argumento” de Paraíso Perdido de Milton. Ou seja, ao justificar os meios de Deus para com os “Homens”, Milton recorreria a um discurso imperialista. Mas o épico imperial de Milton, nas palavras de Evans, parece se transformar num épico imperioso nas questões pós-coloniais da pós-modernidade: um contemporâneo de Milton, Samuel Johnson, sem dúvida alguma entendeu que Paraíso Perdido não fundaria império algum, não promoveria o império, mas talvez inicialmente desestabilizasse o gênero épico. Vale lembrar que se houve alguma fundação, e sabemos que houve, esta está mais para a ação fundadora do imperialismo cristão que nada mais é que uma cristianização. Esse imperialismo da cristandade não desmerece Milton em nada na sua (des)leitura do épico como gênero e do império como forma. Milton foi um leitor voraz do discurso das descobertas e acrescento que tão brilhantemente o foi do discurso imperialista. Continuo a ler o épico desvendando os descaminhos que Milton identificou no discurso de descoberta, conquista e colonização.

Evans deixou claro que o épico de Milton contém todas as versões das experiências coloniais concebíveis e disponíveis no século XVII, mas nessas mesmas versões, o Novo Mundo miltoniano é povoado por selvagens nus, ora nobres ora bestas, e assim, o gênero épico (para tomar o menor dos problemas) parece não comportar tais versões ou re-escritas. Em Epic and Empire (1993) David Quint discute de maneira re-visitada a deflação da ação épica numa aventura que tem não mais que uma significação momentânea e representa o julgamento de valor do poeta sobre a empreitada de descoberta do Novo Mundo como uma simples temática (problemática) de gênero literário.

Essa problemática literária também se encontra no fortúnio e no infortúnio da queda: como a morte (Death: filho de Satã com Sin, amante de Satã) entra no mundo sob o comando do pecado original, a existência humana se torna ainda mais contingente, homem e mulher devem trabalhar ainda mais duro para conseguir salvação, apesar de encontrarem nesse trabalho árduo um certo contentamento. Se o épico do paraíso desemboca no romance burguês, porque então acreditar que Milton foi um poeta contra o império? Bem, tanto o gênero épico quanto o gênero romance, ou novela na tradição inglesa, corroboraram o império e sua aquisição de colônias no século XIX. Proponho que não seja o produto de re-escrita miltoniana ou sua desconstrução a parte mais importante do momento crítico que discuto agora. Em vez de pensarmos no produto – épico transformado em romance, ou épico dos vencedores versus épico dos perdedores – vale mais a pena pensarmos no processo percorrido pelo poeta para chegar a tal produto. No mínimo, e no momento, podemos afirmar que é um processo, como o foi sob a temática colonial em Evans, que descola épico de império, satirizando o primeiro e desconstruindo o segundo.

E por falar em desconstrução, temos também que falar de reputação, autor e tradição. A reputação de Milton tem sido problemática em muitos períodos e mais ainda na pós-modernidade dos estudos pós-coloniais. O terceiro quartel do século XVII inglês vilificou o escritor dos tratados sobre divórcio e o então suposto tratadista a favor do regicídio, o período da Restauração poderia ter executado o escritor, o início do dezoito tentou balancear seus empreendimentos literários superiores em épico e drama contra uma reputação política escandalosa e nas linhas paroquiais da crítica do século XX ele tem tido um valor icônico negativo nos ataques de Pound, início de maturidade de Eliot, Leavis, e Empson. Mas quando tomamos consciência da quantidade de volumes escritos sobre Milton e da indústria acadêmica que se construiu ao seu redor, podemos concluir que o escritor continua um grande ícone, para não falar de um produto supremo da educação humanista e protestante do primeiro quartel do século XVII inglês, profundamente engajado na política do seu tempo. Milton segue seu processo particular no centro de debates e críticas.

Um volume instrumental para a questão (pós-)colonial em Milton é Milton and the Literature of Travel (1951) de Robert Ralston Cawley. O estudo de Cawley enfoca as linhas do épico que contém um grande número de lugares geográficos e que, de acordo com ele, revelam como Milton reagiu à literatura de viagem. Entre as linhas nas quais Milton adapta o material geográfico às suas necessidades poéticas, a primeira ocorre quando Miguel leva Adão ao ponto mais alto do paraíso e o mostra o mundo e história vindouros. No curso de tal evento, o arcanjo menciona um número surpreendente de lugares distantes – “Of Cambalu, seat of Cathain Can” até o “Rich Mexico the seat of Motezume” (Milton 1957. Todas as referências a Paradise Lost serão a essa edição e virão entre parêntesis constando de número do livro e número da linha, separados por ponto: 11.388, 407).

No lugar de literaturas de viagem, temos em Christened Classicism in Paradise Lost and the Lusiads (1972), de James H. Sims, um enfoque da tradição cristianizada de um classicismo evidente no épico e em Os Lusíadas de Camões. Se de início a questão de como Camões e Milton estendam e cristianizam a maquinaria épica clássica parece não ter muito do discurso do colonialismo, Sims declara, ainda que de forma tangencial, que o épico de Milton não glorifica o império e nem a figura de Satã. Tanto Os Lusíadas quanto Paraíso Perdido não secaram sua vitalidade textual em conseqüência da perda de prestígio da empreitada imperialista. A tensão que traz ao épico de Milton uma vitalidade dramática e enriquecedora parece ser a trans-figuração épica em paródia e sátira do imperialismo e transmutação desse mesmo épico em romance edênico. O que é glorificado no nível prático e literal no paraíso é a perda do sentido de imperialismo, épico ou não.

De volta à esteira das conceituações coloniais no épico de Milton, Linda Gregerson em A Colonial Writes the Commonwealth: Milton's History of Britain (1996) tenta desculpar o temperamento colonial do poeta ao propor que intrínseco ao pensamento político e religioso de Milton se encontra a ética do que se pode chamar imperialismo cristão, predicado na doutrina exclusivista de um só e verdadeiro Deus e na salvação obtida somente através do único e verdadeiro Cristo. A perspectiva crítica de Gregerson (menos como épico imperialista e mais como um testamento de uma derrota política) se baseia no seguinte: ao fazer Satã se empenhar numa viagem através do caos e em direção a um novo mundo, a metáfora épica tradicional, Milton relança as viagens de descobrimento sob uma luz demoníaca e interroga as estruturas familiares do épico que celebram a fundação do império e a definição do indivíduo e sua identidade social.

De que modo Paraíso Perdido se encaixaria, especialmente depois das proposições de Quint sobre épico e romance, num gênero associado com as glórias do império, e particularmente quando o longo poema de Milton codifica as frustrações de um republicano e revolucionário derrotado? Não posso aceitar a tese de que Paraíso Perdido seja um épico de derrota e fracasso, mesmo quando essas duas experiências são elaboradas (de forma tortuosa) em relação ao colonialismo católico ou imperialismo protestante. No lugar de derrota e fracasso, desenvolvo a possibilidade de leitura do épico de Milton lado a lado às teorias pós-coloniais de Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha. Essas teorias se opõem a fracasso e derrota: seja do indivíduo idoso que viveu e escreveu no século XVII inglês, seja dos sujeitos pós-coloniais que não conseguem trabalhar de forma produtiva a nossa “herança” textual européia. Milton redigiu a língua do império, os limites do épico e de um épico protestante e a expansão nacional em direção ao oeste numa linguagem que redireciona império, épico, protestantismo e expansão para um momento pós-colonial. Certamente o épico lida com política, intelectos e almas do Velho e Novo Mundo.

Como toda leitura pode ser uma desleitura, continuo agora com as desleituras pertinentes de Balachandra Rajan em relação a Paraíso Perdido de Milton. Em The Form of the Unfinished: English Poetics from Spenser to Pound (1985) Rajan comenta que a leitura de Paraíso Perdido é repleta de incertezas: um poema que pode ser dois poemas na sua estrutura inicial ou final e um poema que pode comportar três heróis (Satã, Adão, Cristo). Além de apresentar-se como um poema de gêneros múltiplos, Paraíso Perdido introduz uma profunda incerteza quanto às delimitações desses gêneros; por exemplo, o poema pode apresentar-se trágico no enredo, porém épico na sua maquinaria e roupagem.


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