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Pós-Colonialismo


Paraíso Perdido encontra a Cena: uma conversação Pós-Colonial

Luiz Fernando Ferreira Sá.


Se Milton, poeta e revolucionário, fez outra coisa além de conceituar seu longo poema em termos meramente coloniais, as possibilidades de recepção e leitura dessa visão (pós-) imperial desvendam um novo mundo de leituras, re-leituras e desleituras do paraíso. Uma desleitura que desmascara diferença como um meio-caminho da alteridade é o que proponho, com os autores aqui mencionados, para Paraíso Perdido. Apesar de não imperialista, o poema é imperioso, como nenhum outro poema no centro do cânone inglês é, na sua relação com as questões pós-coloniais de indeterminações de identidade, discursos de totalizações e fragmentações de leitura. Essas fragmentações estão aqui presentes no meu percurso de desleitura do “épico imperial de Milton”, nas palavras de Evans, que agora começa a ser vislumbrado como um épico menos imperial e mais pós-colonial. Acrescento ainda, e com a ajuda de Quint, que o épico “pós-colonial” de Milton transforma-se ainda mais ao ser relido menos como épico e mais como um romance edênico que narra o cultivo do paraíso interior. Adiciono ainda as contribuições de Rajan, entre outros, ao meu percurso de desleitura, para corroborar minha afirmação de que Paraíso Perdido de Milton explora mais uma indeterminação imperiosa do que uma determinação imperial. Esse texto de Milton, em toda sua potencialidade de prazer aberto ao público leitor atento e bem informado, se mostra cada vez mais um discurso (com a acepção de processo e não de produto) não totalizante e nada totalitário.

O universo discursivo amplo de um momento pós-colonial, ou de uma perspectiva bem-informada nos preceitos pós-coloniais, é o modo mais eficaz de defender a posição de que não só é possível ler Paraíso Perdido de John Milton e as premissas pós-coloniais básicas desses autores lado a lado, mas também desler o épico em questão numa conversação pós-colonial. Os meus objetivos principais são: estabelecer um solo crítico-discursivo de reconhecimento do paraíso de Milton, preparar o terreno teórico e prático para lançar esse super-texto de poder para dentro do campo de batalha pós-colonial e conquistá-lo na linha de um poder–saber pós-colonial. Contudo, não deixo de admitir que tanto as teorias quanto as práticas pós-coloniais são diversas e muitas vezes contrastantes entre si, mas, uma vez mais, as estratégias de leitura usadas são as de intercessão e as de intervenção.

Em Beginnings: Intention and Method (1985), Edward Said medita sobre os três pontos que ele vê como básicos para uma “leitura” bem-informada: inícios ou origens, intenção e método. Temos que o início ou origem é um momento de tomada de consciência ou uma descontinuidade, que a intenção é acessória ou conseqüente, pois provém dessa tomada de consciência ou não, e que o método é uma disciplina crítica exercida sobre o produto e o processo desse ponto descontínuo da experiência. Se inícios e origens carregam consigo tamanha responsabilidade, como entender que a literatura é sobrecarregada de origens e inícios, apesar da tirania do início in media res, que pretende ser um outro no lugar do início?

Para Said e em Paraíso Perdido, o que inicialmente seria o começo se torna, ou se tornou, a escrita em si. Ou seja, o épico pretende começar pelo início, mas esse início é o próprio épico, sua escrita e f(r)atura. Nada mais lógico do que ver Paraíso Perdido como um poema de origem, pois ele tem como princípio e argumento “Of MAN’S first disobedience, and the fruit / Of that forbidden tree” (1.1,2). Mas, o que era para ser um início, ou seja, a partir da desobediência original narrar a perda do Éden e como “one greater Man / Restore[s] us” (1.4,5), também é o meio e o fim. De novo, o início é inaugurado numa descontinuidade: delimita e fala de um possível início e de um possível fim (desobediência e restauração), define e fala do fim (liberdade humana), e circunscreve e fala de um outro início espacial e geográfico e de um outro fim, também espacial e geográfico (liberdade num desvio extraterritorial, ou seja, liberdade do corpo pós-colonial).

Para Said, o mundo não é texto, mas o texto é no e do mundo, e o crítico deve (re)ler “desconstrutivamente” a nódoa (a aporia) do texto para todo mundo. Essa nódoa talvez possa ser também localizada no mundo espe(a)cial do colonizado e colonizador. A espessura da desaprendizagem de privilégios e hegemonias na literatura comparada ou no momento pós-colonial, dois locais-tempos imediatos no presente ensaio, compartilha com a obra de Said o seguinte: uma des-euro-centralização da literatura (comparada). A zona de contato a ser ora lembrada, lida, articulada e criticada, tanto nos dois locais-tempos a que me refiro quanto na política ou na cultura, está presente (como uma voz silenciosa e de ação sub-reptícia) nas narrativas de emancipação e Enlightenment mais como narrativas de integração do que de separação. Um apanhado de narrativas de povos que foram excluídos do grupo principal, mas que já decididamente iniciaram alguns processos de luta por um lugar no mundo histórico, social, político, econômico, cultural e intelectual. Esse lugar no mundo, como Said lembra em Culture and Imperialism (1994), começa e termina num hibridismo de contra-energias do tipo: gêneros mistos, combinações entre tradição e vanguarda que produzam perplexidade, experiências políticas tendo como infra-estrutura comunidades de interpretação e esforço e, talvez, o desejo de transcender limites (imperiais, nacionais). Mesmo que a idéia de transcendência traga consigo todo o jugo da metafísica ocidental, seu (ab)uso estratégico, como diria Spivak em A Critique of Postcolonial Reason (1999), pode e deve ser lançado mão numa estratégia pós-colonial.

Em A Critique of Postcolonial Reason Spivak adverte que os estudos pós-coloniais podem, se não colocados dentro de uma estrutura mais abrangente, estar celebrando um objeto já e sempre perdido. Esse objeto perdido é a representação do colonizado e das colônias como que subordinada ao conhecimento neocolonial, ou seja, se pensarmos colonialismo e imperialismo como passado ou sugerirmos a hipótese de que há uma linha contínua entre passado colonial e presente pós-colonial, estaríamos simplesmente corroborando a política neo-colonialista de domínio econômico no lugar de domínio territorial (ou seja, o imperialismo territorial dando lugar a um imperialismo econômico livre de atritos ou conflitos). Para tanto, Spivak re-lê as grandes narrativas filosóficas de Kant, Hegel e Marx como precursores remotos do discurso (filosófico) ocidental no lugar de simples repositórios de idéias. Na sua política de leitura, Spivak pretende descobrir a determinação e o imperialismo nos textos desses autores magistrais, desconstruir as leis através das quais esse “novo” magisterium se constrói como que em nome do Outro e descobrir como tais textos podem ser agora utilizados a nosso favor. Tendo em mente as desproporções da comparação que se segue, não seria impossível que uma leitura como a minha de Paraíso Perdido estivesse nesse mesmo percurso de descobrimento e desconstrução. É sem dúvida mais responsável e efetivo “sabotar” o texto (antiimperialista, pseudo-imperialista ou claramente imperialista) que temos em mãos do que inventar um instrumento que ninguém irá testar ou falar de uma variedade de pluralismos e liberalismos que a ninguém irá servir como instância discursiva ética.

O longo e monótono mo(vi)mento que leva à modernidade está associado ao fechamento narrativo de grandes épicos. Qual seria então o lugar de Paraíso Perdido nessa causa “humanitária”? Teria Paraíso Perdido recebido algum fechamento narrativo? A resposta a essas perguntas deslocadas da crítica pós-colonial de Spivak é de suma importância para a f(r)atura da presente possibilidade de leitura (releitura e desleitura). Uma fatura que fala de um fazer (uma re-leitura pós-colonial) e uma fratura que fala de uma crise interna e externa (uma des-leitura de um texto canônico e inglês do século XVII). Se há uma escolha antes de tal fechamento, eu escolho a resistência ao esquecimento, eu escolho ler Paraíso Perdido de Milton como um épico que descobre a Verdade nas ambivalências e interstícios de um texto múltiplo, desfaz a Razão de um Fim único nos múltiplos inícios de fins ainda por ser escritos, e desconstrói a Lei porque grafa ou se abre à leitura de resistência do texto de liberação.

(Des)Leitura de resistência e texto de liberação podem fazer emergir ironia e coragem. No início do texto An Ironic Act of Courage (1999), Bhabha adianta o seu problema e percurso: apesar de não ser um estudioso de Milton, ele irá ler sua tentação imperial num ato de coragem e ironia, na proposição de Balachandra Rajan, a partir de uma interpretação re-visionária ou tradução contra a corrente. Aqui a chave da proposição se encontra no acontecimento fora do texto (ou na sua intertextualidade), seja no movimento de leitura e produção de significação, seja nos espaços nos quais o texto ou sentença, como cenários descontínuos ou estruturas performativas, re-velam-se numa estratégia narrativa de emergência e negociação. É nesse espaço problemático de ambivalência, catacrese, entre-lugar ou Terceiro Espaço, que Bhabha sugere, por meio de Roland Barthes e depois de Gayatri Spivak, como lugar de negociação das posições pós-coloniais. Uma leitura revisionária, como a que proponho de Paraíso Perdido, deve re-conhecer o antagonismo, agonia e ironia que existem na cultura, quando a cultura e seus textos lutam para assegurar um lugar na história e sobreviver no tempo e no espaço.

Que grande teoria ou narrativa estaria “fechando” Paraíso Perdido e assegurando seu lugar na história? Seria esse texto transformado num corpo dócil de diferença? Qual seria a “localidade” de cultura nesse texto de Milton que escaparia a uma mera reprodução de relação de domínio? Nos termos de Bhabha, essa leitura contra a corrente se dá num lugar de revisão e tradução. Com a ajuda do conceito de Terceiro Espaço, ou o entre-lugar intersticial da catacrese textual e narrativa, Bhabha irá formular uma complexa rede de estratégias culturais de identificação para começar a pensar a temporalidade da cultura, sua localidade, e a narrativa da nação, sua produção pedagógica e performática. Parece ser a partir do Terceiro Espaço que podemos ver a escrita da nação como narração e perceber a disjunção entre o continuísmo acumulativo da temporalidade pedagógica nacional e a repetição recursiva da estratégia performática da nação. Para Bhabha, a nação preenche o vazio deixado pelo desarraigamento de comunidades e familiares e transforma esse vazio em metáfora, ou seja, transfere o significado de casa/lar, através de um Terceiro Espaço e de diferenças culturais, para a extensão espaço-temporal da comunidade imaginada. A cena colonial, nos moldes da narrativa da nação, é uma invenção de historicidade, de controle e de mímesis e de novo uma “outra” cena de deslocamento, defesa e textualidade (a marca re-marcada). Para o meu propósito imediato, vale perguntar: como podem a presença e o poder de Paraíso Perdido serem pensados nos interstícios de uma inscrição dupla e ambivalente? Por que presença e poder?

Os entre-lugares da teoria de Bhabha são teoricamente renovadores e politicamente cruciais ao ler as narrativas ditas originárias e as subjetividades ditas iniciais através de uma articulação de estranhamento e de um processo que deixa as diferenças culturais aparentes. No caso do momento pós-colonial, esse estranhamento nos interstícios da linguagem ou dos discursos de poder, uma catacrese ou aporia, faz aparente que o “pós” do pós-colonial está intimamente ligado a relações neocoloniais dentro da “nova” ordem internacional de divisão do trabalho. Uma forma nova ou renovada do fazer crítico trabalha nas fronteiras não como um espaço entre uma nação e outra, entre um povo e outro, entre um Eu e um Outro, entre uma “ordem” e uma “divisão”, mas um trabalho das fronteiras como um local de internalização e uma localidade liminal e interna. Ao inclinar Bhabha em direção às minhas possibilidades de leitura, eu diria que o projeto pós-colonial a que me refiro e que interligo a Paraíso Perdido, tenta explorar as “nódoas” textuais desse épico do século XVII inglês – ambivalência de significado, condições de anomia – que não mais podem meramente agrupar-se em torno do autor, de seus antagonismos políticos e de classe, numa quase idiossincrasia banalizante, mas podem ser elaboradas numa noção de conflito na arena hostil de domínio e resistência.

Mas não podemos nos esquecer do texto em questão. Paraíso Perdido começa com inícios: “Say first, for Heaven hides nothing from thy view, / Nor the deep tract of Hell, say first what cause” (1.27, 28); o poeta convoca a Musa e invoca seus predecessores, Homero, Hesíodo e Virgílio, os quais também estabelecem origens (domínio e resistência) e perguntam sobre as causas propiciadoras do universo criado. Paraíso Perdido não se esconde por trás da pretensão de ser uma música de origem – até mesmo na sua primeira linha o épico argumenta sobre a origem do erro e seus males. Nesse aspecto, o épico clama pela prática ritual de repetição e lembrança da criação, já que o poeta toma por obrigação a tarefa difícil de entoar uma canção que significa cantar todo o mito de origens, de alguma forma, e todo o início das coisas é invocado novamente para explicar, por meio da memória, a situação terapêutica da criação.


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