Crítica


   Brasil

   América Latina

   Literatura Inglesa

   Pós-modernismo

   Pós-colonialismo

   Diversos

 

 

Pós-Colonialismo


Paraíso Perdido em Contracena: império e poder

Luiz Fernando Ferreira Sá.


Nesse exato momento de defesa desse “high place”, que pode também ser o “place of rest” de Adão e Eva no final do épico, temos uma utilização da linguagem do império para salvaguardar o que, “unawares”, pode ser perdido. Há aqui uma diferença crucial entre o poder colonial adquirido por Satã e o “poder colonial” investido ao Filho pelo Pai. Paraíso Perdido faz a analogia: da divindade ou do império – tal o inimigo. No texto vemos que a divindade é o império, um e outro conceitos são intercambiáveis: “[Paradise Lost] makes monarchy the exclusive privilege of God and makes imperialism quite literally, which is to say, narratively, the devil – they mark an ideological space that has all the trappings of great public issues” (Gregerson 1995: 5). O inimigo no épico é imperialista e uma subdivindade que traz o caos.

Se a intenção original de Deus ao criar o Cosmos, os Mundos e seres humanos, é explicitamente uma translatio imperii, ou seja, uma transferência de poder, Deus, totalmente identificado no épico por meio da agência do Filho, não pode emergir como um colonialista na criação do Éden; muito menos nós podemos identificar o Éden como colônia, plantação, uma doação de terra real a Adão e Eva. A translatio imperii divina, a transferência de poder de Pai para Filho, a tradução de Idéia para Agência, é primeiramente aclamada pelo narrador épico: “this new-created World, the addition of his empire, how it showed / In prospect from his throne, how good, how fair, / Answering his great Idea” (7. 554-57). Essa adição ao império que o Novo Mundo é se dá não por meios imperialistas ou colonialistas mas em conseqüência da tradução da Idéia em Agência, da Palavra em Verbo. Essa adição é menos complemento e mais suplemento. Logo a seguir essa mesma translatio imperii é adorada por todos os anjos que agora reconhecem o status e poder imperiais do Filho: “Of Heaven’s high-seated top, the imperial throne / Of Godhead, [...] / The Filial Power arrived, and [...] / Creation and the six days’ acts they sung: / ‘Great are thy works, Jehovah, infinite / Thy power; [...] / Who can impair thee, mighty king, or bound / Thy empire?” (7. 585-87, 601-3, 608-9). A pergunta do coro angelical, retórica por natureza e assertiva quanto ao poder do “mighty king”, pode receber uma resposta brutal e um reconhecimento chocante: Satã talvez possa prejudicar Deus e limitar seu império.

A primeira conseqüência dessa possibilidade se dá em Paraíso Perdido na deliberação entre Deus e seu Filho na presença de seus anjos, cena esta que abre o livro 3. Aí Deus se mostra irritável e defensivo por razões as quais o discurso do imperialismo talvez possa ajudar a entender. Deus prevê a queda de Adão e Eva, ou seja, a possível ruína do império universal que o Filho realizou através de atos de criação. Essa conseqüente volta a livros anteriores no épico faz com que entendamos o messiânico investimento do Filho no triunfalismo político e militar da Guerra no Céu, a sua translatio imperii, menos como poder territorial – o imperium e suas extensões –, e mais como poder – transferência de significação: o imperium não é território e sim um solo, fértil de significações. Daí em diante a resposta à pergunta retórica dos anjos seria: Satã não pode prejudicar Deus porque há uma certa restauração para a queda de Adão e Eva e Satã não pode limitar o império do Pai e do Filho, porque esse não é uma simples extensão territorial de conquista e domínio, mas uma adição de poder num solo de significação.

Como conseqüência direta e implicação futura, as assembléias no Céu de Paraíso Perdido desenvolvem um messianismo relacionado às questões de poder e império, conquista e domínio – a reconceitualização do Messias como servo de Deus e da sua vinda como um clímax escatológico no final da história humana. No momento em que o Filho no épico de Milton se voluntaria para salvar a humanidade por meio de sua encarnação, humilhação e posterior assunção, Ele pede que seu status e agência sejam revistos: “Account me man; I for this sake will leave / Thy bosom, and this glory next to thee” (3. 238-39). O messianismo do Cristo feito Homem é no mínimo pós-imperial nas suas implicações, pois coloca a vitoriosa vinda do Messias e a realização do Reino Universal de Deus para além do final da história humana, ou seja, no ponto de sua dissolução. A partir daí, Deus redefine a agência do Filho:
Because thou hast, though throned in highest bliss
Equal to God, and equally enjoying
God-like fruition, quitted all to save
A world from utter loss, and hast been found
By merit more than birthright Son of God,
Therefore thy humiliation shall exalt
With thee thy manhood also to this throne;
Here shalt thy sit incarnate, here shalt thy reign
Both God and man, Son both of God and man,
Anointed universal King (3. 305-9, 313-17).

Deus também é literal e enfático ao anunciar quando o Reinado Universal do Filho começará: depois que “all past ages” forem chamadas a julgamento e quando “The World shall burn, and from her ashes spring / New Heaven and Earth, wherein the just shall dwell, / And after all their tribulations long / See golden days, fruitful of golden deeds” (3. 328, 334-37). O que importa nessas cenas de transferência de poder é que o Messias vindouro recebe o reconhecimento como “herói” e último vitorioso do longo poema. Daí em diante, o épico retorna ao seu foco de atenção: a (im)possível origem da história humana, pecado, redenção e deferimento do Reino de Deus.

Na translatio imperii que havia sido inicialmente uma idéia de Deus, Adão e Eva tinham liberdade incondicional para transformar matéria em espírito, para trabalhar seu destino de transcendência como herdeiros em potencial do lugar desocupado pelos anjos caídos. Como meio de suceder a tal destino, o Pai, por meio do Filho, plantou-os no paraíso para possuir e comandar as “coisas” da criação: “all the Earth / To thee and to thy race I give; as lords / Possess it, and all things that therein live, / Or live in sea or air, beast, fish, fowl” (8. 338-41). No entanto, o poder de comando sobre as “coisas” da criação é diferente entre Adão e Eva: “For well I understand in the prime end / Of Nature her the inferior, in the mind / And inward faculties, which most excel; / In outward also her resembling less / His image who made both, and less expressing / The character of that dominion given / O’er other creatures” (8. 540-46). Nesse exato ponto de desequilíbrio de poder Satã entra para fazer com que desequilíbrio se torne destruição. Satã impõe sua versão destruidora da translatio imperii e o faz precisamente ao subverter a relação de poder desequilibrada entre Adão e Eva – Eva se afasta de Adão para garantir sua autonomia:
With thy permission then, and thus forewarned,
Chiefly by what thy own last reasoning words
Touched only, that our trial, when least sought,
May find us both perhaps far less prepared,
The willinger I go, nor much expect
A foe so proud will first the weaker seek;
So bent, the more shall shame him his repulse (9. 378-384).


< Voltar
 
| 
1  |  2  |  3  |