Belo Horizonte, 25.6.935. r. Guajajaras,
97
Sr. Resende,
estou vesperando escrever-lhe há vários
dias. Tenho verificado em mim, porém, o mais preguiçoso
e inamovível dos escrevedores de cartas. Já está,
mesmo,uma doença, ûa mania, a minha incapacidade
para escrever cartas e fazer visitas. E é original que
todo o esforço esteja em começar. Porque, se me
ponho a falar com um amigo como o sr., logo sinto a "vocação"
e as idéias de muitas cousas a dizer me põem naquele
conhecido “embarras de richesse". Não sei por onde
começar.
Ano passado fiz uma tolice necessária, comprando
uma baratinha. Quanta despesa me tem dado, santo Deus: Fiz o cálculo
largo: pagava e ainda economizava do dinheiro que me facilitaria
ganhar... Cortei estreito, como o alfaiate do ditado.
Pois, este ano, fiz outra tolice. Entrei em sociedade
com alguns companheiros para montarmos uma república -
esta da rua Guajajaras, de onde lhe escrevo. É uma república
mais original.(...). Mas.... não tem dado o resultado que
esperávamos. Não é, por nada, a república
dos meus sonhos...
Tem visto a propaganda feita pelo Afonso Arinos,
através dos jornais da capital? Quando o sr. me fez, na
sua última carta, aquela apreciação ou prognóstico
a respeito dos destinos do ginásio, eu mostrei o trecho
ao Gumercindo. Queimou-se comigo. (...)
D. Helena Antipoff embarcou ontem, com destino
ao Rio, talvez a Europa. Talvez, porque ela ficará no Rio
ou em S. Paulo ou em Pernambuco, possivelmente. Esteve em B.H.,
desde dezembro, sem ganhar, esperando, por promessas, o contrato
renovar-se. Afetivamente, dizia ela, preferia Minas, onde trabalhou
cinco anos. E onde deixou muita cousa bem começada. Desesperou,
diante das evasivas, e embarcou ontem. Seus amigos, aqui, fizemos
movimentos junto do governo, dos secretários, mas a resposta
era que a verba iria sair no orçamento... e que se esperasse...
Madame, pessoalmente, guardou aquela discrição que
lhe não fez dar um passo sequer. Diziamos-lhe que iniciasse
as aulas na Escola (pois a Escola já funcionava) porquanto
havia promessa clara de renovação. Mas ela não
o fez. Dizem que se fez alusão a estreitura financeira
e que se alegou, assim, obrigação de economia. É
lamentável ûa tão mesquinha argumentação.
Soube, por certa pessoa, que, enquanto o Ovídio Abreu andou
preenchendo o lugar de secretário da Educação,
descobriu que o governo dispendia, mensalmente, com professoras
e professores à disposição de Secretaria,
nada menos do que cem contos de réis: E seriam estes cofres
que se estariam escandalizados pagando obra de tres contos mensais
a uma professora como d. Helena Antípoff! Estou vendo em
que ficará, a que ficará reduzida a cadeira de psicologia
da Escola de Aperfeiçoamento. Em que ficará a Sociedade
Pestalozzi, o Instituto Pestalozzi, a obra dos Escoteiros, a casa
a construir para o pequeno jornaleiro - a Casa do Pequeno Jornaleiro.
E, justamente agora, Madame ia começando a penetrar, também,
no campo da adolescência, ia começando a preocupar-se
com a população ginasial. Tenho fanatismo por d.
Helena Antípoff. Levava vida de freira. Só se preocupava
com a criança. Só se preocupava com educação.
Sacrificava-se, até financeiramente. Só lhe faltava
a fé católica, porque sua vida foi, aqui, inteiramente
católica - como ação - e muito mais católica
do que a de não sei quantos católicos, dos não
maus. Foi uma santa. Cativava as freiras, todas, nos cursos especiais
da Escola de Aperfeiçoamento. Cativou o padre Álvaro,
com todo o seu radicalismo de sacerdote destemeroso, que não
deixava, é verdade, de recear do que ela ensinaria, como
professora. Mas eu, por exemplo, que sempre a acompanhei, posso
dizer quanto se foi adaptando e quanto temia, no ensino, ferir
convicções católicas.
Sobre meu concurso nada lhe posso dizer. Tenho
vontade, num gesto de desprezo, tenho ímpetos de abandonar
o campo. Mas o respeito humano me cerca o caminho. Interesse,
porém, nenhum me resta. Pode ser que, quando os pontos
das provas forem publicados (trinta dias de antecedência),
pode ser que a responsabilidade e a realidade me estimulem, me
forcem a voltar, não digo ao interesse, mas, pelo menos,
ao cuidado de me preparar. Ninguém sabe quando será.
De nosso panorama político e social que
se haveria de dizer. Fora preciso rabiscar, agora, um ensaio.
Deixei de ler os jornais, a não ser os de B. H. Sinto que
é uma grande falta, mas, depois, raciocino que não
é tão grande assim.
Há mais de um ano me desinteressara eu,
completamente, da questão social. Vivia a ler ou reler
clássicos latinos ou clássicos portugueses. Ainda
nao há muito tempo vivia eu em cima dos volumes de João
de Barros e Fernão Lopes, Lucena, na Antologia de Agostinho
de Campos. E o último grande sabor que senti foi ler Tácito,
durante vários dias, numa edição francês
e latim, com tradução de Burnouf. Eu nunca lera
Tácito, dai a admiração enorme que me despertou.
Sobretudo me espanta a crueza com que descreve a corrupção
daqueles dias de Tibério e ... toda a caterva. Crueza calma,
segura, com uma análise quase de sociólogo moderno.
Mas os trabalhos das provas, na primeira quinzena de junho, forçaram
o Tácito a voltar à prateleira... e, quando comecei
as férias, estava lendo Duhamel, Les hommes abandonnés;
Mauriac, La robe pretexte, além de uma ótima
História da Filosofia, de Will Durant, em tradução
medíocre de Godofredo Rangel e Monteiro Lobato.
Trabalho, este ano, das 7 da manhã até
o meio dia. São cinco aulas em seguida. Uma, no Afonso
Arinos e 4, no Prado (Departamento de Instrução
da Força Pública). Do meio dia, em diante, almoçado,
fico sem trabalho obrigatório. Tenho achado um pouco monótona,dispersiva
e estéril, essa facilidade de tempo, com que não
estou acostumado. (Ah: os apertos de certos anos de B. H.!). Ultimamente,
tenho pensado muito em que eu preciso escrever um romance ou uma
obra didática - uma série de História da
Civilização, por exemplo, pois acho horrorosas séries
como as de Schneller, Joaquim Silva e João Ribeiro... Seria
um romance de tese. A prova desta preocupação está
na minha volta ao romance, derradeiramente. Havia muito tempo
que me não preocupava. Vou ler - e reler também
- alguns franceses, além de um outro americano ou inglês.
Depois verei em que fico. Com certeza que em nada...
Por falar em romance, gostaria que o sr. me mandasse
os volumes de Jean Christophe, se me não engano, os três
primeiros. Devo fazer, dentro em breve, uma conferência
sobre “A vida dos adolescentes, no Brasil”, segundo determinou
D. Helena Antipoff, naquela série em prol da criança
sadia, conforme deve o senhor ter visto em jornais. Queria
que eu falasse a respeito da educação dos nossos
internatos congregacionais. O tema é melindroso. Em todo
caso, vou encarar o assunto do ponto de vista escolar. Tenho aqui,
para matéria-prima literária, o Ateneu,
de Raul Pompéia, o Doidinho, de J. Lins do Rego,
La robe pretexte, de Fr. Mauriac. Queria ter também
o Jean Christophe.
Já falei demais. Espero que o senhor e todos
os seus vão sem novidades, a não ser as boas novidades.
Lembranças às pessoas do costume.
Abraços do Lourenço.
|