Caros José Maria e Abigail
ao escrever a data em que começo esta,em
vez de permanecer comigo e daqui partir para o Chile, o espírito
fugiu em marcha-a-ré, mais de 40 anos, recitando, no Caraça,
com Leôncio Correias: “Do Amazonas, a nau, no dia onze de
junho, / Barros, o legendário, aos céus erguendo
o punho / "O Brasil - ele grita -/ espera que cada um cumpra
com o seu dever!" - Era uma ode à pátria, longa
e sonora, fervorosamente repetida por algum de nós em alguma
festa cívica. Naquele tempo a gente se ufanava do Brasil
e fremia de amor nas datas nacionais, na comunhão dos heróis
antepassados, devotamente requerida por almas que podiam viver
no mundo da lua. A lição da vida, para os jovens
de então, era um glorioso apelo de sintonias altas e fraternas,
ingênuas e irreais como convém aos sonhos da boa
mocidade. Sabia-se que a experiência está com os
mais velhos, de cuja voz e tradição vinha o saber.
Na hierarquia das posições, com limites de estrutura
e viabilidade, cada indivíduo "sentia" o seu
lugar e "sentia" até onde buscar subir. Refrear
a injustiça era tarefa da justiça organizada: a
função de cada pessoa era fazer o bem e não
andar correndo o dia inteiro atrás do mal-feito dos outros.
Cada homem,na paleta de cores do jeito pessoal, trazia matizes
que imprimia na feição de seus atos de solidariedade,
seus impulsos de moral ou seus gostos da beleza. A revolução
russa apenas começara e ainda não havia contaminado
o oxigênio de nossa respiração com a acidez
mongólica de seus gases mefíticos - uma brava e
eficiente mistura des-hominizante, feita de ódios e recalques,
uma boa receita de retorno á gregariedade elementar.(...)
:: Vejam como o 11 de junho me arrastou; mas, para
40 anos de lembrança, até que parei em tempo. Vamos
passar ao dia de ontem. Às 13 horas, Alaíde tomou
avião para o Rio, onde começa hoje o concurso de
Didática. - Às 15,30 estivemos em Viña del
Mar, desde aqui de casa, ouvindo o Brasil desmontar,por 3x1, o
"english team". - Às 18 horas, Alaíde
telefonava, desde o tio, dizendo tudo bem. -Relembro,em tempo,
que,na Pampulha, despachou carta para a Abigail, depois de perguntar
ao correio se, despachada do Rio, a carta iria mais depressa.
:: Hoje, o dia começou vazio, por falta de
Alaíde, além disto, ficamos sem nenhuma empregada.
São 11 horas a Maria, voltando de não sei onde,
foi para a cozinha. Imagino que isso vai acabar em sanduiche com
bife e molho de tomate. O Sílvio diz que vai almoçar
na Medicina. - Por falar, vocês devem saber que estamos
em greve outra vez. Toda a universidade, solidária com
o movimento nacional do terço. Os meninos,desconfiados
de inépcia dos velhos, querem um terço de representação,
nos conselhos da administração üniversitária:
congregação, conselhos, departamentos.- estamos
com uma bem bolada baderna brasileira, que soma assomos de Brizola,
campônios do Julião e estudantes de todos os nossos
"deás" (ou DD.AA.). Os russos exibem suas muitas
pessoas na exposiçao do Rio. E exibe suas ambíguas
declarações o nosso Santiago, que não é
do Chile e que até parece de Cuba. Vários governadores
estão reunidos,na sugestão sulfurosa de Araxá,
sob convite do nosso. Veio Lacerda, Juraci,etc mas não
veio Carvalho Pinto nem Brizola, cada um com seu variado motivo.
Esperamos a declaração que preparam. O ministério
já não vige e é visto como demissionário.
Esta semana, dizem, Jango vai sancionar os 40% funcionariais e
indicar o nome da outro "Tancredier". Dizem que o Jânio
ganhará em SP. - Aqui os temores são tais e tais
os tremores. Seria capaz de lhes pedir um lugar de repetidor e
me ir daqui, se não fosse que aí, além da
possível tremedeira social, há também a possível
tremedeira dos Andes.
:: O tio esteve conosco dois dias, na semana passada.
Veio depor no caso Fernando. Flagelou o inquérito com respostas
inteligentes e firmes.- Por falar em inquérito, o Bhering
foi eleito diretor das Econômicas. (vejam que duas vezes
tropecei na dactilografia de “inquérito”.)
:: Henriqueta recebeu cópia mineográfica da tese de sra. Filho (Blanca Lobo Filho). Por causa da poetisa, a família Lisboa foi passada para o inglês e submetida ao sotaque da Columbia University. - Henriqueta passou no Rio um pedaço de maio. Entre outras, foi receber algum dinheiro de sua poesia. É de admirar a "insobornable" consciência de artista com que vive minha cunhada sua tia, fiel a seu mundo num mundo infiel.
:: A casa do Instituto Lisboa está vindo abaixo. Veio abaixo também aquela árvore galhosa da esquerda, mas a parreira ainda está no lugar. Disse-me Alaíde que o sr. Vicente vai gastar lá uns três milhões.
/::/ Fui chamado lá em cima. Voz do Sílvio convocando para almoço. Resolveu não ir à Medicina. Comemos, os 4. Havia arroz, feijão, sanduíche de bife e tomate e queijo, compota de pêssego. Amendoim para mistura chinesa. Faltava Alaíde e faltavam vocês dois. A Maria mostrou que tem jeito, compensando as ausências do ministério. A Dica foi embora no sábado (de vez), a Aparecida não voltou hoje (esperada) e a Geralda a esta hora é funcionária do Colégio, estando Expedita no internamento que o Hugo lhe arranjou, nem sei quanto tempo faz; e o dia da lavadeira é amanhã,
:: Eu havia planejado começar a carta com
declarações importantes mas a data me desguiou.
- O importante era desejar que Bibi estivesse toda restabelecida,
que o JM estivesse domesticamente menos preocupado, todo entregue
à tarefa do curso, e que o André, sempre mais forte,
já estivesse poliglótico, ajuntando português
e espanhol à sua língua de passarinho. -Eis aí
pois as declarações importantes. - Espero também
se mantenham na boa persistência, intelectualmente falando.
Quem chegou ao ponto em que JM já está pode ser
que descubra cedo todo o jogo da escola daí, começando,
por isso, a desprestigiar a riqueza da oportunidade encontrada.
Caso coisa assim aconteça, lembrem-se de que o homem é
um animal decepcionável, de que o distanciamento foi grande,
de que a estada é longa, cheia de jeitos para uma boa capitalização,
garantia dos juros de amanhã. - Invejo a facilidade viária
oferecida hoje no moço que quer. Desde o ponto em que está,
pode ver os caminhos do mundo, através de horizontes abertos,
e tentar as jornadas. Meu fingido desgosto do viajar não
passa de requintada timidez, feita com o medo das distâncias,
como se o cósmulo de hoje ainda fosse o mundo grande da
minha infância. (Era um mundo sem luz elétrica, sem
trem-de-ferro, sem automovel, sem telefone, sem telégrafo;
um mundo que gastava dez dias entre BH e minha terra e que hoje
são dez horas de automóvel.) Um dia me mandaram
para o Caraça, onde aprender obediência, pobreza
e humildade, afim de ser padre; depois a um noviciado, de que
fui despedido inesperadamente, ficando ao desamparo no meio da
estrada, solto e bobo como um gambá; passou um diretor
de colégio e me levou para o trabalho; tinha dezenove anos
e agradeci a Deus aquela salvação; quem aprende
obediência e humildade vive de obediência e humildade,
mesmo que não cultive tais virtudes; comecei a solancar
na dureza, modesto por achar que tinha mais do que valia; nenhum
vislumbre de uma oportunidade intelectual ampliada, nem mesmo
ao vir para BH, a fazer o curso jurídico, fechado sobre
si e dispendioso; a única moda de viajar ao estrangeiro,
e que pedia abastança, era o aperfeiçoamento médico,
em Paris ou Berlim por exemplo. (a confissão já
está chata;vou parar:::)
:: custei a responder a vocês por alguns motivos:
1. faz vários anos, perdi o costume de escrever cartas; mais ou menos desde quando casei. Há por aí no mundo não poucas pessoas que me xingarão de deseducado e grosseiro, fazendo-o com toda a razão;
2. eu estava esperando que Kritérion me entregasse os conceitos de linguistica fabular do segundo artigo, desde janeiro, pois queria mandar todas as separatas de uma vez. Em vista da quebradeira grave da nossa Faculdade, ainda continuo esperando;
3. finalmente, fiquei provocado por aquela notícia que falava de sincronia e diacronia bem como da lingüística de Martinet. Induzido na idéia de escrever contra, mas detido pelo receio à leviandade intelectual, fui ler o Martinet e reler o Saussure. Entretanto, feito menino incompetente, não fui capaz de preparar a lição: não a pude reduzir a uma síntese clara e portátil, que ajudasse agora o JM. Antes mesmo de ler,eu já era contra o sr. André Martinet,por sabê-lo estruturista; (André para mim é o André Carvalho, el señor Andrecito). Se era contra por suspeição, fiquei mais contra por verificação. Voltaremos ao assunto, embora indiretamente.
:: (para JM):: imagino como você se deve ter
chamado de "bobo" por me haver feito consultas intelectuais,
a que não respondi. Lembre-se que não foi falta
de atenção mas falta de expediente meu, em dois
casos sem importância. Calculei que a pergunta foi uma questão
do momento, atravessado com a lembrança de “conotar” e
“denotar”. Supus mesmo que foi um pretexto de me fazer falar.
Já o caso agora deve estar resolvido, com ajuda dos Lalandes
daí, falados ou escritos. Mas vou responder, como quem
dá uma satisfação:
- segundo a lógica escolástica, o têrmo mental tem "compreensão" e "extensão", valias que J. S. Mill chamou de "conotação" e "denotação";
- notas são sinais que permitem
reconhecer um objeto. Um conjunto de notas constitutivas de um
conceito faz a conotação ; assim,por exemplo,
'homem' é um indivíduo conotado como animal
e como racional; uma soma de notas características
permite definir o objeto;
- segundo J S Mill, o branco denota as coisas brancas e conota a brancura; vale dizer, estende-se às coisas brancas (leite neve papel...) e compreende a brancura como conotaçao de tais coisas;
- a compreensão vê as notas do conceito; a extensão vê-lhe o alcance - o conjunto de objetos que significa. Quanto maior a extensão tanto menor a compreensão. O conceito 'homem', abrangendo cada indivíduo da espécie, tem menos extensão que o conceito 'animal', referido a cada indivíduo de cada espécie;
- diz Lalande que não é segura,nos autores, a conceituação de conotar e denotar.
:: ex post facto e ex ante facto. Tenho encontrado raramente êsse tipo de expressao,cujo aspecto revela vezo jurídico. Ao pé da letra temos: ex facto post e ex facto ante : a partir do fato posterior e a partir do fato anterior.
Lço.
|