A meu ver, poucas personalidades conviveram de
forma tão descontraída com o diálogo, confrontando
pontos de vista diversos, como José Lourenço de
Oliveira, cujo centenário aqui celebramos. Como observação
preliminar, lembro uma vez mais que o professor Lourenço,
também jornalista e bacharel em Direito, priorizou em sua
vida as atividades pioneiras. Consta entre os fundadores de instituições
que marcaram época em Belo Horizonte: o Colégio
Marconi, a Sociedade Pestalozzi, a Associação de
Cultura Franco-Brasileira, a Associação Mineira
de Escritores, o Instituto Arduíno Bolivar e a seção
mineira da Associação de Estudos Clássicos
do Brasil. Integrou também o grupo de trinta e dois professores
participantes da assembléia que propôs cursos, estatutos,
regimento interno e corpo docente, visando à fundação
da antiga Faculdade de Filosofia, matriz de tantas unidades da
atual UFMG.
A histórica reunião ocorreu na então
Casa d´Itália, futura sede do Colégio Marconi,
em 21 de abril de 1939. A data, emblemática em si mesma,
mostra-se igualmente adequada para sinalizar o culto da independência,
de pensamento e ação, que marcou o caráter
do professor. A vocação para o diálogo, mencionada
acima, tem a ver com a fé na livre manifestação,
indispensável ao debate de idéias. O professor Lourenço
sem dúvida subscreveria a frase atribuída a Voltaire:
"Não concordo com uma só palavra do que dizeis,
mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo".
Para ilustrar essa afirmação, começo
por lembrar que, superficialmente, nosso homenageado projetava
uma imagem um tanto conservadora. Não seria difícil
explicá-la, dada a severa formação católica,
os prolongados estudos no lendário Seminário do
Caraça, alicerce de amplo conhecimento humanístico,
que incluía a Filosofia e as Letras, especialmente Língua
e Literatura Latina. A face conservadora implicaria uma orientação
política.
No período em que, como sua aluna, conheci
o Professor Lourenço, a distinção entre a
direita e a esquerda parecia bastante clara. O debate entre os
entusiastas da utopia socialista e seus opositores apaixonava
os meios acadêmicos. Respirava-se um clima quase religioso.
Duas grandes visões do anseio pela fraternidade humana
ali se confrontavam: o “Amai-vos uns aos outros” da mensagem cristã,
calcada na transcendência, e “a cada um de acordo com suas
necessidades” do socialismo utópico. Sem buscar horizontes
além deste mundo, as lutas pelo sonho socialista assemelhavam-se
ao exercício de uma religião leiga, compreensivelmente
aliada à prática cristã da Teologia da Libertação.
À época em que o professor Lourenço exercia
o magistério, ainda na precária sede do Edifico
Acaiaca, os dois sonhos de fraternidade humana, duas propostas
para a instauração da paz na terra, disputavam espaço
na mente dos homens de boa vontade.
Na Universidade, o palco da disputa deslizava ocasionalmente
dos diretórios acadêmicos para a sala de aula. Estudantes
e professores esqueciam o objetivo imediato de seu encontro e
passavam a debater as questões magnas da prática
social. Nesses momentos, o professor Lourenço não
fugia à controvérsia. Nem deixava de fixar sua posição
com clareza. Era decididamente anti-marxista. Perfilava-se resolutamente
ao lado da posição católica, exposta na Rerum
Novarum de Leão XIII. No seu entender,
a encíclica, e não O Capital
de Karl Marx, apontaria a solução para os conflitos
entre o capital e o trabalho e para a busca da justiça.
Impávido, o vulto alto e robusto obstruindo a visão
do quadro negro, ainda cheio de anotações em Latim,
Lourenço aparava as investidas dos estudantes, alistados,
em sua maioria, no campo socialista. No calor da discussão,
o professor não demonstrava irritação, nem
posteriormente emitia sinais de ressentimento. Mas não
deixava de ser veemente. Alteava a voz. Dedo em riste, gesticulava
com eloqüência, abrindo os braços num contorno
largo, à altura do mais passional de seus jovens adversários.
Estes recorriam a armas diversas. Alguns tentavam ridicularizar
os argumentos do solitário campeão de Leão
XIII. Consta que, certa vez, um dos mais aguerridos teria respondido
a uma alegação do mestre com a frase: “Isso o senhor
leu no Reader´s Digest.” A observação
era particularmente ferina. O erudito professor, afeito à
leitura de filósofos e poetas, de pesquisadores dos mais
diversos aspectos da vivência
humana, devotado pioneiro da Lingüística, que o Conselho
Federal de Educação mal acabara de proclamar disciplina
obrigatória para os cursos de Letras, era acusado de alicerçar
sua argumentação numa revista de divulgação
de massa! A ofensiva acusação não abalou
a postura do professor. Indiferente aos risos, manteve a típica
mistura de tom, acalorado mas amistoso. Só o relógio,
anunciando o fim da aula, assinalou uma trégua na interminável
discussão.
Menos amena, com reverberações trágicas,
foi a abrupta interrupção forçada pelo golpe
militar de 64. Cessaram as inócuas escaramuças em
sala de aula, sem vencedores nem vencidos, de onde todos saíam
com a alma lavada, corpos e vidas intactos. A luta se transferia
para outros espaços, os diálogos se transformavam
em embates desiguais, às vezes interrogatórios em
soturnos porões policialescos.
Foi esse o momento em que Lourenço de Oliveira
deu uma das demonstrações de convivência generosa
com a facção política contrária. Não
manifestou regozijo pelo triunfo do grande primeiro de abril sofrido
pela sociedade brasileira. Pelo contrário, demonstrou solidariedade
com o campo oposto. Graças a sua intervenção,
professores e estudantes detidos pela polícia foram libertados.
Lembro-me especialmente do professor Rubens Romanelli, cujo nome
veio a ser legado à biblioteca da hoje Faculdade de Letras.
Ao lado de sua paixão pela Lingüística Histórica,
o professor Romanelli cultivava também aquela a que alude
o Evangelho, em uma das promessas de bem-aventurança: a
fome e sede de justiça. Alinhava-se, assim, entre os que
lutavam por direitos sociais, parecendo tender para o campo socialista.
Lembro-me de ouvi-lo discorrer sobre uma conta singela que andara
fazendo: o salário mínimo da época mal daria
para comprar três refeições diárias,
apenas de pão e café com leite, para uma família
de quatro pessoas. Como o trabalhador custearia as demais despesas,
que, segundo a lei, o salário deveria cobrir? Indagações
desse tipo chegaram a ouvidos malevolentes. Tanto bastou para
que o professor Romanelli fosse rotulado de comunista. Por isso,
quando teve a oportunidade (rara, naqueles tempos) de participar
de um congresso na Grécia, foi-lhe negado o passaporte.
Ameaçava frustrar-se o sonho de todo estudioso dos clássicos,
visitar seu primeiro berço. Naqueles anos distantes, quando
as viagens internacionais não constituíam ainda
oportunidades tangíveis para o mundo acadêmico brasileiro,
o sonho, e a ameaça de sua frustração, atingiam
dimensões inimagináveis nos dias atuais. O professor
Lourenço soube avaliar bem o significado das circunstâncias
que cerceavam o colega. Segundo voz geral, procurou as autoridades
e tais argumentos usou que o professor Romanelli não perdeu
seu congresso na Grécia.
Esse dom para o diálogo, para a independência
de pensamento, que, ao marcar uma posição clara,
não deixava de negociar com a divergência, caracterizou
também a atuação acadêmica do antigo
aluno do Caraça: nunca se deixou atrelar à paralisia
intelectual que se poderia temer de uma formação
conservadora. Coisa rara em sua geração, Lourenço
desconhecia, por exemplo, o sentimento de dependência cultural,
deletério para a evolução da pesquisa, contra
o qual se levantara o brado modernista. Nos rincões de
uma provinciana Belo Horizonte, ainda muito próxima de
Curral Del Rey, no interior de um país e de um continente
periféricos, quando sequer se banalizara o uso desse adjetivo,
o professor Lourenço mantinha uma rara autonomia acadêmica.
Em plena Europa, Saussure não se mostrara mais livre para
desenvolver as reflexões depois reunidas por seus discípulos
no famoso Curso. Tranqüilamente, o antigo aluno do Caraça,
docente numa Faculdade que mal ensaiava os primeiros passos no
cenário nacional, dialogava ombro a ombro com os grandes
pensadores do seu e de outros tempos.
Nos anos cinqüenta do século passado,
o catedrático da recém-criada cadeira de Lingüística
já publicara vários trabalhos, além de duas
teses de concurso, Ortografia de nossa Língua,
apresentada ao Colégio Estadual de Minas Gerais
para a cadeira de Português e O formalismo Quirício
e a estipulação em Gaio, submetida à
Faculdade de Direito da UFMG, para a cadeira de Direito Romano.
Quatro outros títulos proclamavam a diversidade de seus
interesses: Aspectos fundamentais da Educação;
Lenine, Ford e Pio XI; Tratado de Acentuação
Gráfica e Espírito Mediterrâneo.
Interessa-me particularmente um outro texto, constituído
inicialmente por artigos em números da revista Kriterion
nos anos 50 e 60. Os artigos vieram a integrar
o livro Conceitos de Lingüística Fabular,
publicado em 1984 pela editora Tempo Brasileiro. Cabe aos especialistas
discutir os vieses técnicos dessa publicação.
Ela constitui uma teoria lingüística mineira, instigante,
em seus aspectos gerais, para qualquer estudioso de Letras, ainda
que não especialista. Passo a comentar alguns desses aspectos,
por ilustrarem a independência de pensamento do Professor
Lourenço: do ponto de vista intelectual, Conceitos
de Lingüística Fabular espelha a disposição
para o diálogo típica de seu autor.
O livro, fruto de longas reflexões solitárias,
re-elaboradas em voz alta nas aulas de Língua Latina e
de Lingüística, mantém uma ágil conversação
com as obras destacadas na época, de Panini a Meillet,
Ernout, Niederman, Marouzeau, Trubetzkoy, Franz Bopp. Mas não
se restringe aos lingüistas e aos clássicos. Estende-se
a filósofos, psicólogos, cientistas e poetas. Para
fecundas analogias ou fundamento da argumentação,
as referências remetem a Kepler, Pavlov, Pascal, Husserl,
Hegel, Bertrand Russell, Bergson, Cassirer, Croce, Schleicher,
Schlegel, Valéry, Shakespeare... O autor é o primeiro
a sublinhar o entrelaçamento interdisciplinar de sua reflexão:
A ciência da língua é
uma ciência do espírito. Interessa à psicologia,
pois a fala é um veículo da alma; interessa
à sociologia, pois a fala socializou o homem; interessa
à história, pois a fala é uma expressão
do homem, fazedor de história; interessa finalmente
à filosofia, síntese de explicação
do real, feito de repercussões do Objeto no Sujeito,
pois a fala interior mostra ao homem tais vivências.
No conjunto, asculta-se o murmúrio subliminar
de discussões envolvendo a história, a antropologia,
a estética, a ética, as ciências sociais e
a teoria da cultura, bem como as revoluções operadas
por Darwin e Freud na consciência humana. Sem recorrer a
muitas citações explícitas, o texto parece
jorrar de uma paciente e original ruminação de tudo
que o autor já estudara, e que devolve, digerido e retrabalhado,
a seu leitor. A linguagem, extremamente erudita, nunca soa cansativa
ou pedante, dada a elegância da construção.
Em alguns momentos, a combinação de profundidade
de pensamento com a limpidez da sintaxe faz pensar nos poetas
metafísicos ingleses. Sim, pois o rigor da exposição
não exclui o poético, às vezes com reverberações
bíblicas. Leia-se esta introdução a um dos
temas centrais, a origem e a evolução da linguagem
humana:
No princípio era o OBJETO.
Havia o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede
o homínida. Mas eram coisas ainda sem nome, adhuc sine
nómine res, porque ainda não existia o SUJEITO.
Um dia, na paciência genésica
das origens, dois homínidas começaram a manifestar,
pela voz, a representação de uma idéia.
Eram eles Primo e Secundo. Aí começaram a ter
nome o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede.
E o homínida
se fez homem, et homo factus est, ao se fazer SUJEITO, frente
a frente com O OBJETO.
A esse objeto ele foi transformando em
"reais", internados no espírito, o seu espírito
de Sujeito. E esses reais eram repercussões dos procedimentos
do Objeto. E essas repercussões eram associáveis
a vozes com que a fala de Primo, dirigida a Secundo, foi sendo
capaz de veicular as imagens do Universo.
Sinta-se a mistura de aura poética e meditação
filosófica, quando o autor medita sobre a evolução
da mente humana, no limite da transição para a história:
O homem antigo deve ter sido um animal
cerrado sobre si, atento ao vital, escasso no vivencial, ativo
no instintivo. Imerso na circunstância do Objeto, devia
ser um Sujeito mal instalado e medroso. Ante os efeitos de
um real ainda não construido na consciência,
era uma caixa de repercussões inassimiladas, em cotidiano
regime de "alteração", dentro de um
hic-nunc-ismo
estreitamente vizinho da irracionalidade. (...) Na base desse
homem anterior, carregado de vivências mal refletidas,
a intelecção helênica foi modelando o
tipo do homem aristotélico, o homem de razão
ativa, o homem que ordena o real com intuição
no objeto.
Em outros momentos soa como um excepcional crítico
literário, descrevendo a atuação da linguagem
a serviço do fluir da consciência:
Ter idéias é pensar e pensar
é falar. É um falar que não se manifesta,
um falar consigo mesmo, ora reflexivo e dirigido, ora espontâneo
e sibi-dirigido, fluindo em curso despercebido e contínuo,
macio e surdo, isento ao vigiar da consciência.
Lourenço parece às vezes antecipar
pensadores como Chomsky e Derrida, que ainda não haviam
conquistado o centro do palco acadêmico brasileiro. O texto
abaixo soa como um primeiro esboço poético do que
depois tanto se glosaria como “ a infinita regressão do
significado”:
Imaginemos um marciano que houvesse perguntado
"que é aquilo", ao ver aproximar-se um homem
a cavalo; que, ante a resposta "aquilo é um cavaleiro",
quisesse também saber que é um cavaleiro; que,
ouvindo dizer "cavaleiro é um homem a cavalo",
pedisse afinal a definição de homem e de cavalo...
Em outro momento, a reflexão roça
a teoria dos universais postulados por Chomsky:
Tem seus limites, quanto a fonemas, a faixa
prolatória de cada dialeto. Uma boca adestrada em sua
língua resiste às solicitações
de talvegues alodialécticos. A prova, no en tanto,
de que sua habilidade é universal está no fato
de um infante poder educar-se em qualquer língua.
Trilhando seu campo de investigação,
centrado na Linguística Histórica, Lourenço
trata com a mesma mistura de eloquência e objetividade alguns
dos temas que sempre apaixonaram os estudiosos da linguagem: o
processo da criação e da comunicação
linguística, a passagem da presentação à
representação, a invenção da escrita,
etc. Como testemunho de autonomia intelectual, avulta no texto
a divergência com Saussure. Não que Lourenço
lhe negasse a grandeza:
Saussure foi o genial focalizador da mais
verdadeira e fecunda discriminação até
hoje feita em lingüística: a discriminação
entre língua e fala. M as ele não teve tempo
de lhe explorar as formidáveis conseqüências,
agarrado como estava aos efeitos de seu positivismo e ao esquematismo
fisicista dos neogramáticos.
Nesse tributo sente-se já a discordância
com o mestre, no que diz respeito à ênfase na sincronia,
em prejuízo da diacronia. Argumenta Lourenço:
Não existe a sincronia saussuriana,
com sua intemporalidade, a não ser por artifício
(...) Que patrimônio de homem pode ter o homem arcaico,
apertado na sua intemporalidade, e oprimido da tirania de
seus fantasmas? O que hominiza o homem é o seu poder
de criar um mundo, no internato de sua consciência.
Dentro dela reina o Sujeito, nutrido pela base espacial do
ser biológico, mas configurado em duração,
que é matéria do tempo.
Outras divergências separam Linguística
Fabular do famoso Curso, como,
por exemplo, o posicionamento em relação à
arbitrariedade do signo, à oposicão entre fala e
língua, palavra e frase, etc. São temas a ser debatidos
por especialistas. Aos demais, cumpre ressaltar o fascínio
dessa Linguística Fabular, cuja
elegância e originalidade exigem maior difusão entre
os estudiosos da área. E não apenas no Brasil. Quando
o livro foi composto, estavam ainda distantes os dias em que que
teóricos brasileiros como Silviano Santiago, Antônio
Cândido e Roberto Schwartz veriam seus trabalhos publicados
no exterior. É hora de acontecer o mesmo com a produção
do mestre cujo centenário celebramos.
Belo Horizonte, 30 de setembro de 2004.
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