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Sobre José Lourenço e sua obra
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

DA VIDA À VIVÊNCIA - INTRODUÇÃO

 
 

Samuel Moreira da Silva

 

"Ter hominidade é fazer-se homem,
fazer-se homem é hominizar-se e
hominizar-se é temporizar-se,
no exercício da cogitação intelectiva".
Lourenço.

O humano surge (...) ao surgir a linguagem, mas se constitui de fato como tal na conservação de um modo de viver particular centrado no compartilhamento de alimentos, na colaboração de machos e fêmeas, na criação da prole, no encontro sensual individualizado recorrente, no conversar.
Maturana. [1]

 

 

Reflexões de Secundo, "com seus botões", em face da expressão de Primo. Fala-solilóquio de Secundo ensaiando fazer-se Primo. Assim será esta introdução. Mais que a função noticiadora, interfabular, entre sócios, que determina um pensar, será destaque a função intrafabular, vivencial reminiscente. Terá muito da fala interior, da fala comigo mesmo.

No grande acervo legado pelo Prof. J. Lourenço de Oliveira, em alguma página de livro [2], em alguma margem de página de livro, ou em algum fólio inédito, o leitor encontrará diferentes versões da seguinte fábula:

"No princípio era o objeto. Havia o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede o homínida. Mas eram coisas ainda sem nome, adhuc sine nomine res, porque ainda não existia o sujeito.

Um dia, na paciência genésica das origens, dois homínidas, começaram a manifestar, pela voz, a representação de uma idéia. Eram eles Primo e Secundo. Aí começaram a ter nome o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede. E o homínida se fez homem, et homo factus est, ao se fazer sujeito, frente a frente com o objeto.

A esse objeto ele foi transformando em "reais", internados no espírito, o seu espírito de Sujeito. E esses reais eram repercussões dos procedimentos do Objeto. E essas repercussões eram associáveis a vozes com que a fala de Primo, dirigida a Secundo, foi sendo capaz de veicular as imagens do Universo."

Essa narração/expressão, essa fábula, revela o esforço criativo de quem faz obra de arte, de quem busca o requinte da forma, de quem elabora e aperfeiçoa sua fala, de quem busca os feitos de estilo, na liberdade da reflexão. Em todas as suas obras, de lingüística, ou não, revelando a consciência da fala como expressão do homem, J. Lourenço mostra esse esforço de expressão. A disciplina, o léxico revigorado - ressuscitado - na busca da precisão, a gradação de matizes, a tintura de subjetivo no objetivado, a feitura de mundo na medida do espírito, o veiculado tingido de participação humana, o esforço na modelagem do mundo interior, a ascensão estética em harmonia com o amadurecimento racional, esses traços todos criam - em sua fala - a aderência do pensamento à expressão. Não é à toa que Carlos Drummond de Andrade viu-o " identificado com a Cidade das Letras, e delas conhecendo os segredos" [3]. É difícil - eis um traço de arte em sua obra - falar das idéias de J. Lourenço, sem se valer da expressão lingüística de que ele se serviu. É preciso dizer que não é difícil a articulação de seu estilo, embora a leitura não seja fácil e fluida. Seu vocabulário é idiossincrático, recorrente, mas garante quase sempre precisão. Ora, ele mesmo ensina, alhures [4], que a ignorância humana é um entrave social que pede tempo, que o bem comum dos recursos expressivos se deixa sedimentar apenas devagar. A expressão nasce lenta, paciente - diz ele. Ensina também que não há troca de idéias. A comunicação humana pressupõe a dinamia bipolar dos sócios interagentes: Primo e Secundo devem ser dois pólos de vivências análogas - condição necessária para que haja sintonia - sintonia de suas representações - na intersubjetividade de comunicantes. No circuito da fala, portanto, - ao contrário do que faziam-no crer Ferdinand de Saussure e outros estudiosos - Secundo não é um parceiro passivo.

Com a elaboração criativa da fábula citada, além de preocupações de caráter estilístico e de natureza estética, o Autor, com elegância, define também pressupostos ontológicos e filosóficos que, a elas subjacentes, comandam e orientam suas lições.

"No princípio era o objeto". A pontuação nenhuma em "Havia o sol o monte o rio a planta a ave o peixe o quadrúpede o homínida" é bem um recurso para abreviar o rol das "coisas ainda sem nome", - minerais, vegetais, animais e até uma família de primatas, os homínidas - que fazem o Objeto. Também pertencem ao Objeto os fatos do Objeto: o compêndio dos procederes naturais, biológicos, zoológicos. Pode-se relatá-los, valendo-se de expressões colhidas aqui e ali, (como escapar desses adereços?), na riqueza da fala do próprio Autor: respostas de simples persistência, na economia do aqui-e-agora; mecanismo de reflexos engatilhados, na espera espacial da excitação, procedimentos de indivíduos zoológicos, na economia das virtudes infusas da animalidade; gregariedade animal, em seu co-viver, com seu formulário natural de procederes, de respostas não ensinadas; reflexos, sob múltiplos estímulos iterativos, dos fazeres vitais, dos condicionamentos primários, que garantem a pervivência do indivíduo e a sobrevivência da espécie.

Esse é o Real, o mundo da Natureza - a res extensa cartesiana, externa, perdida no espacial. Também desordenada, "porque ainda não existia o sujeito " - narra o fabulista. Nem o Sujeito, nem os feitos do Sujeito.

De pacientes passando a agentes, hominídeos fazem-se homens. Essa conversão se dá, embora o pormenor da gênese, na distância de muitos e muitos milênios, seja, como em todo processo, de difícil reconstituição. É a madrugada da espécie humana. Está sendo criado o ordenador mental dos fenômenos do mundo. É a epifania da superação do plano zoológico, natural e a liberação da dimensão antrópica, da hominização, pós-natural. O homem começa a conquistar o poder de transmudar em estímulos internos, isto é, em vivências, interiorizando-as no espírito, os estímulos de circunstâncias da vida. Veiculando a cogitação, a fala permite que se inicie a fusão do saber espacial no saber temporal. No terreno zoológico do piteco nasce a flor da hominidade, flor de tempo e não de espaço.

A chave - diz o Prof. J. Lourenço - está no poder fabular. Está na fala, concedida a nenhuma outra espécie. O mundo pode agora veicular-se em nomes. Os seres começam a existir, como categorias, agora bem pontuados [5] - o sol, o monte, o rio, a planta, a ave, o peixe, o quadrúpede. Não há mais o caos.

A fala faz a vivência - tecendo-a de lembranças, de reminiscências, de repercussões do Real internadas no espírito. A duração temporal vem de ser criada. A vida se deixa enlaçar pela vivência, e pela convivência, e os estímulos fenomênicos de aqui e agora se fazem substituir pelas reminiscências de alhures e outrora.

Secundo, o aprendiz, nutre-se da vivência e da convivência. No corpo a corpo com o Real, constrói seu mundo extensional, seu mundo da experiência direta, feito de notícias sensíveis. Na convivência com Primo, o sócio, colhe dele as repercussões do real, em notícias fabulares e descritivas, e faz seu mundo verbal, de reais derivados, do fenomênico que lhe chega, dado pelo sócio, na forma de notícia. Compreendendo com os sentidos e conhecendo com a inteligência, Secundo interna em seu espírito, tanto repercussões dos procedimentos do Objeto, quanto repercussões associáveis a vozes que veiculam a imagem do Universo. Há, assim, duas vias pelas quais Secundo discente interna em si o mundo: a via individual do contato com a coisa e a via social da notícia da coisa. Dois sistemas de estímulos, portanto, estão na base da vivência de Secundo discente: um, primário, decorrente da equação ic - indivíduo-coisa, e outro, secundário, da equação ss - sócio-sócio. A capitalização - essa metáfora é insistente na obra do Autor - das repercussões do Real, sejam reais de primeira mão, sejam reais derivados, enriquece a hominidade [6]. As repercussões do Real no espírito são a moeda. O procedimento da fala, por ser capitalizador, por acumular recursos, e aumentá-los, sobretudo em aculturações inter-grupais, com a troca de experiências diversificadas, faz-se o meio mais eficaz de intercâmbio de vivências.

Nasce assim o sujeito, o ser que aprende. É a promessa do domínio do espírito, da consciência, do pensamento - a res cogitans cartesiana. No recinto impenetrável de seu Eu, o Sujeito dispõe de poder criador. Ao invés de se adaptar ao mundo, adapta para si a casa do mundo. Ao invés de sofrê-lo, com suas reações reflexas, passa a elaborar o fenomênico, em formulações reflexivas. Na sedimentação de muitos milênios, a fala humaniza o homínida. O processo de hominização se instaura. Define-se a hominidade.

A fábula comentada pode ser considerada o cerne e a raiz dialética da obra de J. Lourenço. Refaz a ruptura cartesiana entre o mundo da natureza e o mundo da mente e da consciência. Prolonga disputas com os empiristas, o que permite a exploração de listas dicotômicas, agora enormemente enriquecidas em seu texto: o corpo e a alma, o material e o espiritual, a natureza e a história, o materialismo e o espiritualismo, o espaço e o tempo, a natureza e a cultura, o Objeto e o Sujeito, a vida e a vivência, o zoológico e o antrópico, o fato e o feito, o saber infuso e o saber aprendido, o saber espacial e o saber temporal; o mundo fenomênico e o mundo numênico; o ritmo natural, evolutivo e o ritmo pós-natural, progressivo; o código do saber infuso e o receituário do saber aprendido; a resposta reflexa própria da economia zoológica e a resposta reflexiva, própria do saber antrópico; o agora espacial da vida, e o outrora reminiscente da vivência; a presença espacial da coisa na circunstância e a presença temporal da idéia da coisa na lembrança, a gregarice e a sociedade, o encontro zoológico, gregário e o encontro homínico, social; a posse casual e a posse causal, o sincrônico e o diacrônico. Não se espera uma síntese fácil.

Vê-se que as reflexões lingüísticas do Prof. J. Lourenço querem ir às origens. Para ele, a lingüística não pode ser sincronicamente imobilizada, à imagem da espacialidade do Objeto. Tem de ser diacrônica, ao movimento da temporalidade do Sujeito. Por isso ele mergulha com energia, na sincronia da vida. Quer definir o saber espacial de que se ocupam as ciências do Objeto. Afinal, o homem biológico, suporte físico do Eu, encontra-se no mundo do Objeto, e procede como objeto no vital dos fazeres. J. Lourenço também imerge intensamente na etimologia das vivências. Ele quer compreender o saber temporal, as ciências do Sujeito. Afinal, o homem antrópico, gerando em si o tempo, procede como Sujeito no vivencial dos pensares.

Para ele não é difícil concluir que se o pensar é um proceder mental do Sujeito e a fala o veículo do pensar, então a ciência da linguagem, sem sombra de dúvida, deve, como um capítulo na história de procederes do homem antrópico, incluir-se nas ciências do Sujeito, ao lado da História, da Sociologia, da Psicologia.

E outras conclusões decorrem de silogismos análogos. Assim, levantando-se contra a proposta saussuriana da língua como um sistema, ele se vale da seguinte peça argumentativa: a ciência (do Objeto) desenha o sistema espacial de uma coisa física e identifica a relação sistemática dos procederes que tenha essa coisa. Tem-se em mente que o sistema está na coisa, e não no proceder. Assim, a fala não é uma coisa, mas um proceder de quem fala. Da mesma forma, a língua também não é uma coisa. Ela aparece na fala que a atualiza e que a potencializa para falas futuras. Isto é: a fala é um proceder atual e a língua é um proceder potenciado. Logo, deve-se buscar o sistema na coisa 'homem', o procededor. Por outro lado, só o homem zoológico (o corpo), por ser coisa física, participa da sistemação natural, pesquisada pela ciência. A fala, seja ela atual ou potenciada, tem a ver com o poder criador do homem antrópico, poder do espírito e não do corpo. O vozeio, sim, diz J. Lourenço, é natural. Mas a qualidade da fala não está no sensível do vozeio. Está na qualidade semântica e nas reminiscências que acorda, trazendo, para o agora presente, o outrora temporal da idéia. Deverá ter tratamento diferente a coisa espacialmente presente na circunstância, e a idéia da coisa temporalmente presente na lembrança.

Só o Objeto, no espaço, será matéria da ciência natural. Pode-se verificar-lhe sistema. O Sujeito, no tempo, é matéria de ciência pós-natural. A hominidade, a fala e a língua progridem no tempo. A plasticidade da invenção não se ajusta, na oscilante estrutura das falas, à idéia de sistema. As estilizações diacronicamente imprevisíveis também não se ajustam, nas idiossincrasias vivenciais de cada um, à idéia de sistema. A fala, exercício do proceder fabular, é ato de criação emergente e não um sistema. A língua, fruto de falas exercidas, não é tampouco um sistema. Também não o é a hominidade, a economia temporal que configura mentados, reformulando vida em vivência, com o exercício pós-natural do falar.

Na rede dessa argumentação há a transparência de outros debates. Assim, a fala (não a língua) - sugere o Mestre - deve ser havida por espelho da alma, e a fala (não a língua) é social. Há mais coisas no mundo da fala, dirá ele, do que viu a filosofia da lingüística. Ele vê, na lingüística de então, o encantamento com o 'cientismo' redutor, e critica nela o pendor "fisicista", quantiador, próprio das ciências do Objeto. O Estruturalismo e suas teses centrais - sincronia, sistema, oposição, vocabulismo - são o alvo principal de seu combate. Ferdinand de Saussure, discípulo de Durkheim, comete o engano de ver a língua como coisa, como um real autônomo, como "um produto do espírito coletivo". J. Lourenço corrige-o de forma simples: a língua é "um produto coletivo do espírito". Centrar a atenção na língua é deixar-se seduzir pelo virtual. É miragem contemplá-la como produto natural sob leis naturais - dirá ele. A língua não é uma realidade, mas uma abstração, uma possibilidade [7]. "É um veículo esperando serviço" [8]. É um momento estático da expressão, nascido do momento dinâmico da fala. É produto da fala. É uma sedimentação intra-individual, feita de elaboração vivencial, capitalização progressiva no crescente exercício de entender, uma habilitação individual, formada em cada um pela atividade social da fala. É um proceder potenciado. Não é, portanto, do mundo exterior. Realidade é a fala, cousa externada - momento sensível em que os elementos da língua se manifestam. "A fala é um veículo veiculando um veiculado" [9]. Só a fala então é um serviço, uma construção, uma síntese, uma expressão, uma atividade social, inter-individual. A língua veio da fala. Nesta temos de ver aquela.

Será também objeto de crítica, da mesma forma, a análise lingüística que se atém à imanência espacial dos vozeios e despreza a transcendência temporal da intenção, fugindo de determinar o todo semântico motivador e o todo fabular motivado, interagentes ambos. Antes de ser forma, a fala é função. É o que se pode ler nas entrelinhas.

No intervalo dessas lucubrações, é respeitável destacar a firmeza, finura e precisão de minúcias com que J. Lourenço trata a fala, distinguindo falas. Na teorização, que pretende dar conta da veiculagem fabular e do crescimento da hominidade, acentua, no ato de fala, a importância dos contextos. Eles são a medida da inteligência da fala. Refazem o modelo que vai do concreto ao abstrato, do espacial ao temporal, da vida à vivência.

Assim, ao lado do contexto pessoal, de Primo e de Secundo, o ato de fala conhece três outros contextos, dos quais dois são visuais e um, auditivo. O contexto teatral é feito da presença dos interlocutores e das coisas circundantes. O contexto mímico constitui-se dos moveres corporais, ações teatrais. O contexto fabular consta de vozeios, de frases. O contexto pessoal, esse, é o patrimônio interindividual, riqueza latente feita da experiência fabular disponível, e fabularmente exprimível. Filtrado de vivências, nutre-se de formação e de informação social.

A fala, na diacronia da hominidade (e no florescer de cada indivíduo) vai do falar-fazendo ao falar-falando. Primeiro ela se vale principalmente dos olhos, nas adjacências vitais do aqui e agora. Depois, dos ouvidos, na autonomia vivencial do alhures e outrora. Trata-se assim da fala pragmática - produzindo fazeres, e da fala teórica - lembrando vivências. Naquela, há o compromisso com o espacial, contando, para a relevante fala do corpo, com a presença, cheia de coisas, do agora vital. Na fala teórica, há a intenção temporal, realizando, em vozeios estilizados, a ausência, cheia de idéias reminiscentes, do outrora vivencial.

A fala pragmática não pode dispensar a presença teatral das coisas e das pessoas, nem pode prescindir do mímico (gestos, teor fisionômico, atitudes). Mas pode ocorrer sem vozeios. E esses últimos, quando presentes, podem não ultrapassar, muitas vezes, o nível, de parcos recursos, da fala infra-fabular, esta constando de decisões volitivas ou de vozes expansivas. Assim, mais visual que auditiva, a fala pragmática, em ato, tem de contar com a eficácia do gesto dêitico que aponta e do gesto plástico que imita. A fala pragmática fala-fazendo.

Aos poucos [isso se dá, na via etimológica da hominidade, em lenta diacronia, com o passar de muitos milênios], constrói sua hegemonia a fala teórica, também chamada per-fabular, reconstituindo o vivido e o vivenciado, motivada em si mesma, madura. Valendo-se de vozeios, dosados de melodia e ritmo, veicula o conteúdo fabular, na autonomia vivencial, explorando imagens auditivas, de recursos agora anafóricos, entre boca e ouvido. Noticia eventos e teoriza a vida. É porta aberta para, superando a simples posse, trazer a consciência da língua. A fala teórica fala-falando.

Seja pragmática ou teórica, há o caminho da fala coloquial, quando Primo se manifesta a Secundo, seja no teatro dos fazeres (fala pragmática), seja no palco das lembranças, tecidas de imagens ouvidas (fala teórica). A outra via, importantíssima no processo de hominização da humanidade, é a da fala soliloquial, de Primo com seus (bor)botões. É a fala da elaboração, " a vera fala hominizante ", diz J. Lourenço. É o exercício do pensar, intra-individual, na atividade da cogitação vivencial. É falando que se pensa, dirá ele, seja quando, em elaboração soliloquial, no ócio do pensar, a imaginação pode ver-se à solta, ou sob vigilância da razão, seja quando, na manifestação coloquial de Primo, a idéia é suscitada em Secundo. As mesmas duas vias são também - é bom que não se esqueça - tanto recurso docente, que reparte hominidade, quanto meio discente, em que Secundo intra-individualiza-se o patrimônio da língua.

Há outras distinções - o reconhecimento de outras falas - na teoria de J. Lourenço. Assim, há a fala interior (na cogitação intra-individual) e a fala exterior (na sintonização interindividual). Há a fala literária (de quem se dirige a muitos, além da razão do instante) e a fala comum (a da instância). Há a fala humana (natural, que exprime o homem) e a fala transumana (científica, que ordena a matéria). Mas a grande conquista da humanidade, dirá ele, se dá com a visualização da imagem auditiva, reduzindo o audível no visível, isto é: com a simbolização visualizante que apresenta a fala oral em fala escrita (a que chama de fala auditiva visualizada). A possibilidade do comércio mental se multiplica. O patrimônio comum da língua capitaliza-se tanto na fala oral, entre presentes, quanto na fala escrita, entre ausentes. No silêncio dos traços gráficos - acentua - Homero, Platão, Vergílio conversam com os pósteros, mais de mil anos depois, na voz do leitor.

*****

Já é tempo de encontrar a relevância de todas essas lições. Tomando referência na hominidade, J. Lourenço reconhece-lhe, com duração de carreada de milênios, um momento zoológico - um mundo de Objeto sem Sujeito. Momento espacial, evolutivo, sem tempo. Esse momento é superado por um momento antrópico, inespacial, progressivo, com tempo. Repartido em duas fases: uma, a fase infra-lógica, do homo loquens, de Sujeito emparelhando-se com o Objeto [veja o totemismo], lenta em seu ritmo temporal e progressivo, e outra, a fase lógica, do homo sapiens, de Sujeito opondo-se ao Objeto, realizando a superação da cota infra-lógica, inaugurando a eficácia racional, o homem aristotélico. [Vale lembrar que a fala escrita preparou o passo desse milagre helênico].

A filogênese é sempre o modelo da ontogênese. Guardadas as proporções, a história da diacronia da hominidade parece ser a história do florescer do indivíduo. A fala pragmática, produzindo fazeres, com o predomínio dos contextos visuais, nas adjacências do agora e nas névoas do outrora, e a fala teórica, lembrando vivências, reduzindo à função adjetiva tanto o contexto teatral, quanto a antiga importância da fala gesticular, elas parecem corresponder às fases infra-lógica e lógica do homem antrópico. E assim, outras dicotomias poderiam ser destacadas: a fala oral (contanto com a presença dos interlocutores) e a fala escrita (a prolação é do leitor); a posse da língua e a consciência da língua, a pobreza mental e a riqueza espiritual.

A análise talvez, no entanto, tenha de contar que os pares listados não "se opõem", mas "se compõem". É a progressão, no contínuo, da vida à vivência, do fazer ao pensar, da "posse" (da língua) à "consciência" (da língua). A intenção veicular talvez explique a fala e a substância de sua forma. A retomada dessas idéias - possíveis (quem sabe?) na releitura de J. Lourenço - talvez possa significar - vale a pena conferir - revisão na concepção da filosofia e da didática do ensino de línguas, isto é: uma compreensão nova do ensino da língua materna.

E, certamente, há razão para uma reflexão sobre as teorias lingüísticas vigentes.

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No início, assegurei que esta introdução teria o caráter de fala intra-individual, e que pretenderia ser ensaio de fala de Secundo fazendo-se Primo. Ora, embora inesgotáveis as reflexões que acorda a obra de J. Lourenço, a impressão me vem de que não achei o tema, de que não alcancei o relevante. O Autor me ensina, no entanto, em um de seus textos [10], que "o tema à altura pode achar-se; talvez não se acha a força do engenho". Lembrou-me o conselho de Horácio, na epístola Ad Pisones: "Vós que escreveis tomai assunto igual a vossas forças". Dou-me conta agora de quanto fui presunçoso.

 

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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