Por que se volta à infância? Com que
intuito o homem adulto mergulha no passado para recuperar o menino
que foi, recuperando com ele sentimentos e emoções
de tempo ido e vivido? Segundo o preceito de Leibniz, é
preciso despertar em nós a criança adormecida. Mas
será que, despertando-a, logramos apaziguar conflitos,
como aconselhava Freud?
Espontânea, e alheia aos reclamos da psicanálise,
a recherche du temps perdu surge muita vez como pretexto,
sugerido pela razão, interessada em justificar ilusões
e verificar teorias da idade madura. Não se afaste tampouco
a hipótese de encontrar-se nessa busca um meio eficaz de
fuga ao presente, geralmente mesquinho e incômodo. Seu destino?
A Idade de Ouro, a Utopia, onde o homem - "filho do menino"
-, se abriga contra as agressões do mundo. Foi o que aconteceu
a José Lourenço de Oliveira. Ao despertar Zezinho
Vieira - o Xavier, do Caraça, abriu largamente,
para si mesmo, as portas do universo incorruptível da infância.
A nós, seus leitores, esse livro de memórias propicia
a viagem poética a um estado de alma. Isso mesmo. Porque
Xavier foi, "tão-somente, no sentir do autor,
uma flama ardendo, como numa vela. Nasceu, viveu, foi bacharel
e sonhou".
O tempo corre através das páginas
de Xavier e o Caraça. Na sua cola, os focos de
luz se deslocam trazendo, com as cenas retratadas, o reflexo da
personalidade do memorialista que se contempla, se analisa e se
interroga. Espelho de múltiplas verdades, Xavier
não é apenas Zezinho nem é, obviamente, José
Lourenço de Oliveira, ele-mesmo. É a soma de todos
os possíveis da "vida inteira que poderia ter sido
e que não foi". Daí, a aura de melancolia que
banha o livro.
Determinado a dissipar qualquer dúvida acerca
do caráter autobiográfico do enredo, o autor antecipa-nos
o epílogo, anunciando a morte de Xavier após
ter sido atingido por uma bala nazista durante a última
grande guerra. E avisa que certamente "não lhe pesava
muito deixar um mundo em que pouco se entendeu".
Desse desentendimento do mundo, encarecido pela
consciência da "vida vazia, vida cuja lição
gostaria de ter aprendido melhor", resulta a opção
pelo museu imaginário do Caraça. Assim como fixou
na retina, numa visada impressionante a grandiosa massa branca
do Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, assim
também guardou, para sempre, num canto defeso da memória,
a lembrança dos seis anos ali passados. O tempo, a idade,
a reflexão adensaram-na, acentuaram-lhe a importância,
acabando por conferir-lhe existência própria, autônoma.
Pelas mãos de José Lourenço
de Oliveira descobrimos, com Xavier, os segredos do Caraça.
É com ele que transpomos a porta comunal e deparamos com
o corredor infinito que lhe entrou “pelos olhos e pelo espanto”.
“Toda a terra da sua infância ali se diminuiu e tornou-se
insignificante, em frente de tal magnitude!”
Avulta o contraste entre o mundo miúdo e
vulgar de Jacaré, sua vila natal, com o centenário
novo, rico, imponente, da morada de pedra, "colocada no fundo
de uma espessa bacia de montanhas". Mas não é
Jacaré, apenas, que some na distância para recolher-se
à pequenez de arraial do sertão mineiro. Humilde,
discreto, "com seus ingênuos pés muito acanhados
nos sapatões de elástico", Zezinho se afigura
mais pequeno ainda no "seu corpo roceiro de doze anos, metido
num terno de brim listado, que lhe fizera siá Maria do
Pacífico". Assim o reencontra José Lourenço
de Oliveira. Assim o encontramos nós, "desajeitado
e confuso, a transformar-se em aluno da escola apostólica
do Caraça”.
A memória, no entanto, adverte: "Quem
o visse não adivinharia que alma bravia trazia ele dentro
de si". De fato. A alma bravia, embora escondida na batina
ruça de coroinha pobre, ofereceu-lhe armas para enfrentar
César, Cícero, Tito Lfvio, Salústio, Tácito,
Ovídio, Vergílio, Horácio, Camões, Garrett,
Bernardes, Herculano, Chateaubriand, Molière, Racine, Voltaire,
Alencar, Bilac, Joaquim Nabuco... Vitorioso de todas as batalhas
da inteligência, Zezinho foi crismado como Xavier -
homenagem da classe ao melhor leitor dos Sermões,
do padre Antônio Vieira.
A rotina caracense molda-lhe o espírito.
Com o número 54, Zezinho se integra na chamada e nas regras
da comunidade: das cinco da manhã às nove da noite. "O
que havia de fecundamente proveitoso no regime, declara o autor,
era a distribuição estudo e aula, tão diversa
da que se faz nos estabelecimentos de ensino comuns, onde se prende
o aluno durante quatro ou cinco aulas seguidas (...) para depois
o mandar embora, graças a Deus, se externo ou encher-lhe
a outra parte do dia, se interno". E explica: "No Caraça,
a cada hora de aula precedia outra de estudo, con sagrado ao preparo
da lição. Além disto, havia o grande estudo
da noite, instituição fundamental, que cobria todos
as dias da semana, inclusive os domingos, dias santos, feriados
e férias”.
Nem só de livros e de lições
se compunha o ramerrão dos cento e oito alunos do colégio.
"A vida não era só rezar e estudar, conta José
Lourenço de Oliveira. Era também brincar e brincar
muito. Era também passear e passear muito”. E com que prazer
desfia, diante de nós, os nomes dos jogos de recreio: o
jogo das cores, da barriga-manteiga, do triângulo, da baleia,
o xadrez, a dama, o dominó, o bilboquê... Havia também
as jornadas alpestres, a natação no tanquinho e
no rio, a divertida bodega... E as férias então?
Passadas no internato, sim senhor! Mas que férias! "Passeios
e mais passeios, recreios e mais recreios, jogos de salão
e jogos de pátio, leituras e estudos livres".
A pouco e pouco, o roceirinho afeiçoa-se
a tudo isso e, muito principalmente, aos livros, seus melhores
amigos. Foram eles que lhe revelaram o paraíso, ensinando-lhe
"a razão de ser da vida, com derivativos sublimadores
de incompreensões e angústias”.
Embora o próprio autor fale nessa verdadeira
revelação do paraíso (cap. 7), a memória,
atenta, corrige-lhe o entusiasmo lembrando que "a vida de Xavier não era um paraíso". A saudade, sim, e "a
inveja dela, mais tarde", foi que o fizeram classificá-la
"de paradisíaca". E por quê? "A formação
cristã, que buscava, jamais lhe havia programado vida de
paraíso, na Terra". No entanto, observa: "Mas ele
experimentou a sensação do paraíso, anos
a fio, nos inocentes prazeres que encontrava no esforço
de conformidade que o ideal lhe pedia”.
"Xavier era de cera", diz José
Lourenço de Oliveira. "Receptivo e macio, todo capaz
e maleável para aquela vida artificial. Artificial, mas
não tanto quanto a vida artificial também, e manhosa,
do século ou do mundo". Não nos surpreenda,
portanto, que após aturado exame de consciência,
favorecido pela mise en abîme do relato confessional,
saibamos que Xavier foi para o Caraça puro e de
lá saiu inocente. Porque o Caraça de Xavier
nada tem a ver com a escola de rigor e severidade
das histórias de amedrontar que enchiam as noites e os
dias dos meninos levados. "Segundo Xavier, o Caraça
alcançava um objetivo quase perfeito ao obter, para a vida
que exigia, uma adesão progressiva da sensibilidade e da
vontade do aluno. Criava um conjunto feliz que, parece, não
foi possível em nenhum outro estabelecimento do Brasil,
entrando nisto a tradição do lugar, a sugestão
dele, a segregação natural, a constância feliz,
paciente, do método formativo, ao superar desajustes e
inarmonias, ao excluir escrupulosamente os inadaptados".
(...) A modelagem era paciente e macia, como de oleiro que tem
tempo e só trabalha em argila apropriada".
O que mais admira é que a argila de que
era formado o Zezinho, ainda que trabalhada dia após dia
nesses seis anos de internato, tenha preservado, intacta, sua
integridade íntima. Aí, também, um dos indícios
- e veemente, do seu temperamento bravio: sua ascese se fez sem
fanatismo religioso e sem delírios místicos. A felicidade
que logrou alcançar era "felicidade simples que se
resumia em quatro comunhões: a comunhão de Deus,
a comunhão de Vergílio, a comunhão de Mozart
e a comunhão da natureza".
E foi sem dúvida a sua bem-nascida segurança,
firmada nessa unidade interior, que lhe infundiu energia para
sobreviver à rude experiência do confronto com o
mundo cá de fora ao ver-se banido do paraíso. E
banido para sempre porque lhe foi vedada a vida monástica
para a qual se preparara. "Tudo lhe arrancaram de frente, com brutalidade,
num golpe que lhe produziu na alma a violenta comoção
de um traumatismo".
Xavier foi condenado,"sem discussão
nem defesa". Com vinte anos de idade e oito de iniciação
ao sacerdócio, ei-lo obrigado a renunciar à escolha
inicial, tangido pela ordem cruel e imperiosa de "ir para
o mundo!”
Tristemente frustrado, abatido e infeliz, retira-se
do Seminário de São Vicente de Paulo. O doloroso
quadro de sua despedida dos lazaristas acompanha-nos largo tempo
após o término do livro. Perdida a radiosa serenidade
do Caraça, que lhe acontecerá?
"Mas estava escrito que devia enfrentar o
proceloso mundo que, no dia seguinte, voltaria ao mar que deixara
na sua infância". De regresso a Belo Horizonte, "envolvido
num terrível fato de brim pintadinho, desajeitado, vencido,
automatizado, sonâmbulo, estúpido”, toma quarto no
Hotel Avenida. Um chapéu de palhinha cobre-lhe
a tonsura claustral. Na recepção, o gerente considera-o
com estranheza. "Que pensaria daquele adolescente ridículo,
de olhar desambientado, de modos medrosos, de gestos inacabados,
tão feiamente trajado?", pergunta o autor com uma
ponta de compaixão.
Humilhado e ofendido, Xavier recolhe-se
ao silêncio das letras. Passa os três dias que o separam
de Diamantina lendo, fechado no quarto, onde podia ficar sem chapéu.
“Para as refeições, descia taticamente e escolhia
um lugar estratégico de onde escondesse a coroinha no alto
da cabeça”.
A alma em pedaços, "esfacelado o precioso
tesouro de seu ideal, cujas peças desagreçadas lhe
produziam tédio da vida", dele nos despedimos
no trem. A noite e o futuro o engolem, vomitando-o no anonimato
de onde o enviaria José Lourenço de Oliveira à
frente de combate, na Itália, concluindo-lhe heroicamente
o destino sombrio.
Àqueles que não conheceram de perto
o autor de Xavier e o Caraça, professor ilustre,
fundador da Faculdade de Filosofia da UMG, latinista de nomeada,
filólogo, linguista e humanista profundo, amante da boa
música, gastrônomo refinado, maltratará,
com certeza, a pergunta infinita "quo feror, quo feror, quo
feror?", a rolar sobre os trilhos do caminho de ferro que
conduzem sua personagem ao deus-dará. Os que sabemos que a "incomportável
fadiga sem sono" dessa viagem truncada se resolveria mais tarde
numa bela carreira no magistério superior e numa posição
invejável dentro dos estudos clássicos, lamentamos
que José Lourenço de Oliveira não tenha ido
além na redação de suas memórias a
fim de patentear-nos a metamorfose do patinho feio no mestre de
linguagem florida e pitoresca, de gestos largos e voz bem empostada,
mansamente alegre, generoso e bom, pai de familia feliz, marido
de Alaíde Lisboa, esposa afetuosa que hoje se empenha na
publicação de seus escritos e a quem devemos este
documento precioso.
A leitura de Xavier e o Caraça permite-nos,
enfim, realizar a difícil travessia do semblable ao même, passando da representação ao homem.
O que desvela a imagem, agora familiar do jovem caracence, nos
ajuda a melhor entender o autor cuja identidade arranca do desdobramento
inicial entre Zezinho, o roceiro de Jacaré, e Xavier,
adolescente afortunado. Ao leitor que não teve a ventura
de tê-lo como professor nem de privar de sua amizade, restam,
no entanto, o que não é pouco, o prazer do texto
e a alegria de partilhar das puras emoções da infância
desse meninozinho singular e de acompanhá-lo nas suas reinações
no mais famoso e tradicional educandário de Minas.
[Estado de Minas, terça-feira,
22 de setembro de 1987] |
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