Xavier e o Caraça (Belo
Horizonte, Editora O Lutador, 1987), de José Lourenço
de Oliveira, meu mestre de Latim na Universidade Federal de Minas
Gerais, é dos livros mais gostosos que li em toda a minha
vida. O adjetivo gostoso parece soar estranho em crítica
literária, mas não temo empregá-lo. São
setenta páginas de prazerosa leitura, onde realidade e
ficção caminham paralelas na reconstrução
do tempo perdido da infância. Na reelaboração
memorialística do intensamente vivido, numa estilização
de linguagem que prima pela síntese em todos os seus aspectos:
vinte e cinco capítulos em três partes, dialogação
restrita ao absolutamente essencial; predominância da frase
paragrafada; agilidade nas mudanças cênicas; casamento
perfeito entre o popular e o erudito, entre o coloquial e o literário,
entre a informação e a representação.
Está aí, em resumo, o que chamo de gostoso - sem
medo nem acanhamento - nessa época pós-moderna em
que a sofisticação do discurso sabre a literatura
parou de falar em beleza, leveza, prazer e gostosura, e os substituiu
por construtividade, montagem, tecnicismo, literariedade e intertextualidades.
Já na primeira página do livro, sob
o título
erudito de "Antelóquio", Lourenço
coloca à reflexão um problema candente para a teona
literária contemporânea: as relações
entre a realidade e ficção ou, por outra, entre
biografia/autobiografia e romance. Diz ele:
"O antelóquio à biografia de Xavier devia ser um prefácio, porque, quando o têm, o que as biografias têm é prefácio. Um romance, entretanto, não costuma ter prefácio. E a biografia de Xavier é a história de um herói tão
desconhecido que, sendo biografia, parece romance."
Continuando, dirá que a biografia de Napoleão
e a de um anônimo se diferem na medida em que a primeira
é aceita como tal e a segunda como ficção,
apesar de haver muita imaginação no que é
tido como História e muita realidade no romance de um personagem
anônimo. Essa questão ficou muito bem dimensionada
na recente tese de Wander Melo Miranda - Contra a corrente;
a questão autobiográfica em Graciliano
Ramos e Silviano Santiago - onde se lê, à p.
51, que a fidelidade da reconstrução do mundo no
romance e na autobiografia está sujeita antes de tudo à
linguagem. Em qualquer dos casos o texto se coloca como diferença
e não como repetição
(grifamos). Assim o texto Xavier e o Caraça:
o autor cria, através da linguagem, a sua história,
a história do menino anônimo em sua preparação
para ser padre. No entanto, ele se recusa a repeti-la, isto é,
fechá-la nos limites do mundo real. No Antelóquio
já deixa marcada a diferença
ao ausentar-se do mundo autobiográfico, usando
o artifício do recebimento de manuscritos do herói
das mãos do próprio, aos quais vai acrescentar elementos,
por recordação ou dedução lógica.
Tais elementos vão confundir-se em romance e autobiografia,
uma vez que, por mais fotográfica que seja uma memória
e por mais lógicas que sejam as suas deducões, nenhum
texto pode livrar-se das fantasias e dos fanfasmas da vida psíquica
de seu emissor.
Resolvida a questão preliminar, passa o autor
a contar a vida de Xavier, e novas questões passam a ser
problematizadas, num jogo textual não mais entre as diferenças
da realidade para a ficção, que antecedem ao texto
propriamente dito, mas dentro do mesmo texto. No primeiro capítulo
da segunda parte, "Xavier em casa",
sabe-se que o nome do heróizinho é José
Vieira. Somente a dezessete capítulos adiante o leitor
toma conhecimento de que o apelido lhe fora dado por colegas de
internato, pelo fato de ter lido com gosto os sermões do
Padre Antônio Vieira dedicados a São Francisco Xavier.
Primeiro jogo: transformação da criança no
padre que pregava (e não o admitia) em xadrez de palavras,
nos termos da boa arte barroca, de cujo padre já possui
o sobrenome. Acoplamento a este do sobrenome do santo, "santificando-o"
de alguma maneira. Aceitação do menino às
regras do jogo, adotando "Xavier" como pseudônimo
literário. Assim, o menino pobre, que não teve infância,
vítima de uma brincadeira de bom gosto no seminário
menor: padre, santo e literato em jogo de sobrenome.
Essas três categorias de sério ludismo
percorrem toda a narrativa, servindo-lhe de motivo central. Lourenço
de Oliveira joga com a categoria padre nas
mais diversas visões sociais. A vontade do menino não
é problematizada. Sua vocação
se revela a partir de uma pergunta do padre amigo
da família ("- Você quer ir
para o Caraça?") e da resposta segura
("Quero"). No contexto
dessas falas, a carreira sacerdotal está mais ligada à
possibilidade de freqüentar uma excelente escola por quem
é pobre, do que propriamente à escolha da vida religiosa.
A mãe de Xavier vai dizer que "Um padre na família
é até muita honra para um pobre", e o Seu Timóteo
pondera: "Se ele queria ser padre, era melhor secular, porque
podia ganhar dinheiro e ajudar a família". A mãe
retruca a visão financeira, mas entende que servir a Deus
"é uma bela carreira". E é por aí
que o livro nos apresenta uma visão paradisíaca
do Colégio Caraça, ao qual o menino pobre - elemento
constantemente referenciado na narrativa - se adaptou com perfeição,
em seu desejo de sabedoria e santidade. Ao contrário das
desabonadoras estórias de internato, famosas na literatura
nossa com O Ateneu, de Pompéia,
o Caraça de Xavier é a alegria disciplinada, o regulamento
necessário, as férias pouco expansivas, o dever
bem cumprido. É a aceitação tranqüila
das regras do jogo, não porque falte espírito crítico
ao aluno Xavier, que conhece a pobreza da roça e o cabo
da enxada, mas porque lhe acenaram com a possibilidade de conhecer
um mundo novo, diferente, uma "bela carreira", à
qual respondeu "quero!", sem pestanejar. Daí,
no capítulo "Pedagogias'', ao dissertar sobre o internato,
o autor dizer:
"Xavier não
sentiu o artificialismo. Estava como peixe n'água.
E não encontrou, em toda a vida, outra quadra mais
feliz, mais tomada de plenitude".
Vida eclesiástica e santidade se completam.
A arte barroca da capela do colégio muito impressiona o
caracense. A capela, merecedora de capítulo especial, é
o espaço ritualístico por excelência no cotidiano
do menino. Os arabescos barrocos, as cerimônias litúrgicas,
o canto gregoriano e a música clássica criam o clima
ideal para os aspirantes à santidade, decorrência
natural da vida eclesiástica. Sobre esse clima, afirma
o narrador:
“Havia muito elemento sensório para que a vida de integração em Deus fosse um prazer místico.”
Acontece que a tão sonhada eterna comunhão
com Deus perdura quase que apenas o tempo da infância. Xavier
deseja ser muito mais do que um simples padre, um padre santo.
Queria pertencer a uma congregação, a dos lazaristas.
Aí veio a decepção, a desgraça. Após
quase dois anos de um noviciado em que fora submetido a duras
provas, recebe bilhete azul sob alegação de doença
É a mas triste peça que o jogo do destino lhe reserva.
E o signo peixe n'água, que anteriormente servira para
expressar sua completa adaptação ao Caraça,
aqui é substituído por um oponente que representa
o lance traidor de sua última cartada:
“Xavier esperava peixe e lhe deram serpente.
Se o leitor nunca teve medo, diante da vida, entenderá
menos o do noviço, desarvorado ante o imprevisto e
o inadmitido."
Xavier não pode ser o padre que queria nem
realizar o seu mítico encontro com Deus nessa condição.
Restou-lhe a condição de literato, no mais amplo
e acabado sentido, a qual ninguém poderia tirar-lhe. Aqui
o seu texto - autobiografia romanceada ou romance autobiográfico
- é o testemunho de sua condição de homem
humano. Ao Caraça, e mesmo aos meses de noviciado em Petrópolis,
ele deveu toda a sua formação humanística,
o seu desenvolvimento intelectual, o seu magistério de
latim e de lingüística. O menino sonhou ser sacerdote,
sim. A idéia surgiu depois de um teste de conhecimentos
em que estava envolvida a Primeira Guerra Mundial. E a declamação
do famoso poema O estudante alsaciano. Sacerdócio,
conhecimento e cultura irmanados. Da minha leitura de Xavier
e o Caraça não saberia dizer
se o desejo de ser padre fora um deslocamento do desejo de ser
"sábio", do que o autor-narrador nunca teve consciência.
Uma análise mais aprofundada do livro talvez tendesse para
essa conclusão. Como indício dela, veja-se o que
comprou junto com a passagem para o mundo em que iria viver, deixado
o seminário:
"No dia seguinte, sabendo, na estação,
as condições da passagem, calculou o rapaz que
lhe sobravam uns trinta mil réis. Subindo à
cidade, entrou numa livraria que viu. Comprou Os Lusíadas,
o Eurico, a Poeira da Estrada - de Afrânio
Peixoto - a gramática de João Ribeiro, as Espumas
Flutuantes, Os simples, A musa em férias,
tudo por vinte e poucos mil réis."
Literatura compensando a frustração ou revelando o desejo mascarado?
Parodiando Lourenço de Oliveira, que aqui,
que aqui parodiou Machado de Assis, que lá parodiou Shakespeare,
eu diria que há mais coisas no céu e na terra do
que sonha a nossa autobiografia.
[Suplemento Literário de Minas Gerais,
nº. 1092
- sábado, 16 de janeiro de 1988]
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