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Sobre José Lourenço e sua obra

Lembranças do meu pai

 
 

José Carlos Lisboa de Oliveira

 

“Foi esse o meu Caraça; simples felicidade inenarrável; na comunhão de Deus se resumia, unida com três outras comunhões: da natureza, de Vergílio e de Mozart. Um menino campônio tinha descoberto o paraíso; inexperto da vida e sem mais referências, foi fácil de conformar-se; livre na inteligência e na emoção pôde ali definir-se como peixe n'água; nada o proibiu de ser feliz.”

J. Lourenço de Oliveira em depoimento de 1974, por ocasião do bicentenário da compra, pelo peregrino Irmão Lourenço (1727-1819), da sesmaria do Caraça, onde construiu um eremitério e capela Nossa Senhora Mãe dos Homens. Em 1820, D. João VI entregou as obras (recebidas em testamento do Ir. Lourenço) à Congregação Vicentina dos Lazaristas, iniciando-se o colégio mais importante do Brasil.

Escrever é difícil. Mais difícil, escrever sobre meu pai. Se elogio, sou pretensioso; se falo mal, sou filho ingrato. Vou tentar ser pretensioso.

Primeira lembrança: a saúde e o vigor do papai. Só uma vez, antes do acidente vascular aos setenta e quatro anos, lembro-me de ter visto meu pai de cama quando o dentista arrancou-lhe um dente; depois de horas não conseguiu de todo e papai teve de se deitar e esperar que o organismo repelisse o resto dos pedaços do dente. Papai não adoecia e gostava de uma boa mesa e de um whisky, um vinho ou mesmo uma cachaça. Gostava também de fazer exercícios. Hoje é obrigatório, mas no passado não tínhamos a cultura de atividade física regular; ele deve ter adquirido com os padres franceses do Caraça, com os padres alemães durante sua estada no Colégio Arnaldo e depois indo trabalhar como professor de português na Academia de Policia Militar.

Mamãe analisava a rudeza e secura de meu pai pela sua trajetória: aos doze anos vai para o Caraça, separado da mãe e do padrasto, onde inclusive passava as férias pois seus pais, pobres, não tinham dinheiro para custear a viagem. Em 1924, saindo do seminário, trabalha no colégio Padre Machado, em São João Del Rey, de propriedade do professor Lara Rezende, notório educador, rígido com os inúmeros filhos e com a disciplina do seu colégio. Vindo para Belo Horizonte, em 1928, mora e trabalha com os padres alemães no Colégio Arnaldo. E uma das suas atividades como professor, a partir de 1934, é no Departamento de Instrução com os militares.

Com esse currículo papai não era uma pessoa convencional: seus exercícios físicos e caminhadas, sua maneira de vestir e de se relacionar eram singulares.

Para sustentar quatro filhos, e olha que sua esposa também trabalhava como professora e escritora, se desdobrava em dar aulas - dez ao dia, sessenta por semana. Para cumprir o horário em colégios distintos, comprou uma moto. Tenho amigos que hoje ainda se lembram do professor Lourenço chegando ao Marconi de moto para dar as aulas. Era revolucionário!

Segunda lembrança: a capacidade de ler e de escrever horas a fio, o tempo não tinha limite. Se pegava um livro para ler, lia de uma vez. Se sentava na máquina para escrever, podia ficar dez, doze horas seguidas.

Que resistência, que paciência e que saúde!

Papai não me incentivou a estudar línguas, deve ter percebido que eu não tinha vocação. E mesmo sem ter vocação para estudar, incentivou-me a estudar engenharia. Ele conversava pouco sobre seus planos, seus estudos, seus escritos, mesmo porque eu não tinha afinidades com latim, grego, lingüística, mas me lembro, pelos meados da década de cinqüenta, papai um dia me falou: “vou reler Ilíada e Odisséia em grego”. Pegou os livros escritos em alfabeto grego e, dicionário do lado, realizou a empreitada. Sabe-se que ele foi dos primeiros alunos no Caraça e que na faculdade de Direito fez todo o curso de graça por ser sempre o primeiro aluno. Mas depois se tornou autodidata, havia poucos colegas, ou pessoas, que pudessem compartilhar seus aprendizados.

Gostava de escrever em papel que tinha comprimento de duas, três folhas comuns (arranjava em gráficas de jornais) “o pior de escrever à máquina é trocar a folha”. E escrevia, escrevia e não publicava, o que hoje dá um trabalho danado aos professores Johnny e Samuel para editar esses textos.

Terceira lembrança: a presença de estrangeiros em nossa casa, mérito também do tio José Carlos Lisboa que, lecionando no Rio e em Belo Horizonte, ajudava a trazê-los a BH. Meus pais falavam francês corrente; tio Zecarlos, espanhol corrente; papai ainda sabia latim e grego, o que o auxiliava em outras línguas. Convivemos com intelectuais da Europa. Dentre todos a figura mais importante foi Dona Helena Antipoff, que em 1929 se radicou em Minas e foi recomendada pelo prof. Lucio dos Santos para ter aulas de português com papai. Surgiu uma amizade que entrelaçou as duas famílias: Dona Helena, seu filho Daniel, nora e netos, com papai, mamãe e filhos. Minha cunhada Tereza enxerga psicanálise na obra do papai, que acredito seja influência da Dona Helena. Em 1930, o professor Edouard Claparède, famoso psicólogo e educador, vem visitar Dona Helena, sua ex-assistente na Europa, para ajudá-la no seu trabalho na Escola de Aperfeiçoamento. Eis que, em outubro, estoura a revolução de 1930 e Claparède, assustado com os tiros, muda-se do Grande Hotel, onde se hospedava, para a pensão de Dona Nicolina, instalada em imponente casa na esquina das ruas Pernambuco com Cláudio Manuel, onde morava Dona Helena. Daniel, no livro sobre sua mãe Dona Helena, conclui que Claparède, “sitiado naquela cidade, somente recebe a visita de uns poucos brasileiros que falam francês, entre eles o professor José Lourenço de Oliveira, suficientemente corajoso para transpor as ruas desertas do bairro dos Funcionários.”

Quarta lembrança: papai gostava de música clássica e de rádio (depois dos anos cinqüenta de TV), gostava de cinema e gostava de jogo. Jogávamos cartas (bridge, pôquer, buraco), xadrez, damas, ping-pong. Mas gostava também de jogar cartas em clube valendo dinheiro, o que preocupava minha mãe e me causou trauma, pois não consigo jogar, me dá um tremendo sentimento de culpa. Cinema eu talvez goste mais que meu pai. De bebida alcoólica, conforme escrevi, ele gostava, eu também aprecio muito, mais do que devia. Mas de jogo tenho receio, fui duas vezes ao paraíso que é Las Vegas, pretendo voltar, mas mal sento em mesa de jogo. Lembro-me de Dostoievski “O jogador”, e do cassino em Monte Carlo onde havia recanto para os perdedores se suicidarem.

Papai gostava de um cigarro de palha, comprava palha e fumo de rolo ali na charutaria Flor de Minas, na rua da Bahia quase esquina com Afonso Pena; com canivete e paciência enrolava seu cigarrinho. Mais tarde passou a fumar charuto e houve época que fumou cachimbo.

Iniciei estas lembranças com um escrito de papai de 1974, portanto com setenta anos. Encerro com palavras do seu discurso de orador dos bacharéis de 1933, portanto com vinte nove anos:

“Os povos civilizados apelam para o estatismo, instalam dentro da própria organização o regime de força.

Foi uma hora ensangüentada que a ideologia comunista achou de se instalar na Rússia, transformando o país em templo do estado, novo deus abstrato e estranho, servido ferozmente por sacerdotes intransigentes e místicos, cujo colégio constitui o Partido Comunista.

Foi quando a anarquia desagregava o tecido social italiano com uma eficiência de ácido, que Roma abriu as portas a Mussolini, encarnação mais humana da nova divindade, mas de exigências totalitárias: tudo para o Estado, tudo pelo Estado, nada contra o Estado.

Na Alemanha, assistimos à experiência crua e rude com que ousado carpinteiro austríaco vinha tentando consolidar um estatismo insólito e agressivo, pela hábil canalização do desespero germânico de após guerra.”

Este legado contra o estatismo, o totalitarismo, o peleguismo, os regimes que cerceiam a liberdade e os valores individuais, herdei com firmeza de meu pai.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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