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Sobre José Lourenço e sua obra
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

DA VIDA À VIVÊNCIA - APRESENTAÇÃO

 
 

Johnny José Mafra
Samuel Moreira da Silva

 

Ex-aluno do Colégio do Caraça, Livre-docente em Direito Romano, Doutor em Letras, o Prof. José Lourenço de Oliveira, pela solidez de sua intelectualidade, pela seriedade de suas obras, pela erudição de seus escritos, é uma dessas cabeças pensantes admiráveis de que vale sempre se lembrar e que convém noticiar. É um vulto extraordinário, na sua discrição de bom mineiro. Autor que as novas gerações terão de certamente considerar um clássico. Talvez se possa simplesmente dizer, antes de mais nada, que ele, antes de tudo, foi alguém que estudou...

Foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a mesma que veio a ser incorporada à Universidade Federal de Minas Gerais, e que viu seus departamentos se tornarem, eles mesmos, outras tantas Faculdades. Catedrático de Língua Latina (1939-1969) e Professor de Lingüística (1963-1969), o Mestre nos legou obra, importante em seu conjunto, tanto cientifica quanto literária, rico patrimônio que merece memória e carece de inventário e resgate.

Tivemos acesso direto à parte desse patrimônio. A professora Alaíde Lisboa, esposa do Prof. Lourenço, também ela escritora e intelectual de renome, e a família, deram-nos essa honra.

Passaram por nossas mãos centenas de longos fólios, datilografados (certamente numa velha máquina Remington), mais de uma vez em frente e verso, corrigidos pelo Autor com notas manuscritas e, nas margens, enriquecidos com acréscimos em escrita cursiva diminuta nem sempre bem traçada. Boas horas passamos, enfrentando o desafio de ler e de interpretar os rabiscos, garatujas para nós, mas certamente mnemônicos para o Autor, que os fazia para si mesmo, e não para os olhos de outrem. Por esta razão, embora tenhamos manuseado centenas de fólios, apenas alguns puderam ser lidos integralmente.

É dessa leitura incompleta que nos valemos para uma classificação, feita grosso modo, de grande parte desses fólios. Alguns tipos de textos foram identificados, no amontoado, com essa primeira vista d'olhos: há a presença de notas de estudo de diferentes obras, de filósofos, poetas, cientistas, ensaístas, juristas, etc., há resumos de alguns ensaios, há comentários diversos, há respostas, há propostas alternativas, há textos novos, tudo isso na forma de discussões em que se alegam razões pró e contra, disputas, contradições, dúvidas. Até o humor, mais de uma vez, se faz presente nessas notas de J. Lourenço, nas quais se encontram registradas também contestações, quase sempre precedidas de três simples letras: ora “lço”, ora “Lço”, ora “LÇO”.

Com esse lance de vista detectamos também algumas classes de temas, e essas serviram de base para uma primeira catalogação do acervo inédito. Tivemos de fazê-la, seja para identificar os textos, facilitando-lhes a referência, seja para dar alguma ordem aos fólios. Distribuímos a maior parte [há alguns poucos que não foram ainda catalogados] desses fólios em oito pastas, denominadas Pasta A, Pasta B, ... Pasta H.

Na primeira, pasta A, ordenamos conjuntos de fólios que continham notas de estudos, resumos, comentários etc. dizendo respeito a textos de Direito, concernentes sobretudo ao Direito Romano. Foram numerados treze conjuntos com as subclassificações A1, A2, ... A13.

Na pasta B, nas subclasses B1, B2, ... B44, foram catalogados muitos outros conjuntos, cuidando de filósofos e de lingüistas, tratando da Filosofia da Linguagem.

A pasta C contém fólios (e textos) sobre a Estrutura da Frase Indeuropéia. Dezessete subclasses, C1, C2, ... C17 foram registradas.

A pasta D é feita de fólios que carregam versões (às vezes diferentes) de textos já publicados. Esta pasta, dividida em D1 a D18, recebe o rótulo de Originais de publicações já feitas.

A pasta E, com o título Latim/Grego, compõe-se de 12 conjuntos (D1 a D12) de fólios com notas e/ou textos dizendo respeito ao grego e sobretudo ao latim.

Com o título simples de Fichas de Leitura, a pasta F, com subclasses que vão dos números F1 a F25, dá ordem a conjuntos de fólios que contêm notas de estudos de obras de filósofos, lingüistas, gramáticos, psicólogos, etc.

Por fim, a pasta G, feita de G1, G2, ... G19, a que demos o nome de Discursos et alia, compila fólios e conjuntos de fólios que contêm textos envolvendo terceiros, sobretudo argüições de professores sujeitos a concursos, seja para obtenção de títulos, seja para docência, além de discursos e de outros textos inéditos.

Todos esses conjuntos de fólios resumem, enriquecidas de reflexões, lições colhidas da leitura, feita pelo Mestre, de muitos volumes, literários, filosóficos, científicos. Sua fala escrita, de idéias que se repetem, mas sempre sob vozeios diferentes, é (para usar-lhe a metáfora) patrimônio capitalizado de muitos anos de estudo e de ensimesmamento.

A coletânea Da vida à vivência, que temos o prazer de pôr aqui à disposição de todos, brotou desses fólios. São fragmentos colhidos, aqui e ali, na enormidade do conjunto. São textos voltados especialmente para a Filosofia da Linguagem, para a teoria da Lingüística Fabular, para a análise crítica do estruturalismo, para a defesa da lingüística diacrônica e para o estudo da estrutura da frase indeuropéia. Uma combinação de idéias, lúcida, crítica, instigadora, provocadora de reflexão. São (para valer-nos de riqueza lexical de sua obra) reminiscências temporalizadas que refletem muitos saberes, vivências diversas, sintonias serenas, “tradução temporal” de um homem rico de hominidade.

A seleção dos artigos que constam desta antologia fez-se inspirada em pequena passagem de um dos textos inéditos. Trata-se de peça, constante do acervo do Autor, com o título “ Carta ao Prof. Lara Resende, começada em junho de 1971” (classificada, em nossa catalogação, como B13). Encontra-se nesse documento a afirmação do Autor de que tinha com o Sr. Resende um “convívio que vai fazer cinqüenta anos em 74”. Outra passagem que nos chamou a atenção tinha o seguinte teor:

“Pensei que lhe escreveria em janeiro, depois que terminasse algumas notas de filosofia da linguagem, tema que me tem preso e enleado, faz mais de vinte anos. Com todo o gosto de ensinar que sempre tive, deixei a Universidade em 69, antes de que chegassem meus 70. Queria ter mais ócio para dois livros prometidos e não dados: Estrutura da Frase Indeuropéia (tratado de lingüística aplicada) e Etimologia do Poder Fabular, um ensaio de teoria da linguagem, diacronicamente escalonada até à hipótese da origem, a etimologia do poder fabular visto como poder de expressão de nossa hominidade. No segundo trabalho entalei, por ter mais olhos do que boca. Sabe Deus com que gosto vagueio na longa via da hominidade, rota diacrônica multifária, cheia daquelas sendas que desenha, sob um grato luar transcendental, a inteligência da filosofia”.

A importância da escolha destes e não de outros textos possíveis deixou-se motivar por esta confissão do Autor. Assim, para fazer parte desta antologia, foram tomados textos da pasta B, sobre Filosofia da Linguagem, e da pasta C, sobre a Estrutura da Frase Indeuropéia. Na verdade, os dois temas convivem na maioria dos textos selecionados.

Oito textos compõem a antologia, variados, de extensões diferentes, de organizações diversas. Tomamos alguns cuidados que lhes pudessem favorecer a leitura. Assim, no corpo mesmo dos textos, entre colchetes, fizemos a tradução imediata de eventuais citações, seja do latim, seja do francês. No final de cada texto, especialmente do terceiro, Etimologia do fabular e do homínico, valendo-nos inclusive da ajuda de enciclopédias, acrescentamos um conjunto de notas, de diferentes teores, que supusemos relevantes para o entendimento do texto e, sobretudo, certamente úteis para os leitores incipientes da fala escrita do Prof. Lourenço. Além disso, (pensando sempre em leitores iniciantes), dispensando-lhes consulta imediata de dicionários, explicitamos, num glossário, a significação de muitos itens léxicos.

Para abrir a antologia, tomamos Espaço e Tempo (classificado, em nossa catalogação, como B7), um (quase) poema que traça a história do homem, desde quando era “infantil e atônito”, “desarmado espiritualmente”, de “parco recurso fabular”, até o homem, desnudado de mitos que, filtrando vivências, faz-se Sujeito.

O segundo texto, (B3, em nosso catalogação), para o qual foi mantido o título Prol, é uma introdução - poética, por que não dizer? - aos recursos fabulares, patrimônio que define uma língua, e apresentação de problemas de sua descrição.

Etimologia do Fabular e do Homínico, que vem a seguir, [B1, em nossa indexação], é o maior dos textos desta coletânea. Trata-se de longa reflexão sobre a linguagem humana, sua origem e progresso, e sobre a elaboração da hominidade, em sua marcha lenta para o exercício do entender e do refletir. Escreve a história do falar, que vai do falar fazendo ao falar falando, no afeiçôo de vozeios, e critica a Lingüística que, segundo ele, deixou-se envolver pelo fisicismo das ciências do Objeto e, ao invés de buscar-lhe o entendimento, prendeu-se de encantos por esse fisicismo, cometendo assim enganos, ainda persistentes, tais como o de ver a língua como objeto autônomo.

O quarto texto, [C25, no catálogo do acervo], ao mesmo tempo em que retoma idéias desenvolvidas em textos anteriores, volta-se para problemas estruturais, para a contemplação de moldes frásticos, e pode ser visto no domínio da intersecção de dois temas cultivados pelo Autor, a filosofia da linguagem e a diacronia. Coloca-se também como intervalo - daí o título [intervalo] que lhe foi dado - entre dois textos voltados especificamente para a etimologia.

O texto seguinte, Etimologia do Poder Fabular, [catalogado no acervo como B2], ao mesmo tempo em que desenvolve idéias já discutidas, teoriza sobre os sistemas do proceder. Medita sobre a fala, sobre a sociedade e a socialidade, sobre a posse e a consciência da língua, e sobre o vital e o vivencial entremeando a vida antrópica.

Os dois textos seguintes, Método Lingüístico e Estrutura da Frase, catalogados no acervo sob C4 e C3, respectivamente, cuidam da análise da frase, de sua estrutura em sintagmas, isto é, da estrutura de morfias a serviço da estrutura de idéias. Os moldes frástico, prolatório e sintágmico e a mobilização de topomorfemas e tonomorfemas recebem atenção. Destaca-se o papel do verbo como centro da frase e uma classificação é feita dos diferentes sintagmas. Trata-se de dois capítulos que certamente seriam incluídos, de acordo com a citação acima, no volume desejado da estrutura da frase indeuropéia.

O oitavo texto, O modo e o tempo na expressão fabular é um exemplo de análise que percorre, como síntese, todos os textos precedentes. Trata-se de um ensaio que contempla duas das preocupações básicas do Autor: a estrutura da frase indeuropéia e a etimologia do poder fabular.

Feita de inéditos, a edição buscou, em sua organização, sob luzes da ciência ecdótica, estabelecer um texto crítico, um texto fiel, perfeito, mediante colação com o digitado e com o manuscrito, correção dos erros tipográficos, modernização da maneira de compor e, tanto quanto possível, dando atenção a particularidades ortográficas, acrescentando variantes de passagens, notas e comentários, que pudessem constituir aparato crítico. Trata-se de trabalho metódico, e não mecânico. Trata-se de interpretação e não de reprodução. Exigiu senso e responsabilidade. Obedeceu a normas gerais e genéricas, mas também esteve atenta a particularidades, uma vez que toda obra, no processo de edição, em face dos problemas específicos que apresenta, requer procedimentos peculiares. E cada problema tem sua solução.

A fidelidade não é sujeição passiva. Assim, em face do fato lingüístico, não foi sempre respeitado o fato puramente gráfico. Procurou-se um texto livre de erros, de descuidos, de eventuais ‘cochilos', seja do Autor, seja dos organizadores. Atendendo também a finalidades didáticas, atualizaram-se a ortografia e a acentuação, de acordo com o sistema vigente. Uniformizaram-se a capitalização e a abreviação. Arrumou-se a pontuação, ajustando-a ao uso que está em vigor. A aparência gráfica e tipográfica também buscou uniformização: as notas intercaladas do Autor foram compostas em tipo menor e inseridas no corpo do texto; a cabeça dos capítulos tiveram o mesmo tratamento; sofreram ajustes o uso de aspas, do itálico, o corpo das letras.

Para eventual consulta aos originais, registrou-se, no início das notas que são acrescentadas no final de cada um dos textos, a indicação dos fólios e das páginas onde se encontram as diferentes seções. Quanto às notas, são pouco extensas, quer quanto ao número, quer quanto ao teor. Acreditamos que nos prendemos ao indispensável, seja para a elucidação do texto, seja quanto à relevância das informações.

O esforço envolvido na organização e arranjo desse conjunto de textos - que visam a subsidiar o leitor, na compreensão do complexo de idéias que organizam o pensamento do Autor, é apenas uma amostra do tanto de trabalho que precisa ainda de ser feito, em face do amontoado que compõe o acervo.

A conservação desse patrimônio (do qual participa também farta marginalia) é altamente desejável, e vale dizer que os longos fólios, inéditos, devem, higienizados, fazerem-se objeto de preservação física. Da mesma forma, são urgentes ordenação e organização mais rigorosa desse manancial de reflexões, assim como o empenho de facultar-lhe o acesso, providenciando cópias que lhe ampliem as condições de pesquisa.

Seria desejável que, valendo-se de recursos advindos de avanços tecnológicos, o acervo pudesse ser armazenado (compactado) digitalmente, permitindo-lhe, o que facilitaria a pesquisa, acesso também pela Internet.

[Belo Horizonte, 22 de dezembro de 2001]

 

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