Ex-aluno do Colégio do Caraça, Livre-docente
em Direito Romano, Doutor em Letras, o Prof. José Lourenço
de Oliveira, pela solidez de sua intelectualidade, pela seriedade
de suas obras, pela erudição de seus escritos, é
uma dessas cabeças pensantes admiráveis de que vale
sempre se lembrar e que convém noticiar. É um vulto
extraordinário, na sua discrição de bom mineiro.
Autor que as novas gerações terão de certamente
considerar um clássico. Talvez se possa simplesmente dizer,
antes de mais nada, que ele, antes de tudo, foi alguém
que estudou...
Foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, a mesma que veio a ser incorporada à
Universidade Federal de Minas Gerais, e que viu seus departamentos
se tornarem, eles mesmos, outras tantas Faculdades. Catedrático
de Língua Latina (1939-1969) e Professor de Lingüística
(1963-1969), o Mestre nos legou obra, importante em seu conjunto,
tanto cientifica quanto literária, rico patrimônio
que merece memória e carece de inventário e resgate.
Tivemos acesso direto à parte desse patrimônio.
A professora Alaíde Lisboa, esposa do Prof. Lourenço,
também ela escritora e intelectual de renome, e a família,
deram-nos essa honra.
Passaram por nossas mãos centenas de longos
fólios, datilografados (certamente numa velha máquina
Remington), mais de uma vez em frente e verso, corrigidos pelo
Autor com notas manuscritas e, nas margens, enriquecidos com acréscimos
em escrita cursiva diminuta nem sempre bem traçada. Boas
horas passamos, enfrentando o desafio de ler e de interpretar
os rabiscos, garatujas para nós, mas certamente mnemônicos
para o Autor, que os fazia para si mesmo, e não para os
olhos de outrem. Por esta razão, embora tenhamos manuseado
centenas de fólios, apenas alguns puderam ser lidos integralmente.
É dessa leitura incompleta que nos valemos
para uma classificação, feita grosso modo,
de grande parte desses fólios. Alguns tipos de textos foram
identificados, no amontoado, com essa primeira vista d'olhos:
há a presença de notas de estudo de diferentes obras,
de filósofos, poetas, cientistas, ensaístas, juristas,
etc., há resumos de alguns ensaios, há comentários
diversos, há respostas, há propostas alternativas,
há textos novos, tudo isso na forma de discussões
em que se alegam razões pró e contra, disputas,
contradições, dúvidas. Até o humor,
mais de uma vez, se faz presente nessas notas de J. Lourenço,
nas quais se encontram registradas também contestações,
quase sempre precedidas de três simples letras: ora “lço”,
ora “Lço”, ora “LÇO”.
Com esse lance de vista detectamos também
algumas classes de temas, e essas serviram de base para uma primeira
catalogação do acervo inédito. Tivemos de
fazê-la, seja para identificar os textos, facilitando-lhes
a referência, seja para dar alguma ordem aos fólios.
Distribuímos a maior parte [há alguns poucos que
não foram ainda catalogados] desses fólios em oito
pastas, denominadas Pasta A, Pasta B, ... Pasta H.
Na primeira, pasta A, ordenamos conjuntos de fólios
que continham notas de estudos, resumos, comentários etc.
dizendo respeito a textos de Direito, concernentes sobretudo
ao Direito Romano. Foram numerados treze conjuntos com as subclassificações
A1, A2, ... A13.
Na pasta B, nas subclasses B1, B2, ... B44, foram
catalogados muitos outros conjuntos, cuidando de filósofos
e de lingüistas, tratando da Filosofia da Linguagem.
A pasta C contém fólios (e textos)
sobre a Estrutura da Frase Indeuropéia. Dezessete
subclasses, C1, C2, ... C17 foram registradas.
A pasta D é feita de fólios que carregam
versões (às vezes diferentes) de textos já
publicados. Esta pasta, dividida em D1 a D18, recebe o rótulo
de Originais de publicações já feitas.
A pasta E, com o título Latim/Grego,
compõe-se de 12 conjuntos (D1 a D12) de fólios com
notas e/ou textos dizendo respeito ao grego e sobretudo ao latim.
Com o título simples de Fichas de Leitura,
a pasta F, com subclasses que vão dos números F1
a F25, dá ordem a conjuntos de fólios que contêm
notas de estudos de obras de filósofos, lingüistas,
gramáticos, psicólogos, etc.
Por fim, a pasta G, feita de G1, G2, ... G19, a
que demos o nome de Discursos et alia, compila fólios
e conjuntos de fólios que contêm textos envolvendo
terceiros, sobretudo argüições de professores
sujeitos a concursos, seja para obtenção de títulos,
seja para docência, além de discursos e de outros
textos inéditos.
Todos esses conjuntos de fólios resumem,
enriquecidas de reflexões, lições colhidas
da leitura, feita pelo Mestre, de muitos volumes, literários,
filosóficos, científicos. Sua fala escrita, de idéias
que se repetem, mas sempre sob vozeios diferentes, é (para
usar-lhe a metáfora) patrimônio capitalizado de muitos
anos de estudo e de ensimesmamento.
A coletânea Da vida à vivência,
que temos o prazer de pôr aqui à disposição
de todos, brotou desses fólios. São fragmentos colhidos,
aqui e ali, na enormidade do conjunto. São textos voltados
especialmente para a Filosofia da Linguagem, para a teoria da
Lingüística Fabular, para a análise crítica
do estruturalismo, para a defesa da lingüística diacrônica
e para o estudo da estrutura da frase indeuropéia. Uma
combinação de idéias, lúcida, crítica,
instigadora, provocadora de reflexão. São (para
valer-nos de riqueza lexical de sua obra) reminiscências
temporalizadas que refletem muitos saberes, vivências diversas,
sintonias serenas, “tradução temporal” de um homem
rico de hominidade.
A seleção dos artigos que constam
desta antologia fez-se inspirada em pequena passagem de um dos
textos inéditos. Trata-se de peça, constante do
acervo do Autor, com o título “ Carta ao Prof. Lara
Resende, começada em junho de 1971” (classificada,
em nossa catalogação, como B13). Encontra-se
nesse documento a afirmação do Autor de que tinha
com o Sr. Resende um “convívio que vai fazer cinqüenta
anos em 74”. Outra passagem que nos chamou a atenção
tinha o seguinte teor:
“Pensei que lhe escreveria em janeiro,
depois que terminasse algumas notas de filosofia da linguagem,
tema que me tem preso e enleado, faz mais de vinte anos.
Com todo o gosto de ensinar que sempre tive, deixei a Universidade
em 69, antes de que chegassem meus 70. Queria ter mais ócio
para dois livros prometidos e não dados: Estrutura
da Frase Indeuropéia (tratado de lingüística
aplicada) e Etimologia do Poder Fabular, um ensaio de teoria
da linguagem, diacronicamente escalonada até à
hipótese da origem, a etimologia
do poder fabular visto como poder de expressão de
nossa hominidade. No segundo trabalho entalei, por ter mais
olhos do que boca. Sabe Deus com que gosto vagueio na longa
via da hominidade, rota diacrônica
multifária, cheia daquelas sendas que desenha, sob
um grato luar transcendental, a inteligência da filosofia”.
A importância da escolha destes e não
de outros textos possíveis deixou-se motivar por esta confissão
do Autor. Assim, para fazer parte desta antologia, foram tomados
textos da pasta B, sobre Filosofia da Linguagem, e da pasta C,
sobre a Estrutura da Frase Indeuropéia. Na verdade, os
dois temas convivem na maioria dos textos selecionados.
Oito textos compõem a antologia, variados,
de extensões diferentes, de organizações
diversas. Tomamos alguns cuidados que lhes pudessem favorecer
a leitura. Assim, no corpo mesmo dos textos, entre colchetes,
fizemos a tradução imediata de eventuais citações,
seja do latim, seja do francês. No final de cada texto,
especialmente do terceiro, Etimologia do fabular e do homínico,
valendo-nos inclusive da ajuda de enciclopédias, acrescentamos
um conjunto de notas, de diferentes teores, que supusemos relevantes
para o entendimento do texto e, sobretudo, certamente úteis
para os leitores incipientes da fala escrita do Prof. Lourenço.
Além disso, (pensando sempre em leitores iniciantes), dispensando-lhes
consulta imediata de dicionários, explicitamos, num glossário,
a significação de muitos itens léxicos.
Para abrir a antologia, tomamos Espaço
e Tempo (classificado, em nossa catalogação,
como B7), um (quase) poema que traça a história
do homem, desde quando era “infantil e atônito”, “desarmado
espiritualmente”, de “parco recurso fabular”, até o homem,
desnudado de mitos que, filtrando vivências, faz-se Sujeito.
O segundo texto, (B3, em nosso catalogação),
para o qual foi mantido o título Prol, é
uma introdução - poética, por que não
dizer? - aos recursos fabulares, patrimônio que define uma
língua, e apresentação de problemas de sua
descrição.
Etimologia do Fabular e do Homínico,
que vem a seguir, [B1, em nossa indexação], é
o maior dos textos desta coletânea. Trata-se de longa reflexão
sobre a linguagem humana, sua origem e progresso, e sobre a elaboração
da hominidade, em sua marcha lenta para o exercício do
entender e do refletir. Escreve a história do falar, que
vai do falar fazendo ao falar falando, no afeiçôo
de vozeios, e critica a Lingüística que, segundo ele,
deixou-se envolver pelo fisicismo
das ciências do Objeto e, ao invés de buscar-lhe
o entendimento, prendeu-se de encantos por esse fisicismo, cometendo
assim enganos, ainda persistentes, tais como o de ver a língua
como objeto autônomo.
O quarto texto, [C25, no catálogo do acervo],
ao mesmo tempo em que retoma idéias desenvolvidas em textos
anteriores, volta-se para problemas estruturais, para a contemplação
de moldes frásticos, e pode ser visto no domínio
da intersecção de dois temas cultivados pelo Autor,
a filosofia da linguagem e a diacronia. Coloca-se também
como intervalo - daí o título [intervalo] que lhe
foi dado - entre dois textos voltados especificamente para a etimologia.
O texto seguinte, Etimologia do Poder Fabular,
[catalogado no acervo como B2], ao mesmo tempo em que desenvolve
idéias já discutidas, teoriza sobre os sistemas
do proceder. Medita sobre a fala, sobre a sociedade e a socialidade,
sobre a posse e a consciência da língua, e sobre
o vital e o vivencial entremeando a vida antrópica.
Os dois textos seguintes, Método Lingüístico
e Estrutura da Frase, catalogados no acervo sob
C4 e C3, respectivamente, cuidam da análise da frase, de
sua estrutura em sintagmas, isto é, da estrutura de morfias
a serviço da estrutura de idéias. Os moldes frástico,
prolatório e sintágmico e a mobilização
de topomorfemas e tonomorfemas recebem atenção.
Destaca-se o papel do verbo como centro da frase e uma classificação
é feita dos diferentes sintagmas. Trata-se de dois capítulos
que certamente seriam incluídos, de acordo com a citação
acima, no volume desejado da estrutura da frase indeuropéia.
O oitavo texto, O modo e o tempo na expressão
fabular é um exemplo de análise que percorre,
como síntese, todos os textos precedentes. Trata-se de
um ensaio que contempla duas das preocupações básicas
do Autor: a estrutura da frase indeuropéia e a etimologia
do poder fabular.
Feita de inéditos, a edição
buscou, em sua organização, sob luzes da ciência
ecdótica, estabelecer um texto crítico, um texto
fiel, perfeito, mediante colação com o digitado
e com o manuscrito, correção dos erros tipográficos,
modernização da maneira de compor e, tanto quanto
possível, dando atenção a particularidades
ortográficas, acrescentando variantes de passagens, notas
e comentários, que pudessem constituir aparato crítico.
Trata-se de trabalho metódico, e não mecânico.
Trata-se de interpretação e não de reprodução.
Exigiu senso e responsabilidade. Obedeceu a normas gerais e genéricas,
mas também esteve atenta a particularidades, uma vez que
toda obra, no processo de edição, em face dos problemas
específicos que apresenta, requer procedimentos peculiares.
E cada problema tem sua solução.
A fidelidade não é sujeição
passiva. Assim, em face do fato lingüístico, não
foi sempre respeitado o fato puramente gráfico. Procurou-se
um texto livre de erros, de descuidos, de eventuais ‘cochilos',
seja do Autor, seja dos organizadores. Atendendo também
a finalidades didáticas, atualizaram-se a ortografia e
a acentuação, de acordo com o sistema vigente. Uniformizaram-se
a capitalização e a abreviação. Arrumou-se
a pontuação, ajustando-a ao uso que está
em vigor. A aparência gráfica e tipográfica
também buscou uniformização: as notas intercaladas
do Autor foram compostas em tipo menor e inseridas no corpo do
texto; a cabeça dos capítulos tiveram o mesmo tratamento;
sofreram ajustes o uso de aspas, do itálico, o corpo das
letras.
Para eventual consulta aos originais, registrou-se,
no início das notas que são acrescentadas no final
de cada um dos textos, a indicação dos fólios
e das páginas onde se encontram as diferentes seções.
Quanto às notas, são pouco extensas, quer quanto
ao número, quer quanto ao teor. Acreditamos que nos prendemos
ao indispensável, seja para a elucidação
do texto, seja quanto à relevância das informações.
O esforço envolvido na organização
e arranjo desse conjunto de textos - que visam a subsidiar o leitor,
na compreensão do complexo de idéias que organizam
o pensamento do Autor, é apenas uma amostra do tanto de
trabalho que precisa ainda de ser feito, em face do amontoado
que compõe o acervo.
A conservação desse patrimônio
(do qual participa também farta marginalia) é altamente
desejável, e vale dizer que os longos fólios, inéditos,
devem, higienizados, fazerem-se objeto de preservação
física. Da mesma forma, são urgentes ordenação
e organização mais rigorosa desse manancial de reflexões,
assim como o empenho de facultar-lhe o acesso, providenciando
cópias que lhe ampliem as condições de pesquisa.
Seria desejável que, valendo-se de recursos
advindos de avanços tecnológicos, o acervo pudesse
ser armazenado (compactado) digitalmente, permitindo-lhe, o que
facilitaria a pesquisa, acesso também pela Internet.
[Belo Horizonte, 22 de dezembro
de 2001] |
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