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Literatura - Prosa e Verso
Livro Poesia e Henriqueta
Vida: 1970

POESIA E HENRIQUETA

 
 

Ensaio publicado em O Estado de São Paulo nos dias 04, 11 e 18 de julho de 1970. Republicado em 1984, como um livreto, pela Imprensa Oficial de Minas Gerais

 

1 - O problema da poesia

Fala-se no mistério da poesia onde talvez nos bastasse admitir-lhe um segredo. Gostamos de mitizar as ignorâncias que o viver influiu na alma inicial da hominidade nascente, forrando-a de camadas inefáveis.

Não existe uma economia intelectiva do indivíduo, na posse zoológica do viver, previamente regrado pela espécie. Procede cada um com um saber que não é seu, mas de sua raça. Somente na raça humana, por superação da cota zoológica, a posse do viver é não só teoricamente dominável, para cada indivíduo, mas também melhorável, por invenção individual, didaticamente transmissível, na diacronia da experiência. Entretanto até hoje, apesar de tanta conquista espacial, existem largas faixas de inefável, mesmo para inteligências diplomadas. Absorvido no gosto de ordenar o Objeto que ele explora, o homem ocidental foi desdeixando a sua hominidade, cujo estudo se opõe, como ciência do Sujeito ordenador, à ciência do Objeto ordenado, que é a ciência da matéria. Identificando o mundo no espaço, o homem tem esquecido no tempo a hominidade do ordenador do Objeto, sucessor do poeta do cosmo.

Ao afirmar, com boa hipótese, a gênese natural do homem zoológico, entretanto a teoria evolutiva não soube estabelecer que a hominidade é uma superação pós-natural da cota zoológica. Recedendo às origens, limitou-se à recessão biológica, meramente animal, sem ver a recessão etimológica . Por isso, ao chegar ao antropóide, não viu que chegara à presença de um piteco sem tempo nem hominidade, posto entre a dimensão espacial da terra e a dimensão dinâmica da natureza. Tratava-se de um animal que tinha já poder de estese (no seu poder zoológico de sentir) mas não tinha o poder de noese vindo com o poder antrópico de entender. Não viu que tal poder de noese teve de ser lentamente conquistado, me diante superação diacronicamente definida, graças à eficácia do poder fabular, no serviço inter-individual das conferências mentais, desde que se forjou o signo fabular . Para forjar tais signos, pouco a pouco, teve de modelar vozeios veiculares, semanticamente intencionados, trocados entre dois sócios. Vozeios que sintonizavam, entre dois inivíduos, idéias individualmente pensadas.

No cogitar que sucedia aos fazeres (desenvolvido no exercício mental da fala reflexiva), o homem foi aprendendo a sentir, na iteração diária dos fazeres, a distância que fica entre os agoras dos fazeres. Foi assim que aprendeu a criar o tempo, gerado como dimensão não da coisa, espaciada na circunstância, mas da idéia, concentra da na mente. Dimensão de um dado, não externo ou cósmico, mas interno ou endocósmico. O tempo não é uma propriedade do Objeto e sim uma propriedade do Sujeito. É uma teia interior, na tela mnêmica da vivência tecelã. É o fio de tecer nosso endocosmo, transumpto intelectivo do cosmo espacial. É o retentor funcional da memória ativa, que ordena elaborados mentais fabularmente sinalizados. Tal memória, antropicamente vivencial, difere da memória zoológica, passivamente vital, armazém de estruturas que se conservam inertes, na lembrança do bruto, esperando que as venha despertar, com presença real, a presença real da coisa estimulante.

A fala nasceu de um proceder teatral, feito de gestos e vozeios, passados entre o sócio Primo e o sócio Secundo. Foi nascendo incoativa, paulatina, como a aurora, vagarosa em seu dilúculo de milênios. Nascida de um incidente inter-individual, fez-se promessa, como flor, do fruto hominidade. Feita veículo da idéia fez-se veículo de uma especificação pós-natural, vale dizer, não biologicamente programada. Possibilitou a utilidade do pensar, com seus três tipos de habilidade não zoológica:

a) o poder inter-individual de conferir idéia, mobilizando sistonias mentais entre dois pólos semanticamente nivelados (pelo convívio social);

b) o poder intra-individual de cogitar, explorando idéias fabularmente sinalizadas;

c) o poder inter-individual de ensinar, isto é, de nivelar, semanticamente, pólos desnivelados, na contingência social da sucessão generativa.

Institucionalizada, de pai a filho, a tradição da docência, o homem tornou-se animal didático e viu que, nascendo ignorante, podia eximir-se à bruteza e limite dos animais que já nascem sabendo.

Cogitando por si e conferindo com outrem, o homem foi reformulando o viver, reduzido a noções, na teoria do seu endocosmo. Explorando a economia zoológica de seus procederes, estilizou criações da economia antrópica, ditou procede res à matéria, dominicamente submetida, reformulando o constrangimento natural da servidão zoológica. Ao ritmo evolutivo, natural, sobrepôs a diacronia pós-natural do ritmo progressivo. Com juros temporais do viver espacial, criou seu capitalismo diacrônico. Inverteu o proveito hominizante da reflexão intra-individual nos lucros socializantes da fala inter-individual. Superando a dieta gregária do co-viver, na economia humana do conviver, reduzindo a estrutura dos fazeres a estruturas ideadas, alimentou a energia intelectiva do homo cógitans, na fase novicial do homo noéticus, o homem da madurez racional.

Se agora podemos ter diploma de Sujeito, ordenador do Objeto, devemo-lo aos inventores do signo fabular, precursores da indústria das vivências. Tornando o homem cogitante, a fala permitiu que recolhesse e tratasse consigo, no tempo mental, depois de colhido no espaço vital, os estímulos sensórios do homo aesthéticus.

 

2 - O estado de poesia

Conforme nossa hipótese etimológica, a hominidade começou em estado de poesia. Antes do pensador foi o poeta, banhado nas emoções do homem estético, imerso na simbiose do viver. Daí foi emergindo paulatina a ideação do homem cogitante. Ganhando antropicidade, ia transfundindo consigo, no tempo vivencial, os frutos espaciais da colheita vital, recoberta de ganga zoológica, por fraqueza intelectiva da filtragem. Era o início da primeira superação, a tomada de posse de seu estado de ignorância, para o antigo senhor do saber não aprendido, herdeiro zoológico dos fazeres vitais. Matriculado, como animal didático, na escola do viver, aí recebia, na lição do sócio docente, a posse vivencial dos fazeres. Estilizando procederes vitais, geneticamente zoológicos, a economia social foi capitalizando, hominicamente etimológica, sua teoria vivencial de procederes.

Foi no patamar da primeira superação, após irrecenseáveis milemilênios de passividade mental e mudez antropóide. Certo pithecus álalus achou, no passo do homo loquens, o passo ativo do homo cógitans. Em tal passo, limitadamente infra-lógico, foi vivendo seu lento prazo de centomilênios, até conquistar recente, na madurez racional da cota aristotélica, em segunda superação, a superação da cota infra-lógica. Nessa longa infância da hominidade, o homem foi sobretudo "poeta" no sentido etimológico da poiese, ato de fazer. Croce entrevira tal sentido, mas sem poder melhor cenceituá-lo, tolhi do por seu engano de identificar intuição e expressão. Ao concluir assim, ele fundira, com simplicidade ideativa, o complexo de dois heterogêneos. Não viu que a intuição, colhendo estímulos sensórios, dentro de seu momento espacial, é só uma habilidade zoológica, diversa da posterior expressão, vivencialmente elaborada, dentro de seu momento temporal e antrópico. Entre as carências da filosofia, tenho por infelicidade maior o fato de não haver ainda ela demarcado, metodicamente, as fronteiras do Sujeito e do Objeto. Falta-lhe que se motive, rigorosa, na convicção de que a hominidade é uma temporidade que se afeiçoa, na base espacial do corpo. É um provimento vivencial de estilizados vitais, didaticamente implantados, nos hábitos de Secundo discente, pela diligência de Primo docente. É um legado etimológico, sobreposto ao lega do fisiológico, no suceder tradicional das gerações. É uma virtude aquisitiva, fonte do homem progressivo, diacronicamente melhorável, no poder individual da invenção e na felicidade inter-individual da propagação.

Desde aquela antiga manhã do espírito criador, o fazer do poeta era reduzir e conter, na posse vivencial dos fazeres mentais, a posse muscular dos fazeres vitais. Era conferir consigo, na lembrança, a lição espacial da coisa percebida e a lição temporal da idéia inteligível, ministrada na fala do sócio docente. Era pois conferir, com a idéia pensável, a coisa sensível. Mas era fraco, naquela manhã, o poder cogitante, e era forte o domínio da estese. Insuperadas ainda, vibraram persistências zoológicas na posse vital. A diligência intelectiva, pobremente infra-lógica, cedia a saturações da circunstância, rica de alteridades emotivas. Pelo velho pendor de simbiose do homúnculo, um Sujeito recente e não denso vivia a gravitar para o Objeto, centro de uma tensão de sentido ainda não mudado. Era um viver espacializado e hipocrônico, infestado de urgência biológica, sob dieta de simpatias e medos. Fechado nas adjacências do agora, o homem povoava de mitos a vaga subtemporidade aorística dos outroras. E o mundo, longe de ser cosmo ordenado, era uma fonte arbitrária de maravilhas e mistérios, aberta como num jorro de poesia, para a alma do homem estético.

Entre a estese e a noese, na diacronia do homo cógitans, move-se a atividade da poiese, destiladora de emoções vitais. A estese do sentir, colhida na simbiose do viver, prorroga-se depois, sob forma de imagem, na duração reminiscente. Aí sucede a poiese, destilando e cozendo emoções, num caldo vivencial de teor infra-lógico, bastante para o viver da cota infra-aristotélica, mas de fraco tepor racional. Onde porém chegou a idade da noese, como na madurez ocidental, aí se destila, sob devido calor intelectivo, o licor racional do conceito.

Há uma semântica mais zoológica do que antrópica, no labor da poesia, visto que o sentir é do homem zoológico e o pensar, do homem antrópico. A poesia, mais de co-viver que de conviver, imerge raízes na comunhão da natureza. Sua lavoura, espontaneamente infra-lógica, fica mais a leste da vivência, na rota solar da hominidade que, indo na direção estese-noese, vai do sensível para o inteligível.

O estado de poesia lembra a adolescência, no sentido original de "crescer". Lembra a meninice e a juventude, quer no sentido ontogênico de juventude individual, quer no sentido etimológico de juventude homínica, juventude em que ficam retidos, infra-logicamente, os nativos tribais, por falta de crescer antrópico. Por isso flutuam, poéticos e lúdicos, nas ondas míticas de seus outroras, fantasticamente povoados. Mesmo depois de adultos biológicos, não saem da meninice. O fim da adolescência, no entretanto, não força o fim da poesia. Ter crescido não é abolir os graus antrópicos do crescer, na vária dinamia dos estratos: pode continuar, na perseverança da alma, a juventude da idade do corpo. Por isso não há limites, para um estado de poesia, seja na poesia vino, possível a qualquer, seja na poesia expressa, accessível ao esteta, capaz ele mobilizar, numa obra de arte, o poder semântico do movimento, da linha, do som, do ritmo, da cor. Esse intuito de exprimir uma estese, por um signo sensível, define a função da arte. E além do sentido que o artista lhe deu, uma obra de arte tem consigo, na franja convivial das empatias, o poder de estimular a estese de outrem, com o sentido que outrem lhe dê.

 

3 - A arte da palavra

De todas as artes, a mais importante é a arte da palavra, conforme Latino Coelho nos dizia, no Caraça, faz cinqüenta anos, mediante a antologia de Barreto e Laet. A fala, como viático da vivência redigenda, é o bom veículo das estesias exprimendas. Atualiza a epifania semântica de nosso endocosmo, servindo de correio da idéia, no serviço postal de nossa hominidade. Imagina feições dessa hominidade, no fável que denota e mesmo no inefável que denuncia. Lidando com vivências sinaliza, não a coisa vital motivadora mas a idéia, vivencial motivada. É bom insistir nessa diferença, geralmente prejudicada, entre lingüistas e filósofos, avezados em não repelir como convinha, os enganos do jogo nome-e-coisa.

Da fala provém a língua, patrimônio expressivo de cada indivíduo, no convívio do grupo em que vive. Hominidade do indivíduo, fala de cada um, língua de cada um dentro do grupo, são conquistas que crescem juntas e melhoram juntas, diacronicamente progredindo, no rumo que vai da estese para a noese. Dentro do homem, com seus estratos, cada expressão tem sua vez, distribuída em falas que se filiam a três domínios etimológicos, em três camadas constitutivas de cada eu, na sua dosada economia de emoção, de intelecção e de vontade. Para o emotivo do viver, a fala estética. Para o volitivo do conviver, a fala pragmática. E, para o intelectivo do cogitar, a fala teórica. Não sendo estanques, entretanto, tais funções, todas se tingem, mais ou menos, de poesia. O fato de ela ser humana torna poética toda fala, em prosa ou verso. A questão da prosa e da poesia é uma questão de mérito, de qualidade, e não de forma. Resolve-se no teor estético do tempero, conforme nos mostra a experiência, com muito caso de prosa poética e de verso prosaico. Para se opor à fala humana, cumpre formalizar alguma fala transumana, mecanicamente objetivizante, como a de um cérebro eletrônico.

 

4 - A opção da perseverença

A hominidade é uma posse tradicional, didaticamente servida pelo grupo ao indivíduo que se integra: posse que o cuidado individual promove a consciência, quando o indivíduo tem cuidados de filósofo. Melhorando cada indivíduo, melhora também o grupo, com juros que o passado passa ao presente. É aluno do dia anterior cada dia seguinte, como dizia Publílio Siro: discípulus est prioris posterior dies.

Na diacronia etimológica do indivíduo, repete-se a diacronia comum da hominidade. Existem parecenças de corte geológico na vertical de um corte antrópico. Mas aquele, sob luz espacial, mostra a sensível face da matéria, enquanto, este sob luz temporal, desenha a história do inteligível, a história da hominidade ou simplesmente a história. O primeiro é no espaço e o segundo é no tempo. Contrapõe-se além disso, ao visível repouso dos estratos geológicos, a dinâmica vivencial dos estratos mentais. No estado de poesia por exemplo, o fato de ele ser da adolescência não o força a inexistir na idade adulta. Convém discriminar, aliás, entre o adulto zoológico, biologicamente amadurado, e o adulto antrópico, mentalmente capitalizado. Entre o produto fisiológico da economia natural e o produto didático de uma economia pós-natural. Entre a idade cronológica e a idade mental

No viver de um nativo tribal já crescido, o estado de poesia é persistência e não prorrogação. Detido na cota de menino, sua idade não continua, diacronicamente. Per severa no mito e na poesia. Atinge a madurez vital, mas não alcança o tamanho vivencial do homem lógico, Vegeta, com seu leve Sujeito, nas vizinhanças espaciais da mal superada cota zoológica.

Com a segunda superação, que é de data recente, ficou vencida a cota infra-lógica, embora sem garantia de promoção automática. No conceito de "homem-lógico", longe de haver categoria, existe apenas um conato, incerto e lento no alcance. Pesa muito, na raça, a debilez da carne. Spíritus quidem promptus est, caro autem infirma, como está em Mateus, 26.41. Aliás (com gáudio da grei panúrgica dos prá frente) já não existe motivo de se falar em fraqueza. Foi anulada, pelo materialismo dialético, a oposição alma e corpo. O monismo da psicologia animal já naturalizou as tentações sensíveis do apetite, sob doces formas de "saudade zoológica". Mas faltou-lhe é verdade, um plano histórico de fato. A hominidade tem de ser definida como conquista pós-natural, explicada na etimologia do homem an trópico, acima da animalidade genética do homem zoológico.

Nossa colheita racional, desde os gregos, cresceu como cresceu, em dois milênios de aristocracia das letras. Atualmente, a facilidade mecânica do último centênio, reduzindo o analfabetismo, fez crescer a democratização da adultice mental. Mas isso dificultou o estado de poesia, que, sendo de graça ou inocência, teve de subtilizar-se. Entretanto ele continua: no pendor menineiro da alma do povo e, por prorrogação, na alma adulta e saudosa do letrado. Por isso é que se repetem as maravilhas que vira Homero, na madrugada mediterrânea. Repetem-se diacrônicas, na emoção de um Vergílio ou de um Dante, um Shakespeare ou um Goethe, uma Henriqueta ou um Drummond.

Contra a opção da perseverança, as causas foram vindo: pela idéia do cosmo geométrico, veio com Galileu, Descartes e Newton, a fascinação lúdica da geometria. Pelo gosto de medir e pesar, veio o contentamento da eficácia, nos corolários técnicos da física. Veio também o naturalismo evolucionista, proclamador de nossa gênese animal, semeando no vulgo uma descansada tranqüilidade zoológica, ao vir como veio, sem a competente lição de nossa etimologia antrópica. E veio finalmente, no século atual, o poder de nossa velocidade motorizada, servilizando em vez de servir. Ela está afogando, na pressa espacial de seu tempo mecânico, o ritmo diacrônico do tempo hominizante. Rareia agora a perseverança. O indivíduo, nascido poeta, deserta depressa, logo depois da meninice, levado pela saturação precoce do prosaico. Sem promessas de mais epifanias, cedo se desmitiza a mocidade, crestada pelo viver materialista. Troca antes da hora, pelo prosaico da virilidade, a poesia da juventude.

Um estado de poesia não é um ato de poesia, um ato de expressão de tal estado. Na história da expressão, além de serem poucos os eleitos sempre aconteceram muitos desertores. É raro o escritor que não tenha ouvido, na mocidade, os apelos das musas. Rara também uma longa vida de poeta, como a de Goethe ou Victor Hugo. Para exemplo de deserções ilustres, podemos citar o caso de Rimbaud (1854-1891) mais o caso de Paul Valéry (1871-1945). Poeta aos 16 anos, o amigo de Verlaine apenas foi poeta 5 anos. Desertou, como fujão precoce, aos 21 de sua idade, vivendo os outros 16 que ainda teve, em prosaicas andanças de mercenário e mercador. Foi também aos 21 que Valéry parou de poetar, movido por sua razão cartesiana. Como o pica-pau (de que nos fala Guimarães Rosa) voava duvidando do ar. Então se recluiu, fausticamente, no seu retiro intelectivo, por mais de 20 anos. Quando voltou à lira, em 1917, veio com A jovem Parca, poema que, tornando-o glorioso, mesmo assim não o demoveu de se manter parco no verso, fascinado, pela razão que o seqüestrara das musas, nutrindo-o de muito prosa. Como seu mestre Mallarmé (1842-1898) foi mais esteta que poeta. Em vez de versejarem cantando, versificavam demonstrando. No sonho inútil da poesia pura, desconfiaram do poder tradicional da palavra. Tomando a nuvem por Juno, queriam superar a ductilidade semântica do vocábulo pela plasticidade vaga do sinal, como se a palavra fosse argila e não veículo. Tentando navegar o inefável, deram nos parcéis do indizível, balbuciando imprecisos vozeios azuis, por entre a névoa mítica dos símbolos. Voaram altos e musicais, na ânsia de encontrar o céu anterior onde floresce o Belo, como dizia o mestre: le ciel antérieur où fleurit la Beauté.

 

5 - O diadema completo

Faz mais de três decênios que observo Henriqueta Lisboa, no seu ofício de poeta. Sempre a vi sibiconstante, fiel, no ministério, ao castiço teor da criação. Ordenou seu viver, discreto e ascético, não "pela torre de Babel" mas "pelo diadema completo / pela rosa e pelo orvalho" (Além da imagem) .

Se havia clima para ensimesmar-se, na paz espacial de um cenóbio de outrora, hoje entretanto custa muito mais, vencer a alteridade em que se vive. Estamos na própria torre não aceita, sob a difusa coerção de seus ríspidos Atilas, numa prosaica hora de violência. O tempo está sem vez para a virtude hominizante. É próprio só de santos e de heróis, como já disse Maritain. Henriqueta porém perseverou, mudando (para bem perseverar) na medida em que sentiu a germinação do viver, entre palpitações de sonhos e de males. Não parou para se ficar repetindo, como certo poeta que até hoje só faz sonetos, desde que morreu Olavo Braz dos Guimarães Bilac. Girou o mundo, sobrevieram sismos, ruíram estruturas na Lagoa da Estética, mas ele em nada mudou, fechado numa rotina que lembra a perseverança, mas também o perigo da fossilização. Na ipsidade da poesia, não pela mesmice do poema, é que se mede a constância do poeta. O poema pode pagar tributos adjetivos, lançados por inovadores e modistas, em escolas que vêm e vão, na linha de um tempo que vem e vai. Tempo que muda e nos muda consigo: têmpora mutan tur, nos et mutamur in illis.

Para sentir a evolução de Henriqueta Lisboa, de 30 a 55, basta uma inspecção paginária da Lírica, editada por José Olímpio em 1958. Contém oito livros da autora. Aí se entrevê, na figura visual dos poemas, a consonância temporal da vivência, a diacronia semântica do espírito, num volume que abrange, com safra datada, todo um prazo poético. Enternecimento, primeiro prêmio da Academia Brasileira, em 1930, representa a fase inicial, de rima e ritmo obrigados. Na década seguinte, Velório e Prisioneira da Noite, 35 e 39, mostram que estava superada a fase acadêmica. Amainados os ventos da arte moderna, ruidosos para uma artista discreta, infensa a bulhas e barulhos, podia agora mover-se livre, quer no largo ritmo do verso que nem cabe na linha, quer no breve ritmo que escasseia na linha, recusando o percurso, por gosto de liberdade. Nas duas décadas seguintes, O menino poeta, A face lívida, Flor da Morte, Azul Profundo, e (depois da Lírica) Além da imagem. Henriqueta foi sempre mostrando, esteticamente realizada, sua finura de joalheiro, em suave luz de pentecoste. Culmina em Além da imagem (1963) sua destreza de artesã. Funde a economia masculina da forma com o sabor feminino do gosto, nessa nítida flor bem sazonada.

 

6 - A poesia e Henriqueta

Pelo propósito inicial de escrever sobre Azul profundo, comecei a reler o volume de 1956. Imaginava comentar, no gosto do azul, a coincidência de gostos entre Henriqueta e Mallarme. Enquanto relia, porém, vexava-me sentir como eu estava distante das letras poéticas, absorvido de há muito pelas letras do ofício. Abrevei a saudade, mas achei-me incapaz de escrever meu recado. Tudo que planejava dizer deslizava para o problema da poesia. Dominava-me uma estranha carência de motivação inicial. Fazendo do despoder minha desculpa, comecei a admitir que falar de poesia era o mesmo que falar de Henriqueta. Em seguida, situando como problema, na função do poeta, a função da perseverança, aí me surgiu, por contemporidade, o nome do poeta Drummond, associado ao de Henriqueta. E os dois ficaram respondendo-se, quer no contemporâneo da presença, quer na fidelidade do ofício, quer no progresso da excelência, quer no fato de representarem bem, nas letras nacionais, a atualidade mineira da poesia. Vi que emergiam, do confronto, certas coincidências programáveis, desde o fato ecdoticamente coetâneo das publicações, conferível na data dos livros, até o sabor sazonal de uma confluência estética e semântica, diacronicamente prosseguida, na sintonia modular de duas fontes analogamente temperadas.

Sem tempo de desenhar o paralelo, delineei notas de um situar paralelizado, traços de um clima vivencial por que interpretar, no drama contemporâneo, a forma e o sentido de dois artistas mineiros.

 

7 - O último cinqüentênio

Mineiro que tenha nascido antes da guerra de 14 pode sentir melhor o impacto ocidental dos últimos cinqüenta anos. Viu como foi mudando, não mais vernáculo como outrora, seu viver montanhês. Viu fundir-se, na pressa da velocidade mecânica, a velocidade zoológica do horizonte comum. Pela crescente anexação do espaço exterior, viu romperem-se as fronteiras humanas do espaço vital costumeiro, diluídas na ubiqüidade do cosmo. Anularam-se muitas linhas, cotidianas e miúdas, de muitas coisas havidas por bastantes, para uma vida possível, quando a vida corria bem, entre a flecha do campanário, a eminência do monte, a distância da cidade vizinha, a fronteira da pátria imaginada, o limite do mar irremeável. No vigente poder de nossa hominidade, não preparada para tanto, essa abertura comum de portos atulhou, nos celeiros da alma, um indigesto excesso de colheita espacial. A velocidade temporal do espírito, digeridor de alteridades, ficou vencida pela velocidade espacial do corpo, captador de tais alteridades. A casa do homem perdeu, como ponto doméstico, a centridade em que a mantinha a definição visual do horizonte. Esmoreceu o vigor do contraste entre o lado de lá e o lado de cá, do tempo em que a rotina do viver, modelada na visão do de cá, excitava o motivo criador do poeta, inspirado na visão do de lá, mansão dos imagináveis, toda povoada de mitos. Somente no seu espaço identificado, melhora a simesmice do eu, segundo a lei da iteração condicionante: o homem pode assim viver do que conhece, propiciatoriamente prevenido contra o que desconhece, mas crê simpaticamente apaziguável. Foi assim que aprendeu a dominar, vivencialmente, as ressonâncias do não-eu, fundindo a idéia da coisa (motivo da teoria do viver) no silêncio diacrônico de seu cogitar. Mas, para ter bom proveito, a alma vivencial tem de contar com a paz do corpo, no seu estado vital. É o que diz a Imitação de Cristo : "in siléntio et quiete próficit anima devota"

 

8 - Rio e BH

Em 1930, morando no Rio, a mineira Henriqueta, com Enternecimento, merecera o primeiro prêmio da Academia Brasileira. Após os ecos do estardalhaço paulista, na Semana da Arte Moderna, ela ouvira direto, no silogeu de Coelho Neto, o aranzel de Graça Aranha. Alarmes, alaridos e doestos, não a comoveriam de sua atitude, sempre discreta como foi. Quem fala manso convence e fala manso quem sabe: dulce lóquitur qui scit.

Nesse mesmo ano de 30, em BH, com Alguma poesia, um itabirano ressabiado agredira nossa fiel mineiridade. Se hoje Drummond é príncipe, senhor de nobre ipsidade, louvado até por ouvir dizer, naquele tempo ele fora apenas um deus-nos-acuda. Era enorme o susto gramatical que nos passava. Caraça, Mariana, Diamantina, tudo desacatara de uma vez. De supetão desafiava, rindo de soslaio, a presença e a lição de mestres tais como Carlos Góis, e Arduíno Bolivar, Eugênio Rubião e José Oswaldo de Araújo, Cláudio Brandão e Mário Casasanta. Como juízes da correção, doutores de metro e rima, gritando Camões e Rui, eram eles que chefiavam, naquele tempo, nosso corpo de guardiães canônicos da língua. Uma coisa como "no meio do caminho tinha uma pedra" longe de ser uma frase e muito menos um verso, não passava de ser, apenasmente, um muito grave solecismo.

A verdade é que alguma coisa germinava, na surdina da noite, sem que os velhos e os vagos percebessem. Mas o moço de Itabira já estava colhendo. Era um moço diverso, estranhamente "desmineirado" na aparência. Em vez de estudar direito, como todos, inscrevera-se em farmácia e odontologia. Em vez de fiar nos mestres e no ofício, matriculara-se na cartilha de Mário de Andrade, chefe revolucionário de que se fizera amigo direto, em 1924, aqui em BH, depois de o visitar no Grande Hotel, onde estivera de passagem, num curso de visitas a nossas cidades históricas.

(Vem a notícia de tal encontro na cronologia da edicão Aguilar. Quanto ao curso de visitas, achei prova de seu fato, com data de 14 de abril de 1924, num registro de hotel de São João del-Rei. Ali começara eu, dois meses antes, minha carreira profissional. Da caravana, que não vi, bem mais tarde encontrei notícia, no livro do Hotel Macedo. Além de Mário, Cendrars, Oswald, Tarsila (apontados na Aguilar) constavam lá mais três nomes (Olívia Guedes Penteado, René Thiollier, Oswald de Andrade Filho). No registro, feito com letra de mão única, o nome vinha certo, mas junto de uma pessoa civil falsificada. Mário de Andrade estava como fazendeiro, negro, baiano. Oswald como escolar e holandês. Cendrars como violinista e alemão. A brincadeira com Blaise Cendrars (1887-1961) tinha um sentido irônico mais forte: dava por violinista quem era manco de um braço, além de fazer alemão um escritor que nascera suíço e vivera francês, tendo perdido o braço pela França, na guerra de 14).

Em 1934, depois de Brejo das Almas, Drummond foi para o Rio, vindo Henriqueta para BH, onde publicou Velário em 1936. Retonalizara as cordas da lira, no livre fôlego do verso livre. Tudo sem bulhas, nem desafios, nem golpes gramaticais de "língua brasileira". Viera de manso, já podemos vir, visto que já tinham ido a provocação modernista e a ira acadêmica provocada. Consta no calendário de 34, quase como num sintoma, o falecimento de Medeiros e Albuquerque, mais o de Coelho Neto. O primeiro dissera, falando de Alguma poesia, que o livro se devia chamar Alguma tipografia. O segundo era o que tinha dito a Graça Aranha, na Academia, em 1924: "não se cospe no prato em que se come".

Entrava por esse tempo, nos afetos de Henriqueta, a pessoa de Mário de Andrade, que vencera, com seu jeito fraterno, o jeito discreto da mineira. Floresceu entre os dois, unidos pela arte, uma clara amizade, trocada em correspondências. Era um grande paulista federal o nobre Mário, dono de um coração ecumênico, praça dialogal de todo irmão, grão prêmio de relações públicas da arte brasileira.

Quanto a Drummond, que descobrira Mário bem mais cedo, até já lhe chamara "meu amigo" na dedicatória de Alguma poesia, fora moderno, deciso e firme, desde seu primeiro mover. Seu poema "tinha uma pedra" não teria passado de pedra de arrelia, no caminho do vernáculo, caso não fosse boa, no autor, a sua essência de hominidade (boa como o teor do pico de Itabira) mais a recendencia de certo modo de ver, entressentida como promessa, que o tempo seguinte confirmou. Escapara ao destino de mais de um se cundarista frustrado que, no início do movimento, queria impingir-nos, em subprodutos de apedeuta, seus contrabandos de infração gramatical. Queriam fazer passar por nova estética meros incestos da ignorância e do assintatismo. Drummond, poeta e moderno, foi moderno e poeta desde o começo. Persisitiu consistente, na diacronia de uma perseverança que o tempo enriqueceu. Faz alguns anos, querendo identificar, entre Bandeira e Drummond, qual era o mais moderno, recenseei-lhes os poemas um a um. Contra a fidelidade toda do mineiro, moderno desde o batismo, era menor a do pernambucano, moderno depois da crisma. Honra lhe seja aliás ao grande Bandeira. Assim como no reino de Deus, há muitas mansões no reino da poesia.

 

9 - O interlúdio

Já dissemos como foi diverso o caso de Henriqueta, que chegou devagar ao modernismo. Chegou suave no movimento de passar, chegando toda passarosa, como diria o autor de Sagarana.

Ao findar da primeira república, levara para o Rio o gosto sul-mineiro dos Lisboas, confirmado no convívio da corte. Depois de 30, início do interlúdio ademocrático, a mesma revolução que a trouxe de volta a Minas, levou Drummond para o Rio. À frente do transtorno, como chefe, estava um grande mestre de guinhóis, manobrador de ventos destros e sinistros, então soprados sobre nós do Velho Mundo. Armava-se na Europa, com muita pressa dos fazedores de nuvens, a grande tempestade das vindictas. Não era mais um clima de parnaso, o clima que Drummond encontrara no Rio. Era sim um clima socialmente inquietado, coagido de alteridades importadas, infenso à hominidade do homem humano, bem como à poesia do poeta. Ensimesmar-se é uma diligência que requer clima sereno. Horas tumultuárias, de horizontes pejados, já não são horas de poetas, mas sim de bardos, vates e profetas.

No decênio intranqüilo, de 35 a 45, Henriqueta e Drummond, cada um foi reagindo a seu modo, mas com liras uniafinadas, pelo fato de que a sul-mineira já atingira, por confluência, a linha em que já estava o itabirano. Os próprios títulos de dois livros de então - Prisioneira da Noite, HL, e Sentimento do Mundo, CDA - já eram títulos de mensagens, entre a violenta sonegação geral da condição humana. O transe podia ser mais resistível para Drummond que, além de homem, era de Itabira: "o hábito de sofrer que tanto me diverte / é doce herança itabirana". São livros seus, de entre 40 e 45, Sentimento do Mundo, José, Rosa do Povo. Como o bardo que desce, desde a paz de sua torre, para anunciar o pregão da solidariedade fraterna, ele entrou no tumulto da praça, levando sua atitude. Tivemos de Henriqueta, no mesmo período, O menino poeta, Madrinha Lua, A face lívida. Vê-se que ela deixara, no momenio inumano, a janela de ver o mundo, recolhendo-se para objetivos mais contempláveis, encontrados na infância, no rincão natal, no comezinho doméstico. Bruteza que a mulher não aceita, desde antanho, e a bruteza da guerra, especialmente detestada pelas mães, como já sabia Horácio, faz dois milênios: bella mátribus detestata, (Odes 1.1). Acontece entretanto que deixar a janela para não ver não é fechá-la para não ouvir. Por isso em A face lívida, no tom menor do amargor e até no título, ressoam ecos de pesadelos, no pesadelo do qüinqüênio

 

10 - A flor do espírito

O mundo acabou no inferno para que marchara diretamente, sob o estandarte da violência programada. Houve entonos de vozeio profético no canto de nossos dois poetas, soando num diapasão retórico não mineiro, forçado para além da placidez nativa. Estavam pressentindo, no livor da seara, com amarga promessa de ceifa, a entressafra do sangue europeu. Para momentos assim, de tanto naufrágio, não bastam, no largor amazônico do verso, nem mesmo o ritmo estuoso de bar dos à Whitman ou a dimensão vaticinária de videntes à Claudel.

Mas passou o fervor da inundação. Embora deixando cicatrizes, as águas refluíram de novo para leitos vernáculos. Na poética dos dois, voltou o tempero e a feição do teor costumeiro, especialmente notável pela economia expressiva. Drummond continua a servir-nos o vário feitio de sua densa hominidade, ora sensivelmente manifesta, ora jeitosamente solapada. No versátil humor de uma reportagem, num lúdico recheio de estrutura, sempre a destila e mostra, quando trata e destila, da matéria diária, a alma cotidiana das coisas. Henriqueta por seu turno, suavemente monástica, entre estesias de contemplações, apura seu labor de sentir e entender. Hábil no gosto do pendor exato, brune seu claro verso que refulge, lúcido e leve, na castiça coluna esguia do poema. No tecido semântico da mensagem, tempera climas de essências, com velhos temas da emoção humana. Movem-se neles, como presenças fundamentais, a vida, a morte, a arte, o amor, a infância, a alma, Deus. Além da Imagem, vindo em 63 (após os títulos da Lírica), mostra como persevera, no seu vigor de plenitude, o poder criador do poeta.

Henriqueta e Drummond, dentro de um mundo único e não uno, são dois modernos e morígeros mineiros. Dentro de um mundo que se vai apequenando, mecanicamente, fechado em dimensões de casa nossa, com seu todo de ubiqüidade e sincronia, desde as muitas terras e muitos mares de seus muitos espaços. Com tanta alteridade espacial, contra tão pouco tempo digestor, a poesia ficou muito difícil. Nossos dois poetas entretanto, com simesmice de mineiro, aprenderam a modelar o cotidiano, lirizando o momento que passa. Humanos como estão, enxutos e sazonais, lembram-me a flor de um vinho caracense.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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