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Literatura - Prosa e Verso

Para a “romântica iluminada”

 
 

Belo Horizonte, 2 de maio de 1929

 

 

1.

Belo Horizonte
2. maio. 929

Alguém faz anos hoje. Uma “romântica iluminada”

Belo Horizonte, 2.5.929

 

 

2.

Um dia a “romântica iluminada” entregou-me este bloquinho e falou-me: “Enche-o com pedacinhos da vida. Para mim. Quero guardá-lo como recordação.”

 

3.

Justamente no dia de seu aniversário natalício é que me ocorreu abrir este minúsculo caderno. Justamente no dia predestinado de “Isis,a “Egyptia”, a “Grega”, a menina cujo perfil me sugere reminiscências clássicas.

 

 

4.

Seara alheia:

“Eu não sei se é fato ou fita.
Eu não sei se é fita ou fato.
O fato é que ela me fita
E fita mesmo de fato”.

Um rapaz amigo foi quem me recitou a quadrinha.

xxx

Seara alheia...

Quererá dizer que o demais é seara própria?

Que poderá alguém chamar de “próprio”, se tudo nos vem de pai a filho?

 

 

5.

Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil.

A selva era habitada por tapuias.

Os primeiros colonos eram degredados, eram “bandidos”.

O negro era filho da África.

O português é amavioso. (Oliv. Martins)

O negro sofria de uma doença: o “banzo” (J. Ribeiro)

O índio era altivo e indolente (Oliv. Viana)

Nasci em 1904

 

 

 

6.

Acabo de ler um artigo, lamentando o nosso descaso pelas quadras.

E é verdade: entre nós o que vale é o soneto.

O japonês faz caber num pequenino haikai (3 versos) um disparate de poesia. E é coisa que costuma haver muita, também em nossas quadras populares.

 

 

7.

A alma de muita gente
É como o lago profundo.
A face tão transparente!
E quanta lama no fundo!
(Belmiro Braga)

Meu caro Abílio, perdoa
A resposta demorada.
Tu sabes quem vive à toa
Não tem tempo para nada.
(Belmiro Braga)

Sou jardineiro imperfeito
Pois no jardim da amizade
Quando planto amor-perfeito
Nasce sempre uma saudade.
(Adelmar Tavares)

 

 

8.

Achei-te tão diferente
Quando de novo te vi,
Que, estando em tua presença,
Tive saudades de ti.
(Antonio Salles)

De muita gente que existe
E que se julga ditosa,
Toda ventura consiste
Em parecer venturosa..
(Medeiros e Albuquerque)

Eu mandei dizer ao sol
Que não tornasse a nascer
Diante desses teus olhos
Que vem o sol cá fazer?

-------------

Eu amante, tu amante,
Qual dos dois será mais firme?
Eu como o sol a buscar-te,
Tu como a lua a fugir-me?

-------------

A vida, que importa a vida?
Cante a vida quem quiser.
Eu tenho a vida envolvida
Na vida de uma mulher.


 

9.

Haikais

Se na lua cheia
Imaginarmos um cabo...
Uma ventarola! (Sokan)

xxx

Lírio teimoso,
Por que continuamente
Tu me dás as costas? (Shikô)

xxx

Pensei que nevava
Lírios... Minha branca amada
Vinha aparecendo. (Yorikito)

--------------

Poemetos japoneses que encontrei não sei se em Afrânio Peixoto ou Ronald de Carvalho

 

 

10.

Haikais

Rubra flor toda orvalhada
Baloiça-se na haste e canta...
Que louros favos hão se ser
(Lourenço de Oliveira)

xxx

Irradia ao passar.
Ofuscam-se as demais
É com certeza o luar! (idem)

xxx

Um cravo lindo, róseo!
Vale um poema, um canto!
Que mãos suaves, deliciosas! (id.)

xxx

Por que estás assim a olhar?
Quem jamais pôde, algum dia,
Até o fundo ver o mar? (idem)

 

 

11.

Mac Grathey é açougueiro. Tem sessenta anos. Trabalha das 8 da noite até as 7 da manhã. E depois não vai dormir, não: vai caçar ou pescar.

Percebeu um dia que a vida é curta e que o sono é inútil.

“Renunciei, portanto, ao sono”.

Faz a pé, várias vezes, os 29 km que o separam de Cork.

É irlandês.

Quem me contou tudo isso foi o “Brasil Médico”.

 

 

 

12.

Aristóteles grupou as manifestações dalma em inteligência e vontade.

Depois vieram os poetas românticos e deram em sentir, em cantar o amor, a morte...

E os psicólogos modernos foram obrigados a uma terceira classe: inteligência, sentimento e vontade.

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E ao frisar a gênese da nova categoria, havia uma ironia satisfeita nas barbas filosóficas do Prof. Radecki.

 

13.

República

Deodoro, todo no trinque,
bate na porta de Dom Pedro 2º.

- Seu Imperadô, dê o fora que nós queremos tomar conta desta bugiganga.
Mande vir os músicos.

O imperador camarada responde:

- Pois não, meus filhos, não se vexem.
me deixem calçar as chinelas;
podem entrar à vontade.
Só peço que não me bulam nas obras
Completas de Victor Hugo.

(Murillo Monteiro Mendes)

NB. Não sei quem é M. M. M.

 

 

14.

Passeio com duas pequenas. Noite. Na Avenida. Faz frio. Mas há muita gente. Domingo.

Dia de eleição com ajuntamento em frente aos ‘plarcards' dos jornais.

Minhas graciosas companheiras se impressionam com um rapaz que as olha. E diz uma delas:

- Tenho impressão de que aquele rapaz se chama João. Vá perguntar-lhe se se chama João e se é acadêmico de Direito. Vá. Esperamos aqui.

 

 

15

2.6.1929

La Fontaine é autor de uma fábula deliciosa.

Uma leiteira levava à cidade um pote de leite. Não sei bem se era pote ou bilha. Mas levava. Por cima da cabeça. Dentro lhe iam cinqüenta e três projetos de fortuna, de grandeza.

Venderia leite, compraria cabras. Não, comprava galinhas. Venderia galinhas, compraria porcos. Venderia porcos, compraria vacas... E foi subindo até acabar na idéia que hoje corresponderia a um bangalô, uma baratinha, uma caderneta no banco e um maridinho para enfeite e desfastio...

De repente tropeçou...

O pote caiu e quebrou.

 

 

16.

Tenho dó desses leiteiros que levam à cabeça o pote do Ideal, do Sonho e da Utopia.

Vão à cidade da Vida vender ao Futuro.

E o Destino perverso não os faz tropeçar, não. Mas água o leite. Ou o talha, ou o evanesce.

Daí surgirem os desiludidos, os céticos, os desconsolados, os malventurosos cujo Ideal azedou.

 

 

17.

O sábio, velho e silentíssimo filósofo, ao penetrar no religiosíssimo recinto, onde pretendia ser recebido para sócio, viu todos os presentes taparem irritadamente os ouvidos.

Agastou-se.

Não ouvia o menor barulho e seus passos eram bebidos sofregamente pelo denso tapete persa. Não compreendeu tanto horror. Mas não desistiu.

*****

 

 

18.

O presidente da Academia pôs-lhe diante o copo cheio de água.

Ele conhecida a história do copo dos silenciosos, como se conhecem as palavras e os gestos dos grandes homens.

Então agarrou uma pétala de rosa, muito ancho, muito tiunfante, e colocou-a no copo, sem extravasar uma gota. Houve apenas um leve arrepio na água...

*****

 

19.

O clube não queria saber, porém, do sábio, velho e silentíssimo filósofo. Apesar de ele se crer amante perfeitíssimo daquele “ouro”.

E se entrasse para a Academia, todos se retirariam.

Então o presidente derramou o copo e só ficou, no fundo, a pétala de rosa.

O sábio, velho e silentíssimo filósofo retirou-se. Queimado (com toda a sua filosofia). Desiludido. E intrigadíssimo.

*****

 

 

20.

Escreveu ao presidente, exigindo explicação da repulsa. Numa carta um pouco irritada e muito cheia de suficiência.

O prudentíssimo chefe dos taciturnos, daqueles parodiadores dalguma quietação nirvânica, respondeu, bondoso e superior: “'É que ele trazia consigo, na algibeira, um barulhentíssimo 'Ômega'!'

******

Vão-me dizer que isso é de Malba Tahan. Era o que eu também pretendia declarar.

 

21.

A história é de Malba Tahan. Nele a bebi eu. Ele que por sua vez bebeu... onde?

Não me digam, porém, que é tudo de Malba Tahan. O modo de contar é meu. E escutem lá Pascal. «Qu'on ne me dise pas que je n'ai rien dit de nouveau: la disposition de la matière est nouvelle ». Mais outra « pensée » que me defende : « Les mots diversement rangés font un divers sens... » (Pascal)

 

 

 

22

Dia de semana. 4 horas da tarde vulgaríssimas. Vou pela rua.

Vem pela rua um par de jovens negros. Cruzam comigo. E ouço a negra, fresca e luzida, dizer para o companheiro:

- “Pois eu, ó, quando o Zezé bebe nem que ‘seje' um tostão, eu descubro”.

 

23

A atenção espontânea é inteiramente subordinada à sensibilidade afetiva. É uma lei psicológica de Ribot. Quando o assunto é, porém, indiferente, costuma o hábito governar. Ex.: Todos os dias vejo esta bandeja com estes copos. Se um dia eu vir os copos sozinhos, logo me lembrarei da bandeja.

Agora se eu estiver com sede então me lembrarei da água. (Radeski)

 

 

24

Ele esperava a hora marcada para uma entrevista.

- Que tempo que custa a passar, santo Deus! – dizia.

Depois de uma longa prosa deliciosa e era o momento de se ir.

- Como o tempo voa! – dizia.

E enquanto o cronômetro marca imutavelmente esta coisa incomensurável – o tempo -, nós temos o capricho de exclamar que ele manga no caminho, ou voa!...

 

 

25

“Homo et mulier, ignis et palea, et diabolus non cessans insufflare donec accendatur”. “Homem e mulher é fogo e palha e o diabo a soprar até que pegue fogo”.

Bem se vê que é um conceito de anacoreta.

“Si mens non laeva,...”. É de S. Jerônimo o ditado.

 

 

 

26

Convenção. Sociedade. Preconceito. Respeito humano. Fita. Hipocrisia. Polidez. Conveniências. Educação. Gentileza. Amabilidade. Reputação social. É preciso não fazer feio. É uma questão de honra. Ora, você ainda é desse tempo?

Viva o rebanho de Panúrgio!

 

27.

Panúrgio tinha um inimigo, que era criador de carneiros. Chamava Dindenant. Queimado com ele, Panúrgio lhe comprou um carneiro e o jogou n'água. Era perto do mar. O carneiro balou, balou e todos os outros irmãos se atiraram n'água também. Dindenant se agarrou a um para o reter. Era o último. O animal também quis ir, porém. E arrastou consigo o dono.

Para mais informações, tratar com Rabelais. Um sujeito gaulês, do século XV. Dos fins do século XV. Endereço: Pantagruel.

 

 

 

28.

Alegria. Meus livros estavam encaixotados e eu os tirei para a luz e os coloquei nas estantes. Estavam encaixotados, havia quatro meses.

Meus grandes velhos amigos!

Velhos amigos e certos. Que nos dizem a verdade ou nos iludem. Mas que não nos desiludem.

O maior perigo de nossos amigos não é iludir-nos, mas desiludir-nos.

 

29

- Flor?

- Meu anjo?

- Sou louquinho por ti!

- És o meu suquinho!

- Não sabes como te amo!

São uns felizardos estes que conseguiram uma situação ilusória da vida. Dura momentos, mas como são bons!

 

 

30

São quatro horas da tarde. Daqui estou ouvindo

- Ô Pedro! Vai pra escola!

Depois percebo umas gargalhadas. Depois chora e chama “mamãe”. Depois diz:

- Vou com você.

 

E tudo ouvindo, eu penso:

Se a palavra é distintivo do homem, por que fala um papagaio?

 

 

31

« Ce qui se trouve le moins dans la galanterie, c'est l'amour ».

Isso é La Rochefoucauld.

Basta examinar os amores dos romances e das poesias. O romance gasta no amor os jardins, os campos, os céus, a terra, o mar.

A poesia vai mais longe e gasta até o divino, para o ente amado.

 

 

32

« Il y a peu de femmes dont le mérite dure plus que la beauté »

Isso é La Rochefoucauld. Mas é ambíguo: Acabada a beleza, ninguém quase descobriria méritos na mulher?

Ou então:

A mulher só encontraria estímulos para cousas meritórias na própria beleza. Acabada a beleza, acabaria a virtude, o merecimento?

Diatribe danada contra o sexo.

 

 

33

« Peu de chose nous console parce que peu de chose nous afflige »

Isso é Pascal.

Muito bem. Agora eu pergunto: haverá mesmo subordinação causal da segunda oração? Pouco nos consola será mesmo porque pouco nos aflige?

Podia dizer-se: Pouca coisa nos consola e pouca coisa também nos aflige.

 

 

 

34

«  Le silence éternel de ces espaces infinis m'éffraie. »

Isso é Pascal. Mas a frase podia ser minha ou até mesmo do Sr. Washington Luís. Graça Aranha a traduziu numa expressão predileta dele:

“Terror cósmico”.

Do qual ele vive querendo libertar a Deus e ao Diabo.

O certo é que com Graça ou sem Graça, continuamos a olhar o céu e sentimos um ‘frisson', quando pensamos, quando ouvimos "le silence éternel de ces espaces infinis".

 

 

35

Os gregos achavam que o sol era assim do tamanho do Peloponeso e ficava mais ou menos ali.

Pascal, conhecendo Copérnico e seu contemporâneo Galileu e Kepler tinha melhores idéias dos "espaces infinis".

Com a aparelhagem mais moderna, o homem foi vendo que os espaços eram mais infinitos ainda do que os sentia o solitário de Port Royal.

Se o diabo desse Pascal vivesse hoje...

 

 

 

36

Se o diabo desse Pascal vivesse hoje...

O nosso gostinho de supor deslocados os grandes homens admirados. Igualzinho àquele outro de supor o que que seria aquilo, se tal coisa fosse. Qual fez o mesmo Sr. Blaise de Pascal, quando falava do nariz de Cleópatra... se fosse menor.

Recorda-me uma carta de um meu amigo do tempo de colégio, me convidando a imaginar inutilmente o que não seria o episódio de Ignês de Castro – de Camões – na pena de Guerra Junqueiro. Meu amigo era doido por G. J.

 

37

Se o diabo desse Pascal vivesse hoje...

E a gente se esquece de que um homem, tirado de seu tempo e de seu meio, logo deixa de se ser. Ele não é mais ele. Terá havido algum homem de gênio, por aí, que no século XVII porventura havia de ser um autor de Pensées, mas que hoje não passa de algum Marconi, Édison, Einstein, ou mesmo Ford?

Dizem:

- Ah! Por que não aparece mais algum César, algum Alexandre, algum Homero, algum Napoleão?

- Mas, senhor, o homem é um produto do meio. Em compensação temos Mussolini, Marinetti, Marconi, John Gilbert, ...., Mme. Curie, etc. etc.

 

 

 

38

Thakeray um dia me perguntou – através de uma página de William James – se eu não gostaria de descer a rua Pall-Mall, de Londres, com um duque em cada braço.

- Ora se...! falei eu a Thakeray. Imagine-me, numa das ruas de sua bela capital, agarrando num braço o duque de Wellington e no outro o Duque de Caxias, enquanto Lloyd George nos tirava o chapéu com toda mesura... E os embaixadores da conferência do desarmamento nos ficavam apontando uns aos outros, ao passo que entrávamos, importantemente, no Buckingham Palace...

 

 

39.

« Il y a beaucoup de gens qui entendent le sermon de la même manière qu'ils entendent vêpres ». (Pascal)

Há muita gente que escuta sermão da mesma maneira por que escuta vésperas.

Como, porém, não se sabe muito, entre nós do Brasil, o que sejam vésperas, vou traduzir com adaptação o pensamento de Pascal. “Há muita gente que entende uma mensagem do Sr. Washington Luiz, como eu entendo inglês do cinema falado”.

 

 

40

Maeterlink, literatizador da inteligência das flores e das abelhas, propõe:

Numa garrafa horizontal, numa janela, o fundo para a luz, com o gargalo destampado há um mosquito e uma abelha.

O mosquito volteia e sai.

A abelha obstina-se do lado, do fundo, na tentativa inútil da libertação. Até morrer.

A abelha é menos inteligente do que o mosquito? Pergunta-se.

N.B.: Maeterlink, nas horas vagas, é espírita e comunica-se com o outro mundo.

 

 

41

O canário belga... digo, o escritor belga explica:

A abelha, prende-a o excessivo amor à luz. Age logicamente. Desconhece o mistério do vidro, inexistente na natureza. Crê estar na luz a única salvação. Daí a sua teimosia. Já o mosquito se agita tontamente e lá uma hora acontece descobrir a saída...

Conclusão minha: Por isso é que os tontos muita vez passam a perna nos inteligentes.

 

 

42

O que logo impressiona fortemente a quem começa a leitura dos Miseráveis, de Hugo, é aquela peregrinação de Jean Valjean, o galé, repelido de hospedaria em hospedaria e de casa em casa. Até que ele vai bater às portas do santo bispo de Digues.

Que palavras tocantes diz Valjean, ao apresentar-se!

O bispo diz-lhe:

- Antes de qualquer outro, tu tinhas para mim um nome: meu irmão!

 

 

43

Histórias de papagaios ouvem-se e repetem-se. De onde vieram, não se sabe.

Todo mundo conhece a daquele papagaio espirituoso. O patrão, um dia, nervoso, o agarrou e jogou longe. O papagaio, voltando ao seu poleiro, perguntou:

- Onde é que você estava, na hora do tufão?

 

 

44

Um brasileiro era todo “porque me ufano de meu país”. Um dia, ele ia receber na sua casa uma visita de embaixador. E queria para a recepção uma coisa admiravelmente patriótica.

E matutava no que havia de ser. Consultava a mulher. Faziam planos.

Ora, ele tinha um papagaio....

 

 

45

Tinha um papagaio... Estava achado! Havia de ensinar a psítaco cantar o “Pátria amada”.

Que sucesso!

E começaram os ensaios. Mas o palrantíssimo verde, nem uma palavra repetia! Nem uma nota da toada!

Que espiga!

Então o homem patriota o agarrou e tacou no galinheiro. Pra castigo.

A recepção esteve ótima. Daria algumas polegadas nas “sociais” dos diários. Ora, havia na casa um galinheiro...

 

 

 

46

E o embaixador queria conhecer as afamadas galinhas “Leghorn” do homem patriota..

E foram visitar o harém de Chantecler.

E quando chegaram diante, o espanto foi geral. As galinhas estavam todas formadas em batalhão. O papagaio na frente. E romperam estusiasmadamente a cantar o “Pátria amada”.

 

47

13.5.1929

“... como o vulcão de Empédocles que engole um homem para vomitar um Deus.”

(Honório Armond, Discurso de recepção na Academia)

 

Empédocles era um filósofo agrigentino. Um dia, contam, subiu ao Etna e atirou-se na cratera. Desaparecido, acreditá-lo-iam subido ao céu. O vulcão vomitou-lhe as sandálias que eram de ferro. (séc. V a.C.).

 

 

 

48

Empédocles foi ‘trouxa”. Vaidade prolatada ultra-túmulo. É o cúmulo que um homem busque uma morte inútil, só por causa da celebridade.

A gente hoje fala de Empédocles. Mas isso a ele de que vale?

O vulcão é que quis ser muito irônico. Vomitou as sandálias, como significando: foi o que se pôde salvar.

Em todo caso, o incidente já dá para uma frase redonda. Como a de H. A.

 

49

Reuniu-se a Academia, na forma de costume. E um sócio propôs:

- Tem-se um copo cheinho de água. Mergulhando nele uma pedrinha, um pedacinho de pau, a água transborda, derrama. Por que não acontece o mesmo se se mergulhar um peixinho?

Vê-se que essa academia era com certeza no Oriente.

O problema era transcendente.

Todos ficaram pensando...

 

 

 

50

No dia seguinte, a pergunta estava sem resposta. Durante a sessão, todos pensaram.

Um garoto, ouvindo o problema, correu a casa, encheu um copo de água e tacou um peixinho dentro. A água derramou muito naturalmente. Ele veio e mostrou aos acadêmicos.

Isso é contado por Mendes Fradique.

 

51

“ Eu pedia a Deus que me fizesse esquecê-lo. Mas, quando eu olhava dentro de mim mesma, eu percebia que minha boca pedia uma coisa e o coração pedia outra. Minha boca mentia, mentia, porque meu coração rogava ardentemente que ele voltasse, voltasse...”

(Uma menina, numa hora de sinceridade).

 

 

 

52

Perante o além.

Eis a posição em que vive a humanidade.

Mas as suas indagações continuam na eterna insolução. Para além do véu espesso de treva, nada vê, nada sente humanamente. Tem construído sistemas teológicos e sistemas filosóficos. Tem-nos destruído.

No fundo da consciência, persistindo, projeta-se a curva da interrogação.

 

 

53

As inteligências altas procuram orientar. Acender faróis pelo caminho. Com acervos de raciocínios.

Mas contradizem-se. Provam que existe um Ser primeiro. E provam que não existe.

No debate, a Razão oscila... Perante o Além, agita-se em ânsia...

Inutilmente. O véu de treva é altíssimo e profundíssimo. Ninguém o penetra com olhos humanos...


 

 

54

Só há um apelho: a Fé. Lâmpada maravilhosa que projeta um cone ampliativo de luz na espessura da muralha fatídica.

Um cone por onde o espírito rompe, tranqüilo e esperançoso, na claridade suave e acariciadora, até o país deslumbrado e magnífico de Deus.

Só a Fé. Mas não é luz humana.

 

55

«Un ranchito y um ombú.

Uma calandria cantora:

Y nel ranchito yo y tu»

Um dia, mais inexperiente e ingenuamente sonhador, eu imaginei que ainda havia de encontrar o grande sonho, em algum ponto encantado da vida, numa hora radiosa de mocidade.

 

 

 

56

Ele havia de surgir na plenitude maravilhosa. Com suficiência inebriante para a minha sofreguidão tão justa. O grande Sonho, luminoso e integral. Trazendo em si a razão de ser de uma mocidade ardente.

Num dia do futuro, numa hora radiosa e mais firme, ele surgiria...

No entanto, a realidade monótona faz temer já a desesperança...

 

57

O grande Sonho era para os dias da primeira maravilhada juventude como as concepções de Perrault para a alma infantil.

Parece que não virá. O que se projeta na minha frente é a possibilidade humana, difícil, desencantada da existência. Exigindo senso prático e energia. E constância. Para arrebatar ao Destino uma realização menos má.

(Do Diário de um ex-d. Quixote, candidato a Sancho Pança)

 

 

 

58.

A ânsia, mal da alma sonhadora, volta sempre. Para que uma alma cheia de veemências e utopias? Sempre torturada pelo inalcançado. Sempre tonta entre sombras de visões fugidias. Sempre a arder em aspirações esguias, como a flama que se afila, inútil e suavemente, no perene esforço para o alto, mas sempre aderida, presa à mecha negra de que brota em luz.

 

59

“Embarras de richesse”.

Conhece a expressão?

Acho-a pitoresca e significativa.

Vejo-me entre vários argumentos. Preciso escolher um. Mas acho todos melhores. “Embarras de richesse”.

Vejo-me entre várias coisas. Quero escolher uma. Todas porém me agradam de maneira especial. “Embarras de richesse”.

Os bandeirantes costumava morrerem carregados de pedras preciosas. “Embarras de richessse”.

 

 

 

60

Fhrynés [Frinéias] das ruas.

Você está quieto no seu quarto de estudante. Pelo jeito e pela hora calada, você está meditativo. Talvez moendo um problema que o livro lhe põe calmamente diante.

E, acaso, levantando os olhos do volume... Que graça venenosa e estranha passa lá fora no passeio! Num porte magnífico, ondulante, esbelto! Estátua viva e quente e tentadora!

A agulha, quando cai no campo magnético de um ímã, desnorteia.

 

61

Sua escrita é só essa?

História de valentia. Meu dono de pensão é quem na conta.

Entrou-lhe um dia, na venda, um freguês calado. E começou-lhe a sacudir com veemência uma balança. Meu dono de pensão é italiano e reforçado e é artista de cinema. Fez ver ao freguês que aquilo não estava bem. Mas o estranho homem quis fazer ao vendeiro – que é meu dono de pensão – o que estava fazendo com a balança: sacudir com violência.

Então...

 

 

 

62

Então o meu italiano, - que é vendeiro – o abrecou pela frente e o mandou com força à parede. Ia e vinha, nos safanões, o freguês. Uma, duas e três vezes. Na quarta vez, quando o vendeiro pensou que o estranho homem já estaria enfurecido bastante para uma reação decidida, este, se chegando perto, indagou muito calmo:

- A sua escrita é só essa?

- Sim... – disse o italiano.

- Então, até logo!

E saiu.

O dono da pensão riu e teve dó dele.

Teve informação: era um perturbado...

 

 

63.

“Mas o melhor encanto e o mais doce será quando tu, mais perfeita do que eu, me tiveres tornado teu servo. Quando, em vez de temeres que a idade te faça perder o mérito, tiveres a certeza de que envelhecendo te tornas melhor companheira ainda, para teus filhos mais experiente educadora, para tua casa, matrona mais nobre.

A beleza e a bondade não dependem dos anos: são as virtudes que as fazem brotar na vida”.

(Xenofonte)

 

 

64

“A beleza e a bondade não dependem dos anos: são as virtudes que as fazem brotar na vida.”

Dignas da pureza do espírito helênico tais palavras de Xenofonte.

E pensando na simpatia humana de que estão cheias, comparo-as com a vileza refinada e deteriorada de certa moral moderna.

 

65

A hora é matinal e fria. Pela janela vejo passar, deliciados, um parzinho de flirt, com certeza.

Vão conversando e rindo. Naquele passo negligente dos que estão andando mas não sabem que estão andando, e estacionaram no momento do coração. É tão cedo ainda! E faz tanto frio!

A hora do amor madrugou para vocês, ó filhos da ingenuidade e da ilusão!

 

 

 

66

Reler antigas páginas... Como há um gosto indefinível nisso!...Páginas que a gente escreveu outrora. São chapas flagrantes de nosso mutável mundo interior. Olhá-las é reconstituir estados de alma passados.

Quanta surpresa, quanto sabor num sentimento, num pormenor de que nos havíamos esquecido!

 

67

Thales, perguntado sobre o bem mais comum entre os homens, respondeu:

“A esperança. Mesmo aqueles que nada possuem, possuem a esperança”.

 

 

 

68

« Tu me fais l'effet pour le moment d'être situé dans la Lune, royaume du Rêve, province de l'Illusion, capitale Bulle de Savon... »

[Victor Hugo]

 

69

Aristides era cognominado o Justo. A instigações de Temístocles fora ele condenado ao ostracismo. E no dia em que se votou a sentença, um camponês – que o desconhecia lhe chegou perto e lhe rogou: Escrevesse na concha o nome Aristides.

Este perguntou-lhe:

- O senhor conhece Aristides e já lhe fez algum mal?

- Não – respondeu o camponês -, mas já estou cansado de ouvir chamarem-no Aristides, o justo.

 

 

 

70

A mulher canta, monótona, umas quadras de melodia infinita...

O papagaio faz caso irregular, entrando a qualquer hora...

O sabiá é doce e sentimental entre a algazarra dos canários...

O homem da horta passou...

Dois cães dormem na sala...

Um gato espera, ante uma porta fechada, uma coisa que não vem nunca...

Estamos na fazenda?

Não, na cidade.

Barulho de bonde...

De uma carroça...

Um tufão? Não, um automóvel.

“Cálculo de pi pelo método dos isoperímetros”, ...

Cinco horas da Tarde...

Vida...

 

71

Sei personaggi in cerca d'autore.

Pirandello é estupendo. Seis personagens à procura de um autor! É admirável! Tanto autor por aí, “in cerca di personaggi...”. E salta-me o diabo do italiano com logo seis personagens procurando um autor! Na verdade, muito mais do que seis personagens andam por aí. A questão é os autores os encontrarem. Agora, os personagens saírem à procura... É magnífico! Temo que sejam por demais oferecidos!

 

 

 

72

A aula do prof. Radecki constou de uma experiência, um teste. Numa lista de cem palavras, ver o que cada uma evocava no ‘cobaia' e em quantos segundos. O freguês deve responder rapidamente.

Durante a experiência, pensei maliciosamente numa coisa: ali estava um bom meio de a gente obter a verdade das mulheres. Só a falam quando não pensam.

Dizem.

 

73

Há apertos de mão que são frios. Como se a pessoa que nos estendeu o braço, o tivesse feito, mas esquecendo-se de comutar o interruptor da corrente afetiva, e que deixa passar a cargo do coração.

Entregam-nos uma mão inerte. E que coisa horrível!

 

 

 

 

74

Há apertos de mão que valem mais do que abraços. Em que a gente sente a trepidação significativa. E a carga eletrizada e boa que vem do coração.

Guardo a lembrança, a sensação de um.

Era numa estação com grande movimento. E na confusão de tantas pessoas, tantas despedidas e partidas só aquele aperto de mão ficou destacado e vive nítido na minha memória...

 

75

Só quando sentimos, escrevemos bem e conseguimos a expressão em que logo qualquer perceberá um não-sei-quê tocante, convincente.

E a gente vive sempre de maré. Há dias em que se está cheio de lirismo, com o espírito embalado nas divagações. Outros em que, tentando escrever, só se conseguiria uma página fria de desencantamento.

 

 

 

76.

Divagar... Cismar... Deixar o espírito boiar à toa, deixar vagabundar a imaginação... Pensar sem se saber o que se pensa. Abrir a sensibilidade e a emoção ante uma nuvem encastelada, ante uma poeira doirada que baila na luz poente do sol... Ver as imagens numa sucessão indefinível... Cismar.

 

77

De tarde...

Olho tudo e vejo sem nada ver propriamente...

O sol cai louro e tépido, alaranjando a paisagem... Na luz oblíqua e mal morna, dansam insetos transfigurados... E que poeira ondeante e leve! Longe, o céu faz uma baia azul e suave, entre nuvens calmas do poente... Um homem, um bonde, um automóvel...

De tarde...

 

 

 

78

Noite fria e feia. Noite pardacenta, úmida, irritante. Noite amortecida, pegajosa. Noite sem astros. Noite também sem escuridão. Têm razão os poetas quando não te invocam. E os novelistas, quando só te descrevem para narrar uma coisa desgraciosa. Penas na alma da gente como o chumbo encardido de que tens o aspecto

 

79

Fábula coreana

Um tigre caiu numa armadilha. Um homem passava perto. E o tigre falou:

- Amigo, socorre-me. Se me livrares eu te ficarei muito grato.

O homem falou:

- Não, você me come.

O tigre jurou, jurou e o homem com algum trabalho o tirou da armadilha. Então o tigre...

 

 

80

Então o tigre falou:

Soltaste-me. Muito obrigado. Mas estou com muita fome. E é impossível eu deixar de comer-te.

O homem protestou. Protestou em nome de tudo: o juramento, a palavra dada, a lei natural que proíbe se pagasse com o mal tão grande bem.

Enquanto discutiam, chega o coelho.

E...

 

81

E, saudado o tigre, informado da saúde dele, o coelho falou

- Mas, caro tio, que há que discute tanto com este homem?

E o tigre contou: caíra na armadilha, o homem passara, e tal, e o salvara. Mas estava com muita fome e era justo que o devorasse.

O coelho escutou com muitas aprovações.

Depois...

 

 

 

82

Depois, muito sentenciosamente falou:

- Está bem, meu caro tio. Devore sem escrúpulos o homem... porém, como foi mesmo que o senhor caiu na armadilha e ele o salvou? Mostre-me, estou curioso.

O tigre, se rindo para o coelho, falou: “olha aqui”, e entrou na armadilha. O coelho fechou-a depressa e disse ao lenhador, que era o homem:

- Agora, meu caro senhor, vá-se embora. Aquele patife tem que morrer.

E se foram.

 

83

Aqui está o fio de que se tecem as tragédias domésticas.

Num arrebatamento, ou estado de endemoniação incompreensível, como esse em que vejo, agora de tarde, a mulher de meu hospedeiro.

Coisa inadmissível, inexplicável, desesperante, cousa enfim para a qual só há uma razão: coisa de mulher.

 

 

84

Coisa de mulher. Esse modo de ser absurdo, enlouquecedor de que fica possuída quando quer ser ruim.

Faz-se megera. Ou harpia. Contaminante. Envenenadora.

A mulher é um anjo... divina companheira... que fosse ao diabo tal anjo, espírito danado de Lusbel, acendedora do inferno em que vive o homem!

E são comuns.

 

 

85

É desse fio miserável que se tramam as tragédias.

Quem pressinta a miséria de nervos a que ela pode conduzir um homem, compreenderá então por que há desastres. É horrível. Horrível mesmo. Só vendo para acreditar.

Livre-nos Deus e guarde de encontrar uma assim. Nossa Senhora!

 

 

86

Por umas Evas assim é que a gente percebe a razão de tanto haver falado delas o experimentadíssimo Salomão: “Non est nequitia super nequitiam mulíeris” [“Não há ruindade maior do que a ruindade da mulher”]

Coisa pior que cobra. Síntese peçonhenta de desgraças para o homem.

Virgem Maria!

 

 

87

Certamente que o cúmulo do frio é o esquimó, o groenlandês, cavar a sua toca num bloco de gelo, para caçar ali dentro um pouco de calor...

Conheci um holandês que não falava “sôpa”. “Sópa" é o que ele dizia. Um dia ele me contou, com um riso arrancado, todo neerlandês:

- Na minha terra faz tanto frio que, quando a gente fala, as palavras viram gelo e caem no chão.

 

 

88

Lord Campbell dizia:

“Preciso estar nos meus aposentos, enquanto os meus companheiros estão pelos teatros. Preciso estudar enquanto eles dormem”.

Field:

“Quem se levanta mais cedo e trabalha o máximo de horas compatível com uma resistência sadia, esse é que ganhará o prêmio”.

 

 

89

“Forma, bonum fragile” – diziam os antigos. “A beleza é um bem passageiro”.

E é ela quem fascina o idealismo de quaisquer vinte anos. E quantas vezes só ela prende. Sendo efêmera, passa. E quem se havia prendido por leis humanas, fica preso. Preso pelo bem que era. Preso agora ao que deixou de ser.

Quando ainda há a bondade, a bondade é beleza... A rosa, flor em viço, é um encanto perfumado. Quando, porém, murcha, se me não engano, é um drástico excelente.

 

 

 

90

Dizem que Newton cozinhou um relógio enquanto, com um ovo na mão, marcava o tempo.

Do padre Secchi se narra: Como lhe esquecia na alta matemática a hora do deitar, ficava um irmão encarregado de, à meia noite, lhe dar um sinal na porta. Certa vez o irmão passou e deu o sinal:

- Já vai – falou Secchi.

E continuou. De manhã o irmão passava acordando.

- Já vai...

- Não – disse o irmão – agora é hora de levantar.

 

91

Fui a Mariana, a anciã venerável de Cláudio Manuel da Costa. Já vivi ali um ano e meio e gostei de recordar um pouco aquelas boas velharias.

Em Burnier embarca um amigo. Vamos em boa prosa. De Ouro Preto em diante, Mariana foi assunto nosso. Cidade morta. Solidão. Alphonsus de Guimaraens... Lá a certa altura meu amigo falou:

- Sabe que Mariana ontem mandou um portador urgente a Ouro Preto? Pois mandou, afim de indagar em que dia da semana se estava...

 

 

 

 

 

 

92

- Aceita um bocadinho?

- Não, senhor. Obrigado.

- Mas, um pouquinho só?

- Não, senhor. Não posso.

- Ó, não faça cerimônia!

- Não, muito obrigado. Estou satisfeito.

- Um tantinho mais não faz diferença. Deixe-me servi-lo.

- Não, faça o favor, tenho proibição médica.

- ahn, ahn! Então sim!

- (Em voz baixa) Carregue-te o demo, impertinente!

 

93

Moreninha de olhos pretos
Por quem eu era capaz
De fazer até sonetos.

E de lábios coloridos
Que me perturbas assaz
Os onze em doze sentidos.

E cor de jambo, nas faces,
Eu bem queria, morena,
Que me amasses,

E desejava, pequena,
Que batesse para mim
Teu coraçãozito lindo.

E que me olhasses assim
Com teu olhar doce, infindo
De fazer perder o siso.

Que suco, que paraíso!

 

 

94

(Está ele sentado; ela, de pé, lhe envolveu, com o braço, o pescoço).

- Não te zangues, meu amor.

- Ora, gente, não estou zangado.

- Sim, bem conheço essa expressão amuada.

- Não, estou é um pouco nervoso...

- Não me queiras iludir. Sei muito, querido: foi a conta da modista. Mas, ó Paulo, havia duas semanas que eu não fazia uma compra... E viste ontem como Diva passou numa toalete tão bonita... E eu...

- Mas não é por isso...

- Iremos hoje ao baile da Associação?

- “Pois sim... – levantando e saindo seco para outra sala.

 

95

“Vim do Japão, lá longe, onde havia crisântemos e casas pequenas todo de madeira, e tremores de terra. Onde os homens com a cara redonda da lua e olhos amendoados são cheios de paciência para a arte e de amor para a flor e para o chá. Um dia embarquei num porão de navio. Éramos tantos para a terra pequena! E aqui a terra, diziam, era tão grande! E havia de ajuntar muitos yens. Hoje, vendo bonecos, ventarolas, leques, cromos de esteirinha ... E enquanto vejo passar as “oirans” brancas, tenho saudade das gueixas, das gueixas...”

 

 

 

96

E senti que um brisa dolorosa, mansa, pungente, agitava baixinho seu espírito, enquanto falava... E seus pensamentos ondeavam numa plangência rítmica de música melancólica... Sua voz ficou tão sentida, cheia de uma expressão dolente, consciente de qualquer coisa muito grande, muito irremediável. E seus olhos estavam cheios de sombra. Tive a percepção de que era a sombra de sua pátria.

A sombra enorme, enigmática e mística de sua pátria...

 

97

Romantismo... Sentimentalismo... Sensitivismo... Males da alma indeterminados... Correntes afetivas que nascem misteriosamente, que vêm não se sabe de onde... Fluxos e refluxos de ondas, originários das regiões profundas do interior, mas não determinadas. Tal qual as marés oceânicas. ..

Romantismo...

 

 

 

98

Imperativos do afeto. Ordens do coração. Despotismos da amizade.

As palavras são fortes e a realidade é suavíssima.

A indiferença, no desejo mais simples de realizar, é de uma exigência enfadonha.

O interesse é ordinário. Mas a amizade tem uma tirania suavíssima. Tem o jugo suave, numa apropriação de frase do Evangelho.

 

99

O interesse grita feito um instinto. A indiferença, quando consegue, é pela imposição, pela força. À amizade basta uma simples manifestação. Um esboço. Um subendentimento.. Ao coração, um pingo é letra. Os formidáveis sacrifícios fazem-se sorrindo...

 

 

 

100

Por aí é que se entende o prazer de encher as paginazinhas de um bloco... Imaginando constantemente em alguém que as vai ler.

A delícia de estar falando palavras que aqui são frias, mas que vão aquecer-se ao cabo da simpatia.

Delícias de suavizam a existência de um “Só”.

 

101

BICHOS DO PARQUE

Estive olhando os zoológicos no parque.

mutum

Passou um mutum no caminho, entre os canteiros. Parei para o espiar. Ele continuou. Depois, deteve-se. E parecia estar examinando qualquer coisa no chão. Com muito cuidado. Ouvi uns gemidos que eu não sabia de onde vinham. Notei que o pescoço dele inchava. Daí a mais, ele subiu num banco. Reedição da pose. Seu pescoço inchou e os gemidos vinham dele como de um ventríloquo.

 

 

 

102

1º macaco

Pequeno. Um cebídeo qualquer. Uma cara ordinária de viciado. Um jeitão de certos meninos de colégio. Gatimonheiro. E deslavado. Exibicionista. Para ele aquilo é um circo e seu papel há de ser bem desempenhado.

Vem à tela da grade. Olha-nos com expressão inteligente e moleque. Faz ginásticas únicas nos poleiros ou trapézios. Apanha não sei o quê lá de seu almoço e vem junto à tela estafar aquilo nos dentes, que mostra. Olha-nos muito e muito.

E aconteceu que, num gesto incivil, diante de todos que o apreciavam, ele bocejou largamente.

 

103

2º macaco

Tinha o aspecto desiludido de quem chegou à conclusão de ser tudo vaidade. Um jeito transpirado de Diógenes mal compreendido. Colocado em uma prateleirinha junto à grade, ali se equilibrava estoicamente. Ficava todo enroscado sobre si mesmo. Não sei se numa concentração egoísta. Do rabo em caracol fazia travesseiro. Calmo e pensativo. Olhava-nos com um olhar que parecia vir de um longe interior eneblinado e indistinto. Cheio de uma quietação amorosa e triste. Fiquei imaginando se não haveria naquela cabeça fosca um grãozinho da substância com que se fizeram os cérebros de Sócrates, Pascal, Édison ou Marconi.

 

 

 

104

martim pescador

Dentro de um grande viveiro. Periquitos barulhentos. Pombas arrulhando com uma melancolia perdida de mata, em plena manhã e pleno sol e pleno movimento esportista no parque.

No centro, em uma elevação, à beira de uma vasilha d'água, um martim pescador. O bico atlético, os olhos fortes e uma aparência meditativa e perscrutadora de sábio em elucubrações. Com certeza nostalgia de beira de lagoa ou de algum São Francisco. Mirando e remirando, parecia vigiar o possível e absurdo aparecimento de algum lambari na aguazinha da vasilha.

 

105

siriema

Pernas finas. Bigodes ríspidos ladeando o bico. Mede a passos metódicos o soalho do viveiro. Com umas passadas semelhando às de um convalescente com prescrição médica de passeios matinais. No alto de suas pernas, o seu corpo joga ritmicamente, como um navio ao impulso arquimediano de um invisível líquido. O mede-léguas da carochinha ligava as pernas para moderar os passos. Ela, sente na fatalidade do arame a restrição que lhe impuseram. Seu gesto mais significativo foi quando espreguiçou plenamente uma das pernas.

E não canta. Com certeza porque ali não é alto de pasto, como na minha terra...

 

 

 

106

raposinha

A raposinha dormiu o tempo todo em que a olhei. Como um cão de casa. Na mesma posição: a cabeça quase metida entre as pernas. É pequena. Orelhas pontudas como uma folha.

Dormiu, dormiu. Sonhava talvez com as fábulas de La Fontaine. Invejando as heroínas suas irmãs em todas as peças que pregaram aos incautos. Sobretudo aquela ótima do corvo e o queijo, na árvore. E calculava se estava ali enjaulada para pagar tratantagens de antepassadas tão longínquas.

Vingava-se: não se importando. E dormindo.

 

107

as araras

Barulho. Gritaria rachada, dura e crua. Algazarra tropical. Pensam que estão na mata, entre palmeiras selvagens. A estalar coco com seus bicos recurvados, ciranescos. Irritando o farfalhado macio dos ventos e o silêncio da floresta. São cinco araras. Cinco comadres detestáveis. Duas muito vermelhas, vermelhas. Outras verdes. Metem a cabeça fora da grade, olham não sei o quê, e gritam. Sons brutos, ásperos, ríspidos, primitivos. Um mestre sabiá gastaria inutilmente uma existência para educar as vozes de senhoras com tão belas toaletes, lutando num esforço eterno para pegar o tom. Estão sempre fora.

 

 

 

108

duas pintadas

Dois grandes gatos de pelo rajado, vivo. Muito vivo. Deitados sobre as patas e cochilando. Como qualquer gato. Percebia-se a compleição reforçada das patas fazendo pensar na elasticidade e na força para a luta. Tudo exigências de seu alto idealismo: alimentar-se da vida quente de outros animais. Depois, uma delas movimentou-se e começou a lamber felinamente uma pata ... do seu corpo. A outra rosnou. Insultaram-se como dois brigões. E atracaram-se. E o guarda, com um pau, as veio separar.

Também já é incompreensão botar duas “onças” numa jaula...

 

109

sussuarana

Pose de um gato gigante. Deitada, mas a cabeça alevantada com uma afetação quieta e majestosa. Com um desdém enorme pelas grades. "Mesmo aqui imaginarão no meu valor de rainha da floresta brasileira. Cortaram-me o espaço para os saltos e alimentam-me com rações mesquinhas de carne resfriada. Mas adivinham como deve ser terrível o meu bote sobre a presa que estraçalho quente. Vejam bem se não há no meu aspecto a nota iniludível da raça. Basta-me o nome. Vocês não prendem aqui um gambá. Apesar de serem (???) na seleção, porquanto estou vendo ali um viveiro, um casal de galináceos 'Leghorn'."

 

 

 

110

E ela voltou.

Pequena petulante. É como a denominamos. E ela o é mesmo. Não no sentido de ser muito suficiente, de estar cheia de si. De ser altiva, nem orgulhosa, nem desdenhosa. Mas no sentido de todo o seu lindo ser vibrar com uma graça provocante. É uma petulância emanada. Não é ela. É o seu corpo. Ela não é petulante, mas sim: há petulância nela, simplesmente.

 

111

Refletia:

Às vezes há dentro de mim uma voz que me fala não sei o quê. E ecoam lá dentro pensamentos exóticos. E fico tolo da sucessão dos absurdos que se movem no meu interior como num palco. Ou numa tela de cinema. Tanta coisa! Donde sairão todas elas?

A cabeça de gente é uma admirável máquina. Isso é que não tem dúvida. Uma admirável máquina...

 

 

 

112

O homem reclamou:

Mas isso é um desaforo! É o cúmulo! Não estamos mais nas senzalas! E a Rússia dos Czares já caiu. Onde já se viu coisa semelhante? Em pleno regime de liberdades, na vigência de todas as constituições, cometer o governo tais crimes! Não, não pode! Onde está a fibra de 42? E o Tiradentes? Pra onde que anda o Tiradentes? Pisam-nos e ajeitamos o corpo! Cospem-nos, e limpamos o escarro. É demais!

Tudo entremeado de garfadas e bocados de pão.

 

113

E disse:

Estou cheio de amor. Todo o meu ser transborda. Todos os meus músculos e meus sangues cantam. E há uma harmonia morna vivrando minha carne, como um teclado macio. E sonho eternidades desse prazer indefinível. E acho que o natural é a embriaguez do vinho de Cupido. Cupido, o bodegueiro antigo, viciador contumaz de todos os vinte anos na vida.

E como se nunca mais acabasse, entrego-me completamente à sua plenitude.

 

 

 

114

A praça era enorme. O homem falava à multidão. Estava bem trajado e barbeado, encadernado enfim, uma boa edição. Edição de luxo até, considerando-se que era filósofo e não um Bruñuel, ou um príncipe de Galles. Não havia mais sol e apenas alguma luz laranja esparramada nos morros altos.

E o homem dizia: “Pois é como eu vos digo, ó filhos da Natureza. Há muitos mil anos que o homem está errado. E caminhamos para o mais alto da crise. Caminhamos para um desfecho. Cumpre reformar tudo, tudo. E minha voz há de falar-vos, há de pregar-vos, há de agitar-vos até que eu veja vontade e ação. Porque foi este o destino com que saí do ventre da terra.”

 

115

E ele me explicava:

“Um bairro não é a cidade. Nada da cidade. É uma coisa especial. À parte. Sua ligação é unicamente oficial. A vida, os modos, o aspecto, é tudo diferente. E a impressão causada é claro. Ali vêm os da cidade. Dali vão à cidade. Mas o bairro tem personalidade própria. Deixa na gente uma sensação séria de se estar longe da cidade. Entretanto, não houve solução de continuidade nas casas, nas ruas. A separação típica está nos homens e nas coisas. Repare bem se não é assim.”

 

 

 

116

E eu olhei maquinalmente, como se de fato quisesse reparar. Passava gente endomingada para a missa na igrejinha. Eram nove horas da manhã. Numa casa em frente, havia tiro ao alvo com espingarda de rolha, para matar, matar maços de cigarro a distâncias respeitáveis. Parou um cargueiro de galinhas e o dono do botequim então gritou, imitando o vendedor: “Olha galinha barata, quinhentos réis cada uma!”. Três desocupados, no passeio quieto, conversavam brasileirices. Meu amigo, enquanto falava, ia golegolando um cálice de cachaça e comendo biscoitos de polvilho. Um negro sentara-se vizinho, e como eu o olhava, quando o serviam, me disse: É servido de tomar chocolate? – Muito obrigado!

 

117

Encontrei a arte chorando na porta da casa do Mário de Andrade.

- Que tens, meu anjo?

Ela olhou-me cheia de amuo, e respondeu-me:

- Veja só como ele quer que eu vá para a rua: vestiu-me com uma saia rodada de chita sem graça, feito se eu fosse uma negra baiana; me besuntou o cabelo com banha; me pôs no pescoço este colar de biribiris e lágrimas de-nossa-senhora; me calçou estes chinelos de tapete. E agora quer que eu vá à casa do Graça Aranha para ver se está bom...

Nesse momento, o Mario surgiu à janela e falou:

- Você ainda não foi não, menina? Olha que me pagas, hein?

Ela saiu muito vexada.

 

 

 

118

A fim de a animar um pouco, resolvi acompanhá-la. E fui notando, rua em fora, as impressões.

João Ribeiro, cruzando-a, sorriu com aquela malícia velha de quem conhece todas as ingenuidades.

Alberto de Oliveira passou com a cabeça alta, olhando em frente, passos rigorosamente metrificados. Tive a sensação de frio. A Arte o olhou assim com uma expressão embevecida e interrogativa, sem saber que príncipe era aquele.

Paul Morand conversava com Blaise Cendrars e Agripino Grieco, no passeio. Movimentaram-se quando nos viram.

 

119

O autor de Rien que la Terre tirou o chapéu e quis rasgar uma palavra em português, mas engasgou porque o Grieco não teve tempo de traduzir.

Cendrars, à passagem da baianinha, fez-lhe uma vênia assimétrica com seu único braço!

E continuamos.

Dois ‘imortais' se desviaram, comentando em voz baixo e num jeito muito gesticulado.

Ronald de Carvalho ajustou os punhos de renda e o lornhão para uma vasta mesura. Feito um ex-nobre de Luis XVI, metido no “Tiers-étalat”, homenageando a deusa Razão...

 

 

120

Num ponto do bonde, o João Alphonsus e o Carlos Drummond, mais os óculos do Carlos Drummond esperavam. E o João:

- Mas que moreninha, sim senhor! Imagine quando aquilo chegar à idade de Balzac?!

E o Carlos, com alguma poesia :

- O Mário é um modista de primeira!

Moços agramaticais gracejavam: “Vamos no cinema, hoje, meu jambinho?”.

Enquanto senhores graves se escandalizavam de ver, na avenida, menina tão barbaramente vestida...

 

 

121

E todos aqueles incidentes tiveram seus efeitos.

A boa morena ora se encontrava humilhada com o desprezo aristocrático da gente alta, ora se enfunava convencidamente com os cumprimentos. E se foi satisfazendo. E foi querendo achar que seu tio Mário tinha razão.

No fundo lhe ficava um instintivo pesar: vestida assim ela não podia penetrar nos salões da alta, onde mandam os modelos oferecidos pela academia.

Sentia-se nacionalizada. Também Graça Aranha dentro em pouco lhe diria sua opinião... Deixei-o quando tocou a campainha à porta do autor do Espírito Moderno...

 

 

 

122

Com um português.

Um sujeito chegou perto de um português, no Rio, e lhe disse:

- Ó Manuel, tua mulher está a passar mal em Niterói.

E o português zarpou no Cantareira. Chegando ao outro lado quando tomou um táxi e o cinesíforo perguntou “para onde”, é que ele caiu em si: “Mas, que diabo! Eu não sou casado. Eu não moro em Niterói e não me chamou Manuel...”. E voltou.

 

123

Um mondrongo de Trás-os Montes foi passear a Lisboa. Tirou um retrato ao pé da estátua de Camões e o mandou para a mulher, com os seguintes dizeres nas costas:

“Aí vai o meu retrato ao pé da estátua de Camões, o grande poeta da raça. Camões é o de cima”.

 

 

 

124

O rapaz estacou em frente ao clube e ficou olhando lá em cima um disparate de música e de luzes e de pares girando. Tudo estufando da sala para fora, através das janelas e vindo até ele, na rua, ao léu, no sereno espiando.

Sentiu-se muito só e ficou triste. Na noite fria e estagnada de domingo não sabia o que fazer. Teve inveja dos cheios de alegria lá em cima, na plenitude dos pares. Depois, no entanto, ele viu que aquilo tudo, que aquela predestinação de felicidade se comprava a cinco mil-réis o ingresso. Tudo muito eventual e fictício.

E foi tomar um chope duplo.

 

 

125

O idealismo é um dos piores males de que sofre o homem. Doença perigosa cujo fruto fatal, constantemente produzido é o descontentamento, a insaciabilidade. Sempre aspirando a mais. O medíocre, o curtohorizontado põe sua ambição num empreguinho, numa casa, numa mulher para o amor e os achaques... e vive burguês, visita os vizinhos, recebe os amigos em pijama, escuta vitrola, vai ao cinema falado e é feliz. Apesar dos aborrecimentos com um dos chefes ou com o rival da repartição. E apesar do “Packard” e do palacete, ao lado de sua residência.

Mas o idealismo é sem remédio. Despreza a burguesia. Sonha muito. Irrita-se. Insatisfaz-se.

 

 

126

Os horizontes de seus desejos ficam longe. E seu caminho perde-se na distância no rumo de um castelo grandioso, cujas torres se esfumam na bruma, para além da realidade.

E ele se deixa a imaginar que só quando chegar será feliz. E tortura-se, porque nem ao menos lhe vem uma sensação de aproximado. Pelo caminho sempre lhe falta alguma coisa necessária à viagem. Consome-se na inquietação do provisório. Do não definitivo. Vê-se transeunte. Hóspede com o pensamento no termo da jornada.

Um dia morre, feito um Moisés reeditado, vendo longe a Terra Prometida...

 

127

João Lopes é sujeito material. Grosseiro. Sem poesia. Entra na macarronada e no vinho, feito um glutão. Depois é a disputa, mal estar... Bicarbonato.

Mas o Franklin, sim. Embrulha sua codorninha. Vai para um alto, junto a umas árvores. E come na paisagem.

 

 

128

Quanto ela mudou. Emagreceu. Enfeiou. Com que pesar, tenho esta desilusão! Sua imagem que até agora vivia dentro de mim era bem outra.

Era a imagem de uma Laura, há cinco anos, fresca, viçosa, linda. Uma tentação vibrante! Reconstituí carinhosamente todas as lembranças para agora as ver desmentidas por uma realidade sem graça. E o pior é o doloroso que há em torno do desencantamento. Porque, na verdade, ela bem percebe a situação pungente e reconhece que não há remédio para a ruína de um sonho...

 

 

129

Midas era rei da Frígia. Baco lhe concedeu o dom de transformar em outro tudo que tocasse. O que aliás o enjoou.

E o vinhateiro Deus lhe mandou que se lavasse no Pactolo.

Pior foi o seguinte: Preferiu a flauta de Pã à lira de Apolo. Este, irritado, aplicou-lhe um soleníssimo par de orelhas de burro. Ocultava-as Midas. O barbeiro as viu. Como bom barbeiro, não agüentou guardar o segredo. Confiou-o a terra, enterrando-o num buraco. Do lugar nasceram canas que, ao sopro do vento, diziam: “Midas, o rei Midas tem orelhas de burro”. Coitado!

 

 

 

 

130

Havia festa no céu. Os bichos deviam ir fantasiados. Cada um se apresentou. Um macaco se vestiu de Pierrot. Um burro se vestiu de leão. A rã trazia chifres e aspectos de um touro.

Todos iam chegando. São Pedro os olhava, satisfeito, e mandava entrar. Chega o elefante, e S. Pedro falou:

- Mas, elefante, você não se fantasiou, não pode entrar. Todo mundo vê logo que você é elefante mesmo!

- Não, estou fantasiado!

-!?

- Estou fantasiado de periquito. Olhe a peninha no rabo.

 

131

Houve um incêndio numa casa da praça da estátua do Deodoro – Deodoro a cavalo. Na casa havia um papagaio. E o coitado passou mal com o fogo que o apertou bem. Afinal um bombeiro se lembrou de tirá-lo. Levou-o para a estátua do marechal que proclamou a república. Ao ser deixado, o papagaio ajeitou, remexendo as asas, e disse:

- Que calor, hein Deodoro!

 

 

132

O padre falou:

- Vou correr a cortina e quem não enxergar uma N. S. muito bonita que está dentro do nicho, é porque está em pecado, é criminoso, é alguém filho natural...

E corrido o pano, abriu-se um nicho vazio. Mas todo mundo começou a ver uma N. S. e cada um lhe citava um pormenor. Um capiau, entretanto, se impressionou. Olhou, apertou a vista, esfregou os olhos... nada.

.............................................

 

133

 

Morre o velho. Um parente tratante vai a um tabelião e diz:

- Meu tio me manifestou como queria fazer o testamento, mas acontece que ele perdeu a fala, e está mal. Vamos lavrar seus últimos desejos. Ele só sabe falar com gestos de cabeça.

Tabelião, chegando lá, num quarto meio escuro, pouca gente, percebeu que havia qualquer coisa. E começaram o testamento por perguntas que o velho aprovava com a cabeça. A quem deixava isso e aquilo, e o sobrinho perguntava se não era para ele, e o velho sinalava com a cabeça.

 

 

 

134

 

Tabelião foi vendo e descobriu o truque do tratante. E falou:

- Seu Fulano, o senhor sabe: tabelião precisa viver. O senhor deixa para ele umas apólices, não é?

Mas o velho ficou quieto. O tabelião repetiu a pergunta e o velho repetiu o silêncio. O tabelião falou:

- Ô moço, ou você puxa a corda pra todos ou então não puxe pra ninguém!

 

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