I - ANTELÓQUIO
Antelóquio é uma
conversa preliminar, um prefácio.
Nem sempre o autor
detém o leitor à entrada da obra. Entra com ele,
sem ambages, pela casa a dentro. É um método. Outros,
porém, de avisados ou de premunidores, acham bem prevenir
o curioso que lhes vem a conversa, com satisfações
e entradas a que afinal tem direito quem compra uma conversa.
O antelóquio
à biografia de Xavier devia ser um prefácio, porque,
quando o têm, o que as biografias têm é prefácio.
Um romance, entretanto, não costuma ter prefácio.
E a biografia de Xavier é a história de um herói
tão desconhecido que, sendo biografia, parece romance.
A vida de um Napoleão
é biografia aceitável como biografia, mas a vida
de um anônimo passa como alguma invenção imaginosa
do autor. Apesar de que há mais fantasia em muita documentação
'histórica' sobre Napoleão do que na história
de Xavier.
E a matéria
biográfica chegou a relatividade tal, nos tempos modernos,
que o homem criou, de uns vinte anos para cá, o gênero
literário da "biografia romanceada", que nos
sugere um conúbio suspeito entre o testemunho e a verossimilhança.
Em primeiro lugar
se declara que esta biografia tem muito de autobiografia. E onde
não é autobiografia é confissão. Confissões
de Xavier em largos anos de convívio.
A história
está quase toda em manuscritos deixados em mãos
do apresentador dela, antes de o herói partir para a guerra.
O que não se documenta no cronicário íntimo
é reminiscência ou dedução lógica.
Por que se escreve
tal biografia? Porque Xavier, numa carta que mandou, desde os
Estados Unidos, pouco antes de morrer, lamentava ter de ir-se
antes que pudesse deixar uma lição, uma palavra
de si mesmo, que justificasse o fato de ele ter ocupado um lugar
no espaço, homem entre os homens, num instante efêmero
dos milênios. Chegado ao fim, parece que o torturava uma
angústia pascaliana de se entender e explicar.
Aquela carta gerou
o plano desta biografia. Tomara Deus que seja uma lição
e mensagem. Se o que nascer destas páginas acaso não
for o exemplo que pretendia, bastaria a notícia de como
arrematou a existência para fazer dele o exemplar que aponta,
dizendo: Faze como viste. Fac ut vidisti.
Quem foi Xavier?
Maurois ou Ludwig
estariam em situação igual à nossa, caso
tivessem de responder à pergunta em biografia romanceada.
É uma grande
vantagem contar a história de tipos solares como Byron
ou Napoleão, que brilham claro nas páginas do Ocidente.
Contemplar um sol
ou ser tomado na sua luz não exige especial curiosidade.
Basta que o ponham acima do horizonte. Milhões de seres
humanos podem interessar-se em uma notícia, por menor,
da vida de Byron ou Napoleão. Mas quantos se interessariam
pela de Xavier?
Se o coordenador
desta história o apresentara como alguma revelação
de milênios, ou mesmo de séculos, provocara, de certo,
a abelhudice de alguns indivíduos, de olhares telescópicos,
que amam estender a miudeza de suas perquirições,
ao longo dos tempos, até às perdidas eras de onde
se desentulham césares e faraós, concreções
arianas e reconstituições de cavernas ou paliçadas
lacustres.
Escreveu Mitteis
que, se o século dezenove foi o século da epigrafia,
o século vinte deve ser chamado o século da papirologia.
Seria interessante
ao leitor, se a resposta à proposição quem
é Xavier o apresentasse como alguma recente e curiosa
revelação papirológica, uma entidade quase
mítica, roubada ao silêncio milenar de escrituras
demóticas, desencavadas nos areais desérticos da
Tebaida, por um corpo de pesquisadores da Egypt Exploration
Fund . De sob a decifração de um Hunt ou Kenion
e a diluição germanicamente analisante, através
de reflexivas e profundas glosas, de Milcken ou Spiegelberg, surgiria
Xavier, real e vivo. Tomaria a forma do quase divino e honrado
Xa-Vir ou Xa-Ver, grande Conselheiro de Ciro, o Persa. Xa-Ver,
olhos e ouvidos do Grande Rei, Xa-ver, o predileto de Aúra-Masda,
o fiel intérprete de Zaratustra, o planejador da guerra
contra Creso, o incrível rei da Líbia...
Seria ainda interessante
a uma sabida classe de leitores, alevantar Xavier, triunfalmente,
como versão e ramo ibérico dos Saveri, brava raça
de condutores, no trecento italiano, gente áspera
feito Montecchios e Capuletos, geradores, ainda por cima, de Romeus
e Julietas, para que fosse a matéria, matéria digna
de Shakespeare.
Infelizmente, Xavier
não é isso, ou isso não é Xavier.
O leitor de belas reconstruções históricas
feche o livro e que se vá. Good luck!
Louvado seja Deus,
que há mais coisas no céu e na terra, como diz Hamleto
a Horácio:
There are more things in heaven
and earth, Horatio,
than are dreamt of in your philosophy.
Sim, há mais coisas no
céu e na terra do que imagina a filosofia de Horácio.
E mais leitores, também, do que os buscadores de sóis,
com seu Bedecker na mão, e o dedo na página de conferir.
Para algum deles
vale a história de Xavier, que foi, tão somente,
uma flama ardendo, como numa vela.
Nasceu, viveu, foi
bacharel e sonhou.
Um dia, na Itália,
uma bala nazista o atingiu na espinha. Um avião atravessou
o mar, com ele, para os Estados Unidos. Inutilmente o tentaram
salvar. Liquidado, também ele, entre milhões, na
chacina, partiu desta pra melhor, sugerindo-nos a impressão
de que não lhe pesava muito deixar um mundo em que pouco
se entendeu. Entretanto, sua última carta, norte-americana,
lamentava, em balanço, o ter tido uma vida vazia, vida
cuja lição gostaria de ter aprendido melhor, a fim
de merecer também sua classificação, na corrida
do fogo simbólico.
Na sua modesta lição,
menoscabava ele o mérito sublime que é morrer lutando.
Porque ainda guarda o sabor milenar da sua beleza a afirmação
horaciana de que é suave e decoroso morrer pela pátria.
Dulce et decorum est pro patria mori.
E Xavier morreu
pela pátria!
II - XAVIER EM CASA
1. O nome
Quando grande, todos lhe chamavam
Xavier. Mas, em pequeno e em casa, tinha o nome de José
Vieira. A explicação da mudança virá
depois.
Seu pai era Francisco
Antônio das Chagas. Sua mãe era Maria Cândida
de Jesus. E ele, José Vieira.
Quanto desconchavo
de nomes!
É aquele
descuido, aquela humildade roceira do homem do interior, para
quem o nome vale pouco, numa existência ao Deus-dará,
passiva e obscura, em que a vida o vive, mais do que ele à
vida. Entra ele nele, pelo nascimento. E ele enche, por algum
tempo, alguns metros de espa ço e horizontes, entre
uma pequena alegria e um pequeno pesar.
No seu resignado
automatismo, ele cria, na penumbra indecisa de um crepúsculo
de sonhos, um vago mundo de quimeras, formas lar vares de uma
coisa melhor, que fica para lá do estreito país
da conformidade, onde vive e de onde não sai.
Correm os anos,
carregados de mesmice, marcados de uns tantos acontecimentos impressivos,
cujo ritmo de ciclo se conhece, e recebe com submissão,
até que chegue o derradeiro – a morte sem epitáfio.
Um nome complicado
de apelidos gentílicos que importância há
de ter, para quem vive entre os simples vocativos de uma dúzia
de semelhantes? Um nome que, pouquíssimas vezes, na vida,
o obriga, na sua fieira completa e oficial, sendo, costumeiramente,
tão desusado, que o próprio dono quase que se desconhece
dentro dele.
Certa vez, quando
já era Xavier, Xavier encontrou, numa viagem de trem, um
homem de brasões, prosápia e linhagem. Era um homem
que se pelaria de poder dizer: "Eu sou paulista há
quatrocentos anos!"
Dizia ele, enfiado
nas suas genealogias: – Eu não me chamo José Pereira,
filho de Antônio da Silva e Maria da Encarnação!
Meu nome é Antônio Carlos Correia de Almeida e Cunha;
meu pai é Francisco José Correia de Almeida e Cunha
e minha mãe é Maria Guilhermina Pinheiro de Almeida
e Cunha!
Enquanto o escutava
a subir sua árvore gloriosa, Xavier pensava em si, temendo
que o interlocutor lhe pedisse um boletim de seus ascendentes.
E meditava no ridículo daquele encontro de civilizações,
encontro a que comprometiam, em delonga, os limites e condições
de um vagão em marcha.
2. Nascimento
José Vieira nasceu em um
casebre de beira-estrada, na fazenda de seu Timóteo - Fazenda
dos Coités – na Zona da Mata, ou Vale do Rio Doce.
Seu pai, Tonico,
trabalhava na fazenda, como camarada. Sua mãe, que chamavam
de Miloca, empregava, na lavoura e na criação de
um agregado, o tempo que lhe deixavam os cinco filhos: Tonho,
Ceição, Figena, Zezinho e Luzia.
O nome José
Vieira fora um presente e homenagem do padrinho José Vieira,
sitiante vizinho da fazenda.
Menino da roça
não tem infância. De menino da barra-da-saia passa
a homem de seis ou sete anos, por uma lei de conformidade que
a terra ensina e a vida impõe.
G. Papini, em seu
Un uomo finito, frisa, cheio de amargura e de orgulho,
que não teve infância.
Da quietação
arredia e pobre do menino doméstico, tolhido e feio, saiu
para a inquietação do estudioso que lia velhos livros
de um caixote escondido em casa e que aumentou a idade para poder
entrar na biblioteca pública, onde queria começar
por escrever uma história do mundo.
Para um menino de
Florença, é esquisito e amargo ter sido menino e
não ter tido meninice. Mas como ter meninice, no sertão
ou desertão da terra brasileira?
A vida precisa de
espelho para se mirar. O espelho de um menino há de ser
outro menino, outros meninos. Ora, o espelho de um menino de roça
é a gente grande, fatalizada pelos contrastes subconscientes,
em que entram imaginações da vida civilizada e pelas
insuficiências apassivadoras de uma existência primitiva.
É um espelho baço, que não reflete a luz
barulhenta e tropical do céu que o rodeia. Nele se mira
o menino.
A tragédia
do homem estrangulado pela terra está no seu meio termo.
Não é um selvagem e não pode ser um civilizado.
O índio não sabia que poderia ser um civilizado.
Sem reminiscências nem sonhos que transpassassem a demarcação
da vida selvagem, criava ele seu mundo segundo os limites da natureza
e do instinto. Havia um quadro definido e um programa. O roceiro,
segundo vagas imagens de Canaãs, inquietado por sugestões
de uma existência melhor, está submetido à
vegetação e apatia de um modo de ser indesejável
e sem remédio.
Cumpre integrá-lo
na civilização, já que sabe que poderia ser
um civilizado. E esta é a necessidade de trinta milhões
de analfabetos!
3. Meninice viril
Da barra-da-saia, Zezinho passou
à companhia do pai, nos serviços da fazenda. Era
um homenzinho.
A meninice invencível
conseguia roubar, ao homenzinho de obrigações,
os momentos infantis em que se distraía ouvindo canto de
pássaro ou seguindo vôo de gavião, as carreiras
e brinquedos de um cão ou de um gato.
O pai Tonico não
pulava nem corria à toa. Seu rosto, queimado de sol, tinha
a tranqüilidade racionada e plácida de quem sabia
exatamente como e quando fazer cada coisa. Não se apressava.
Mexendo com os animais da fazenda, pacientava muito, como quem
tinha sempre muito tempo. Falava pouco. Era franzino e teria uns
quarenta anos, quando o menino começou a ajudar.
Zezinho imaginava
bem que homem, quando é homem, não pula, nem corre
à toa, nem brinca. Mas, contemplando os bezerros e potrinhos
à solta, no pasto, compreendia os seus desejos de correr,
de dar cambalhotas, de voar, se pudesse.
A vida era monótona
e macia, pobre e calma, com largas horas de folga, descansando
ambos ou vigiando ele o pai a fazer alguma coisa. De vez em quando,
este lhe construía um pião, um bodoque, uma arapuca,
um alçapão. Sua grande alegria era encontrar, na
armadilha, alguma cabeça-de-fogo. Mas o comum era estar
lá dentro algum tico-tico ou papa-arroz.
Xavier não
teve infância; mas aquela meninice – quando era Zezinho
– em nada lhe recordava a amargura reminiscente de Papini.
Homem feito, viu
a preocupação urbana e pedagógica de criar
um mundo para a criança. Viu meninos e meninões
que nada fazem, a brincar e vadiar, sob o olhar incitante e complacente
da família. E sentiu sua invejazinha do que não
teve. Mas ela não amargava muito. Sobretudo, não
destruiu a imagem dos dias moles em companhia do pai, que quase
nada lhe ensinava, mas que também não lhe impedia
as confusas e persistentes lições da natureza.
Pensando bem, o
Zezinho que havia dentro de Xavier acabava desprezando o artificialismo
educativo de uma civilização abusivamente lúdica
e esportiva, retardando a vida e a virilidade numa superficialização
degradante, numa obsessão de hedonismo que vicia e dessora
a geração dos que, meninos, outrora, se alimentavam
com medula de leões ou, ainda no berço, estrangulavam
serpentes.
4. Caterva
Zezinho sucedera ao Tonho, irmão
mais velho, que, de auxiliar paterno, fora promovido a moendeiro
da fazenda, na vaga de Zé Fumaça, o qual desaparecera,
um dia, na estrada, no meio de tropeiros.
Tonho tinha dezesseis
anos e Tonico achou de encaminhar para homem a criança
de sete anos.
A investidura agradou,
por muito, ao guri. Encheu-se de orgulho, pois viu, em casa, que
era gente. Coitado! Não durou um ano a promoção!
Entre os animais
de seu Timóteo, havia uma besta ruana chamada Caterva –
animalão bem posto e espevitado. Era mansa e boa estradeira.
Um dia, Zezinho perguntou a Tonico:
- Papai, por que
ela chama 'Caterva'?
- Porque gosta de
catar erva, meu filho. Ela cata erva. Acho que é por isso.
A ciência
etimológica de Tonico não era melhor do que a de
um Ménage, ou a de Manuel Bernardes. Lembrava também
a daquele padre Bacelar, autor de um dicionário que explicava
"barboleta' como inseto que tem barba e 'bambu'
como cana bamba da Índia.
Na verdade, o nome
'Caterva' nascera das altas letras de seu Timóteo que,
antes de ser fazendeiro, fora filho de fazendeiro e estudante
no seminário de Diamantina, onde chegara a ler Vergílio,
em aulas de latim.
No canto primeiro
da Eneida, descreve, o poeta, uma chegada, ao templo, da rainha
Dido – forma pulcherrima Dido – em meio a uma densa caterva
de jovens – stipante caterva.
Na aula em que se
leu o passo, o professor comentou o nome 'caterva' e convidou
os alunos a descobrirem a expressão magna comitante
caterva, para a próxima aula, entre os cinqüenta
primeiros versos do livro segundo. Na aula seguinte, podiam todos
apontar o verso quarenta, na cena em que se descreve Laocoonte
a decorrer da cidadela e a interpelar os troianos que hesitavam
diante do cavalo, terminado com a célebre admonição
de que temia os gregos até quando davam presentes. Timeo
Danaos et dona ferentes.
Foi de então
que o nome pôde ressoar, alto e poético, nos ouvidos
do jovem Timóteo.
Perdeu-lhe a vida,
com o tempo, todo o latim. Mas salvou o nome Caterva para a besta
mais vistosa das redondezas.
E, um dia, a besta
ruana chamada Caterva matou o Tonico. Foi assim: Seu Timóteo
teve de o mandar, com pressa, ao Jacaré, buscar remédio.
Ordenou-lhe que fosse na sua besta de estimação,
que já estava arreada, no curral. Tonico, respeitoso, buscou
alegar que arrearia outro animal. Mas o patrão fez ver
que não havia tempo a perder.
Tonico montou na
Caterva e saiu. A dois quilômetros de estrada, na porteira
da divisa, quando ia passando e fechando sobre si, Tonico viu
seu fim de viagem. Parece que estava escrito – e que ele tinha
lido lá onde estava escrito – que aquela besta era montaria
para seu Timóteo e não para ele. Na passagem da
porteira, picado de maribondo, o animal esparramou. Desprevenido,
pois se ocupava com a porteira, desgovernou a mula e os dois rolaram
na perambeira, ao lado. Tonico foi esmagado. Arrebentara por dentro.
Durou mais uma semana.
5. Tia Prudência
Fim da desgraça de pobre
é morte. Felicidade é de rico. Pobre tem sorte quando
passa desta para melhor. Nosso Senhor é quem dá,
Nosso Senhor é quem tira. A vida é assim mesmo.
Miloca enterrou
o Tonico. Seu Timóteo dispôs da Caterva por um preço
de magoado. Vendeu a um tropeiro, por trezentos mil réis.
Por trezentos mil réis, uma besta que não dava por
seiscentos. Que não dava por preço nenhum!
Tonho continuava
no engenho. As meninas cresciam em casa e davam algum adjutório.
José Vieira,
apalermado, sentia vagamente, esquisitamente, a falta da presença,
da companhia, do convívio, do trabalho e da vida que seu
pai representava. Passava o dia banzando entre o casebre e a fazenda.
Armava alçapão, caçava passarinho, mas vinha
de repente aquela diferença, aquele vazio... correndo ele
para junto de sua mãe.
Disse-lhe Miloca.
– Seus irmãos não estudaram mas você vai estudar.
Vou mandar você para o Jacaré, morar com sua tia
Prudência.
Jacaré, Zezinho
conhecia de nome. Era arraial próspero, com vigário,
farmacêutico, escola e outras bondades. Tinha um rio caudaloso,
coberto por uma sólida ponte, guarnecida de madeira bem
lavrada e pintada de preto.
Tia Prudência,
irmã de Miloca, morava no largo da igreja. Era viúva,
com sete filhos. Mas ainda havia lugar para o José Vieira,
o Zezinho. Sustentava a casa costurando e fazendo quitandas, ajudada
por duas filhas moças.
Nos primeiros tempos,
Zezinho ficou atordoado, mas não tardou em comprovar a
alta tese de que o homem é um animal acostumável,
sobretudo o homem-menino.
O primeiro dia de
grupo foi uma novidade.
Siá Ritinha,
porteira, tocou a sineta – onze badaladas. Todos os meninos que
brincavam no pátio ou na rua começaram a fazer fileira
no grande alpendre do grupo. Aqueles que ainda estavam em caminho
apertaram o passo, pois siá Ritinha não tardaria
a fechar o portão.
O diretor, 'Meu
Mestre', apareceu com uma vara de marmelo e passos compenetrados.
À sua passagem, melhoravam as atitudes e o silêncio
aperfeiçoava-se.
De uma das portas,
garboso, entre dois guardas-de-honra, surgiu um porta-bandeira,
carregando o pavilhão nacional. Todos três, calçdos
e vestidinhos, atravessaram duas alas de meninos de pé
no chão, obscuramente trajados, todos perfilados, olhando
o emblema da pátria que iria panejar, sustentado pela sua
guarda, na outra extremidade do alpendre.
'Meu Mestre' fez
um sinal e duas centenas de vozes romperam, em canto, o Salve
lindo pendão da esperança.
Eram onze horas.
A manhã era azul. Em frente, não longe, avultava
uma grande casuariana, oscilando levemente ao vento. Ao lado dela,
a igreja ainda era mais alta, cheia de andorinhas no teto, nos
beirais ou voando em redor.
No negócio
de seu Teixeirinha, havia homens que ouviam o Salve lindo,
embora não escutassem.
Como é "hino"
o Hino à Bandeira, numa escola de arraial, neste sertão
do Brasil!
6. Delenda Carthago
Jacaré hoje é cidade.
Mudou de nome, já se vê. É cidade que tem
prefeito, advogado, médicos, luz elétrica, rádio,
automóveis. Mas, no tempo em que Xavier era Zezinho, Jacaré
era Jacaré.
Zezinho aprendeu
a brincar de pião, de corrupio, de papagaio, de estoque
de cano de bambu, de batalhão, de excursões pelo
mato, de roubar as jaboticabas de siá Braga... A vida era
movimentada, mais alegre do que na roça.
No grupo, as coisas
corriam normalmente. A vara de marmelo de 'Meu Mestre' era condicionada:
só batia com autorização familiar. Entre
as questões de matrícula, incluía ele a de
saber se podia empregar a vara.
Tia Prudência,
boa e exigente, falou: – Olhe, se precisar, seu Chico Dias, pode
enfiar a vara nele. Eu dou licença. Ele está aqui
como meu filho. E é como se fosse.
A lei da conformidade,
que Zezinho trazia no sangue, tornou inútil, como quem
não a merecia, a sanção do marmelo. Ia aprendendo
bem. "Mimi era um gatinho..."; - faca-rato-pula-bota-pega-boi"...
(Havia as figuras e os nomes combinados.)
No terceiro ano,
vieram os Contos pátrios, de Bilac e Coelho Neto:
"Noite alta e morna. O rio rolava vagarosamente as suas grandes
águas..."
Entender, a gente
não entendia. Mas como era bonito, aquilo, em voz alta!
Vieram também
as Histórias da terra mineira, de Carlos Góis.
Zezinho chegou a saber de cor todo o trecho da execução
de Tiradentes. A poesia "Bárbara bela,/ do Norte estrela,/
que o meu destino/ sabes guiar" não era novidade,
porque dona Arminda a fazia decorar por todos.
Finalmente, o 4º
livro de leitura, de Bilac e Bonfim.
Com que entusiasmo
lia seu Rodrigues, ante uma petizada de onze anos, a Delenda
Carthago!
Seu Rodrigues era
o homem mais letrado do Jacaré. Estudara no Seminário
de Diamantina. Aceitara dar aulas, naquele ano, por amor da arte.
Atitude, voz, solenidade, ênfase, tinha tudo. E lia: "Fulge
e dardeja o sol nos amplos horizontes...”
E ali, no arraial
do Jacaré, não longe da casuarina que o vento agitava,
perto de compreensivas rolinhas que mariscavam no pátio,
à vista das andorinhas da igreja, desfilava "o exército
romano/ diante do general Cipião Emiliano", tudo ao
comando vocálico, pomposo e vivo, de seu Rodrigues. Embora
não pudessem os meninos saber o que era um exército,
quanto mais o de Cipião!
Que idéia
poderia fazer de tais coisas o Zezinho, desde o arraial do Jacaré?
Além disso, o desfile de Bilac tem bravos pormenores que
nem o professor explicaria, todos: bipenata, gládio,
aríetes, ginetes, clâmides, broquel, pilum, buccina,
eneatores, sagitários. ..
O que a lei da conformidade
não conseguiu, foi dar a Zezinho uma boa letra. O professor
do primeiro ano era seu Raimundo. Seu Raimundo Gogô, na
ausência. Tinha uma caligrafia "maravilhosa".
Fazia traslados na pedra ou em quartos de papel, que o menino
devia imitar.
Zezinho, na clássica
atitude - ponta da língua exibida e cabeça inclinada
- buscava ansiosamente o jeito fugidio das figuras elegantes.
Sujava os dedos. garatujava o papel e recebia rosnados desaprovadores
do mestre.
Sua grande inveja,
depois, no Caraça, havia de ser o sucesso do Júlio,
com sua letra admirável. Júlio e Zezinho, companheiros
no colégio, ambos haviam estudado caligrafia com seu Raimundo.
Entretanto, que letra a do Júlio e que letra a do Zezinho!
7. Vicente Roberto
Zezinho pagava a bondade da tia
Prudência, servindo em mandados ou vendendo quitanda na
rua. Dinheiro é que não via, senão mui raro
e parco.
A vida era comum.
Tinha do que tinham os primos. Aperto por aperto, já estava
acostumado.
Se arranjava algum
cobre, era para comprar pé-de-moleque ou biscoito.
Fez-se amigo do
sacristão José Lucas e do fogueteiro Popote. Com
um ia repicar sino, com outro quentava fogo, no largo da igreja,
quando havia novenas e foguetes, pelas festas de São Sebastião,
Santa Efigênia, Santo Antônio...
Aprendeu a ajudar
missa, a comer hóstias na sacristia e a escamotear velas
de encomendações.
Quando havia enterro
de qualidade, Zézinho ficava sabendo pelo José Lucas,
ao primeiro dobre a finados que tocava. Se a família era
de posse, haveria velas distribuídas entre os presentes
à encomendação. Zézinho colocava-se
bem saliente, junto à essa. Recebia uma vela acesa e torcia
para que a encomendação não demorasse. Acabada
esta, assoprava cada um a vela que segurava, deixando-a numa mesa
de serviço. Mas Zezinho escondia a sua e, enquanto o defunto
ia para o cemitério, ia ele para o Vicente Roberto.
Vicente Roberto
era um preto alquebrado, grisalho, magro, de barbicha no queixo,
de cabelo à escovinha, de calças moles amarradas
com barbante, caindo sobre uns sovados chinelos-de-tapete.
Possuía uma
venda de três portas, com muitas prateleiras e poucas garrafas.
Vendia quitandas e outras bugigangas.
Costumeiramente,
estava assentado a um tamborete de couro, à entrada do
balcão, junto à primeira porta.
Tinha sempre um
lenção vermelho, caindo de um bolso externo do paletó.
Lenço do tomador de pó.
Podia estar afagando
os dedos do pé ou sorvendo uma pitada, quando Zezinho,
algum Zezinho chegava.
Agora, era o Zezinho
da vela. Seu Vicente Roberto levantava, arranjando os pés
nos chinelos, gingando o corpo, acomodando as calças, coçando
alguma coisa, esfregando o nariz e fungando. Passava para o lado
de dentro do balcão. Tomava da vela, olhando-a um pouco.
Ia depois a uma lata e voltava com aquelas mãos
carregando biscoitos de fubá, com que enchia o Zezinho.
Se não havia
outro inconveniente, ia comer junto ao rio.
8. O rio
Em casa de tia Prudência,
Zezinho era tratado como os primos. Era um outro irmão.
Era um outro filho. Era como se fosse, dizia ela. Mas, no fundo,
alguma coisa faltava.
Depois de grande,
Xavier pôde deduzir, retrospectivamente, o que era e pôde
criar uma teoria da lacuna afetiva. Naquele tempo, sentia apenas.
Seu consolo era
o rio. O rio Jacaré, largo e manso, espraiado e amarelo,
tranqüilo e doméstico, marulhoso e impassível,
como quem sabe que não é estranho, atravessando
um rebanho de casas que não fugiam dele, satisfeito como
um querido nume tutelar.
Acima, fora da rua,
havia um poço em que os meninos iam nadar escondido. Zezinho
gostava de ir também. Ainda mais acima, num declive aparcelado,
o rio descia com um murmúrio encoberto de cachoeira, um
murmúrio batido e eterno, que o vento quebrava contra as
casas e os ouvidos da gente, nas horas despreocupadas, que são
horas boas de ouvir.
Junto à ponte,
com suas arcadas de madeira pixada, ou junto à margem,
gostava Zezinho de cismar, seguindo com os olhos, e com a imaginação,
uma onda encrespada, um galho levado, uma folha a descer, um destroço.
Via a ingazeira da margem, cujo banho era mais completo nas enchentes.
Xavier nunca olvidou
aqueles tons, aquele declive, aquela curva, aquele marulhar.
Lendo, um dia, Jean
Christophe, tomou-se de amores pelo Reno, o rio da meninice do
herói, não o Reno das pontes de César, o
Reno das lendas, o Reno dos castelos medievais, o Reno dos lirismos,
dos poetas e dos músicos. Era o Reno da meninice, irmão
do Jacaré, que foi o Reno de Xavier.
A respeito do padre
Bacelar existe uma crônica de João Ribeiro, sob o
título Dicionário das Arábias.
9. Seu Vigário
Uma noite, após a bênção,
estavam no adro padre Natalício, o farmacêutico,
seu Bastos e seu Rodrigues, o professor.
Zezinho, que fora
campainha na bênção, também se meteu
a escutar, sem a menor cerimônia, a conversa dos três.
Era isso numa noite
de junho. Seu Rodrigues acompanhava a Grande Guerra pelas colunas
do Jornal do Comércio. Seu Bastos lia pelo Imparcial. Padre
Natalício, muito hábil, lia pelos dois.
José Vieira
pôde identificar a conversa mais tarde, quando aprendeu
a história daquela guerra. Tratava-se da batalha do Kaiser,
a última, desesperada e terrível ofensiva alemã.
Bombardeava-se Paris por canhões de longo alcance, chamados
gotas e bertas. Foram rompidas as linhas franco-inglesas.
Era uma blitz-krieg para tomar Paris e forçar
a paz, antes que os americanos chegassem. Mas Foch foi detendo
a arrancada inimiga, enquanto iam chegando americanos (dois milhões
até o fim do ano), e acabou por quebrar o poderio germânico
na batalha do Marne. Foch, auxiliado por colaboradores de primeira
ordem, com Pétain, o grande organizador: le grand organisateur
qui avait forgé l' instrument de la victoire, diz
a História.
Na conversa daquela
noite, lamentando a barbaria dos boches, que canhoneavam uma igreja
de Paris em dia de sexta-feira santa, mostravam medo de que não
houvesse tempo de chegarem os americanos.
A certa altura,
padre Natalício perguntou a Zezinho:
- Zezinho, você
sabe onde fica a França?
- Fica na Europa.
O menino julgara
aquela, uma pergunta de brincadeira. Pois não sabia ele
a capital da França e dos outros países da Europa?
Melhor ainda: pouco
tempo havia, numa festa do grupo, tinham recitado O estudante
alsaciano. Se não fosse o acanhamento, em vez de uma
fria resposta geográfica, Zezinho saberia plagiar o estudante
alsaciano.
E teria sua graça,
numa limpa noite de junho, em pleno desertão mineiro, um
menino de dez anos, abrindo o peito, perante seu vigário
e outros, a dizer, apontando: - A França está aqui!
Seu Bastos perguntou:
- E sabe onde fica
o Marne?
Zézinho não
sabia.
Seu Rodrigues perguntou:
- E sabe o que é
gota?
Zezinho não
sabia. E encabulou.
Padre Natalício,
conciliadoramente, propôs:
- Podíamos
também mandar este menino para o Caraça, onde ele
aprenderia tudo isso...
- Você quer
ir para o Caraça?
- Quero!
Zezinho sabia que,
dentro de dois meses, seguiriam para lá o Gastão,
o Jair e o Zé Martins, colegas de grupo mais adiantados.
Quando respondeu
- quero - seu Rodrigues interveio para explicar que era
cedo, que ele ainda estava só no terceiro ano e só
tinha onze anos incompletos.
- No ano que vem
você irá para o Caraça.
10. O trem-de-ferro
Jacaré hoje é cidade
que tem prefeito, luz elétrica, rádio, estrada-de-automóvel,
etc.
Naquele tempo, entretanto,
o Jornal do Brasil levava as notícias com mais
de uma semana de atraso.
Hoje, pelo alto-falante
do café do Ostino, qualquer Zezinho pode saber das coisas
na hora em que estão acontecendo. Ou até antes,
como se deu com a rendição da Alemanha, em 1945.
A rendição
de novembro de 1918 chegou lá devagar, em prestações
pacientes de imprensa.
Zezinho começara
a alimentar a idéia de ir para o Caraça.
Tia Prudência
garantiu-lhe que ser padre era uma carreira muito boa.
Padre Natalício
começou a exigir dele um melhor conhecimento da doutrina
e um mais assíduo e perfeito serviço de coroinha.
Seu Rodrigues, de
programa na mão, fiscalizava-lhe os estudos, para que estivesse
preparado até agosto de 1919, pois Zezinho não acabaria
o quarto ano de grupo, segundo o previsto.
No começo
de dezembro, Tonho veio buscar o irmão que passaria uns
tempos na Fazenda dos Coités.
Zezinho gostou de
rever longamente aqueles sítios de outro dia, lugares já
agora de uma primeira meninice.
Miloca estava satisfeita
de ver o filho ir ser padre. Quando tia Prudência, antes,
a mandara consultar, ela respondera: - Faço muito gosto,
se for vontade de Nosso Senhor. Não tenho, mesmo, outra
tenção no José. Um padre na família
é até muita honra para um pobre. E Deus Nosso Senhor
há de ajudar mais a gente.
Seu Timóteo,
relembrando os tempos da Diamantina, perguntou se não era
melhor encaminhar o menino para aquele seminário. Se ele
queria ser padre, era melhor secular, porque podia ganhar dinheiro
e ajudar a família.
Miloca respondeu:
- Cruz, credo, compadre!
Ser padre é para servir a Deus e não para ganhar
dinheiro! Isso de ser padre secular ou não, eu não
entendo. Entendo é que ser padre, como Deus quiser, é
uma bela carreira para meu filho. Será muita honra que
Nosso Senhor nos dá.
Zezinho voltou a
Jacaré para os últimos meses de escola e de preparação
com seu Rodrigues. Estava entusiasmado. Assumira uns ares convencidos.
E todos o tratavam como quem via nele um futuro sacerdote. Foi
dispensado, por tia Prudência, de qualquer trabalho. A vida
girava mais no triângulo seu vigário, seu Rodrigues
e grupo escolar.
Veio o tempo da
partida: fim de agosto.
Era uma caravana
de cinco meninos: o Campos, o Júlio, o Erasmo, o Elifas
e José Vieira (Zezinho).
Quem nunca andara
calçado, agora usava uns formidáveis sapatos que
lhe fizera o Joaquim Roquinho, o único ou, se quiserem,
o melhor remendão de Jacaré.
O pai do Campos
e dois camaradas comboiavam a caravana, a romper, em cinco dias
de cavalo, sob o sol do mês, até Santa Bárbara,
de onde, em mais um dia, se chegava ao Caraça.
Para os de cá,
Santa Bárbara era um fim de ramal; para os de lá,
era um termo de tropas, um lugar importante, consagrado pelo trem-de-ferro.
"Ir para fora",
"estar para fora", "viajar para fora", no
Jacaré, era tomar o caminho de Santa Bárbara, era
fazer uma coisa muito sugestiva.
A maior viagem que
já fizera Zezinho fora um passeio até Onça,
a visitar parentes, doze léguas de distância.
Agora, ir até
Santa Bárbara, ultrapassar Santa Bárbara, era coisa
que lhe enchia muito a imaginação.
Mas a grande expectativa
dos cinco matutos era o dia de ver o trem-de-ferro!
Quanta suposição,
quanta emoção contida, por causa de um comboio –
está assim no Vocabulário acadêmico, mas mineiro
diz é combóio – por causa de um combóio
da Central do Brasil! Ora, já se viu!
Chegados a Santa
Bárbara, pela tarde, os cinco turistas andaram pela cidade,
vendo coisas e procurando a estação. Depois, andaram
ao longe da linha, admirando os trilhos e o leito de pedras bem
quebradas. Já sabiam que o trem só viria no dia
seguinte. Descobriram, em certo trecho entre barrancos, uma pontilheta,
sob a qual devia passar o 'bicho'. Combinaram de ali estar, no
dia seguinte, para o meio-dia, hora do horário oficial.
Ao outro dia, às
onze horas, já lá estavam, com medo de o trem chegar
antes da hora. Pois ele não corre tanto!?
Como conheciam a
Central do Brasil os cinco meninos do Jacaré!
Nenhum tinha relógio.
Zezinho tremia. E os outros também. Passava-lhe na memória
uma página de um livro de leitura do segundo ano, onde
estava desenhado um trem e onde a leitura começava assim:
– Fulano, Beltrano, Sicrano! Corram todos! Venham ver o trem-de-ferro!
E ali estava ele
para ver o trem!
A certa hora surgiu
longe, na curva, uma coisinha pequena, empurrada a vara, sobre
os trilhos, por dois homens em pé. (Era um trole). Os cinco
esperas, depois de olhar um pouco, nenhum se deu à vergonha
de imaginar que aquilo fosse trem. Fosse o que fosse, trem não
era. Apenas um deles, mais rico em suposições, deitou
a hipótese de que aqueles homens vinham noticiar que o
trem não demorava. A emoção reavivou-se.
Emoção
lembra emoção e, dentro do silêncio paciente
em que os olhares se fixavam na curva, a memória de Zezinho
ia recitando, sozinha, – porque ele estava muito preocupado –
uma poesia de Raimundo Correia, do quarto livro de leitura, que
seu Rodrigues fazia decorar:
"Não há
quem a emoção não dobre e vença,
lendo o episódio da leoa brava,
que sedenta e famélica bramava,
vagando pelas ruas de Florença..."
Toda a poesia passou, mecanicamente.
Passaram outras fantasias. Passou, mais de uma vez, aquela hipótese
que a gente faz em tais ocasiões, dizendo é agora.
Passou aquela outra em que a gente aposta que terá
tempo de contar até o número tal. Só não
passava o trem.
Não perderam
a paciência porque ver um trem valia todas as paciências.
Gente urbana é que não tem paciência, gente
infeliz para quem não existem novidades.
Sentiam que demorava
muito, mas sentiam que não podia demorar mais, tanto.
Mais tarde puderam
saber que o atraso fora só de duas horas. Com mais uma
de avanço, deles, aquilo fazia três. Mas viram o
trem-de-ferro! De longe, de frente, de perto, por cima, por trás,
de longe outra vez!
III - XAVIER
NO COLÉGIO
1. A visão
Partindo de Santa Bárbara,
ia a caravana ao encontro das serras em que está o Caraça.
A natureza mudara
em pedras maciças, torturadas nuas, rudes, vizinhas, o
que antes eram campos, morros, florestas ou montes distantes.
Qualquer Zezinho se veria ferir, nos olhos da cara e nos olhos
da sensibilidade, por aquela paisagem eruptiva e alpestre, abrupta
e dura.
O nome 'Caraça'
é um nome que conforma, no espírito, uma imagem
célebre, com cenas de reformatório, abundância
de asperezas, fama de latim e humanidades.
Raul Pompéia,
no seu nervoso e afamado romance O Ateneu, livro de 1888,
frisando os horrores do Colégio de Aristarco, lá
deixou a sua referenciazinha ao 'pavor monacal' do 'negro Caraça
de Minas'.
O nome foi tanto
que a cominatória de mandar para o Caraça era uma
receita de autoridade, abrindo fontes de medo sobre a indisciplinada
coragem das insubmissões infantis.
Colégio centenar
em 1920, tendo educado gerações e gerações
de brasileiros, sol de humanismo dentro do nosso discreto e lento
sistema educacional, merece ele realce na história do ensino
em nosso país, ao lado das escolas de Direito de Recife
e de São Paulo, mais novas do que ele, fundadas em 1827.
No tempo de José
Vieira, reduzido a simples escola apostólica, mesmo assim
ainda guardava sua atração nacional, educando jovens
entre os quais havia gente do Paraná, de São Paulo,
do Rio, do Estado do Rio, da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão
e, sobretudo, do Ceará.
A hora de ver com
os olhos aquele estabelecimento com que sonhava desde um ano atrás,
a curiosidade insofrida de Zezinho encontrava a esquisita e avassaladora
objeção de montanhas que iam tomando corpo em torno
dos viajores.
Uma leve inquietação
parecia querer afogar a sua alma. Disfarçava-a no companheirismo
divertido da jornada, na sugestão mutável do percurso.
Quem mais o defendia,
porém, era a simplicidade ingênua, a completa inocência
de seus doze anos de menino da roça, bem criado.
Também lhe
haviam feito, a ele, tutu, do Caraça. Mas o que sabia mais
concretamente era que lá se davam bem os seus conhecidos
Luís Amaral, Gastão Magalhães e José
Martins.
Em todo caso, a
ignorância é mãe do temor. Na massa escura
das rochas cada vez mais próximas e fechadas, aqui e ali
se projetava a sombra de uma interrogação que saía
da alma do menino.
Os animais ressentiam-se
da aspereza pedrenta e da violência íngreme da subida.
As serras iam engolindo a caravana. Passaram por uma cascata –
linda cascata que Xavier tantas vezes contemplou, depois.
Mas agora, seguindo
a estrada aberta na rocha, à margem dos abismos em que
ela se precipitava, Zezinho, o que via era uma água mártir,
despedaçada pedras abaixo, e uma água vinda lá
de dentro, lá do lugar para onde iam.
Subiram mais. Andaram
mais. De repente, desde uma aberta entre árvores, numa
curva da altura, avistou, ali na frente, o Santuário de
Nossa Senhora Mãe dos Homens, o CARAÇA, projetando
a sua massa branca, e a torre de seu templo, contra o fundo escuro
das montanhas!
Visão inopina,
que se apanha numa visada impressionante! Revelação
longamente preparada pela curiosidade angustiosa da subida! Visão
de uma visada que se repetirá muito, em seis anos de internato!
Visada que agora é a primeira, mas que se repetirá,
um dia, como última, entre as saudades da despedida, numa
fixação que a retina guarda para a vida!
A inquietude perquisitiva
desfez-se. Em lugar da delonga interrogativa do percurso, agora
se erguia, na alma de Zezinho, a macia admiração
de quem adivinha, só de ver.
Dizia tudo, enfaticamente,
pelo seu contraste, a tranqüilidade daquele santuário,
toda brancura e suavidade, num rude berço de montanhas
negras!
2. O corredor
Acabara a subida. Os animais,
que tanto a sentiram, agora sentiam que chegavam, retomando aquele
ritmo e ânimo que mostram à vista do pouso. Foi só
descer, caminhar um pouco, passar uma ponte e vencer uma ladeira
calçada.
A torre, alta e
fina, subia cada vez mais.
A brutalidade inóspita,
atormentada e difícil, da paisagem, aumentava a sugestão
de aconchego e agasalho da casa, colocada no fundo de uma espessa
bacia de montanhas, mais para um canto, junto à Carapuça.
À porta de
receber, quando chegaram, lá estava um padre da casa e
toda a colônia de conterrâneos.
Desmontaram entre
abraços e perguntas. Do pátio, ao lado, subiam vozes
de alunos em recreio.
José Vieira,
acostumado a construções de madeira, admirava a
solidez invencível da massa predial, toda de pedra. Habituado
também ao limite doméstico das residências
do Jacaré, impressionava-se com o tamanho e amplitude daquela
morada comunal. Quando atravessou a porta, uma sugestão
infinita de corredor entrou-lhe pelos olhos e pelo espanto! Era
um corredor enorme, varando, de fora a fora, a ala do casario!
Toda a terra de sua infância ali se diminuiu e se tornou
insignificante, em frente de tal magnitude!
Guiado por Luís
Amaral, que ia explicando portas e escoadores, ele foi palmilhando,
humildemente, a longa passagem, com seus ingênuos pés
muito acanhados nos sapatões de elástico do Joaquim
Roquinho, emoldurando, entre paredes sagradas, o seu corpo roceiro
de doze anos, metido num terno de brim listado, que lhe fizera
siá Maria do Pacífico.
3. Novato
Quem visse o Zezinho da Miloca,
desajeitado e confuso, a transformar-se em aluno da Escola Apostólica
do Caraça, não adivinharia que alma brava trazia
ele dentro de si.
E não acreditara
que, cinco anos depois, ele estaria metrificando versos em latim;
escrevendo descrições e narrações
na língua de Cícero; recitando de cor a tempestade
de Vergílio; lendo, escolarmente, César, Cícero,
Tito Lívio, Salústio, Tácito, Ovídio,
Vergílio, Horácio; lendo, escolarmente, em grego,
Anacreonte, Xenofonte, Demóstenes; discutindo a grandeza
de Alexandre, de Aníbal, de Cipião, aquele Públio
Cipião Emiliano, ante o qual desfilava o exército
romano segundo a Delenda Carthago de seu Rodrigues,
aliás de Bilac; estudando, comen tando, decorando, um ano
inteiro, Os Lusíadas de Camões, a ponto
de saber continuar de cor, até o canto sexto, qualquer
estância principiada; conquistando, na Academia Nossa Senhora
Mãe dos Homens, grêmio literário de que chegou
a ser eleito presidente, o título honroso de 'Alencar Caracense';
provocando, de outra feita, numa aula de português, o apelido
‘Xavier', que lhe deram e que lhe ficou...
Agora, porém,
mal deixava de ser o Zezinho da Miloca, para ser o apostólico
José Vieira, metido numa batina ruça, que fora preta
outrora, entre dezenas de outras batininhas ruças, como
se algum seu vigário tivesse organizado um numeroso corpo
de coroinhas pobres, mal trajados.
3. O número 54
Deram-lhe um número. 54.
Era o número
da argola de seu guardanapo, no refeitório, e o número
por que se acostumariam a identificá-lo na rouparia, na
batinaria, na sapataria, na alfaiataria, na procuradoria, no salão
de estudos...
Nos seis anos de
seu curso, o total dos alunos sempre estava perto do número
cem, um pouco acima, um pouco abaixo. No seu primeiro ano, o total
era de cento e oito, sendo trinta e seis novatos – a turma de
José Vieira.
O número
de cada aluno era fornecido ao acaso das lacunas. Se ele era o
54, isto quer dizer que não voltara ao colégio quem
o era, no ano anterior.
Entravam, anualmente,
trinta a quarenta novatos, mas saíam alunos em igual quantidade,
pois o número total guardava equilíbrio. Poucos
chegavam ao fim. Dos trinta e seis companheiros de nosso biografado,
apenas cinco alcançaram o último ano. Ia desbastando-se
a turma, ao longo da vida.
O ano letivo começava
a 15 de setembro. Corria o primeiro semestre até 15 de
janeiro, começo das pequenas férias de um mês.
Dos nove meses de estudos, o segundo semestre, de fevereiro a
julho, com cinco meses, era o ótimo tempo dos estudos,
com o fim das águas e a entrada do frio.
As férias
de janeiro eram passadas no colégio, para todos. As grandes
férias, de 15 de julho a 15 de setembro, também
se gozavam lá, para todos, exceto os que concluíam
o curso e os terceiranistas, que podiam ir passear a casa. Em
seis anos contínuos, a única saída era esta
do fim do terceiro ano.
Mas, antes disso,
quanta gente ia embora ou se ia embora! Quanta gente montava na
Garricha!
(NOTA - 'Garricha', nome de
conhecido passarinho, é uma fonetização
mineira de 'carriça'. 0 Pequeno dicionário
brasileiro só averba 'garriça'
como brasileirismo. Houve, outrora,
no Caraça, uma mula de condução que,
pela cor e tamanho, nomearam Garricha. Montar na Garricha
era 'tomar condução', 'ir embora').
Dois princípios
regiam a progressiva redução das turmas: a peneira
e a vocação. A peneira trabalhava, sessando vivamente,
desde o primeiro dia. Ia classificando os alunos:
a- bem procedido, aplicado,
aproveitado
b- bem procedido, aplicado, sem
proveito (talvez burro)
c- regularmente procedido e aproveitado
(inteligente)
d- dissipado mas aproveitado (especialmente
inteligente)
e- dissipado e sem proveito.
O índice de classificação
e câmbio de cada um se conhecia pela publicação
mensal das notas, em leitura pública e solene.
A nota de procedimento
tinha de ser boa: de sete para cima. Cinco ou seis era grau tolerado
ao primeiro ano. Quatro ou três era escândalo que
nem no primeiro ano podia repetir-se, pois acabava em garricha.
Aluno dissipado
e sem proveito era mandado embora no fim de uma paciência
bastante rápida; em geral, no fim do primeiro semestre.
Aluno dissipado,
mas aproveitado intelectualmente, devia melhorar o procedimento,
do contrário ia embora no fim do ano.
Aluno bem procedido
e esforçado, mas intelectualmente desaproveitado, era admitido
a um segundo ano de experiência. Caso não arranjasse
o estalo de Vieira, e não atingisse o nível de eficiência
intelectual exigido, era mandado embora, por falta de inteligência.
(NOTA - Quando menino, o célebre
padre Antônio Vieira parecia burro, contam seus biógrafos.
Um dia, orando ardentemente à Virgem, sentiu um estalo
na cabeça, abrindo-a, luminosamente, à formidável
inteligência das coisas, que teve o grande jesuíta.).
A peneirada miúda
e definitiva era a do terceiro ano, ocasião do passeio
a casa. Fazia que só voltassem alunos do primeiro tipo,
isto é, aplicados, bem procedidos e inteligentes. O terceiro
ano era a 'ponte dos burros' ou 'carro de fogo'.
Os professores apertavam
convenientemente. A observação psicológica
aumentava. Era tempo de se pronunciar a vocação,
em conversas com o superior, que chamava a colóquio o rapaz.
Chegando as férias,
quem não servia ou quem não queria ser padre aproveitava
o passeio para não mais voltar.
A turma de José
Vieira, de trinta-e-seis no primeiro ano, ficou reduzida a doze
no começo do quarto ano, descendo a seis no quinto, a cinco,
no sexto.
Do quarto ano em
diante, as deserções explicavam-se pela determinação
vocacional. Tal que voltava no terceiro ano pensando que ia ser
padre, acabava decidindo que não tinha jeito. Tal outro
desejava e queria, sim, mas não congregado, e retirava-se
para Mariana ou Diamantina. Da turma de José Vieira, cinco
terminaram o Caraça e um deu congregado lazarista.
Por estas e outras
é que a Igreja repete, no Brasil, aquela frase alegórica
de Cristo: Messis quidem multa: operarii autem pauci. É
muita a seara, mas poucos são os obreiros.
5. Ramerrão
Deram-lhe o número 54.
E começou o ramerrão. Levantar às cinco e
lavar a cara numa bacia em que a água dormira recoberta
pela toalha de rosto.
Oração
da manhã, no salão de estudos, seguida de missa
diária, na capela, para a qual desciam em forma, dois a
dois, por ordem de tamanho.
Estudo até
as sete e meia, hora do almoço, acompanhado de um recreio.
Estudo e aula até o meio dia, hora de jantar, num refeitório
comum aos padres, irmãos coadjutores e alunos, feito em
silêncio ou melhor, ao som de uma leitura pública
de algum livro instrutivo.
Recreio até
as duas horas, recomeçando os estudos e aulas até
as quatro e meia, hora da merenda, com recreio.
Das cinco às
sete e meia da noite, o grande estudo diário, distribuidamente
consagrado a exercícios, principalmente de línguas
português, latim, francês e grego.
Ceia, recreio, oração
da noite, dormitório. Às nove horas, o Padre Moreira,
chefe da disciplina – também chamado Padre Santo – graduava
até quase a zero as duas lâmpadas do salão
dormitório, munidas de comutador reostático; o Padre
Santo puxava a correntinha e a luz baixava.
Às quartas-feiras,
não havia aula pela tarde. A folga pomeridiana era destinada
ao passeio da Varginha, onde se jogava à bola, o futebol.
Às quintas-feiras, não havia aula pela manhã,
cujo tempo era destinado ao concurso semanal, espécie de
argüição escrita, revezada por matéria
e turma.
Aos domingos, havia
duas missas e uma aula de religião, pela manhã.
A tarde, passeio excursivo a um dos muitos recantos caracenses.
O que havia de fecundamente
proveitoso, no regime, era a distribuição estudo
e aula, tão diversa da que se faz nos estabelecimentos
de ensino comuns, onde se prende o aluno durante quatro ou cinco
aulas seguidas – das sete às doze das doze às dezessete
horas – para depois o mandar embora, graças a Deus, se
externo, ou encher-lhe a outra parte do dia, se interno.
No Caraça,
a cada hora de aula precedia outra de estudo, consagrado ao preparo
da lição. Além disto, havia o grande estudo
da noite, instituição fundamental, que cobria todos
os dias da semana, inclusive os domingos, dias santos, feriados
e férias.
6. As férias
As férias eram cheias de
alunos, quase na mesma, e de estudos. Não chegavam a trinta,
em cem, os alunos que iam passar uns dias em casa, nas férias
de julho. Nas de janeiro, ninguém saía.
Somando em férias,
o que passava um aluno dentro do colégio, perfazia catorze
meses, ou mais de um ano.
O que caracterizava
as férias era o levantar mais tarde, o ter dia cheio de
recreios, com uma saída excursiva diária, transformada,
freqüentes vezes, em grande passeio de alpinismo.
Mas nem nas férias
faltava o estudo, quer dizer, o tempo de recolhimento obrigatório
ao ‘repouso', principalmente o conhecido estudo da noite, mais
curto um pouco, entretanto.
Para os alunos das
últimas séries, a mais simpática instituição
das férias era o chamado ‘estudo livre', uma faculdade
que tinham de, em vez de estar no recreio, estar no salão-de-estudo,
entregues ao ler e ao trabalhar intelectual.
Mas os estudos,
obrigatórios ou livres, bem como os recreios e passeios,
podiam consagrar-se, e geralmente se consagravam, a leituras de
férias. Havia moços que carregavam o livro, consigo,
o dia inteiro, a toda parte.
Até o terceiro
ano, dominavam leituras salesianas, historietas de santos, contos
infantis e romances de Wells e Júlio Verne.
Do quarto ano em
diante, cada um escolhia leituras mais substanciosas, levado por
seu gosto e inclinação. E lia-se em português
ou em francês.
Xavier lembrava-se
de algumas leituras daquele período: Iracema, Guarani,
Moreninha, Retirada da Laguna, Eurico, O Monge de Cister, O Bobo,
Lendas e Narrativas, A Harpa do Crente, Camões
(de Garrett), Luz e Calor (de Bernardes), Sermões
de Vieira, Le génie du christianisme, La Cathédrale
(de Huysmans), o teatro clássico francês – peças
de Corneille, Racine, Molière, Voltaire
– Visions du Brésil, (de Gaffre), L'Homme
et l'Univers (de Brettes)...
O tempo mais apropriado
de tais leituras eram os estudos livres, especialmente freqüentes
nas férias de janeiro, com seus dias de chuva a impedirem
as saídas excursivas.
Para os meninos
das primeiras séries, estudo livre não tinha importância
e quase não existia, pois gostavam mais do recreio. Para
os anos adiantados, o uso dele era uma tradição,
uma nota de intelectualidade e de conceito.
O primeiro atrativo
do estudo livre estava em ser livre, em não ser obrigado.
Ia-se a ele e nele se ficava quanto se queria, podendo voltar
ao recreio quem quisesse. Lá ficava Xavier, no seu lugar,
entretido com seu livro ou copiando, como era costume de todos,
pontos de matérias para o ano seguinte – matemática,
literatura, composição e estilo...
Na doce liberdade
da hora, podia também cismar, que o quadro geral a isto
convidava. Do pátio, em baixo, subiam vozes familiares,
marcando os recreios.
Na grande horta,
vista através da janela, estava a passear algum padre,
naquele sabido vaivém eclesiástico de quem lê
seu breviário, enquanto os hortelões trabalhavam.
Do andar térreo subia, talvez, a melodia do harmônio
em que se exercia algum aprendiz. Se era o Genesco, o Germano
ou o Jorge, Xavier se estaria deliciando com Beethoven, Haydn
ou Mozart, reconhecendo, pelo autor preferido, o harmonista que
tocava. E às vezes lá estava o Padre Santo, com
sua bela voz, a cantar alguma coisa, ao som do acompanhamento.
Os livros de férias
recolhiam-se no fim das férias, pois era proibido, no correr
do ano letivo, todo livro que não fosse escolar. Entretanto,
segundo os estudos que fazia, o aluno dos últimos anos
obtinha leituras especiais. Assim leu Xavier, preparando trabalhos
acadêmicos, livros de Oliveira Martins, Teófilo Braga,
Joaquim Nabuco, e outros.
Compare-se o fervor
intelectual daqueles adolescentes que não tinham dezoito
anos, com a devoção do Gibi mensal, que
os professores de hoje encontram alastrada entre rapagões
de colégio, até maiores de vinte e um anos, fãs
de Brucutu e heróis quejandos.
Dirão que
não é demais ler o Globo juvenil, pois
Rui Barbosa lia o Tico-tico. Sim, nada há demais. O que
há é muita coisa de menos em um jovem que, no vestíbulo
da Universidade, apenas tenha lido e leia dessa reles produção
de uma literatura chamada infantil. Tais moços, disse alguém,
chegando aos cinqüenta anos, talvez que já estejam
no Fon-fon.
Rui Barbosa também,
lia o Tico-tico. Mas tenha a bondade o leitor e repita a frase
mudando a pausa: Rui Barbosa, também lia o Tico-tico; lia
o Tico-tico também, lia até o Tico-tico!
Vai assim, na vírgula,
um merecido elogio ao mais terrível e insaciável
bibliófago das letras brasileiras.
Idéia puxa
idéia e as férias aqui entraram metidas pelo avesso,
naquilo em que as do Caraça negavam a noção
do nome.
Vejamos o lado direito.
A vida não era só rezar e estudar. Era também
brincar e brincar muito. Era também passear e passear muito.
Além do grande
recreio do jantar e do recreio da ceia, bem como de recreinhos
outros, o ritmo dos dias letivos previa a diástole das
quartas e domingos, em que a folga da tarde representava uma recuperação
física, pela atividade esportiva da Varginha, às
quartas-feiras, e pelos passeios excursivos de domingo, dirigidos
a algum dos muitos recantos já predestinados.
A exigente vida
intelectual e sedentária era compensada pela ativa aplicação
dos recreios, dos suetos, feriados e, principalmente, das férias.
O recreio só podia ser tomado brincando ou andando. Ninguém
podia ficar assentado ou parado.
Havia as horas de
jogos obrigatórios – Jogo das cores, da barra-manteiga,
da barra-bandeira, do triângulo. Entretanto, o mais popular
e querido era o jogo da baleia, organizado livremente, em qualquer
recreio, segundo opções pessoais, ótima exercitação
da esperteza no correr, no menear do corpo, no empregar da astúcia
física.
As férias
constituíam legítimo curso intensivo, devido à
saída pomeridiana de todo dia, para o jogo da bola ou para
as andadas campestres, em que se remexiam todos os recantos da
bacia e todos os picos da redondeza.
A topografia caracense
faria inventar o alpinismo, pelo convite sugestivo da Carapuça,
da Verruguinha, dos Três-Irmãos, da Bocaina, do Pico-do-Sol.
As grandes jornadas
alpestres requeriam prevenção especial. Partindo
de manhã, ia-se comer para os lados da serra visada. E,
enquanto os menores e os comodistas se deixavam ficar na planície,
os maiores subiam até as alturas desejadas, vencendo despenhadeiros,
enrijando músculos, criando horizontes.
Durante as férias,
ainda, o banho no Tanquinho e no rio era transformado em esporte,
prolongado o tempo de natação.
Em casa, no pátio,
as multiplicadas horas de recreio aumentavam a vida física.
Em dia de chuva, como nas férias de janeiro, impedidos
de sair, os alunos entregavam-se aos jogos de salão e à
leitura, restringindo o esporte às áreas cobertas
do pátio. Jogos de salão eram xadrez, dama, dominó,
bilboquê, etc.
Outro esporte querido
era o pião de fieira, atirado, em exercício singular
ou em rodas feitas, à concorrência. Jogava-se também
ao gude, a que chamavam bilosca, servindo bolas de vidro ou bolas
que os alunos faziam do muito bom mármore do Caraça.
Passeios e mais
passeios, recreios e mais recreios, jogos de salão e jogos
de pátio, leituras e estudos livres, eis as férias.
Ninguém tinha tempo de se entediar ou de sentir que estivesse
em prisão. Ainda mais uma prisão insuportável!
7. A Guerra do Paraguai
José Vieira chegara ao
Caraça com uns dez dias de antecedência. Começado
o ano letivo, logo foram distribuídos os livros escolares,
um lote de livros para cada aluno, segundo a série em que
se achava. Eram os mesmos livros que haviam servido a cinco, seis
ou mais Josés Vieiras anteriores. Livros que trataria com
muito cuidado e deixaria para o José Vieira que lhe sucedesse.
O roceiro foi aclimando-se,
desaparecendo o acanhamento. A lei da conformidade ajudava adaptações.
Os livros iam ensinando
a concretizar toda uma razão de ser da vida, com derivativos
sublimadores de incompreensões e angústias.
O paraíso
ia revelando-se.
Nunca foi o primeiro
aluno da turma. Disputava, porém, a primazia com outros.
O Júlio, o herói da caligrafia, ganharia em latim.
Maciel, um cearense, venceria em francês. O Tenan, o Italiano,
ganhava longe, a todos, em matemática.
Um dia, na aula
de História do Brasil, no primeiro ano, José Vieira
conseguiu sua primeira celebridade.
O professor marcara
a metade da Guerra do Paraguai, capítulo grande até
em manuais elementares. A memorização era do regime.
E, sendo metade, a lição fora considerada não
pequena, entre os alunos.
O professor da matéria,
padre Augusto, muito lhano e jovial, era o tipo do professor aperitivo
para novatos desambientados. Todos lhe chamavam ‘meu tio'.
Mas argüição
era coisa muito séria, mesmo as de ‘meu tio'.
Rezada a oração,
assentados os alunos, enchia a sala a angustiosa expectativa que
precede à decisão do primeiro nome. No dia da Guerra,
a nervosia foi maior, em proporção com a dificuldade.
Padre Augusto abriu
a caderneta e começou, vocativamente: Sr. ... sr. ... sr.
Josézinho Vieira! (O diminutivo era um improviso hipocorístico
do bom padre).
José Vieira
levantou-se, entre os olhares dos colegas. Olhares aliviados uns,
piedosos outros. Não sabiam se o caso era de ficar alegre
quem escapara, ou ficar triste, de dó da vítima.
Situação parecida com a daquele coveiro de Flaubert,
que plantava defuntos nas sepulturas, e batatas na área
reservada do cemitério. Mas veio, certa ocasião,
a epidemia, com muitas mortes: não sabia ele se devia regozijar-se
com o trabalho abundante ou entristecer-se com a diminuição
do batatal, invadido pelas covas. Assim os colegas de José
Vieira. Mas, como os homens não são iguais, seus
olhares se repartiam em satisfeitos e piedosos.
Meu tio falou:
Vamos à lição.
O menino desfiou,
implacavelmente, fielmente, palavra por palavra, todo o texto
marcado, a metade da Guerra do Paraguai.
Houve um ‘muito
bem' efusivo e repetido do professor, encenado pela expressão
admirativa da sala e acompanhado de um 'pode assentar-se'.
José Vieira,
porém, acrescentou:
- Meu tio, se o
sr. quiser eu dou o resto da Guerra do Paraguai.
Todos os olhares
se voltaram para ele.
Bonachão,
padre Augusto falou, sorrindo: – Então continue.
E José Vieira,
seguro, mnemônico, imperturbado, esgotou a outra metade
da Guerra do Paraguai!
8. Xavier
Iam passando os dias, enfiando
o colar dos meses e o colar dos anos. José Vieira crescia,
em tamanho, em idade e em sabedoria. Foi vencendo a infantilidade
e a insuficiência roceira. Foi vendo que tinha gosto e capacidade
para os estudos. Venceu o primeiro, o segundo e o terceiro ano.
Passou o carro de fogo. Pesou ambições e planos,
perquiriu a alma, teceu malhas de sonhos e sentiu que seu ideal
era a vida de um lazarista, na graça de Deus, na paz monástica
de claustro, no convívio de irmãos, no gosto infinito
dos livros.
Assim, depois de
passar alguns dias em casa, junto à família, durante
as férias, após três anos de ausência,
voltou para continuar a carreira. E começou o quarto ano.
Foi no segundo semestre
que recebeu o nome de Xavier, que tanto aderiu a sua pessoa, com
o tempo.
Haviam passado as
férias de janeiro, cheias de chuvas e estudos livres. Durante
elas, estivera lendo os sermões de Vieira dedicados
à glorificação de São Francisco Xavier.
O programa do quarto
ano, em português, era Camões: ler, comentar, interpretar
e analisar os Lusíadas. Por causa dos Lusíadas,
o padre Cruz, notável professor, ensinava a história
das epopéias – Homero, Vergílio, Dante, Tasso, Ariosto
– a história do Renascimento, a história de Portugal,
com seus descobrimentos, a quanta coisa mais Camões obriga,
pois Camões é enciclopédico.
Ora, um dia, em
aula, referindo-se padre Cruz a um passo de Vieira e querendo
lembrar-se de um pormenor literal, José Vieira pediu licença
de o esclarecer. Explicou estar bem lembrado porque lera o sermão,
durante as últimas férias.
Perguntou-lhe o
padre quais sermões havia lido. Respondeu que lera a série
da glorificação, enfeixada sob os títulos
Xavier dormindo e Xavier acordado.
Foi uma coincidência
feliz e o caso ficou notado. Meteram-no à bulha os companheiros,
acabando por lhe pregar, em cima do nome, a etiqueta Xavier,
que pegou, generalizou, dominou de todo, não sem alguma
vaidade de José Vieira que passou a subscrever-se Xavier,
na intimidade e nos trabalhos literários.
Mais tarde, pessoas
que privaram menos com ele, chegavam a pensar que seu nome todo
fosse José Vieira Xavier, separado o Xavier para o trato
e o José Vieira para as situações de responsabilidade.
9. Os concursos
A quinta-feira e o domingo eram
dias de levantar meia hora mais tarde. Na quinta, em vez das aulas
da manhã, havia uma prova escrita chamada concurso,
feita entre nove e onze horas, alternando as matérias,
cada semana, durante o ano inteiro.
A escala dos concursos
do mês era afixada com antecedência, de sorte que
sabia cada um, de antemão, quais os dias de português,
latim, história, matemática, geografia, etc.
As provas realizavam-se
no salão geral, sob a vigilância de um padre, cada
turma com seu assunto. Enquanto o primeiro ano fazia, por exemplo,
aritmética, fazia português o segundo, latim o terceiro,
francês o quarto, história o quinto e grego o sexto.
Descia cada turma
à sala de aula, onde deixava os livros e recebia as questões
do professor. Desciam ao mesmo tempo, em forma, em silêncio,
voltando por turmas despachadas, buscando cada aluno seu lugar
no salão. Regia o ato a mais perfeita lisura. Ninguém
colava. Se o silêncio do estudo era, normalmente, absoluto,
o da hora do concurso era absolutíssimo.
A distribuição
dos lugares era naturalmente estratégica, de sorte que
um aluno, fazendo prova de português, via, a seu lado, quem
fazia matemática e, na sua frente, quem fazia história.
A dureza da prova
estava em proporção com a matéria, o professor
dela e a sorte do aluno com as questões.
Quem acabava sua
prova ia descendo para o pátio de baixo. As onze horas
iriam para o banho, no rio ou no Tanquinho. Ao meio-dia estariam
jantando.
No refeitório,
terminada a refeição, o padre Superior, antes do
martirológio – que era a última parte diária
da leitura de meio-dia – o padre lia os resultados dos concursos
feitos na semana anterior. Era coisa de muito interesse, envaidecendo
os que tiravam primeiros lugares e enchendo de humildade os que
ficavam para os últimos.
Havia alunos terríveis,
como o cearense Otávio Lopes, o Magrelo, que tirava o primeiro
lugar em todas as matérias. O comum, porém, era
a distribuição emulativa da primazia.
A Xavier, nunca
mais lhe saiu do ouvido o ritmo e a voz do padre Superior, quando
anunciava a sua turma, nos dois últimos anos.
Se era latim: 1º.
Júlio, 2º. Vieira, 3º. Tenan, 4º. ...
Se era português:
1º. Vieira, 2º. Júlio, 3º. Rabelo, 4º. ...
Se era matemática:
1º. Tenan, 2º. Vieira, 3º. Rabelo, 4º. ..
Do quarto ano em
diante, a disputa era monótona, porque os valores se definiam,
entre os poucos alunos, por uma escala de gradação
quase mensurável a compasso. Bastava anunciar a matéria
para ficar mais ou menos adivinhada a classificação.
Ao tempo em que
Xavier fazia o primeiro ano, o sexto ano era de quatro alunos.
A ordem comum dos concursos era: 1º. Pélissié, 2º.
Barros, 3º. Clóvis, 4º. Casimiro. Ou então, mais
raramente: 1º. Barros, 2º. Pélissié, 3º. Clóvis,
4º. Casimiro.
Aquela prova escrita
semanal de quinta-feira era um bom instrumento pedagógico.
Forçava a revisão periódica das matérias,
retificando e fixando conhecimentos. Equilibrava e distribuía
o esforço do estudo, que seria outro e maior, para os exames.
No fim do ano, havia
concessão de prêmios e de accessits aos
mais bem colocados em cada disciplina.
1O. A cola
A mais penosa decepção
que teve Xavier, quando estudante do mundo, foi a que lhe causou
o ambiente escolar minado pelo desmazelo, pela papeata, pelo cinismo,
pela cola.
Partira de uma cidade
do interior, inexperiente e ansiado, rumo a a um ginásio
oficial, onde ia fazer exames parcelados.
Havia dois anos
que terminara o Caraça. Requerera quatro línguas.
Inocentíssimo ainda quanto à relatividade da lei,
que o nosso trópico amolece e que a nossa manha achincalha,
ficara cheio de medos, ao tomar o programa do Colégio de
Pedro II, referto de itens abrangentes, metódicos, profundos,
solenes, técnicos.
Desfolhou a sua
vaidade caracense aos pés daquela síntese oficial
de exigências. E estudou com afinco.
Esperava encontrar,
nas centenas de concorrentes que viu, a mesma sisudez e preocupação
que levava. Esperava encontrar uma rapaziada grávida de
conhecimentos armazenados em fecunda preparação!
O que viu, porém,
foi um bando de indivíduos soltos e alegres, despreocupados
e barulhentos, risonhos e divertidos, como numa colônia
de veraneio, entregues noite e dia aos cafés, às
praças, ao divertimento.
Xavier sentiu-se
humilhado. Não fizera ele um bom curso e não temia,
entretanto, aqueles parcelados? Aquela mocidade devia ser genial
para que assim procedesse.
Ora, toda a verdade
lhe começou a aparecer, no dia da primeira prova escrita.
Para vergonha, horror e acabrunhamento dele.
Encontrou-se diante
da mais grosseira e feia comédia que nunca vira! Os super-moços
que imaginara, não passavam de pobres diabos analfabetos,
deseducados e jejunos, primários e bons, a quem o exame
não pedia mais trabalhos do que a cola da prova e a cavação
da nota junto aos examinadores.
Xavier acabou duvidando
de si, porque não podia compreender. Só o tempo,
com sua experiência, lhe fez voltar o conceito à
posição inicial do bom senso, quando pôde
avaliar o estado em que vive o ensino brasileiro – estado de deliqüescência,
dissolvência, putrefação, desmantelo, sornez,
moleza, infecção, parasitismo, vergonha, ignomínia....
um inteiro dicionário analógico!
Estava rendido e
atordoado. Mas o tempo o acabou apassivando, na repugnância,
como quem se ajeita ao que lhe parece não ter cura.
Antes disso, entretanto,
a sua vocação para a utopia, que nele contrapesava
à lei da conformidade, levou Xavier, quando aluno da Escola
de Direito, a redigir e assinar, com alguns companheiros de um
Centro de Estudos que tinham, um caloroso apelo contra a cola,
endereçado ao Conselho Nacional de Educação.
O Conselho, metido
em sua toga laticlava e calçado em seus enfáticos
coturnos pedagógicos, discutiu senatorialmente a representação,
concluindo, num sorriso genial, que os moços dela, ainda
eram do tempo em que se acreditava que exame era critério
de avaliar conhecimentos!
Houve réplica
apaixonada do Centro, na qual se lembrava que o sol brilhava muito
em Belo Horizonte, havendo aqui uma Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico – na ocasião a única do Brasil
– ilustrada nas mais avançadas teorias, honrada pelo ensino
e presença de professores do Instituto J. J. Rousseau,
de Genebra, como Claparede e Helene Antipoff, iluminada nas lições
de ex-alunos da Sorbonne, de Paris, e do Teacher's College, da
Columbia University.
A réplica
era desabafo. A lei da conformidade já havia explicado
a Xavier que o clima aqui é muito quente, que não
valia a pena fazer força, que era sempre mais suave ‘cavar'
alguma coisa e beber um refresco, entre amigos, ouvindo anedotas.
Tudo que sentia
era um resíduo bravo da formação caracense
e daquela inteireza absoluta com que faziam lá as provas.
O melhor exemplo
da intolerância à cola, no tempo de Xavier, fora
o caso do espanhol Garcia. Era espanhol, mas a família
morava no Rio. E estava ele no terceiro ano.
Aluno comum, suas
notas de argüição, inclusive História
Universal, assim o mostravam, colocando-o mais para o fim do que
para o começo. Entretanto, em dois concursos de História,
seguidamente, Garcia tirou o primeiro lugar. Vigiaram-no, desconfiadamente,
no terceiro concurso. Foi apanhado. Argüido, confessou.
Era numa quinta-feira,
antes do meio-dia. Não houve barulho, não houve
escândalo. Somente pôde notar-se que o Espanhol desaparecera,
durante o resto do dia.
À noite,
à hora costumada para avisos, o padre Superior comunicou
a todos que Garcia fora expulso, por ter colado a prova de História
Universal.
11. Os exames
A indiferença e pândega
em que Xavier encontrou os exames, no mundo, fazia recordar os
exames do Caraça, por contraste.
Em janeiro havia
os exames do meio do ano letivo; em julho, os do fim. Um mês
antes, fervia a comunidade dos alunos, com a grave preocupação.
O lugar do livro era no salão de estudos ou na sala de
aula. No tempo daquele mês, porém, a disciplina permitia
que se andasse com livros pelos recreios e passeios.
Do quarto ano em
diante, o exame tinha um sentido profundo. Os cuidados que dava,
metiam o aluno pelos cantos do pátio, da Varginha de quarta-feira
ou dos passeios de domingo, entregue ao que mais o apertava.
Esfriavam os folguedos.
O escrúpulo preparatório dos cavadores acabava exercendo
ação mimizante, alastrando geralmente a febre de
estudar.
Nada se comparava
ao exame oral, na importância e no efeito. Como sabia tremer
um aluno, diante da banca, ao persignar-se, tirar o ponto da sorte
e esperar o anúncio da matéria pelo examinador!
Mestre havia que, detendo a nota mensal no grau nove, guardava
o grau dez só para o exame, como a vincar, também
nisso, o valor especialíssimo dele. As condições
pessoais do examinador faziam variar a força da intensidade,
na excitação do examinando.
O professor de grego,
por exemplo, no quinto ano de Xavier, introduziu na cerimônia
uma nota maliciosa e gaiata, somente pour épater, dizia
ele.
O exame de grego
era em junta com o de português. E o professor de português,
que sabia incutir a paixão da matéria, gostava,
mesmo no quinto ano, que o examinando recitasse, limpamente, corretamente,
o seu ponto de estilística ou de literatura. Só
depois argüia.
A cena impressionava
pela sua perfeição.
A fim de não
deixar por menos, o professor de grego fez, naquele ano, decorar,
previamente, a cada aluno, uma lírica anacreôntica.
Do português
passava o examinando ao grego. Sorteado o ponto, lido e traduzido
o trecho, atendida a gramática, o professor, enfaticamente,
consultando o papel e relembrando o número sorteado, declarava
que recitasse a ode tal. Era a combinada. E o moço repetia,
gostosamente, o Anacreonte único que sabia, como se fora
qualquer entre muitos, ao acaso da urna.
Nas recitações
brilhantes, o professor de grego olhava significativamente para
o professor de português.
Entretanto, essa
comediazinha não corrompia nem o exame nem a nota. E não
aliviava ninguém do comum e santo respeito que tinham todos
pelo mais impressionante ato da vida estudantil.
12. Professores
A formação do Caraça
era profundamente francesa. No esplendor dos tempos colegiais
teve a casa vários professores daquela nacionalidade. Com
a guerra de 1914, começaram a desaparecer. Mas todos os
professores do tempo de Xavier, ou eram europeus formados em França,
ou brasileiros que também tinham ido lá, concluir
os estudos e a carreira eclesiástica.
Deixou cada um,
no espírito do jovem educando, a sua lembrança e
a sua impressão. Seria longo, e perigoso para o espírito
de justiça, retraçar sinais de cada um. Alguns,
porém, lhe deixaram recordações mais fortes,
boas e más.
O professor de português
influiu profundamente na formação de Xavier. Dele
se falará quando se tratar da formação literária.
Um dos seus mestres
de latim, o do terceiro ano, era um espanhol que marcava lições
modestas: uns cinco versos de Ovídio e pouco mais de uma
página de sintaxe, na gramática de Sousa.
Não se assentava,
durante a aula. Explicava ou argüia passeando, para lá
e para cá, o tempo todo, como fera em sua jaula, acompanhando
sem livro a lição que o interrogado fazia, no Ovídio,
com a ordem direta e a tradução. Se este errava,
o padre dizia não. Se tornava a errar, em segunda
investida, dizia não e emendava pelo certo. No
fim do mês, vinha a nota, rasteira e surpreendente.
Narigudo, fanhoso,
metódico, era suavemente mau, aquele professor. Por causa
dele, Xavier tomou antipatia à gramática de Joaquim
Alves de Sousa. E teve, bem mais tarde, um gosto de vingança
póstuma, quando leu que mestre Epifânio Dias, autoridade
admitida, havia descomposto, ousada e bravamente, o latim do homenzinho,
numa obra intitulada O latim do sr. Alves de Sousa.
Entretanto, se era
mau, era também macio, o professor de latim. O terror do
colégio era o professor de matemática, um holandês
sangüíneo e gordo, luzidio e bem penteado, que os
alunos, entrando na sala, já encontravam na sua cátedra,
montanha olímpica de raios que eram um alimento de pavor
e uma força de fulminação.
Possuía ele
uma abundante capacidade de injuriar, xingando de burro quem não
podia com um problema. Punha de joelhos, na aula, e dava cópias,
ao aluno que não soubesse ir ao fim de um exercício.
Não tolerava nenhuma fraqueza ou dificuldade.
Chamado o aluno,
ditava a questão e seguia, calado, as operações.
Não auxiliava, não insinuava, não facilitava.
Ia andando o Newtonzinho,
apreensivo e cuidado, no silêncio cheio do ruído
do giz.
De repente, ouvia
um não, que o fazia tremer. Tinha errado. Arripiava
caminho, tentava outra via, cortada por outro não mais
tonalizado que o primeiro. Interrompia-lhe este, o trânsito
cerebral. Um pavor incômodo aquecia o ambiente. Então
o padre, numa voz de escalas enfáticas, uma voz abalroada
e dramática, uma voz guturalizada e germânica, dizia,
escandindo sílabas: – Oh! fique aqui de joelhos!
Mas isso era monstruoso!
– estará pensando algum leitor.
Xavier achava duro
de suportar, aquilo, mas buscava lembrar-se de que estava numa
casa de formação religiosa e de que a humilhação
é mérito, na penitência cristã.
13. A lição de Cristo
Ensinou Cristo, no Evangelho,
que, a quem nos esbofeteasse uma face, devíamos voltar
a outra, oferecida ao acabamento da empresa.
É a doutrina.
Mas um bispo francês do século dezoito, malicioso
cortesão, perguntado que faria na situação
prevista pelo Evangelho, respondeu : – Sei o que deveria fazer,
mas não sei o que faria.
A réplica,
espirituosa, é sábia e cheia daquela prudência
de fraquezas, dos que se conhecem.
Xavier devia ser
receptivo. Indignava-se, entretanto, com os processos do professor
de matemática.
Aquartelava em si
uma das mais insinuantes misérias que nos assaltam no dever
moral, que é repugnar o homem seu próximo, porque
não cumpriu o que lhe cumpria.
Como cristão
e padre, o professor de matemática devia ser manso e persuasivo,
influindo caridade, pelo exemplo, na alma dos alunos.
Mas a obrigação
do aluno, candidato da perfeição cristã,
era aceitar mais contestações ainda.
Se o professor feria
a perfeição, primeiro, Xavier a feria depois, com
as censuras que fazia.
Menos perfeição
com menos perfeição dá mais imperfeição.
É aplicar
mal a teoria jurídica das compensações, transferi-la
para o campo moral. Se Pedro injuria a Paulo e Paulo a Pedro,
igualmente, o juiz dirá que as injúrias se compensaram
e nada há que reparar. Moralmente, porém, cristãmente,
porém, o que há são duas injúrias
que reparar.
Manda a ordem cristã
odiar o pecado e amar o pecador. É muito humano, porém,
misturar as coisas e desgostar do pecador, por causa do pecado.
Não agrada
à mesquinhez – que está no coração
qual uma espécie de lei da gravidade – não lhe agrada
que o candidato a santo lá se empenhe na virtude, enquanto
o seu próximo está no bem-bom de seus maus pendores.
E ainda perdoar-lhes!
A tolerância
é uma virtude difícil ao cristão esforçado.
Entretanto, poderá não o ser para homem relaxado,
a quem é mais possível a folga de juízo,
conforme a mesma lei das compensações, ou melhor,
da creditação mútua. “Tolero-te, amigo, as
misérias, para que me toleres as minhas.” É a filosofia
prática do ‘macaco, olha teu rabo'.
Vem dela o perdão
oceânico, a indulgência plenária, o olho vesgo
e sonolento que, num mundo em ocaso, as sociedades deliqüescentes
costumam pôr às mais feias ordinarices humanas.
É a tolerância-fraqueza,
a tolerância-conivência.
A tolerância
cristã é a tolerância de virtude que aceita
o pecador e não o seu pecado.
O professor de grego
de Xavier servia de prova de que na casa de Deus há várias
moradas. Residia ele na desta virtude tão difícil
ao virtuoso.
Tinha a feição
do acabado repúblico, não no sentido moraisiano
de zelador do bem público, mas no sentido de que tinha
molde para viver numa república, fazendo o seu e respeitando,
no vizinho, o seu - fazer.
Ensinava a língua
de Demóstenes euforicamente, sempre lúdico, ou por
intuição, ou por experiência. Tinha a competência
de quem estudara em Paris. Tudo sem trovoadas nem decretos, nem
cominações olímpicas.
Alguns alunos, porém,
mais acostumados ao espírito de rigor, àquela seriedade
física, na vida cristã, que é um dos mais
sérios óbices à verdadeira alegria – interpretavam
licenciosamente o regime do helenista.
Entre eles, Xavier.
Mais de uma vez cometeu a indelicadeza de se pôr a ler outra
coisa, durante a aula. Era dos sisudos e queria modos rituais.
O professor, desentendido
e inofenso, mas avisado e discreto, argüia Xavier, propositadamente,
não em jeito de surpreender o distraído, aquele
jeito policial da censura, mas no tom simples e inagressivo de
quem estava em aula com seu aluno.
Xavier desaprovava
o professor, mas o professor não era capaz de desaprovar
a Xavier. Parece que sabia estar semeando, na ingenuidade verde
e presunçosa, o que o tempo havia de florescer em compreensão
reconhecida.
14. As notas
A nota mensal construía-se
pela argüição em aula e pela avaliação
dos exercícios de caderno.
Do terceiro ano
em diante, reduzidas as turmas a vinte, quinze, dez, a cinco alunos,
a chamada à lição podia multiplicar-se folgadamente.
Os apertos da nota
corriam segundo o câmbio, na sistemática de cada
professor.
Do quarto ano em
diante, era desaire tirar nota inferior a seis. Toda a seleção
estava feita e os poucos moços que chegavam àquela
série podiam apontar-se como verdadeiros heróis
de Gedeão.
O professor de grego,
por exemplo, não sabendo censurar nem cominar, ante o risco
de ver sua disciplina menoscabada, buscava coerção
num original processo de apertar o aluno: dava notas negativas.
Com dois ou três graus abaixo de zero, num exercício,
era a vítima obrigada a um cuidado total dos exercícios
seguintes e a pedir, para si, argüições em
aula até reconquistar o equilíbrio desejado.
A publicação
das notas tinha, mensalmente, o seu aparato solene. Chegado o
dia, encontravam os alunos, ao entrarem para o estudo da noite,
um semicírculo de cadeiras em forma com a mesa frontal
do salão.
O estudo acabava
meia-hora mais cedo, guardando-se livros e cadernos um minuto
antes do soar das sete. E um ou dois minutos depois, solenemente,
ao levantar de toda a comunidade, vinham surgindo o padre Superior
e todos os professores, com a sua compostura eclesiástica,
adiantando-se até à frente do salão, postando-se
cada um junto à sua cadeira, segundo a hierarquia vocacional,
ficando à mesa, num estrado, grave e imponente, o Superior.
Assentava-se ele
e, em sucessão, padres e alunos, com aquele sabido ritmo
e repercussão de um castelo de cartas assopradas.
Aquietava-se o ruído,
silenciando bancos arrastados e tosses concomitantes. É
fenômeno de notar, numa comunidade cheia de grandes silêncios,
que o tossir também prefere esperar sua oportunidade, como
a que lhe dá uma hora geral de sentar ou de levantar.
O padre Superior
tirava, pelo salão, um olhar circunspectivo, que acabava
no caderno aberto, e começava:
– Sexto ano: Carlos
Pélissié!
Erguia-se, na retaquarda,
última carteira, um moço alto e magro, vermelho
e composto, atrás de uns óculos de hastes douradas.
Era francês, da Martinica.
Escutava o aluno
de pé, e o Superior lia as notas.
Se tirava, em tudo,
dez e nove, a comunidade aplicava-lhe uma salva de palmas. Era
coisa difícil. Mas, durante dois anos, Xavier pôde
ver o cearense Otávio Lopes, o Magrelo, obter, mês
por mês, o consagrado triunfo. E mais não os teve
porque não continuou, ao fim do quarto ano.
Durante o primeiro
ano, as notas de Xavier oscilavam, dançando entre o nove
e o cinco. Houve um mês, no segundo ano, em que elas fizeram
rir a comunidade e provocaram um gracejo do Superior.
Este chamou: – José
Vieira!
Xavier pôs-se
de pé e escutou: – Religião 8, latim 8, português
8, francês 8, álgebra 8, geometria 8, história
8, procedimento 8, aplicação 8.
Todos sorriam. Xavier
estava encabulado. O Superior perguntou-lhe: – Qual é o
seu número?
Xavier respondeu:
– 54.
O Superior disse:
– Vamos mudá-lo para 88.
15. Pedagogias
Rezar, dormir e comer, estudar
e brincar, ter aula e ter recreio, estar na forma e andar na forma
– eis o internato.
Xavier era de cera,
quando foi completar doze anos lá. Era menino de roça,
inocente e ingênuo, receptivo e macio, todo capaz e maleável
para aquela vida artificial. Artificial, mas não tanto
quanto a vida artificial também, e manhosa, do século
ou do mundo.
A pedagogia moderna
recomenda que a criança tenha, na escola, o seu clima,
um pequeno mundo para sua personalidade respeitável. Lá
dentro desenvolverá seu eu, com a força dos seus
impulsos, que as condições do meio, bem estabelecidas,
irão dirigindo e corrigindo, até que saia uma boa
unidade social, da feliz conjunção entre o homenzinho
e a mesologia: o homenzinho que se cresce e a mesologia que se
lhe dá.
Ia a dizer um bom
sujeito, mas recuei ante a enérgica passividade
do termo, cuidando de teoria tão ativa como a da moderna
escola, onde a criança há de fazer e não
ser feita. Aliás, ainda houve abuso, com a palavra homenzinho:
a criança é criança, não é
homenzinho.
Ninguém pode
negar a simpatia
e bom senso de tal pedagogia, toda aceitável até
o ponto da discordância lírica entre a escola rousseauniana
e a maquiavélica.
Esta discordância
lírica está em que a escola maquiavélica
tem, na base, o pressuposto de que o homem é naturalmente
mau. E a escola rousseauniana a do homem naturalmente bom.
Ora, a pedagogia
moderna, partindo de Rousseau, quer o menino ativo, dentro dos
seus impulsos, apenas canalizados por um meio bem fornecido.
Ela não forma,
conforma, que a forma são as tendências e forças
naturais do indivíduo, senhor de sua respeitável
enteléquia.
Ora, a pedagogia
cristã é maquiavélica. Admite o mal como
coisa ínsita no homem, clama e reclama contra ele, não
cessa, não dá quartel, quer corrigi-lo, determinando
bons hábitos, pela repetição passiva, livre
a alma de os animar sempre, com sua participação
ativa.
O regime do Caraça
tinha explicação no seu objetivo – que era paparar
para a vida monástica, segregada e especial, feita de elementos
que o meio secular desconhece.
Criava, para os
meninos, pedagogicamente, uma atmosfera construída com
aquelas substâncias em que se iriam integrar, uma vez homens
feitos.
Era um regime vincado
de rotina, com inoculações de automatismo e exercitação
diária do estar consigo mesmo. A vida monástica
é uma vida interior, condicionada por um mínimo
de vida exterior. O automatismo e o ensimesmismo visam à
libertação do espírito, com sua primazia,
num clima de pensamento, meditação e ascese mística.
Aliás, é
o clima do cientista. O sábio costuma ser um produto monástico
do século. Clima tão natural à ciência
que é comum e diário o claustro fazer sábios,
ao fazer monges.
Xavier não
sentiu o artificialismo. Estava como peixe n'água. E não
encontrou, em toda a vida, outra quadra mais feliz, mais tomada
de plenitude.
Com os olhos da
distância e da imaginação é fácil
condenar.
Mete-se o homem
feito no complexo de sua vaidade e egoísmo, pressente,
em confuso, os resultados de perder sua liberdadezinha, seu gozozinho,
seu lugarzinho na vida, e imagina como seria terrível um
encarceramento daqueles, condimentado de passividades e monasticismos.
No seu parcialismo
enfatuado, tingido de pessoalidade até à medula,
esfria e treme só com a hipótese do que teria sido,
em chatice e mornez, passar, internado assim, a primeira adolescência.
Ele, que a passou
na liberdade desorientada e licenciosa dos convívios soltos,
das iniciações equívocas, das inconseqüéncias
permitidas, não pode compreender que seja possível
haver felicidade dentro de uma vida condicionada, dirigida, impedida,
como a de um seminário.
Quanto engano! Internem
um Xavier no seu Caraça e verão como será
feliz!
Dirão que
era um menino bobo, inexperiente, sem referências para a
vida e, ainda por cima, carregado de conformidade.
– E então?
Acaso vedou alguém o ser feliz a quem é inocente?
Ninguém obrigava ninguém a ser feliz, numa casa
de portas abertas mais fáceis de transpor, saindo, do que
entrando.
É vezo e
miséria de nosso imperialismo pessoal negar aos outros
condições que não compreendemos para nós.
16. Automatismos
A vida de Xavier não era
um paraíso, embora a saudade e a inveja dela, mais tarde,
a fizessem classificar de paradisíaca. A formação
cristã, que buscava, jamais lhe havia programado vida de
paraíso, na terra.
Mas ele experimentou
a sensação do paraíso, anos a fio, nos inocentes
prazeres que encontrava e no esforço de conformidade que
o ideal lhe pedia.
A conformidade às
exigências de um ideal cria a paz da consciência.
E a paz da consciência é a mais pura e substancial
felicidade, na vida.
O que sofreu e sentiu
proveio do remorso - esta objetivação de consciência
do homem que pecou, do homem que diminuiu ou fintou sua prestação
de dever.
O que sofreu e sentiu
proveio da contigência - esta relatividade das forças
que deviam proporcionar-se, diariamente, ao ideal, mas que falham
a cada hora e achatam o homem com a mesquinha sensação
de sua miséria.
Até essa
miséria, entretanto, podia explorar-se como elemento de
consolo, como contribuição de felicidade.
Há, na vida
ascética, uma instituição química
de comutações, que transforma, cambialmente, em
moeda de méritos, no banco da humildade cristã,
os deméritos da falência humana.
Isto permite um
sistema de economia residual, dos salvados da miséria,
remédio às aflições do imperfeito,
que a mística apurada e fina pode explorar, descontando
em taxas de humildade as tibiezas do viver.
A lei do alfaiate
que risca largo para cortar estreito é uma lei universal.
É a lei da relatividade, regendo a passagem do Sonho à
Ação, compromisso entre a Execução
e o Plano.
O que Xavier traçava,
para o dia, na oração da manhã, lamentava,
em desfalques, à noite, no exame de consciência.
O que prometia a
Deus, na contrição hebdomadária da confissão,
cumpria a menos ou descumpria, no decurso da semana.
O impulso de perfeição
contrariava-se na preguiça da máquina, escasseando
o rendimento das atividades diárias, do levantar ao deitar.
O levantar era às
cinco horas, esforço duro, principalmente nos dias frios,
que são especialmente frios, no Caraça.
Seis anos de madrugar,
somados ano a ano, mês a mês e dia a dia, representam
um trabalho que só entende e avalia quem o teve.
Mas quem fora capaz
de praticar madrugação diária, seis anos
a fio, sempre de alma igual?
Pode imaginar-se
quanto oscilaria Xavier, em tantíssimos dias, na dificuldade
da cama ao lavatório, do lavatório ao vestir-se,
do vestir-se ao recompor a cama, daí à espera, da
espera à descida, em forma, para a oração,
daí à missa, da missa ao estudo, do estudo ao refeitório...
A maior paciência
era a das esperas, comandadas a sinais.
Xavier levanta-se,
apronta-se e espera a hora de descer; desce e espera o acomodar
de todos para a oração; depois, espera sua vez na
forma que desce à missa; na capela, de pé, espera
que se arranjem todos para o sinal de ajoelhar; no movimento de
sair, espera que chegue o seu turno; no estudo, espera o sinal
de assentar; no refeitório, espera o de assentar e o de
começar.
A comunidade é
uma cobra que serpeia por corredores e escadas, do dormitório
ao estudo, do estudo à capela, da capela ao estudo, do
estudo ao refeitório, do refeitório ao recreio,
do recreio ao estudo, do estudo à aula, da aula ao estudo...
sempre em forma, sempre comandada por sinais.
- Santo Deus, parecia
convento ou casa de correção!
- Parecia convento,
não, leitor amigo: era convento!
- Eu não
suportaria!
Mas Xavier suportava.
Ou melhor, já não suportava, porque vivia esta vida,
animando-a com a alma de que o ia informando a educação,
em que lhe crescia, progressiva, a liberdade do espírito
e da inteligência, em proporção com o automatismo
que desenvencilha a reflexão, a vida interior.
Dormia, rezava,
estudava, comia, brincava, sofria, gozava, pacientava, impacientava,
cismava, concentrava, agora bem, agora mal, hoje triste, amanhã
alegre, já eufórico, já desanimado... e,
no balanço final, a vida era boa.
Crescia nela e tinha
jeito dentro dela.
17. A capela
Uma exposição por
menor dos prazeres da piedade, da união com Deus, forneceria
matéria de arrazoados aos convencidos exploradores da alma,
que têm criado teorias psicologicas da religiosidade adolescente.
Quantas e quantas
vezes experimentou Xavier a felicidade perfeita, na capela, diante
de Deus.
Era uma capela gótica,
muito pura e muito simples de linhas, com seus vitrais desenhados
e coloridos, seus altares de mármore, suas colunas como
feixes de estípites a desabrochar, no alto, em palmas simetricamente
abertas, sustentando a abóbada.
E muito geral ainda,
no povo brasileiro, o domínio de uma religião barroca,
cheia de crendice, agravada de ignorâncias mas indulgenciada
pela simplicidade da alma.
Com esta crença
mistura-se o mau gosto rococó do templo e do culto, na
sua liturgia popular e na sua música sem arte.
Produz o todo um
círculo vicioso em que a mediocridade artística
alimenta mal a fé e em que a crença eivada amesquinha
a arte religiosa.
A capela do Caraça,
na sua pureza estética e no seu gosto, era um fecundo elemento
de devoção.
Sua beleza enchia-se
de mais beleza, pela correção litúrgica das
cerimônias, somada ao valor canônico e artístico
do canto sacro.
Mais tarde, a experiência
mostrou a Xavier que o coro estava longe de ser digno da Capela
Sistina. Entretanto, naquele tempo, mesmo com as imporfeições
que Xavier conhecia menos, havia enlevo de plenitude nas harmonias
que ritmavam e alevantavam, até quase ao êxtase,
o sabor das festas de igreja, como as da Semana Santa, do Natal,
São Vicente, etc.
O canonismo era
bastante estrito, banidas a vulgaridade ou a impropriedade de
tantas músicas que vogam, no culto brasileiro, como sacras.
Ao canto gregorlano,
fundamental, entremeava-se a música de Palestrina, Viadana,
Vitória, Bach, e as melodias de um bem cuidado Cantuale.
Os números
musicais de harmônio incluíam arranjos de Bach, Beethoven,
Mozart, Haydn, Haendel, César Franck, Saint-Saëns,
Gounod...
Ajunte-se o esmero
ritual dos ofícios, de que participava toda a comunidade,
cada um com seu Liber usualis.
Havia muito elemento
sensório para que a vida de integração em
Deus fosse um prazer místico.
18. As festas
As festas eram oásis na
mesmice da vida. Começam no antegosto e fruição
do seu avizinhar.
O preparatório
vesperal tinha um sabor que o desejo de aproveitar intensificava.
Começava
na capela, após o levantar satisfeito com a meia hora de
sono prorrogado. A missa solene, caprichadamentc litúrgica,
era celebrada a três padres, com mestre de cerimônias,
acólitos, turiferário, ceroferários, canto
especial.
Os recreios enchiam
o tempo até o meio-dia, hora esperada por todos, a hora
do jantar melhorado, enriquecido a carne de porco, tutu de feijão
e vinho, o bom vinho do irmão Chico, generosamente batizado.
Mas parece que nem o batismo despaganizava direito o licor pois
ele escaldava a cabeça de muitos. Talvez fosse mais por
sugestão do que por embriaguez.
O Deo gratias
- permissão de conversar à mesa - explodia
esfuziante, após a leitura ritual dos versículos
da Bíblia, em latim.
Afora circunstâncias
festivas, havia Deo gratias comum no jantar de quarta-feira
e no domingo.
O passeio pomeridiano
era mais animado porque, na volta, à merenda, em lugar
do pão, serviam brocojó, uma espécie de rosca,
variante querida, principalmente porque era variante.
À noite,
ou havia sessão festiva no salão-do-teatro, ou audição
musical da ‘furiosa', banda instrumental do alunos.
A ‘furiosa' contribuiu
muito para a formação musical de Xavier. Sua preparação
teórica abrangia apenas os elementos da divina arte. Mas
a gosto formou-se na aristocracia do canto sacro, das peças
de execução instrumental e no estudo literário,
que a cultura desenvolvia, ampliando informações
a respeito de Mozart, de Beethoven, Haydn, Haendel, Schubert,
Schumann, Wagner, Verdi, Rossini, Bellini, Gounod, Berlioz, etc.,
cujos trechos, no salão de música, eram o contrabalanço
profano de Palestrina, Vitória, Viadana, Bach, Perosi.
A execução
era canhestra e miserável; mas a imaginação
criava o clima dos arroubos.
Os ensaios eram
diários, durante o ano. Durante as férias, os apaixonados
aproveitavam qualquer tempo livre.
Nos últimos
anos, Xavier encontrou horas inolvidáveis do prazer musical,
improvisando, em cooperação com o Tenan, o Jorge
e o Bessa, um singular quarteto.
Como é fácil
de criar paraíso na alma ingênua dos adolescentes!
Com que devoção
ia buscar-se, nas lições da história da música
e da literatura, a notícia da arte que, abaixo de Deus,
recebia o mais fervoroso culto daquela gente!
Do Caraça
lhe ficou, a Xavier, um definitivo preconceito contra a música
superficial ou plebéia e o profundo embevecimento que lhe
advinha de uma sinfonia de Beethoven ou Mozart, uma fuga de Bach
ou um noturno de Chopin.
19. A formação literária
Xavier teve, no professor de português,
um mestre que sabia infundir o gosto da língua.
Um bom professor
- e o mesmo professor por cinco anos - é um achado. É
desconcerto costumeiro do nosso regime secundário mudar
o aluno de mestre, ao mudar de ano.
Padre Cruz acompanhou
Xavier do segundo ao último ano. Mas Xavier não
pôde compreender o segredo de quem lhe inspirou a paixão
literária.
O segundo ano era
cheio de lexiologia e análise léxica, travada de
método e monotonia. Mas havia as redações,
as poesias que decorar
e as descrições de Eça de Queiroz, como exercício
de ditado.
O terceiro ano era
consagrado à sintaxe, na gramática de João
Ribeiro, e à análise sintática, pelo método
complexo de Carlos Góis, numa sistematização
áspera e falida, que Xavier depois condenou, mas que o
entusiasmava, naquele tempo.
O quarto ano representava
o ponto alto do programa, passado a estudar os Lusíadas
com a poesia épica, o Renascimento, a história de
Portugal e os descobrimentos. Aperfeiçoava-se o estudo
gramatical pela análise de um canto do poema que, no quarto
ano de Xavier, foi o canto quinto, esmiuçado estância
a estância, durante o ano inteiro.
Os anos quinto e
sexto serviam ao estudo da estilística, da literatura brasileira
e portuguesa.
Padre Cruz não
punia pelos clássicos. Percebia a fascinação
contemporânea dos realistas.
Dos clássicos,
só a instituição nacional chamada Camões.
O resto eram relíquias do passado, fontes da vernaculidade,
consubstanciais na fundamentação outorgante das
normas.
O mesmo Vieira,
clássico legível pelo que diz e não só
pelo como diz, o mesmo Vieira se arrolava discretamente no indistinto
rebanho dos superados, sob uma calorosa encomendação
de elogios.
O que valia eram
as doces metáforas, as coradas descrições
e as cálidas imaginações de Eça de
Queiroz, bem como os vôos hugoanos, ribombantes, pomposos,
de Guerra Junqueiro.
Numa casa de formação
eclesiástica, estranhará o leitor que recebessem
tal preferência dois autores assim - dissolvente um, petroleiro
o outro, ímpios ambos.
Mas a cotação
era estritamente estética, prevenida, escrupulosamente,
com toda a assepsia moral e vernácula.
A discrição
contra os clássicos era também uma profilaxia ou
cuidado, em casa de clérigos. Os veneráveis mestres
de idioma são, comumente, eclesiásticos: frei Tomé
de Jesus, frei Heitor Pinto, padre Lucena, frei Luís de
Sousa, padre Antônio Vieira, padre Manuel Bernardes... e
visavam à edificação cristã. Ora,
de toda a obra deles, o que vale hoje é o vernáculo,
tesouro notável para um adulto não já para
um adolescente.
Atribuía-se-lhes
virtude soporífera, ação dormideira, e padre
Cruz, em vez de defender os ídolos do clã, maliciosamente
consentia. Talvez não pagasse bem o trabalho de defender,
pois não era possível tirar muita edificação
cristã das ingenuidades milagreiras de uma Nova Floresta
ou de uma Vida de São Domingos.
Mas Vieira não
é assim, relatarão. - Sim, não era, mas Vieira
peca, em contrário, por excesso de malícia e argúcia.
Em Bernardes, através da ingenuidade milagreira, ressumbra
o espírito de devoção, o calor místico.
Vieira, cheio de século e política, preocupado de
subtileza e manha, é todo intelectualizado, capaz de sacrificar
um sentimento a um trocadilho. Seu cultismo e excesso antitético
viciaram a futuros pregadores.
Mas discrição
não é guerra e havia quem lesse muito os clássicos.
Xavier foi um apaixonado de Vieira e lhe ficou devendo, até,
o apelido. O cearense Jorge trazia de memória quase todo
um Sermão do Mandato.
Lia-se Eça
e Junqueira. Mas Xavier desenvolveu adorações pessoais
a Garrett, a Herculano, a Castro Alves.
Os anos quinto e
sexto foram cheios de entusiasmos eruditos. A redação
não se obrigava mais aos temas do professor, escolhendo
o seu, cada um, segundo o gosto que tinha. Avisado da escolha,
padre Cruz fornecia livros e conselhos.
Eram trabalhos de
fôlego, destinados à Academia Nossa Senhora
Mãe dos Homens, grêmio seleto, cujos sócios,
tirados entre os alunos dos últimos anos, eram admitidos
por convite do Padre Cruz, diretor.
Xavier guardava
lembrança dos seus discursos acadêmicos, nos dois
últimos anos: Camões, Anti-escravismo, A questão
religiosa, Origens do brasileiro, A árvore, Os sinos, etc.
2O. Uma reforma conveniente
Convivendo com universitários,
mais tarde aluno da faculdade, Xavier meditava muito na diferença
de temperaturas e profundidades. Nela, a ignorância comum,
a indiferença intelectual, o desperdício do espírito;
lá, o fervor da inteligência, o entusiasmo de suas
causas, a busca ansiosa.
Quanta paixão,
num caracense, pelas belezas de um Vergílio ou um Camões!
Quanto ardor no manejo de um tema histórico ou de uma proposição
moral! Que deliciamento na leitura de um Garrett, um Eça,
um Herculano, um Rui! Que gosto de Chateaubriand, de Corneille,
Racine, La Fontaine, Bosssuet!
Desde o terceiro
ano, começava o francês a ser a segunda língua
dos alunos, sendo em francês os livros científicos
e as edições de autores gregos e latinos.
O capítulo
ciência era o ponto fraco do currículo. Xavier pôde
ver, depois, que era modesto o programa de matemática.
Além disto, a física e a química eram matérias
reservadas ao Seminário Maior.
Xavier discutia
muito, consigo mesmo e com outros, a sabedoria ou deficiência
de um sistema que relegava a ciência experimental para o
curso superior dos estudos, quando o aluno se achava na posse
de sua força intelectual, desenvolvido pela formação
humanística, pelos conhecimentos gerais e pelo domínio
tranqüilo de três línguas - português,
francês e latim.
É a querela
dos clássicos e dos científicos.
Infelizmente, a
experiência brasileira não permite conclusões.
Nosso mal não é um sistema, é a falta dele,
porque a insuficiência dissolve tudo e desonestidade ou
incompetência achincalha tudo. Até um modesto e vergonhoso
programa colonial nos conviria, contanto que nos regesse. Valeria
mais do que programas enciclopédicos - e destratados -
cujos autores parece terem tido medo de deixar desconfiar que
não conheciam esta ou aquela última conquista da
ciência, este ou aquele último pormenor de exibição
teórica.
A melhor reforma
entre nós, era opinião de Xavier, podia ser, por
enquanto, a supressão do Ministério da Educação,
aberto o ensino livre à livre concorrência privada,
impondo cada colégio as suas bondades.
Para fiscalizar,
bastava, no Ministério da Justiça, uma Delegacia
Nacional de Policiamento.
Em vez de largos
portões, cada escola superior teria uma portazinha de entrada,
estreita e vigiada.
Todo colégio
se obrigaria a grandes avisos murais de que ninguém é
obrigado a ser doutor, de que a vida do Brasil repousa na agricultura,
no trabalho honrado de seus proletários, dos filhos de
suas escolas de artes e ofícios.
21. A bodega dos coatis
A bodega era uma festa de sabor
inconfundível.
Bodega, em Moraes,
é 'taverna móvel'. No Pequeno Dic. Bras.,
é 'tasca, taberna, comida grosseira'. Em espanhol, 'bodega'
é também 'adega'. Bodega, adega e botica são
palavras irmãs e vêm do grego apothéke. No
grego, bodega é prima de biblioteca. Mas a palavra degenerou
e desceu tanto que nem se poderia dizer que é de origem
helênica; quando muito, é de origem grega.
Bodega era um banquete
no mato, uma comida no bosque, um piquenique de glutões,
grosso e forte, realizado junto de alguma fonte sonora, cheia
de água da montanha, aquela água ferruginosa e fria,
aperitiva e pura.
O aproximar-se da
época de uma bodega produzia uma sensação
especial, no ritmado monótono dos dias. O melhor pregoeiro
e anunciador do seu advento era o Saúde, também
chamado Porco, extraordinária vocação de
epicurista, de olhos sumidos na banha, vigiador alerta do calendário
festivo, especializado no conhecimento dos dias de vinho e brocojó.
(O Saúde,
também chamado Porco, não chegou a concluir o terceiro
ano.)
Na véspera
do dia pagão, logo de manhãzinha, desde o primeiro
estudo, ouvia a gente o esganiçar de algum suíno,
sacrificado lá no 'colégio dos postrofes' - nome
criado pelo Saúde, criador de línguas.
O ‘colégio
dos postrofes', é de ver-se, ficava a um tiro de berro,
do salão de estudos.
Àquela hora,
os mais ‘santos', até eles, sentiam imaginações.
Os menos sérios entreolhavam-se, compreensivamente, e talvez
trocas sem sinais, com o risco de levar "ponto" no caderno
do regente.
O corpo estava
ali, diante do livro, mas o espírito voava para sob as
árvores, quiçá da Mistura ou do Campo de
Fora ou do Passeio do Padre Superior.
Rompendo a manhã
do dia aprazado, havia uma nota extraordinária de vigor
no Deo gratias das cinco e meia, respondido ao Benedicamus
Domino com que o Padre Santo despertava a rapaziada.
Após a missa
e o almoço, sete e meia, cada um se punha em estilo de
ir à bodega, tomando este a machadinha, aquele uma foice,
outro um facão, este outro brinquedos que levar. Os líricos
sobraçavam livros, que o tempo era muito, desde as oito
da manhã às quatro da tarde.
Aos mais prestativos
o disciplinário (Padre Santo) entregava cestas de pães,
de pratos, de garrafas, enfim o trivial para uma bodega.
De todas as bodegas
que viu, Xavier guardou marca especial de uma, que depois se chamou
‘Bodega dos coatis', realizada para os lados da Cangerana, à
boca da mata, entre o frescor das árvores e a friúra
de uma agüinha que ria entre seixos.
Chegados ao local,
foi iniciado o arranjo dele. Construíam-se mesas por grupos
ou para grupos combinados, em geral segundo a seriação
dos alunos. Iam pelo mato a cortar madeira, a colher cipós,
a talhar folhas e palmas, a catar parasitas, entre as mui belas
que tem o Caraça.
Por volta do meio-dia,
prontas as mesas rústicas, começavam a dar horas
o relógio do estômago. Havia esmorecimento na algazarra
comum. E teimava, em todos, uma insistência de olhares para
a senda por onde viriam os carregadores.
Fechava-se na trilha,
enfim, um crespusculozinho de prenúncio, e o preto Pais
mais o preto Lopes anoiteciam diante, trazendo o caldeirão
de tutu em bangobalê, numa vara. Tais quais os exploradores
infiéis, carregando um cacho de uvas da terra prometida,
numa página da História Sagrada do primeiro ano.
Estrugia, em recepção,
uma salva de palmas. Era como se tivessem acabado de ouvir um
discurso de Rui.
Seguintes ao Pais
e ao Lopes, outros empregados traziam o arroz, a carne de porco
e o mais que faltava.
Servidos todos,
em muita ordem, como numa cantina de quartel ou de sopa do governo,
ia cada um para sua mesa ou seu canto.
Daí a pouco,
distribuindo vinho, passava o Jacaré mais o Magrelo. O
mosto criava uma renovação de ânimos. Depois,
como tudo cansa, ia morrendo a febre, num entorpecimento sabido,
numa aquietação de saciedade.
Naquele dia, o Padre
Santo, em vez de levar os fortes e voluntários a alguma
ascensão de monte, deixou que ficassem todos pela redondeza,
que o lugar era divertido.
Calculada a hora,
começou o regresso.
Quando passavam
por um campo de beija-mão, à orla de uma mata vizinha
do colégio, então se deu o acontecido típico
do dia.
Beija-mão
é arbustozinho de frutinha miúda como chumbo, a
qual, quando madura, cai, amarela, na relva subjacente. Comia-se,
com muito gosto, pelos alunos.
Mas parece que coati
também gosta dela, pois estava no campo um bando de coatis.
Do lado de cima,
ficava a mata, uma mata bem doméstica, muito orquestrada
de bugios, que o aluno podia ouvir, desde o salão de estudos,
pela manhã ou ao pôr-do-sol. Do lado de baixo, o
terreno, vítima de erosões, apresentava uma buraqueira
irregular, mas toda vegetalizada, como o campo de cima.
Verem-se e alarmarem-se
foi tudo um, para meninos e coatis. O aluno que ia do lado direito
do regente Fuíca, arremessou, contra o primeiro animalzinho
que pôde, uma garrafa vazia. Tinha mira o diabo do garoto,
e o coati caiu, atordoado.
Como o cerco se
fez contra a mata, a manada correu para o bo queirão seco
e mal florido de ervas e arbustos. A matilha centenar deu sobre
eles, mais fazendo que se fora de cães.
O primeiro perseguidor
que deu espetáculo foi o Erasmo, tam bém chamado
Hipopótamo, nome sonoro e gordo, muito conveniente à
coisa. Alcançou ele um inimigo, buscando esmagá-lo
com seu notável pé. Mas já era na orla da
barranca, disfarçada de mato. O coati deu um guincho sarcástico,
afundando nas folhas, enquanto o Hipopótamo rolava da perambeira
abaixo.
O Luís Amaral,
que vinha trazendo um fonógrafo que alegrava a bodega,
deixou a máquina de lado e correu à caçada.
Pobres coatis!
O João Emery,
ou Mingote, conseguindo prender um, estava a ajuntá-lo,
bem vivinho, de pés e mãos, quando este lhe juntou,
numa das mãos, os dentes inda mais vivos. A mão
sangrou e o animal fugiu, pondo o Mingote fora de combate.
Lecionado pelo caso
do Mingote, o Perdigão, ou Chimbica, ou Narigudo, assim
que atingiu quem perseguia, tomando-o pela felpuda cauda, rodou-o
no espaço, em ensaio de funda, para o tontear. Mas veio,
enquanto isso, por detrás, o Magrelo, e o deteve em sua
órbita, com uma cacetada. O Chimbica exasperou-se; ficou
morto o coati; e o Magrelo riu-se.
A luta foi viva
e alegre. Foram prostrados sete animais, dois meteram-se em buracos.
Fez-se uma chegada
triunfal ao colégio, com som de buzinas, de taquaris rachados
e outras improvisações, levando sete heróis
sete troféus.
Ao juntar do dia
seguinte, a mesa apresentava um prato de que nunca se ouvira falar
antes, nos anais caracenses: coati assado. E aquela bodega ficou
sendo chamada "a bodega dos coatis". Mérito raro,
porque, apesar de ser instituição velhíssima,
uma bodega não passava de uma bodega.
22. Eia, migrandum
Assim era o Caraça, para
Xavier, cuja alma aderira ao lugar, quase como a um corpo. Entre
os êxtases da capela, cheia de enlevos místicos,
os entusiasmos da vida intelectual, cheia de descobrimentos, a
paixão da música, cheia de sonhos sonoros, e a doce
vida dos hábitos comuns, cheia de suficiência, viu
ele fugir os últimos anos.
Fora tão
melhor que parasse o tempo, como na história da Bela Adormecida.
O sexto ano correu.
Cada dia que passava, cada festa, cada passeio, fazia pensar que
era o último. Chegaram os exames finais e a festa de São
Vicente de Paulo, a maior festa da casa, como fim de ano letivo
e como dia do fundador da Congregação da Missão,
a Congregação dos padres do Caraça.
Costumavam estar
lá, por esta ocasião, parentes de alunos que partiam
e amigos que iam assistir às solenidades de 19 de julho.
E sempre se convidava a algum pregador sacro, que fizesse o panegírico
do santo.
Tinha um brilho
e fervor especial a missa solene, em uma capela profusamente ornada
e iluminada,, sugerindo imagens de paraíso.
O jantar do meio-dia
era outro número especial, marcado pela presença
de visitantes a quem se tributava a rara homenagem de comer com
a comunidade. Então algum deles, como nos banquetes, fazia
um discurso festivo. [p.65]
A sensação
de vulto, porém, era à noite, no salão-de-festas,
com um programa literário e teatral. Extra-programa, surgia
a palavra de algum visitante .
Foi de uma feita
destas que certo orador, antes do encerramento, erguendo-se com
o dramático e conhecido ‘peço a palavra' das febras
oratórias, inutilizou todo um discurso, por desconhecer
o termo do vocábulo ‘acéfalo'. Pois não começou
ele a oração, condicionada em boa retórica
vocal e braçal, dizendo que os acéfalos padres
do Caraça eram credores da gratidão de Minas e quiçá
do Brasil?
O zelo da propriedade
oratória atingia, entre os alunos, um grau sutil, que os
fazia intolerantes - mesmo sem razão - para os deslises
dos Bossuets ou Demóstenes que lhes fossem orar. Visitante,
talvez no meado, perdia pontos bem perdidos, no câmbio de
sua cotação, quando infringia a lei da quantidade,
num vocábulo, ou a lei da sintaxe, numa construção.
Certa vez, um padre
Carvalho, panegirista de São Vicente, ia conquistando a
admiração gongórica do auditório,
com seu fraseado precioso, tauxiado de vocábulos raros.
Ia mesmo empolgando tudo, com um quadro cujas figuras eram o lírio
e o charco.
O interessante é
que ao charco não lhe chamava charco. Dizia ‘pântano',
‘atascal', ‘marnel', dizia ‘palude', ‘paul', ‘tremedal'... charco
não dizia.
A teoria sinonímica
e as cores vivas do desenho iam conquistando a opinião
ouvinte, até que, a certa altura da peça, trouxe
o orador os 'pólipos', mas trazendo-os graves, isto é,
pronunciando-lhes o nome com acento na sílaba li,
dizendo polipos, como se fora paroxítono. Pormenor insignificante,
mas suficiente, nos comentários de muitos, para que se
desfavorecesse e desclassificasse ao tribuno.
A digressão
excursiva pelas festas de São Vicente está querendo
dizer que não e possível informar, em palavras e
quadros, tudo que significou, para Xavier, a comemoração
final de seu curso.
A sensação
de fim metia-lhe no espírito um vago sentimento de vésperas
de expulsão do paraíso, embora sem anjos guardiães
de espadas flamejantes, como no livro de História Sagrada
do primeiro ano.
Foi encarregado
do discurso de despedida. Exibiu saudades antecipadas de tudo
que fora e era o Caraça. E terminou recitando uns versos
latinos, incuriosamento anônimos na cópia que lhe
deram, embora sejam versos dignos de Horácio (atribuídos
pelo Pe. Sarneel ao Pe. Marinho):
Summa lux venit! Domus alma nobis
Matris est divae quoque deserenda!
Lacrimas nunc quis premet, ore dicens
'Vive valeque?'
Hic mihi primum - referens levabor –
virtus arrisit, gravis et benigna;
parvulum excepit invenemque fovit
tempore multo.
Hic dolori impar domitare
corpus
integrum et pectus didici tueri;
improbos coetus fugere atque sancte
degere vitam.
Hic bonas artes didicisse
laetor:
Tullium rostris valide tonantem,
maximum vatem fidibus canentem
'arma virumque'.
Quo feror? Nunquam nemorum
latebras,
scrupeos montes iterum videbo,
qui, sacris claustris superimminentes,
sidera tangunt?
Non ego posthac sonitu
vocabor
aeris ad templum? Neque me sacerdos,
eloquens ludi, fidei magister,
plura docebit?
Eia, migrandum, pia
Virgo Mater!
Quis recessurus feret hunc dolorem?
Testor: en semper tua lacta pectus
stringet imago
O biógrafo de Xavier, que
agora o está biografando, traduziu ao vernáculo,
assim, esses versos:
Chegou o extremo dia de deixar
teu almo domicílio, ó Mãe de Deus.
E como de saudades não chorar,
neste supremo adeus?
Aqui foi que, primeiro
- isto consola –
criança, me sorriu logo a virtude;
e me nutriu, benigna, em sua escola,
durante a juventude.
Aqui me foi ensinado
o corpo, embora
fraco, domar e o espírito manter;
fugindo o mal, buscando, em cada hora
santamente viver.
Aqui, nas belas artes
me ilustrando,
ouvi de Túlio a voz, como um trovão;
e a do poeta máximo, cantando,
'as armas e o varão'.
Não mais verei
os sítios nemorosos
e nem os alcantis que em baixo abrangem,
com a sombra, os sacros claustros silenciosos,
e em cima os astros tangem?
Não mais serei
ao templo convocado
por este sino, e hei de perder o dote
de tudo quanto ensina o iluminado
e douto sacerdote?
Devo partir, ó
doce Virgem pura!
E como é dolorosa esta viagem.
Mas levarei, consolo da amargura,
comigo, a tua imagem!
23. Sidera tangunt
Passada a festa de São
Vicente, ficara o dia 20 como preparativo de viagem do dia seguinte.
Dois meses depois estaria em Petrópolis, para o noviciado.
Da mesma curva em
que, olhando para a frente, José Vieira enxergara o Santuário
de Nossa Senhora Mãe dos Homens, seis anos passados - agora,
olhando para trás, também o avistava, mas com que
diversos olhos!
Antes, a intuição,
a hipótese; agora, a memória substancial de toda
uma vida!
Dizia a ode do adeus
que os montes tangem os astros, sidera tangunt. Mais
realmente que os montes, porém, tangia os astros o modo
de viver que entre eles tivera - existência edênica
e polposa, gostosa e simples como as frias águas que bebera,
calma e forte como as serras que deixava.
Sim, era uma vida
que ia àqueles astros cuja perenidade luminosa fica para
além das nuvens que empanam a atmosfera e que o vento move
ou desfaz, aéreas e inconstantes.
A Xavier, que viessem
falar-lhe, depreciativamente, do secular estabelecimento, relembrando
o ranço e tirania de outrora!
Houve, sim, aquele
rigor - um rigor de outro tipo e outros tempos, que a lenda assoprava
e enchia como balão, e que o boato batia e aumentava, como
Hércules, com sua clava, na maçã que, crescendo,
lhe impediu o caminho.
Era outro o Caraça
de Xavier, conformado numa ideal imagem, cujas máculas,
desimportantes, o tempo extinguira.
Era diferente do
Caraça brutal das histórias de amedrontar, a que
se agarram ferozmente inimigos gratuitos e desconhecedores, olhando
com olhos de agora, e olhos intolerantes, o que deviam mirar com
olhos de antanho, olhos do Brasil do século dezenove.
E que facilidade
no veredicto, de sentença emitida sobre a depoimento da
lenda, sem nem ouvir o réu!
Segundo Xavier,
o Caraça alcançava um objetivo quase perfeito, ao
obter, para a vida que exigia, uma adesão progressiva da
sensibilidade e da vontade do aluno.
Criava um conjunto
feliz que, parece, não foi possível em nenhum outro
estabelecimento do Brasil, entrando nisto a tradição
do lugar, a sugestão dele, a segregação natural,
a constância feliz, paciente, do método formativo,
ao superar desajustes o inarmonias, ao excluir escrupulosamente
os inadaptados.
A persuasão
insinuante, o império da consciência, governava os
atos, libertava de reações a ação
modeladora do regime.
Não havia
castigos físicos. Os avisos semanais do padre disciplinário
eram admoestações suficientes. E a nota de procedimento
era uma solene advertência.
O molde lutava contra
a rebeldia no primeiro, no segundo e até no terceiro ano.
Ou vencia a vontade de se ajeitar ou ia embora o díscolo.
A modelagem era
paciente e macia, como de oleiro que tem tempo e só trabalha
em argila apropriada.
Para os menores,
disciplinarmente, havia a punição da cópia
ou do cubículo - que era ficar de pé junto a alguma
coluna, durante o recreio. A palavra cubículo,
na expressão, devia conter um sentido residual, de algum
velho castigo mais forte. Lembra a palavra ‘templum', cuja via
semântica principiou num quadrado que o áugure riscava
no chão, com a vara, para dele observar outro ‘templo',
riscado no espaço.
O preceito da cópia
era mais como esforço adminicular de aprender do que propriamente
castigo.
Pôr de joelhos
em aula era uma aplicação pessoalíssima do
padre Bernardo Küenen, professor de matemática.
A natural jurisprudência
de todos, vendo desproporção entre a facilidade
ou injustiça da pena e a inocência do aluno, também
logo lhe negava peso e valor, apenas a tolerando cristãmente,
em conta de penitência e mérito ante Deus.
Ninguém se
revoltava, embora qualquer se queixasse do rigor daquele padre.
Deu-se mesmo um
caso escandaloso, grande prova de submissão, com um ótimo
colega de quarto ano, que tinha Xavier.
Chamava-se Nascimento.
Havendo decidido não continuar os estudos, estava de viagem
marcada para o dia seguinte, mas ainda assistia às aulas
de véspera, segundo um costume de só se deixar a
vida comum no dia de viajar.
Ora, veio a aula
de matemática e padre Bernardo chamou à pedra o
Nascimento. Este explicou não ter feito o exercício
porque já se considerava desobrigado do trivial, pois se
retirava no dia seguinte.
Nascimento era um
modelo e, depois do Tenan, era o único aluno que jamais
ficara de joelhos em aula. Mesmo assim, às vésperas
do seu êxodo foram, para ele, vésperas sicilianas.
Trovejando olimpicamente,
o padre mandou o aluno ficar de castigo.
Nascimento poderia
pedir licença e retirar-se da sala. Assim o desejavam,
silenciosamente, os colegas. Mas preferiu cumprir a sentença,
passando a aula de joelhos.
Parece que aquilo
era um modo seu de protestar e vingar, frisando com a ênfase
de submissão a brutalidade da aplicação.
O caso único
da sensação disciplinar que houve, no tempo de Xavier,
foi o caso do Italiano, o colega e amigo Tenan.
Tenan era genioso
e era regente, posto de responsabilidade e larga importância.
Estava-se no quinto ano e o Padre Santo escolhia entre os quintoanistas
um dos regentes, distribuindo, às vezes, o lugar, propositalmente,
a algum aluno ainda seu tanto arestoso, como o desta história.
Era um tempo em
que agitava a comunidade uma destas inquietações
que vêm como onda ou epidemia, aumentando, na vida diária,
episodiozinhos de brincadeira e dissipação.
O Padre Santo havia
já calcado na voz das admoestações sabatinas,
embora não alterando o seu angustioso método de
contar o milagre sem dizer o nome do santo, enumerando faltas
sem indicar faltosos. Eram dissipações na forma,
no recreio, no refeitório, no estudo. Frisa quando muito,
que, por exemplo, no refeitório, a coisa era na mesa dos
maiores.
A técnica
de atirar carapuças sem endereço era mui sutil.
Quem ouvisse, no fundo da consciência, algum murmuriozinho,
podia enfiar a carapuça, ficando ao Padre Santo a vantagem
de ter atingido um culpado não previsto.
Muita gente, no
recreio, após certos avisos, ia a ele com aquelas palavras
dos discípulos, quando na ceia, Cristo lhes prenunciou
o traidor: - Numquid ego? Serei eu?
O caso deu-se no
Passeio da Mistura. A dissipação alegre, o mau espírito
havia culminado em brinquedos excessivos, a que Tenan chamara
de jogos olímpicos, salientes ele e outro quintoanista,
o Diogo.
O Italiano andava
em uma crise prestes a resolver-se e de que já dera confiança
a Xavier; não tinha vocação e queria ir embora,
já o dissera ao Superior, que o aconselhara a meditar mais
um pouco. Entretanto, ia ele amostrando alguma aresta de seu temperamento
altivo, o que desagradava ao Padre Santo. A investidura de regente,
já foi dito, era uma tentativa psicológica de o
ajudar a conseguir a conformidade perfeita.
Sendo ele regente,
o caso dos jogos olímpicos era grave.
Alunos que estavam
juntos ao Padre Santo, no passeio, puderam ouvir seus comentários
reprovantes. Mas nada mais fez do que comentar, guardando um sábio
respeito à liberdade de fazer, pois cada um devia ser dono
de seus atos. A reação viria na censura pública
e na nota de procedimento.
À noite,
no fim do grande estudo, à hora dos avisos, o Padre Santo
apareceu diante do salão. A expectativa era ansiosa.
Principiou por chamar,
em alta voz, o aluno Tenan, que se pôs de pé no seu
lugar, atrás de Xavier.
Aquilo de nomear
um pecador não era comum, no sutil processo do padre disciplinário.
Era extraordinário e vincava a seriedade do caso.
Ele expôs,
fortemente, as ocorrências da tarde, frisando a responsabilidade,
na desordem, de um agente da ordem.
No fim, mandou que
Tenan se pusesse de joelhos perante toda a comunidade.
Xavier esfriou,
pois sabia quem era o amigo. Hesitando ele, Xavier cochichou-lhe,
duas ou três vezes, que obedecesse. Quando se repetiu a
ordem, o Italiano, pisando duro - que este era seu modo - caminhou
desde a última carteira até a frente do salão.
Mas antes que acabasse de ajoelhar, o padre o mandou levantar-se
e tornar ao lugar. Ele veio, assentou-se e disse nos ouvidos de
Xavier: - Não fico aqui nem mais um dia!
Deixou o Caraça
no dia seguinte.
O caso Tenan, tratado
em estilo simbolista, foi o único exemplo de castigo físico
disciplinar de que se lembrava Xavier em seis anos de internato.
A ação
regimental da pedagogia caracense não era física,
não comprimia. Era uma ação moral, delicada
e paciente, a criar na alma uma fonte de responsabilidade interior.
Ponderava-se o aluno, diariamente, na balança da consciência.
Tinha os seus deveres alistados num compêndio mental, delicado
e miúdo. Transgredindo-lhe um princípio, estava
cometendo um pecado de estado, um pecado venial de que se acusava
em confissão.
Como o pecado mortal
era raro, muito raro, vivia o penitente a repetir semanalmente,
aos pés do confessor, que perdera tempo no estudo, que
fora tíbio nas orações, que infringira o
silêncio, que se dissipara, que faltara à caridade
com um seu irmão...
Catalogar três
faltas leves que acusar, aliviava o confessado, pois não
agradava o exibir santidade, chegando ao padre e dizendo que não
tinha coisa de que se penitenciar. [p.72]
A comunhão
era diária, sendo isso normal entre os maiores. Ninguém
passava dois ou três dias sem o alimento da Eucaristia.
Xavier ouviu, mais
tarde, referências à imoralidade de certos internatos
e até de seminários.
A maledicência
humana é fácil, mas a fraqueza humana também.
Do Caraça,
testemunhava ele convictamente.
Fora para lá
inocente e de lá saiu puro, cheio de respeito à
castidade, que o ensinamento cristão lhe pregou.
A moralidade era
absoluta. A linguagem não admitia o grosseiro nem o dúbio.
Vigorava a decência nos atos, nos gostos, nas palavras.
Não havia
a mínima tolerância para qualquer manifestação
desonesta, a qual provocava imediata expulsão do mau elemento.
A batalha da castidade
feria-se com armas agudas: a convicção de sua beleza,
o horror comum ao pecado, a comunhão diária, em
permanente renovação das forças espirituais.
Dirá um esperto
que só um tolo poderia submeter-se a tal vida e encontrar
um ideal no internato caracense.
Um menino da roça,
cheio de conformidade, de ignorância da vida e desconhecimento
da civilização, é que podia aceitar aquilo.
Não o negava
Xavier. Dizia que os simples e puros, tomados do ideal religioso,
estavam feitos para o Caraça. E só para eles servia
o Caraça.
Talvez se ponha
aos muxoxos algum enfatuado objetador, cheio de lógica
e iluminação racional.
É pena! Podia
muito bem respeitar o direito da felicidade a quem o busca sem
lesão do alheio, ainda que seja a felicidade ingênua
de Xavier.
24. Didicisse laetor
Dizia a ode: Didicisse laetor;
alegrou-me o aprender. E Xavier muito aprendera. Sobretudo,
aprendera a ser feliz.
Era uma felicidade
simples que se resumia em quatro comunhões: a comunhão
de Deus, a comunhão de Vergílio, a comunhão
de Mozart e a comunhão da natureza.
Descubram os sociólogos
vida mais bela e os pedagogos métodos mais vivos.
Na comunhão
de Deus encontrava Xavier explicação do universo
e da vida. [p.73]
A existência
tinha termos, agradavelmente definida, oferecendo aos por-quês
da alma os porquês da explicação divina.
Colocado como alfa
de todo ser e ômega de toda a destinação,
era Deus, naquela vida, o sentido da vida.
A razão ficava
satisfeita de ver o mundo entre dois marcos. Dois marcos que eram,
afinal, o grande Marco, abrangendo o eu e o não-eu no seu
Infinito largo, em que a idéia alfa e a idéia ômega
- princípio e fim - eram duas extremas de um TODO que encerrava
tudo e explicava tudo.
Dirão os
presumidos de livros e adiantados que isto era medievalismo barato
e satisfação de primarismo a crismar de Deus as
cegas forças do incognoscível, o dinamismo da Matéria.
A estes pode responder-se
que é fácil deitar hipóteses, enredar teias
que não podem conter o Universo, excessivo para as malhas
de uma aranha e que é respeitável, bela e fecunda
a intuição da fé, nos que sentem a presença
de Deus na luz trêmula da inteligência e na palpitação
infinita do mundo.
Para o crente, tem
a vida um sentido explicado, correndo entre dois pólos
que nela influem, gerando o vivo desejo de simbiose
que põe Deus no endereço de todas as ações.
Há um repouso
profundo na sabedoria da razão apoiada em Deus.
Havia, para a alma
caracense, intermináveis caminhos de marchas abstratas
e místicas, no largo Mar Ilimitado que compreendia tudo,
aquém e além dos alcances sensoriais.
Mas só gostando
os segredos da Ascese pode imaginar-se o que são as delícias
abismais e profundas da Mística.
A comunhão
em Vergílio significava o prazer dos frutos da inteligência,
a vida pelo Humanismo.
O idioma francês
era uma segunda língua, a língua da cultura, o polido
canal daquele claro humanismo que, em francês, parece mais
cristalino e civilizado que o que ocorre em inglês ou alemão.
Acabando em humanização
e antropocentrismo, o Renascimento, venenoso e sutil, minou as
bases cristãs da civilização ocidental.
Entretanto, no Caraça,
não podia constituir perigo este humanismo de versão
envenenada, porque a vida em Deus era intensa e a vida em si bem
segregada e resguardada. Ingênua e pura, a inteligência
podia saborear até os filtros de Horácio que, sendo
pagão, estava explicado.
Pasteur dizia, que
mais do que o micróbio, importa a natureza do terreno em
que se aloja. E o terreno da inteligência ia defendido por
um sábio mitridatismo, uma natural suficiência mesológica.
As emoções estéticas da beleza pagã
ou as lições da História e da Literatura
submetiam-se à inevitável catálise da preservação.
A higiene mental
era rigorosa. Edições como as de Horácio
e Camões eram ad usum delphini..
Não vingava
o mal dos subterfúgios, a eiva das iniciações
clandestinas, desamparo comum na mocidade de formação
urbana.
Os problemas da
adolescência, as contrariedades da inteligência -
tudo se discutia nas lições progressivas de moral,
de apologética ou na orientação espiritual
que recebia cada um.
Bastante donos do
português, do francês e do latim – chegando aos anos
quinto e sexto - os alunos podiam expandir-se em veementes ensaios
de inteligência, imaginação criadora e presunção
literária.
Motivos históricos,
estéticos, apologéticos, científicos, enchiam
as páginas dos cadernos, em português, em francês,
em latim.
Alguns alunos, canhestros
e gagos embora, acreditavam ter atingido o sublime, ingênuos
e verdes, pensavam ter chegado ao planalto da capacidade.
Isso não
era ridículo porque era adolescente. E era uma forma de
felicidade.
Talvez ria, mesmo
assim, algum destes moços de adolescência indefinida
e excusa, cheia de anos pecos e mornos, abandonada a inteligência
ao azar dos regimes licenciosos, entregue o espírito ao
efeito insalubre das iniciações equívocas,
comprometido o corpo na precocidade malsã de experiências
infelizes.
Tal sorriso não
mudaria de um iota a delícia de sonho daquela ingenuidade
apaixonada e feliz.
A comunhão
em Mozart queria dizer a felicidade pela música.
Restringida a vida
às atividades intensas do espírito, é de
imaginar as influências da divina arte na imaginação
e na alma de seres alcandorados entre as agrestias daquela natureza,
feita de montanhas ascéticas.
Lendo Jean Christophe,
um dia, Xavier invejou aquele herói de Romain Rolland que,
desde criança, vivia iluminadamente, entre os bons gênios
da sagrada arte - enquanto a iniciação dele, Xavier,
se fizera às escuras, intuitivamente, apenas aquecida pelo
clima.
Uma vez, quando
estudante de direito, Xavier passou, literalmente, três
dias inteiros, fechado em casa, sozinho, em companhia de uma eletrola,
a Nona Sinfonia, a Missa em ré, La vie de
Beethoven, de Herriot e o ensaio Beethoven, de Ludwig,
em "Trois Titans".
Quantas e quantas
vezes, também se esqueceu horas inteiras no insondável
prazer de uma orquestra de Stokowski ou Toscanini ou algum piano
de Backhaus...
Meu Deus, como a
grande música, hoje, é possível de ir a toda
parte!
Entretanto, aquelas
emoções não alcançaram a leveza e
sugestão das que sentira no Caraça, quando, no coro,
ouvia cantar ou ajudava a cantar Palestrina, Vitória ou
Viadana, ou alguma simples melodia gregoriana, como o Christus
natus est da festa de Natal, tudo com lamentável insuficiência,
mas tudo suprido com inefável imaginação.
O mesmo podia dizer-se
do assassínio instrumental de Mozart, Berlioz, Gounod,
Verdi, Bellini, etc., sobretudo quando, nas férias, o Tenan,
o Jorge, o Bessa e ele, tomando das partituras de saxofone, clarineta,
piston e bombardino, passavam horas inteiras de estranho quarteto.
Era tudo felicidade.
Era felicidade também
a vida no seio da natureza.
Pela manhã,
nos meses de maio e junho, o Padre Santo batia palmas, gritava
Benedicamus Domino o acendia as luzes.
Eram cinco horas,
fazia escuro e fazia frio. E que frio!
Os moços
bocejavam Deo gratias, pulando, sonolentos, da cama.
Depois, aos poucos,
através da janela, vinha vindo, do céu, a beleza
das cores da manhã. À névoa enchia de brancura,
maciez e diluição, o dorso rude das serras. O pico
dos Três Irmãos inflamava-se de tons irisados.
Sabia-se que o sol
viria dali.
A hora do primeiro
estudo matutino, olhando a horta e as montanhas, ouvia Xavier
cantar os pássaros, vozear os animais, entre falas perdidas
de seres humanos. Para além medroso de sol, montanha acima,
ia o nevoeiro, que afogava serras e vales.
Que fina emoção!
A fria alvura das encostas fugia de manso, expondo à luz
o dorso negro dos penhascos.
Para lá da
Carapuça e para cá da Bocaina, descendo quase do
céu, alvejava uma cascata esguia e clara, alta e distante,
como um véu de glória que a manhã tecia.
Os olhos que lá
estavam, por um momento, talvez saíam de uma página
de Chateaubriand ou de uma bucólica de Vergílio,
enquanto a imaginação vogava solta e sem regente,
nas ondas hígidas da luz.
Ajuntem pedagogias
os filósofos e vejam se criam imagens tais e tão
simples, para a adolescência que se agita na sedução
tumultuária dos meios urbanos!
Metida entre a natureza
e o livro, a vida é diferente.
A alma vai modelando-se
equilibradamente, sadiamente, como ânfora ao sol, orgulho
do oleiro que a concretizou, ao senti-la rija e sonora, receptiva
para o vinho e suave para o olhar.
Quanta sugestão
excitante nas manhãs frias de junho e nas suas noites frias
de luar, cheias de montanhas álgidas, entre reflexos de
prata!
Para enrijar os
músculos, jogos e passeios.
Pico do Sol, Bocaina,
Verruguinha, Carapuça, Três Irmãos, vós
todas, altas serras do Caraça, atestais que havia bom alpinismo,
na comunhão da vida natural, que se buscava!
E vós, bosques
e matas da Cangerana, dos Tabuães, da Capelinha, da Ponte
de Pedra, do Campo de Fora, da Mistura, bem vos lembrais de como
Vergílio emprestava a alma das bucólicas aos que
procuravam a intimidade verde de vossos recessos!
Levantar cedo, rezar
a Deus, estudar, viver com a natureza, sentir-se por baixo do
céu e por cima da terra - eis a vida.
Dirá um moderno
que faltava plenitude, que faltava ambiente para o inteiro despertar
da personalidade. Mas o que Xavier encontrou foi justamente plenitude,
na formação a que se destinava.
Tinha uma vocação
e um programa - viver vida monástica.
A esse ideal devia
sacrificar um conjunto de coisas que se compendiam nos prazeres
da família e do sangue, nos apelos do mundo e da carne.
- Em que consistem
as oportunidades dos moços do século? Campo aberto
à inteligência e campo aberto à vida física?
- Tudo tinha o caracense,
tendo só isto, concentrada a existência numa completa
vida de estado, vida de aluno, sem relações de família,
nem da sociedade, nem do meio urbano e suas dissoluções.
Que viria fazer,
na vocação de sacerdote, a atividade social de outros
destinos - o convívio familiar, a ação co-educativa
dos meios mistos, a ação dispersiva das matinês,
do avenidismo, dos cafés, das piscinas, dos clubes, e até
dos lugares suspeitos?
Temos sofrido os
graves efeitos de nossa mal tentada transição, enquanto
vamos buscando entrar na modelagem saxônica e desprezando
a nossa alma latina, menos do que latina, ibérica. Não
se admire de castigos e enganos quem erra seus caminhos e não
sabe andar por vias novas. Nossa mocidade está muito entregue
a si mesma, alongada do alcance de nosso aparelhamento pedagógico,
torcida pela indisciplina pessoal e esterilizada pela dissipação
improfícua.
Sua vida é
um puro vegetar: a educação não educa, o
colégio não ensina e a formação deforma.
Vazia e jovial,
primária e despreparada, substitui as forças nobres,
que não lhe cultivaram, pelas imediatas e estreitas preocupações
do hedonismo, da inconsciência, da cavilagem.
O moço que
levou de casa um ideal, ou vence pela sua bondade superior ao
meio, ou acaba inutilizado, ou se traduz pela astúcia,
pela 'cavação', palavra que revela todo o sentido
de um momento, na vida de um povo.
Cavação
e futebol foram os dois centros de interesse que Xavier encontrou,
mais tarde, no meio universitário, como se toda uma raça
de inteligências tivesse enfezado, no abandono, feito campos
maninhos que a Natureza esqueceu.
25. Quo feror?
Aonde vou, para onde sou levado?
- dizia a ode.
Quando Xavier contemplou,
em derradeira visão, a imagem branca e suave do colégio,
estava longe de se perguntar a si mesmo para onde ia. Estava ciente
e seguro de que, passados dois meses em casa, depois seguiria
para o noviciado lazarista, o Seminário Maior, o sacerdócio.
Sabia para onde
caminhava, mas não sabia para onde era levado. Quo
feror?
Ia agora para a
Fazenda dos Coités, a fazenda de seu Timóteo, que
o mandara buscar numa besta apresentada e estradeira, boa e mansa
como se fora de abade.
O camarada era o
Zéu, também chamado Itabirano.
A distância
de seis anos e a discrição doutoral dos ares que
nele via, transformaram em seu Zezinho - para o Itabirano - o
modesto Zezinho da Miloca.
Dizia ele:
- Como vancê
botou corpo, seu Zezinhol Ficou taludo e bonitão. Vai dar
um padre e tanto! Mas tome cuidado com as moças do arraial!
Aquele cumprimento
sertanejo criou uma intumescência na alma do seminarista,
que se disfarçava, inábil, a declarar saudades do
pessoal que ia ver e a gabar a excelência de Chacota, que
dava gosto em montar.
Chacota era o nome
da besta. Quem se lembra da Caterva poderá ver que seu
Timóteo gastava letras no batismo dos animais.
Xavier tornou a
ver a fazenda e os parentes, reconstituindo, com saudades, a humilde
infância de José Vieira.
Passou também
vários dias em Jacaré, solicitado e mimado por aquela
gente boa e amiga. Seu vigário e seu Rodrigues exibiam
o jovem levita como quem mostrava uma sua criação.
Tia Prudência bendizia os efeitos do estudo no sobrinho,
promessa de glória da família.
Satisfeito e feliz,
Xavier procedia com aquela calma e plano conseqüente que
lhe ditava, no fundo da alma, o conselho evangélico de
deixar pai, mãe e parentes, ao chamado de Cristo.
Operava nele uma
tranqüila força de desenraizamento, desligando-o da
terra e da gente, como quem pertencia a outro destino.
Um dia partiu, entre
as lágrimas de sua mãe, rumo ao noviciado, no Seminário
São Vicente de Paulo.
Xavier, que tanto
amava relembrar a vida caracense, guardou sempre discrição
a respeito dos vinte meses de seu noviciado.
Suas crônicas
íntimas, do tempo imediato à experiência,
revelam um desespero e uma angústia que explicam, talvez,
porque deixava na penumbra aquele momento de sua formação.
O noviciado fora,
para ele, quase dois anos de penitência e provação.
Foram dois anos rijos, intensos, interiores, humildes, ardentes,
cheios de experimentos, de anulações de si mesmo,
de solilóquios prolongados, de inquirições
íntimas, na afirmação decidida de que podia
e queria, ao termo da prova, ligar sua vida pelos solenes e perpétuos
compromissos religiosos.
Era o seu ideal
monástico, longamente preparado, desde que, um dia, o mandaram
para o Caraça.
E tudo lhe arrancaram
da frente, com brutalidade, num golpe que lhe produziu na alma
a violenta comoção de um traumatismo.
Andara ele atingido,
nos três últimos meses da reclusão noviça,
de uma excitabilidade, um esgotamento que merecera cuidados médicos.
Fizera o primeiro
ano, seguramente, sob a direção de um padre brasileiro.
Mas, começando o segundo ano, caiu o noviciado em mãos
de um padre francês, com quem Xavier se viu mal, desentendido
e difícil.
Submetendo-se à
direção formal do mestre dos noviços, buscou,
entretanto, a verdadeira direção espiritual com
um outro padre, inteligente e querido professor dos estudantes
(seminaristas que, feito o noviciado e ligados por votos, já
estavam no curso superior da carreira).
Era aquilo um direito
e liberdade que tinha. Mas a implicância humana e a falibilidade
dos juízos escolhe pouco ou nada, lugares e pessoas em
que existir. Dos melindres do diretor e dos conceitos de seu juízo,
nasceu a interrupção de um caminho, o desmoronamento
de um sonho. Xavier fora condenado, sem discussão nem defesa.
Um dia, chamado
a comunicação, o Superior declarou-lhe, abruptamente,
surpreendentemente, que, devido ao estado de saúde, ele
ia ser mandado para casa.
De joelhos, como
devia ficar um noviço no gabinete do Superior, Xavier o
ouviu dizer:
- Já escrevi
ao sr. seu pai. (O pai de Xavier morrera havia 15 anos). Escrevi
também ao sr. arcebispo de Diamantina e o sr. pode ficar
no seminário de lá, de uma vez, se quiser ser padre
secular. De qualquer jeito, o sr. embarca amanhã cedo,
para Diamantina, e, se preferir não ficar, de lá
tome condução para sua casa.
Eram três
horas da tarde. O noviço respondeu que jamais pensara em
ser um padre secular. Se não podia ser congregado, queria
ir para casa.
Deixou o gabinete
do Superior absolutamente arrasado. Dançava-lhe na alma
a ironia ridícula de o Superior ter escrito a quem já
morrera, quando Xavier tinha cinco anos. Humilhava-o, amargamente,
o grosseiro subterfúgio da doença, desmascarado
pela proposta de ir, diretamente, para o seminário da Diamantina.
O desespero, a desorientação,
o abatimento, a passividade lamentosa, tudo que revelam suas crônicas
daquele tempo estão provando que o golpe fora profundo.
Transformou-se em
desilusão insuportável aquele romper de um plano
substancial na sua vida. Vinte meses mais seis anos, esperançosamente
construídos, perdiam todo o sentido.
Vinte meses e mais
seis anos de sugestão e daquela certeza diária de
ser lazarista, tudo anulado, num momento, pela fria decisão
de uma voz autoritária que dizia: - De qualquer jeito,
o sr. embarca amanhã cedo.
Ao golpe do inimigo,
numa luta, resiste-se ou suporta-se, porque o guerreiro sabe que
o golpe do inimigo é possibilidade lógica de uma
luta.
A surpresa de um
passo infeliz pode ser apenas meia surpresa, dentro do plano geral
das contigências que afetam a vida de quem se rege por si,
de quem faz o que quer.
Mas não há
traição mais brutal, nem interferência tão
cruel como a da negação repentina de um plano, de
uma esperança, na existência de quem se entregou
totalmente a um sonho, entregando ao arbítrio alheio a
sua vontade, a sua iniciativa, a sua vida.
Preparado pelo Caraça,
admitido no Seminário de São Vicente de Paulo, via-se
Xavier definitivamente aceito e integrado, sem nem ao menos alevantar,
alguma vez, a hipótese de interromper ou ver interrompido
o seu caminho. Terminado o noviciado, aguardava já, confiado
e decidido, o momento de se comprometer solenemente, ligando,
de vez, o seu destino à congregação.
Aquela tarde de
repulsa, aquela transmissão fria de uma ordem, caíra
sobre ele como a ruína de um mundo sobre um corpo. Esmagava.
E esmagava mais,
porque feria uma ingenuidade profunda, uma confiança quieta.
Pergunta Cristo,
no Evangelho, qual o pai que dá serpente ao filho que pede
peixe: Si piscem petierit, numquid serpentem porriget ei?
(Mat. VII, 10).
Xavier esperava
peixe e deram-lhe serpente.
Se o leitor nunca
teve medo, diante da vida, entenderá menos o do noviço,
desarvorado ante o imprevisto e o inadmitido.
Não o medo
físico, mas o medo moral, a treva no caminho de uma alma,
a incapacidade de aceitar o século e suas dificuldades.
Eram apenas vinte
anos de idade e, dentro deles, oito de preparação
à segurança monástica, para, subitamente,
receber a ordem de ir para o mundo!
Sua alma não
agüentava aquilo. Queria salvar-se e já encontrara
o abrigo das tempestades. Não queria ser atirada ao mar.
Mas estava escrito
que devia enfrentar o proceloso mundo, que, no dia seguinte, voltaria
ao mar que deixara na sua infância. Cras ingens iterabimur
aequor.
No dia seguinte,
cedo, envolvido num terrível fato de brim pintadinho, desajeitado,
vencido, automatizado, sonâmbulo, estúpido entrara
Xavier num trem da Leopoldina, de regresso a Minas.
Cobria-lhe, a cabeça
um chapéu de palhinha, que ele evitava tirar, por vergonha
da sua tonsura, uma tonsura claustral, uma coroinha aberta no
alto do crânio.
Era a sua segunda
viagem por via férrea. A primeira, levara-o ao seminário.
Mas, com toda a
sua formidável novidade, o trem-de-ferro não comovia.
De Entre-Rios em
diante, além da vergonha canhestra, o incômodo impertinente
de uma tremenda superlotação, que fez o moço
ficar, o dia inteiro, quieto e acanhado num canto até Congonhas
do Campo, onde o vagão deixou quase toda a carga que trazia.
Então explicaram que aquilo eram ‘congonheiros'.
Em Belo Horizonte,
o gerente do Hotel Avenida recebeu, com estranha impressão
e expressão, o esquisito moço de roupa de brim e
chapéu de palhinha. Viu, com certeza, que o terno era de
outrem e o chapéu era novato, naquela cabeça. E
Xavier não sabia que o hotel, naquele tempo, era o segundo
dos poucos hotéis da capital mineira.
Informando-se do
hóspede, numa inquirição preocupada, também
o informou o gerente a respeito da viagem para Diamantina, para
dali a três dias. Depois, disse que o pagamento era adiantado.
Que pensaria daquele
adolescente ridículo, de olhar desambientado, de modos
medrosos, de gestos inacabados, tão feiamente trajado,
e batendo à porta de um hotel importante?
No dia seguinte,
sabendo, na estação, as condições
da passagem, calculou o rapaz que lhe sobravam uns trinta mil
réis. Subindo à cidade, entrou numa livraria que
viu. Comprou os Lusíadas, o Eurico, a Poeira da Estrada
- de Afrânio Peixoto - a gramática de João
Ribeiro, as Espumas flutuantes, Os simples, A musa em férias,
tudo por vinte e poucos mil réis.
Passou os três
dias de espera lendo, fechado no quarto, onde podia ficar sem
chapéu. Para as refeições, descia taticamente
e escolhia um lugar estratégico, de onde escondesse a coroinha
no alto da cabeça.
Quando entrou no
trem para Diamantina, sentiu algum alívio.
Mas foi passageiro
o consolo. Muito mais do que o incômodo da desambientação
e o próprio da coroinha, pesava-lhe na alma, em proporção
de toneladas, uma angústia profunda, uma angústia
sem nome.
Rompia o trem pelo
sertão a fora, na longa viagem.
O ex-levita entregou-se
à lassidão passiva e morna de um cansaço
vazio, um cansaço que não tinha desculpa física.
E a vida flutuava ao desamparo, sem bases nem referências.
A alma era um escrínio
desmantelado, entulhado de fragmentos, esfacelado o precioso tesouro
de seu ideal, cujas peças desagregadas lhe produziam tédio
da vida.
Reconstituía,
para si mesmo, o enervante contraste do que era a vida, seis dias
antes, comparada com aquele pesadelo de agora.
Paralisando-lhe
a previsão e a capacidade de agir, estava na sua frente
o estranho muro de um pânico alastrado e pueril, embebido
na sua travosa incapacidade de imaginar o futuro.
Repetia monotonamente,
sem palavras, dentro de si, a pergunta ansiosa dos que perderam
o destino: - Aonde vou? Para onde sou levado? Quo feror?
A mesmice narcotizante
da ferralha a rolar sobre fitas de aço, multiplicava a
pergunta infinita: quo feror - quo feror - quo feror?
E Xavier fechava
os olhos, que desejavam mas não queriam adormecer, pesada
a alma de uma incomportável fadiga sem sono.
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