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Literatura - Prosa e Verso
Livro Xavier e o Caraça
Vida: 1987

XAVIER E O CARAÇA

 

I - ANTELÓQUIO

Antelóquio é uma conversa preliminar, um prefácio.

Nem sempre o autor detém o leitor à entrada da obra. Entra com ele, sem ambages, pela casa a dentro. É um método. Outros, porém, de avisados ou de premunidores, acham bem prevenir o curioso que lhes vem a conversa, com satisfações e entradas a que afinal tem direito quem compra uma conversa.

O antelóquio à biografia de Xavier devia ser um prefácio, porque, quando o têm, o que as biografias têm é prefácio. Um romance, entretanto, não costuma ter prefácio. E a biografia de Xavier é a história de um herói tão desconhecido que, sendo biografia, parece romance.

A vida de um Napoleão é biografia aceitável como biografia, mas a vida de um anônimo passa como alguma invenção imaginosa do autor. Apesar de que há mais fantasia em muita documentação 'histórica' sobre Napoleão do que na história de Xavier.

E a matéria biográfica chegou a relatividade tal, nos tempos modernos, que o homem criou, de uns vinte anos para cá, o gênero literário da "biografia romanceada", que nos sugere um conúbio suspeito entre o testemunho e a verossimilhança.

Em primeiro lugar se declara que esta biografia tem muito de autobiografia. E onde não é autobiografia é confissão. Confissões de Xavier em largos anos de convívio.

A história está quase toda em manuscritos deixados em mãos do apresentador dela, antes de o herói partir para a guerra. O que não se documenta no cronicário íntimo é reminiscência ou dedução lógica.

Por que se escreve tal biografia? Porque Xavier, numa carta que mandou, desde os Estados Unidos, pouco antes de morrer, lamentava ter de ir-se antes que pudesse deixar uma lição, uma palavra de si mesmo, que justificasse o fato de ele ter ocupado um lugar no espaço, homem entre os homens, num instante efêmero dos milênios. Chegado ao fim, parece que o torturava uma angústia pascaliana de se entender e explicar.

Aquela carta gerou o plano desta biografia. Tomara Deus que seja uma lição e mensagem. Se o que nascer destas páginas acaso não for o exemplo que pretendia, bastaria a notícia de como arrematou a existência para fazer dele o exemplar que aponta, dizendo: Faze como viste. Fac ut vidisti.

Quem foi Xavier?

Maurois ou Ludwig estariam em situação igual à nossa, caso tivessem de responder à pergunta em biografia romanceada.

É uma grande vantagem contar a história de tipos solares como Byron ou Napoleão, que brilham claro nas páginas do Ocidente.

Contemplar um sol ou ser tomado na sua luz não exige especial curiosidade. Basta que o ponham acima do horizonte. Milhões de seres humanos podem interessar-se em uma notícia, por menor, da vida de Byron ou Napoleão. Mas quantos se interessariam pela de Xavier?

Se o coordenador desta história o apresentara como alguma revelação de milênios, ou mesmo de séculos, provocara, de certo, a abelhudice de alguns indivíduos, de olhares telescópicos, que amam estender a miudeza de suas perquirições, ao longo dos tempos, até às perdidas eras de onde se desentulham césares e faraós, concreções arianas e reconstituições de cavernas ou paliçadas lacustres.

Escreveu Mitteis que, se o século dezenove foi o século da epigrafia, o século vinte deve ser chamado o século da papirologia.

Seria interessante ao leitor, se a resposta à proposição quem é Xavier o apresentasse como alguma recente e curiosa revelação papirológica, uma entidade quase mítica, roubada ao silêncio milenar de escrituras demóticas, desencavadas nos areais desérticos da Tebaida, por um corpo de pesquisadores da Egypt Exploration Fund . De sob a decifração de um Hunt ou Kenion e a diluição germanicamente analisante, através de reflexivas e profundas glosas, de Milcken ou Spiegelberg, surgiria Xavier, real e vivo. Tomaria a forma do quase divino e honrado Xa-Vir ou Xa-Ver, grande Conselheiro de Ciro, o Persa. Xa-Ver, olhos e ouvidos do Grande Rei, Xa-ver, o predileto de Aúra-Masda, o fiel intérprete de Zaratustra, o planejador da guerra contra Creso, o incrível rei da Líbia...

Seria ainda interessante a uma sabida classe de leitores, alevantar Xavier, triunfalmente, como versão e ramo ibérico dos Saveri, brava raça de condutores, no trecento italiano, gente áspera feito Montecchios e Capuletos, geradores, ainda por cima, de Romeus e Julietas, para que fosse a matéria, matéria digna de Shakespeare.

Infelizmente, Xavier não é isso, ou isso não é Xavier. O leitor de belas reconstruções históricas feche o livro e que se vá. Good luck!

Louvado seja Deus, que há mais coisas no céu e na terra, como diz Hamleto a Horácio:

There are more things in heaven and earth, Horatio,
than are dreamt of in your philosophy.

Sim, há mais coisas no céu e na terra do que imagina a filosofia de Horácio. E mais leitores, também, do que os buscadores de sóis, com seu Bedecker na mão, e o dedo na página de conferir.

Para algum deles vale a história de Xavier, que foi, tão somente, uma flama ardendo, como numa vela.

Nasceu, viveu, foi bacharel e sonhou.

Um dia, na Itália, uma bala nazista o atingiu na espinha. Um avião atravessou o mar, com ele, para os Estados Unidos. Inutilmente o tentaram salvar. Liquidado, também ele, entre milhões, na chacina, partiu desta pra melhor, sugerindo-nos a impressão de que não lhe pesava muito deixar um mundo em que pouco se entendeu. Entretanto, sua última carta, norte-americana, lamentava, em balanço, o ter tido uma vida vazia, vida cuja lição gostaria de ter aprendido melhor, a fim de merecer também sua classificação, na corrida do fogo simbólico.

Na sua modesta lição, menoscabava ele o mérito sublime que é morrer lutando. Porque ainda guarda o sabor milenar da sua beleza a afirmação horaciana de que é suave e decoroso morrer pela pátria. Dulce et decorum est pro patria mori.

E Xavier morreu pela pátria!

 

 


II - XAVIER EM CASA

1. O nome

Quando grande, todos lhe chamavam Xavier. Mas, em pequeno e em casa, tinha o nome de José Vieira. A explicação da mudança virá depois.

Seu pai era Francisco Antônio das Chagas. Sua mãe era Maria Cândida de Jesus. E ele, José Vieira.

Quanto desconchavo de nomes!

É aquele descuido, aquela humildade roceira do homem do interior, para quem o nome vale pouco, numa existência ao Deus-dará, passiva e obscura, em que a vida o vive, mais do que ele à vida. Entra ele nele, pelo nascimento. E ele enche, por algum tempo, alguns metros de espa­ ço e horizontes, entre uma pequena alegria e um pequeno pesar.

No seu resignado automatismo, ele cria, na penumbra indecisa de um crepúsculo de sonhos, um vago mundo de quimeras, formas lar vares de uma coisa melhor, que fica para lá do estreito país da conformidade, onde vive e de onde não sai.

Correm os anos, carregados de mesmice, marcados de uns tantos acontecimentos impressivos, cujo ritmo de ciclo se conhece, e recebe com submissão, até que chegue o derradeiro – a morte sem epitáfio.

Um nome complicado de apelidos gentílicos que importância há de ter, para quem vive entre os simples vocativos de uma dúzia de semelhantes? Um nome que, pouquíssimas vezes, na vida, o obriga, na sua fieira completa e oficial, sendo, costumeiramente, tão desusado, que o próprio dono quase que se desconhece dentro dele.

Certa vez, quando já era Xavier, Xavier encontrou, numa viagem de trem, um homem de brasões, prosápia e linhagem. Era um homem que se pelaria de poder dizer: "Eu sou paulista há quatrocentos anos!"

Dizia ele, enfiado nas suas genealogias: – Eu não me chamo José Pereira, filho de Antônio da Silva e Maria da Encarnação! Meu nome é Antônio Carlos Correia de Almeida e Cunha; meu pai é Francisco José Correia de Almeida e Cunha e minha mãe é Maria Guilhermina Pinheiro de Almeida e Cunha!

Enquanto o escutava a subir sua árvore gloriosa, Xavier pensava em si, temendo que o interlocutor lhe pedisse um boletim de seus ascendentes. E meditava no ridículo daquele encontro de civilizações, encontro a que comprometiam, em delonga, os limites e condições de um vagão em marcha.


2. Nascimento

José Vieira nasceu em um casebre de beira-estrada, na fazenda de seu Timóteo - Fazenda dos Coités – na Zona da Mata, ou Vale do Rio Doce.

Seu pai, Tonico, trabalhava na fazenda, como camarada. Sua mãe, que chamavam de Miloca, empregava, na lavoura e na criação de um agregado, o tempo que lhe deixavam os cinco filhos: Tonho, Ceição, Figena, Zezinho e Luzia.

O nome José Vieira fora um presente e homenagem do padrinho José Vieira, sitiante vizinho da fazenda.

Menino da roça não tem infância. De menino da barra-da-saia passa a homem de seis ou sete anos, por uma lei de conformidade que a terra ensina e a vida impõe.

G. Papini, em seu Un uomo finito, frisa, cheio de amargura e de orgulho, que não teve infância.

Da quietação arredia e pobre do menino doméstico, tolhido e feio, saiu para a inquietação do estudioso que lia velhos livros de um caixote escondido em casa e que aumentou a idade para poder entrar na biblioteca pública, onde queria começar por escrever uma história do mundo.

Para um menino de Florença, é esquisito e amargo ter sido menino e não ter tido meninice. Mas como ter meninice, no sertão ou desertão da terra brasileira?

A vida precisa de espelho para se mirar. O espelho de um menino há de ser outro menino, outros meninos. Ora, o espelho de um menino de roça é a gente grande, fatalizada pelos contrastes subconscientes, em que entram imaginações da vida civilizada e pelas insuficiências apassivadoras de uma existência primitiva. É um espelho baço, que não reflete a luz barulhenta e tropical do céu que o rodeia. Nele se mira o menino.

A tragédia do homem estrangulado pela terra está no seu meio termo. Não é um selvagem e não pode ser um civilizado. O índio não sabia que poderia ser um civilizado. Sem reminiscências nem sonhos que transpassassem a demarcação da vida selvagem, criava ele seu mundo segundo os limites da natureza e do instinto. Havia um quadro definido e um programa. O roceiro, segundo vagas imagens de Canaãs, inquietado por sugestões de uma existência melhor, está submetido à vegetação e apatia de um modo de ser indesejável e sem remédio.

Cumpre integrá-lo na civilização, já que sabe que poderia ser um civilizado. E esta é a necessidade de trinta milhões de analfabetos!


3. Meninice viril

Da barra-da-saia, Zezinho passou à companhia do pai, nos serviços da fazenda. Era um homenzinho.

A meninice invencível conseguia roubar, ao homenzinho de obrigações, os momentos infantis em que se distraía ouvindo canto de pássaro ou seguindo vôo de gavião, as carreiras e brinquedos de um cão ou de um gato.

O pai Tonico não pulava nem corria à toa. Seu rosto, queimado de sol, tinha a tranqüilidade racionada e plácida de quem sabia exatamente como e quando fazer cada coisa. Não se apressava. Mexendo com os animais da fazenda, pacientava muito, como quem tinha sempre muito tempo. Falava pouco. Era franzino e teria uns quarenta anos, quando o menino começou a ajudar.

Zezinho imaginava bem que homem, quando é homem, não pula, nem corre à toa, nem brinca. Mas, contemplando os bezerros e potrinhos à solta, no pasto, compreendia os seus desejos de correr, de dar cambalhotas, de voar, se pudesse.

A vida era monótona e macia, pobre e calma, com largas horas de folga, descansando ambos ou vigiando ele o pai a fazer alguma coisa. De vez em quando, este lhe construía um pião, um bodoque, uma arapuca, um alçapão. Sua grande alegria era encontrar, na armadilha, alguma cabeça-de-fogo. Mas o comum era estar lá dentro algum tico-tico ou papa-arroz.

Xavier não teve infância; mas aquela meninice – quando era Zezinho – em nada lhe recordava a amargura reminiscente de Papini.

Homem feito, viu a preocupação urbana e pedagógica de criar um mundo para a criança. Viu meninos e meninões que nada fazem, a brincar e vadiar, sob o olhar incitante e complacente da família. E sentiu sua invejazinha do que não teve. Mas ela não amargava muito. Sobretudo, não destruiu a imagem dos dias moles em companhia do pai, que quase nada lhe ensinava, mas que também não lhe impedia as confusas e persistentes lições da natureza.

Pensando bem, o Zezinho que havia dentro de Xavier acabava desprezando o artificialismo educativo de uma civilização abusivamente lúdica e esportiva, retardando a vida e a virilidade numa superficialização degradante, numa obsessão de hedonismo que vicia e dessora a geração dos que, meninos, outrora, se alimentavam com medula de leões ou, ainda no berço, estrangulavam serpentes.


4. Caterva

Zezinho sucedera ao Tonho, irmão mais velho, que, de auxiliar paterno, fora promovido a moendeiro da fazenda, na vaga de Zé Fumaça, o qual desaparecera, um dia, na estrada, no meio de tropeiros.

Tonho tinha dezesseis anos e Tonico achou de encaminhar para homem a criança de sete anos.

A investidura agradou, por muito, ao guri. Encheu-se de orgulho, pois viu, em casa, que era gente. Coitado! Não durou um ano a promoção!

Entre os animais de seu Timóteo, havia uma besta ruana chamada Caterva – animalão bem posto e espevitado. Era mansa e boa estradeira. Um dia, Zezinho perguntou a Tonico:

- Papai, por que ela chama 'Caterva'?

- Porque gosta de catar erva, meu filho. Ela cata erva. Acho que é por isso.

A ciência etimológica de Tonico não era melhor do que a de um Ménage, ou a de Manuel Bernardes. Lembrava também a daquele padre Bacelar, autor de um dicionário que explicava "barboleta' como inseto que tem barba e 'bambu' como cana bamba da Índia.

Na verdade, o nome 'Caterva' nascera das altas letras de seu Timóteo que, antes de ser fazendeiro, fora filho de fazendeiro e estudante no seminário de Diamantina, onde chegara a ler Vergílio, em aulas de latim.

No canto primeiro da Eneida, descreve, o poeta, uma chegada, ao templo, da rainha Dido – forma pulcherrima Dido – em meio a uma densa caterva de jovens – stipante caterva.

Na aula em que se leu o passo, o professor comentou o nome 'caterva' e convidou os alunos a descobrirem a expressão magna comitante caterva, para a próxima aula, entre os cinqüenta primeiros versos do livro segundo. Na aula seguinte, podiam todos apontar o verso quarenta, na cena em que se descreve Laocoonte a decorrer da cidadela e a interpelar os troianos que hesitavam diante do cavalo, terminado com a célebre admonição de que temia os gregos até quando davam presentes. Timeo Danaos et dona ferentes.

Foi de então que o nome pôde ressoar, alto e poético, nos ouvidos do jovem Timóteo.

Perdeu-lhe a vida, com o tempo, todo o latim. Mas salvou o nome Caterva para a besta mais vistosa das redondezas.

E, um dia, a besta ruana chamada Caterva matou o Tonico. Foi assim: Seu Timóteo teve de o mandar, com pressa, ao Jacaré, buscar remédio. Ordenou-lhe que fosse na sua besta de estimação, que já estava arreada, no curral. Tonico, respeitoso, buscou alegar que arrearia outro animal. Mas o patrão fez ver que não havia tempo a perder.

Tonico montou na Caterva e saiu. A dois quilômetros de estrada, na porteira da divisa, quando ia passando e fechando sobre si, Tonico viu seu fim de viagem. Parece que estava escrito – e que ele tinha lido lá onde estava escrito – que aquela besta era montaria para seu Timóteo e não para ele. Na passagem da porteira, picado de maribondo, o animal esparramou. Desprevenido, pois se ocupava com a porteira, desgovernou a mula e os dois rolaram na perambeira, ao lado. Tonico foi esmagado. Arrebentara por dentro. Durou mais uma semana.


5. Tia Prudência

Fim da desgraça de pobre é morte. Felicidade é de rico. Pobre tem sorte quando passa desta para melhor. Nosso Senhor é quem dá, Nosso Senhor é quem tira. A vida é assim mesmo.

Miloca enterrou o Tonico. Seu Timóteo dispôs da Caterva por um preço de magoado. Vendeu a um tropeiro, por trezentos mil réis. Por trezentos mil réis, uma besta que não dava por seiscentos. Que não dava por preço nenhum!

Tonho continuava no engenho. As meninas cresciam em casa e davam algum adjutório.

José Vieira, apalermado, sentia vagamente, esquisitamente, a falta da presença, da companhia, do convívio, do trabalho e da vida que seu pai representava. Passava o dia banzando entre o casebre e a fazenda. Armava alçapão, caçava passarinho, mas vinha de repente aquela diferença, aquele vazio... correndo ele para junto de sua mãe.

Disse-lhe Miloca. – Seus irmãos não estudaram mas você vai estudar. Vou mandar você para o Jacaré, morar com sua tia Prudência.

Jacaré, Zezinho conhecia de nome. Era arraial próspero, com vigário, farmacêutico, escola e outras bondades. Tinha um rio caudaloso, coberto por uma sólida ponte, guarnecida de madeira bem lavrada e pintada de preto.

Tia Prudência, irmã de Miloca, morava no largo da igreja. Era viúva, com sete filhos. Mas ainda havia lugar para o José Vieira, o Zezinho. Sustentava a casa costurando e fazendo quitandas, ajudada por duas filhas moças.

Nos primeiros tempos, Zezinho ficou atordoado, mas não tardou em comprovar a alta tese de que o homem é um animal acostumável, sobretudo o homem-menino.

O primeiro dia de grupo foi uma novidade.

Siá Ritinha, porteira, tocou a sineta – onze badaladas. Todos os meninos que brincavam no pátio ou na rua começaram a fazer fileira no grande alpendre do grupo. Aqueles que ainda estavam em caminho apertaram o passo, pois siá Ritinha não tardaria a fechar o portão.

O diretor, 'Meu Mestre', apareceu com uma vara de marmelo e passos compenetrados. À sua passagem, melhoravam as atitudes e o silêncio aperfeiçoava-se.

De uma das portas, garboso, entre dois guardas-de-honra, surgiu um porta-bandeira, carregando o pavilhão nacional. Todos três, calçdos e vestidinhos, atravessaram duas alas de meninos de pé no chão, obscuramente trajados, todos perfilados, olhando o emblema da pátria que iria panejar, sustentado pela sua guarda, na outra extremidade do alpendre.

'Meu Mestre' fez um sinal e duas centenas de vozes romperam, em canto, o Salve lindo pendão da esperança.

Eram onze horas. A manhã era azul. Em frente, não longe, avultava uma grande casuariana, oscilando levemente ao vento. Ao lado dela, a igreja ainda era mais alta, cheia de andorinhas no teto, nos beirais ou voando em redor.

No negócio de seu Teixeirinha, havia homens que ouviam o Salve lindo, embora não escutassem.

Como é "hino" o Hino à Bandeira, numa escola de arraial, neste sertão do Brasil!


6. Delenda Carthago

Jacaré hoje é cidade. Mudou de nome, já se vê. É cidade que tem prefeito, advogado, médicos, luz elétrica, rádio, automóveis. Mas, no tempo em que Xavier era Zezinho, Jacaré era Jacaré.

Zezinho aprendeu a brincar de pião, de corrupio, de papagaio, de estoque de cano de bambu, de batalhão, de excursões pelo mato, de roubar as jaboticabas de siá Braga... A vida era movimentada, mais alegre do que na roça.

No grupo, as coisas corriam normalmente. A vara de marmelo de 'Meu Mestre' era condicionada: só batia com autorização familiar. Entre as questões de matrícula, incluía ele a de saber se podia empregar a vara.

Tia Prudência, boa e exigente, falou: – Olhe, se precisar, seu Chico Dias, pode enfiar a vara nele. Eu dou licença. Ele está aqui como meu filho. E é como se fosse.

A lei da conformidade, que Zezinho trazia no sangue, tornou inútil, como quem não a merecia, a sanção do marmelo. Ia aprendendo bem. "Mimi era um gatinho..."; - faca-rato-­pula-bota-pega-boi"... (Havia as figuras e os nomes combinados.)

No terceiro ano, vieram os Contos pátrios, de Bilac e Coelho Neto: "Noite alta e morna. O rio rolava vagarosamente as suas grandes águas..."

Entender, a gente não entendia. Mas como era bonito, aquilo, em voz alta!

Vieram também as Histórias da terra mineira, de Carlos Góis. Zezinho chegou a saber de cor todo o trecho da execução de Tiradentes. A poesia "Bárbara bela,/ do Norte estrela,/ que o meu destino/ sabes guiar" não era novidade, porque dona Arminda a fazia decorar por todos.

Finalmente, o 4º livro de leitura, de Bilac e Bonfim.

Com que entusiasmo lia seu Rodrigues, ante uma petizada de onze anos, a Delenda Carthago!

Seu Rodrigues era o homem mais letrado do Jacaré. Estudara no Seminário de Diamantina. Aceitara dar aulas, naquele ano, por amor da arte. Atitude, voz, solenidade, ênfase, tinha tudo. E lia: "Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes...”

E ali, no arraial do Jacaré, não longe da casuarina que o vento agitava, perto de compreensivas rolinhas que mariscavam no pátio, à vista das andorinhas da igreja, desfilava "o exército romano/ diante do general Cipião Emiliano", tudo ao comando vocálico, pomposo e vivo, de seu Rodrigues. Embora não pudessem os meninos saber o que era um exército, quanto mais o de Cipião!

Que idéia poderia fazer de tais coisas o Zezinho, desde o arraial do Jacaré? Além disso, o desfile de Bilac tem bravos pormenores que nem o professor explicaria, todos: bipenata, gládio, aríetes, ginetes, clâmides, broquel, pilum, buccina, eneatores, sagitários. ..

O que a lei da conformidade não conseguiu, foi dar a Zezinho uma boa letra. O professor do primeiro ano era seu Raimundo. Seu Raimundo Gogô, na ausência. Tinha uma caligrafia "maravilhosa". Fazia traslados na pedra ou em quartos de papel, que o menino devia imitar.

Zezinho, na clássica atitude - ponta da língua exibida e cabeça inclinada - buscava ansiosamente o jeito fugidio das figuras elegantes. Sujava os dedos. garatujava o papel e recebia rosnados desaprovadores do mestre.

Sua grande inveja, depois, no Caraça, havia de ser o sucesso do Júlio, com sua letra admirável. Júlio e Zezinho, companheiros no colégio, ambos haviam estudado caligrafia com seu Raimundo. Entretanto, que letra a do Júlio e que letra a do Zezinho!


7. Vicente Roberto

Zezinho pagava a bondade da tia Prudência, servindo em mandados ou vendendo quitanda na rua. Dinheiro é que não via, senão mui raro e parco.

A vida era comum. Tinha do que tinham os primos. Aperto por aperto, já estava acostumado.

Se arranjava algum cobre, era para comprar pé-de-moleque ou biscoito.

Fez-se amigo do sacristão José Lucas e do fogueteiro Popote. Com um ia repicar sino, com outro quentava fogo, no largo da igreja, quando havia novenas e foguetes, pelas festas de São Sebastião, Santa Efigênia, Santo Antônio...

Aprendeu a ajudar missa, a comer hóstias na sacristia e a escamotear velas de encomendações.

Quando havia enterro de qualidade, Zézinho ficava sabendo pelo José Lucas, ao primeiro dobre a finados que tocava. Se a família era de posse, haveria velas distribuídas entre os presentes à encomendação. Zézinho colocava-se bem saliente, junto à essa. Recebia uma vela acesa e torcia para que a encomendação não demorasse. Acabada esta, assoprava cada um a vela que segurava, deixando-a numa mesa de serviço. Mas Zezinho escondia a sua e, enquanto o defunto ia para o cemitério, ia ele para o Vicente Roberto.

Vicente Roberto era um preto alquebrado, grisalho, magro, de barbicha no queixo, de cabelo à escovinha, de calças moles amarradas com barbante, caindo sobre uns sovados chinelos-de-tapete.

Possuía uma venda de três portas, com muitas prateleiras e poucas garrafas. Vendia quitandas e outras bugigangas.

Costumeiramente, estava assentado a um tamborete de couro, à entrada do balcão, junto à primeira porta.

Tinha sempre um lenção vermelho, caindo de um bolso externo do paletó. Lenço do tomador de pó.

Podia estar afagando os dedos do pé ou sorvendo uma pitada, quando Zezinho, algum Zezinho chegava.

Agora, era o Zezinho da vela. Seu Vicente Roberto levantava, arranjando os pés nos chinelos, gingando o corpo, acomodando as calças, coçando alguma coisa, esfregando o nariz e fungando. Passava para o lado de dentro do balcão. Tomava da vela, olhando-a um pouco. Ia depois a uma lata e voltava com aquelas mãos carregando biscoitos de fubá, com que enchia o Zezinho.

Se não havia outro inconveniente, ia comer junto ao rio.


8. O rio

Em casa de tia Prudência, Zezinho era tratado como os primos. Era um outro irmão. Era um outro filho. Era como se fosse, dizia ela. Mas, no fundo, alguma coisa faltava.

Depois de grande, Xavier pôde deduzir, retrospectivamente, o que era e pôde criar uma teoria da lacuna afetiva. Naquele tempo, sentia apenas.

Seu consolo era o rio. O rio Jacaré, largo e manso, espraiado e amarelo, tranqüilo e doméstico, marulhoso e impassível, como quem sabe que não é estranho, atravessando um rebanho de casas que não fugiam dele, satisfeito como um querido nume tutelar.

Acima, fora da rua, havia um poço em que os meninos iam nadar escondido. Zezinho gostava de ir também. Ainda mais acima, num declive aparcelado, o rio descia com um murmúrio encoberto de cachoeira, um murmúrio batido e eterno, que o vento quebrava contra as casas e os ouvidos da gente, nas horas despreocupadas, que são horas boas de ouvir.

Junto à ponte, com suas arcadas de madeira pixada, ou junto à margem, gostava Zezinho de cismar, seguindo com os olhos, e com a imaginação, uma onda encrespada, um galho levado, uma folha a descer, um destroço. Via a ingazeira da margem, cujo banho era mais completo nas enchentes.

Xavier nunca olvidou aqueles tons, aquele declive, aquela curva, aquele marulhar.

Lendo, um dia, Jean Christophe, tomou-se de amores pelo Reno, o rio da meninice do herói, não o Reno das pontes de César, o Reno das lendas, o Reno dos castelos medievais, o Reno dos lirismos, dos poetas e dos músicos. Era o Reno da meninice, irmão do Jacaré, que foi o Reno de Xavier.

A respeito do padre Bacelar existe uma crônica de João Ribeiro, sob o título Dicionário das Arábias.


9. Seu Vigário

Uma noite, após a bênção, estavam no adro padre Natalício, o farmacêutico, seu Bastos e seu Rodrigues, o professor.

Zezinho, que fora campainha na bênção, também se meteu a escutar, sem a menor cerimônia, a conversa dos três.

Era isso numa noite de junho. Seu Rodrigues acompanhava a Grande Guerra pelas colunas do Jornal do Comércio. Seu Bastos lia pelo Imparcial. Padre Natalício, muito hábil, lia pelos dois.

José Vieira pôde identificar a conversa mais tarde, quando aprendeu a história daquela guerra. Tratava-se da batalha do Kaiser, a última, desesperada e terrível ofensiva alemã. Bombardeava-se Paris por canhões de longo alcance, chamados gotas e bertas. Foram rompidas as linhas franco-inglesas. Era uma blitz-krieg para tomar Paris e forçar a paz, antes que os americanos chegassem. Mas Foch foi detendo a arrancada inimiga, enquanto iam chegando americanos (dois milhões até o fim do ano), e acabou por quebrar o poderio germânico na batalha do Marne. Foch, auxiliado por colaboradores de primeira ordem, com Pétain, o grande organizador: le grand organisateur qui avait forgé l' instrument de la victoire, diz a História.

Na conversa daquela noite, lamentando a barbaria dos boches, que canhoneavam uma igreja de Paris em dia de sexta-feira santa, mostravam medo de que não houvesse tempo de chegarem os americanos.

A certa altura, padre Natalício perguntou a Zezinho:

- Zezinho, você sabe onde fica a França?

- Fica na Europa.

O menino julgara aquela, uma pergunta de brincadeira. Pois não sabia ele a capital da França e dos outros países da Europa?

Melhor ainda: pouco tempo havia, numa festa do grupo, tinham recitado O estudante alsaciano. Se não fosse o acanhamento, em vez de uma fria resposta geográfica, Zezinho saberia plagiar o estudante alsaciano.

E teria sua graça, numa limpa noite de junho, em pleno desertão mineiro, um menino de dez anos, abrindo o peito, perante seu vigário e outros, a dizer, apontando: - A França está aqui!

Seu Bastos perguntou:

- E sabe onde fica o Marne?

Zézinho não sabia.

Seu Rodrigues perguntou:

- E sabe o que é gota?

Zezinho não sabia. E encabulou.

Padre Natalício, conciliadoramente, propôs:

- Podíamos também mandar este menino para o Caraça, onde ele aprenderia tudo isso...

- Você quer ir para o Caraça?

- Quero!

Zezinho sabia que, dentro de dois meses, seguiriam para lá o Gastão, o Jair e o Zé Martins, colegas de grupo mais adiantados.

Quando respondeu - quero - seu Rodrigues interveio para explicar que era cedo, que ele ainda estava só no terceiro ano e só tinha onze anos incompletos.

- No ano que vem você irá para o Caraça.


10. O trem-de-ferro

Jacaré hoje é cidade que tem prefeito, luz elétrica, rádio, estrada-de-automóvel, etc.

Naquele tempo, entretanto, o Jornal do Brasil levava as notícias com mais de uma semana de atraso.

Hoje, pelo alto-falante do café do Ostino, qualquer Zezinho pode saber das coisas na hora em que estão acontecendo. Ou até antes, como se deu com a rendição da Alemanha, em 1945.

A rendição de novembro de 1918 chegou lá devagar, em prestações pacientes de imprensa.

Zezinho começara a alimentar a idéia de ir para o Caraça.

Tia Prudência garantiu-lhe que ser padre era uma carreira muito boa.

Padre Natalício começou a exigir dele um melhor conhecimento da doutrina e um mais assíduo e perfeito serviço de coroinha.

Seu Rodrigues, de programa na mão, fiscalizava-lhe os estudos, para que estivesse preparado até agosto de 1919, pois Zezinho não acabaria o quarto ano de grupo, segundo o previsto.

No começo de dezembro, Tonho veio buscar o irmão que passaria uns tempos na Fazenda dos Coités.

Zezinho gostou de rever longamente aqueles sítios de outro dia, lugares já agora de uma primeira meninice.

Miloca estava satisfeita de ver o filho ir ser padre. Quando tia Prudência, antes, a mandara consultar, ela respondera: - Faço muito gosto, se for vontade de Nosso Senhor. Não tenho, mesmo, outra tenção no José. Um padre na família é até muita honra para um pobre. E Deus Nosso Senhor há de ajudar mais a gente.

Seu Timóteo, relembrando os tempos da Diamantina, perguntou se não era melhor encaminhar o menino para aquele seminário. Se ele queria ser padre, era melhor secular, porque podia ganhar dinheiro e ajudar a família.

Miloca respondeu:

- Cruz, credo, compadre! Ser padre é para servir a Deus e não para ganhar dinheiro! Isso de ser padre secular ou não, eu não entendo. Entendo é que ser padre, como Deus quiser, é uma bela carreira para meu filho. Será muita honra que Nosso Senhor nos dá.

Zezinho voltou a Jacaré para os últimos meses de escola e de preparação com seu Rodrigues. Estava entusiasmado. Assumira uns ares convencidos. E todos o tratavam como quem via nele um futuro sacerdote. Foi dispensado, por tia Prudência, de qualquer trabalho. A vida girava mais no triângulo seu vigário, seu Rodrigues e grupo escolar.

Veio o tempo da partida: fim de agosto.

Era uma caravana de cinco meninos: o Campos, o Júlio, o Erasmo, o Elifas e José Vieira (Zezinho).

Quem nunca andara calçado, agora usava uns formidáveis sapatos que lhe fizera o Joaquim Roquinho, o único ou, se quiserem, o melhor remendão de Jacaré.

O pai do Campos e dois camaradas comboiavam a caravana, a romper, em cinco dias de cavalo, sob o sol do mês, até Santa Bárbara, de onde, em mais um dia, se chegava ao Caraça.

Para os de cá, Santa Bárbara era um fim de ramal; para os de lá, era um termo de tropas, um lugar importante, consagrado pelo trem-de-ferro.

"Ir para fora", "estar para fora", "viajar para fora", no Jacaré, era tomar o caminho de Santa Bárbara, era fazer uma coisa muito sugestiva.

A maior viagem que já fizera Zezinho fora um passeio até Onça, a visitar parentes, doze léguas de distância.

Agora, ir até Santa Bárbara, ultrapassar Santa Bárbara, era coisa que lhe enchia muito a imaginação.

Mas a grande expectativa dos cinco matutos era o dia de ver o trem-de-ferro!

Quanta suposição, quanta emoção contida, por causa de um comboio – está assim no Vocabulário acadêmico, mas mineiro diz é combóio – por causa de um combóio da Central do Brasil! Ora, já se viu!

Chegados a Santa Bárbara, pela tarde, os cinco turistas andaram pela cidade, vendo coisas e procurando a estação. Depois, andaram ao longe da linha, admirando os trilhos e o leito de pedras bem quebradas. Já sabiam que o trem só viria no dia seguinte. Descobriram, em certo trecho entre barrancos, uma pontilheta, sob a qual devia passar o 'bicho'. Combinaram de ali estar, no dia seguinte, para o meio-dia, hora do horário oficial.

Ao outro dia, às onze horas, já lá estavam, com medo de o trem chegar antes da hora. Pois ele não corre tanto!?

Como conheciam a Central do Brasil os cinco meninos do Jacaré!

Nenhum tinha relógio. Zezinho tremia. E os outros também. Passava-lhe na memória uma página de um livro de leitura do segundo ano, onde estava desenhado um trem e onde a leitura começava assim: – Fulano, Beltrano, Sicrano! Corram todos! Venham ver o trem-de-ferro!

E ali estava ele para ver o trem!

A certa hora surgiu longe, na curva, uma coisinha pequena, empurrada a vara, sobre os trilhos, por dois homens em pé. (Era um trole). Os cinco esperas, depois de olhar um pouco, nenhum se deu à vergonha de imaginar que aquilo fosse trem. Fosse o que fosse, trem não era. Apenas um deles, mais rico em suposições, deitou a hipótese de que aqueles homens vinham noticiar que o trem não demorava. A emoção reavivou-se.

Emoção lembra emoção e, dentro do silêncio paciente em que os olhares se fixavam na curva, a memória de Zezinho ia recitando, sozinha, – porque ele estava muito preocupado – uma poesia de Raimundo Correia, do quarto livro de leitura, que seu Rodrigues fazia decorar:

"Não há quem a emoção não dobre e vença,
lendo o episódio da leoa brava,
que sedenta e famélica bramava,
vagando pelas ruas de Florença..."

Toda a poesia passou, mecanicamente. Passaram outras fantasias. Passou, mais de uma vez, aquela hipótese que a gente faz em tais ocasiões, dizendo é agora. Passou aquela outra em que a gente aposta que terá tempo de contar até o número tal. Só não passava o trem.

Não perderam a paciência porque ver um trem valia todas as paciências. Gente urbana é que não tem paciência, gente infeliz para quem não existem novidades.

Sentiam que demorava muito, mas sentiam que não podia demorar mais, tanto.

Mais tarde puderam saber que o atraso fora só de duas horas. Com mais uma de avanço, deles, aquilo fazia três. Mas viram o trem-de-ferro! De longe, de frente, de perto, por cima, por trás, de longe outra vez!

 


III - XAVIER NO COLÉGIO

1. A visão

Partindo de Santa Bárbara, ia a caravana ao encontro das serras em que está o Caraça.

A natureza mudara em pedras maciças, torturadas nuas, rudes, vizinhas, o que antes eram campos, morros, florestas ou montes distantes. Qualquer Zezinho se veria ferir, nos olhos da cara e nos olhos da sensibilidade, por aquela paisagem eruptiva e alpestre, abrupta e dura.

O nome 'Caraça' é um nome que conforma, no espírito, uma imagem célebre, com cenas de reformatório, abundância de asperezas, fama de latim e humanidades.

Raul Pompéia, no seu nervoso e afamado romance O Ateneu, livro de 1888, frisando os horrores do Colégio de Aristarco, lá deixou a sua referenciazinha ao 'pavor monacal' do 'negro Caraça de Minas'.

O nome foi tanto que a cominatória de mandar para o Caraça era uma receita de autoridade, abrindo fontes de medo sobre a indisciplinada coragem das insubmissões infantis.

Colégio centenar em 1920, tendo educado gerações e gerações de brasileiros, sol de humanismo dentro do nosso discreto e lento sistema educacional, merece ele realce na história do ensino em nosso país, ao lado das escolas de Direito de Recife e de São Paulo, mais novas do que ele, fundadas em 1827.

No tempo de José Vieira, reduzido a simples escola apostólica, mesmo assim ainda guardava sua atração nacional, educando jovens entre os quais havia gente do Paraná, de São Paulo, do Rio, do Estado do Rio, da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e, sobretudo, do Ceará.

A hora de ver com os olhos aquele estabelecimento com que sonhava desde um ano atrás, a curiosidade insofrida de Zezinho encontrava a esquisita e avassaladora objeção de montanhas que iam tomando corpo em torno dos viajores.

Uma leve inquietação parecia querer afogar a sua alma. Disfarçava-a no companheirismo divertido da jornada, na sugestão mutável do percurso.

Quem mais o defendia, porém, era a simplicidade ingênua, a completa inocência de seus doze anos de menino da roça, bem criado.

Também lhe haviam feito, a ele, tutu, do Caraça. Mas o que sabia mais concretamente era que lá se davam bem os seus conhecidos Luís Amaral, Gastão Magalhães e José Martins.

Em todo caso, a ignorância é mãe do temor. Na massa escura das rochas cada vez mais próximas e fechadas, aqui e ali se projetava a sombra de uma interrogação que saía da alma do menino.

Os animais ressentiam-se da aspereza pedrenta e da violência íngreme da subida. As serras iam engolindo a caravana. Passaram por uma cascata – linda cascata que Xavier tantas vezes contemplou, depois.

Mas agora, seguindo a estrada aberta na rocha, à margem dos abismos em que ela se precipitava, Zezinho, o que via era uma água mártir, despedaçada pedras abaixo, e uma água vinda lá de dentro, lá do lugar para onde iam.

Subiram mais. Andaram mais. De repente, desde uma aberta entre árvores, numa curva da altura, avistou, ali na frente, o Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, o CARAÇA, projetando a sua massa branca, e a torre de seu templo, contra o fundo escuro das montanhas!

Visão inopina, que se apanha numa visada impressionante! Revelação longamente preparada pela curiosidade angustiosa da subida! Visão de uma visada que se repetirá muito, em seis anos de internato! Visada que agora é a primeira, mas que se repetirá, um dia, como última, entre as saudades da despedida, numa fixação que a retina guarda para a vida!

A inquietude perquisitiva desfez-se. Em lugar da delonga interrogativa do percurso, agora se erguia, na alma de Zezinho, a macia admiração de quem adivinha, só de ver.

Dizia tudo, enfaticamente, pelo seu contraste, a tranqüilidade daquele santuário, toda brancura e suavidade, num rude berço de montanhas negras!


2. O corredor

Acabara a subida. Os animais, que tanto a sentiram, agora sentiam que chegavam, retomando aquele ritmo e ânimo que mostram à vista do pouso. Foi só descer, caminhar um pouco, passar uma ponte e vencer uma ladeira calçada.

A torre, alta e fina, subia cada vez mais.

A brutalidade inóspita, atormentada e difícil, da paisagem, aumentava a sugestão de aconchego e agasalho da casa, colocada no fundo de uma espessa bacia de montanhas, mais para um canto, junto à Carapuça.

À porta de receber, quando chegaram, lá estava um padre da casa e toda a colônia de conterrâneos.

Desmontaram entre abraços e perguntas. Do pátio, ao lado, subiam vozes de alunos em recreio.

José Vieira, acostumado a construções de madeira, admirava a solidez invencível da massa predial, toda de pedra. Habituado também ao limite doméstico das residências do Jacaré, impressionava-se com o tamanho e amplitude daquela morada comunal. Quando atravessou a porta, uma sugestão infinita de corredor entrou-lhe pelos olhos e pelo espanto! Era um corredor enorme, varando, de fora a fora, a ala do casario! Toda a terra de sua infância ali se diminuiu e se tornou insignificante, em frente de tal magnitude!

Guiado por Luís Amaral, que ia explicando portas e escoadores, ele foi palmilhando, humildemente, a longa passagem, com seus ingênuos pés muito acanhados nos sapatões de elástico do Joaquim Roquinho, emoldurando, entre paredes sagradas, o seu corpo roceiro de doze anos, metido num terno de brim listado, que lhe fizera siá Maria do Pacífico.


3. Novato

Quem visse o Zezinho da Miloca, desajeitado e confuso, a transformar-se em aluno da Escola Apostólica do Caraça, não adivinharia que alma brava trazia ele dentro de si.

E não acreditara que, cinco anos depois, ele estaria metrificando versos em latim; escrevendo descrições e narrações na língua de Cícero; recitando de cor a tempestade de Vergílio; lendo, escolarmente, César, Cícero, Tito Lívio, Salústio, Tácito, Ovídio, Vergílio, Horácio; lendo, escolarmente, em grego, Anacreonte, Xenofonte, Demóstenes; discutindo a grandeza de Alexandre, de Aníbal, de Cipião, aquele Públio Cipião Emiliano, ante o qual desfilava o exército romano segundo a Delenda Carthago de seu Rodrigues, aliás de Bilac; estudando, comen tando, decorando, um ano inteiro, Os Lusíadas de Camões, a ponto de saber continuar de cor, até o canto sexto, qualquer estância principiada; conquistando, na Academia Nossa Senhora Mãe dos Homens, grêmio literário de que chegou a ser eleito presidente, o título honroso de 'Alencar Caracense'; provocando, de outra feita, numa aula de português, o apelido ‘Xavier', que lhe deram e que lhe ficou...

Agora, porém, mal deixava de ser o Zezinho da Miloca, para ser o apostólico José Vieira, metido numa batina ruça, que fora preta outrora, entre dezenas de outras batininhas ruças, como se algum seu vigário tivesse organizado um numeroso corpo de coroinhas pobres, mal trajados.


3. O número 54

Deram-lhe um número. 54.

Era o número da argola de seu guardanapo, no refeitório, e o número por que se acostumariam a identificá-lo na rouparia, na batinaria, na sapataria, na alfaiataria, na procuradoria, no salão de estudos...

Nos seis anos de seu curso, o total dos alunos sempre estava perto do número cem, um pouco acima, um pouco abaixo. No seu primeiro ano, o total era de cento e oito, sendo trinta e seis novatos – a turma de José Vieira.

O número de cada aluno era fornecido ao acaso das lacunas. Se ele era o 54, isto quer dizer que não voltara ao colégio quem o era, no ano anterior.

Entravam, anualmente, trinta a quarenta novatos, mas saíam alunos em igual quantidade, pois o número total guardava equilíbrio. Poucos chegavam ao fim. Dos trinta e seis companheiros de nosso biografado, apenas cinco alcançaram o último ano. Ia desbastando-se a turma, ao longo da vida.

O ano letivo começava a 15 de setembro. Corria o primeiro semestre até 15 de janeiro, começo das pequenas férias de um mês. Dos nove meses de estudos, o segundo semestre, de fevereiro a julho, com cinco meses, era o ótimo tempo dos estudos, com o fim das águas e a entrada do frio.

As férias de janeiro eram passadas no colégio, para todos. As grandes férias, de 15 de julho a 15 de setembro, também se gozavam lá, para todos, exceto os que concluíam o curso e os terceiranistas, que podiam ir passear a casa. Em seis anos contínuos, a única saída era esta do fim do terceiro ano.

Mas, antes disso, quanta gente ia embora ou se ia embora! Quanta gente montava na Garricha!

(NOTA - 'Garricha', nome de conhecido passarinho, é uma fonetização mineira de 'carriça'. 0 Pequeno dicionário brasileiro só averba 'garriça' como brasileirismo. Houve, outrora, no Caraça, uma mula de condução que, pela cor e tamanho, nomearam Garricha. Montar na Garricha era 'tomar condução', 'ir embora').

Dois princípios regiam a progressiva redução das turmas: a peneira e a vocação. A peneira trabalhava, sessando vivamente, desde o primeiro dia. Ia classificando os alunos:

a- bem procedido, aplicado, aproveitado
b- bem procedido, aplicado, sem proveito (talvez burro)
c- regularmente procedido e aproveitado (inteligente)
d- dissipado mas aproveitado (especialmente inteligente)
e- dissipado e sem proveito.

O índice de classificação e câmbio de cada um se conhecia pela publicação mensal das notas, em leitura pública e solene.

A nota de procedimento tinha de ser boa: de sete para cima. Cinco ou seis era grau tolerado ao primeiro ano. Quatro ou três era escândalo que nem no primeiro ano podia repetir-se, pois acabava em garricha.

Aluno dissipado e sem proveito era mandado embora no fim de uma paciência bastante rápida; em geral, no fim do primeiro semestre.

Aluno dissipado, mas aproveitado intelectualmente, devia melhorar o procedimento, do contrário ia embora no fim do ano.

Aluno bem procedido e esforçado, mas intelectualmente desaproveitado, era admitido a um segundo ano de experiência. Caso não arranjasse o estalo de Vieira, e não atingisse o nível de eficiência intelectual exigido, era mandado embora, por falta de inteligência.

(NOTA - Quando menino, o célebre padre Antônio Vieira parecia burro, contam seus biógrafos. Um dia, orando ardentemente à Virgem, sentiu um estalo na cabeça, abrindo-a, luminosamente, à formidável inteligência das coisas, que teve o grande jesuíta.).

A peneirada miúda e definitiva era a do terceiro ano, ocasião do passeio a casa. Fazia que só voltassem alunos do primeiro tipo, isto é, aplicados, bem procedidos e inteligentes. O terceiro ano era a 'ponte dos burros' ou 'carro de fogo'.

Os professores apertavam convenientemente. A observação psicológica aumentava. Era tempo de se pronunciar a vocação, em conversas com o superior, que chamava a colóquio o rapaz.

Chegando as férias, quem não servia ou quem não queria ser padre aproveitava o passeio para não mais voltar.

A turma de José Vieira, de trinta-e-seis no primeiro ano, ficou reduzida a doze no começo do quarto ano, descendo a seis no quinto, a cinco, no sexto.

Do quarto ano em diante, as deserções explicavam-se pela determinação vocacional. Tal que voltava no terceiro ano pensando que ia ser padre, acabava decidindo que não tinha jeito. Tal outro desejava e queria, sim, mas não congregado, e retirava-se para Mariana ou Diamantina. Da turma de José Vieira, cinco terminaram o Caraça e um deu congregado lazarista.

Por estas e outras é que a Igreja repete, no Brasil, aquela frase alegórica de Cristo: Messis quidem multa: operarii autem pauci. É muita a seara, mas poucos são os obreiros.


5. Ramerrão

Deram-lhe o número 54. E começou o ramerrão. Levantar às cinco e lavar a cara numa bacia em que a água dormira recoberta pela toalha de rosto.

Oração da manhã, no salão de estudos, seguida de missa diária, na capela, para a qual desciam em forma, dois a dois, por ordem de tamanho.

Estudo até as sete e meia, hora do almoço, acompanhado de um recreio. Estudo e aula até o meio dia, hora de jantar, num refeitório comum aos padres, irmãos coadjutores e alunos, feito em silêncio ou melhor, ao som de uma leitura pública de algum livro instrutivo.

Recreio até as duas horas, recomeçando os estudos e aulas até as quatro e meia, hora da merenda, com recreio.

Das cinco às sete e meia da noite, o grande estudo diário, distribuidamente consagrado a exercícios, principalmente de línguas português, latim, francês e grego.

Ceia, recreio, oração da noite, dormitório. Às nove horas, o Padre Moreira, chefe da disciplina – também chamado Padre Santo – graduava até quase a zero as duas lâmpadas do salão dormitório, munidas de comutador reostático; o Padre Santo puxava a correntinha e a luz baixava.

Às quartas-feiras, não havia aula pela tarde. A folga pomeridiana era destinada ao passeio da Varginha, onde se jogava à bola, o futebol. Às quintas-feiras, não havia aula pela manhã, cujo tempo era destinado ao concurso semanal, espécie de argüição escrita, revezada por matéria e turma.

Aos domingos, havia duas missas e uma aula de religião, pela manhã. A tarde, passeio excursivo a um dos muitos recantos caracenses.

O que havia de fecundamente proveitoso, no regime, era a distribuição estudo e aula, tão diversa da que se faz nos estabelecimentos de ensino comuns, onde se prende o aluno durante quatro ou cinco aulas seguidas – das sete às doze das doze às dezessete horas – para depois o mandar embora, graças a Deus, se externo, ou encher-lhe a outra parte do dia, se interno.

No Caraça, a cada hora de aula precedia outra de estudo, consagrado ao preparo da lição. Além disto, havia o grande estudo da noite, instituição fundamental, que cobria todos os dias da semana, inclusive os domingos, dias santos, feriados e férias.


6. As férias

As férias eram cheias de alunos, quase na mesma, e de estudos. Não chegavam a trinta, em cem, os alunos que iam passar uns dias em casa, nas férias de julho. Nas de janeiro, ninguém saía.

Somando em férias, o que passava um aluno dentro do colégio, perfazia catorze meses, ou mais de um ano.

O que caracterizava as férias era o levantar mais tarde, o ter dia cheio de recreios, com uma saída excursiva diária, transformada, freqüentes vezes, em grande passeio de alpinismo.

Mas nem nas férias faltava o estudo, quer dizer, o tempo de recolhimento obrigatório ao ‘repouso', principalmente o conhecido estudo da noite, mais curto um pouco, entretanto.

Para os alunos das últimas séries, a mais simpática instituição das férias era o chamado ‘estudo livre', uma faculdade que tinham de, em vez de estar no recreio, estar no salão-de-estudo, entregues ao ler e ao trabalhar intelectual.

Mas os estudos, obrigatórios ou livres, bem como os recreios e passeios, podiam consagrar-se, e geralmente se consagravam, a leituras de férias. Havia moços que carregavam o livro, consigo, o dia inteiro, a toda parte.

Até o terceiro ano, dominavam leituras salesianas, historietas de santos, contos infantis e romances de Wells e Júlio Verne.

Do quarto ano em diante, cada um escolhia leituras mais substanciosas, levado por seu gosto e inclinação. E lia-se em português ou em francês.

Xavier lembrava-se de algumas leituras daquele período: Iracema, Guarani, Moreninha, Retirada da Laguna, Eurico, O Monge de Cister, O Bobo, Lendas e Narrativas, A Harpa do Crente, Camões (de Garrett), Luz e Calor (de Bernardes), Sermões de Vieira, Le génie du christianisme, La Cathédrale (de Huysmans), o teatro clássico francês – peças de Corneille, Racine, Molière, Voltaire – Visions du Brésil, (de Gaffre), L'Homme et l'Univers (de Brettes)...

O tempo mais apropriado de tais leituras eram os estudos livres, especialmente freqüentes nas férias de janeiro, com seus dias de chuva a impedirem as saídas excursivas.

Para os meninos das primeiras séries, estudo livre não tinha importância e quase não existia, pois gostavam mais do recreio. Para os anos adiantados, o uso dele era uma tradição, uma nota de intelectualidade e de conceito.

O primeiro atrativo do estudo livre estava em ser livre, em não ser obrigado. Ia-se a ele e nele se ficava quanto se queria, podendo voltar ao recreio quem quisesse. Lá ficava Xavier, no seu lugar, entretido com seu livro ou copiando, como era costume de todos, pontos de matérias para o ano seguinte – matemática, literatura, composição e estilo...

Na doce liberdade da hora, podia também cismar, que o quadro geral a isto convidava. Do pátio, em baixo, subiam vozes familiares, marcando os recreios.

Na grande horta, vista através da janela, estava a passear algum padre, naquele sabido vaivém eclesiástico de quem lê seu breviário, enquanto os hortelões trabalhavam. Do andar térreo subia, talvez, a melodia do harmônio em que se exercia algum aprendiz. Se era o Genesco, o Germano ou o Jorge, Xavier se estaria deliciando com Beethoven, Haydn ou Mozart, reconhecendo, pelo autor preferido, o harmonista que tocava. E às vezes lá estava o Padre Santo, com sua bela voz, a cantar alguma coisa, ao som do acompanhamento.

Os livros de férias recolhiam-se no fim das férias, pois era proibido, no correr do ano letivo, todo livro que não fosse escolar. Entretanto, segundo os estudos que fazia, o aluno dos últimos anos obtinha leituras especiais. Assim leu Xavier, preparando trabalhos acadêmicos, livros de Oliveira Martins, Teófilo Braga, Joaquim Nabuco, e outros.

Compare-se o fervor intelectual daqueles adolescentes que não tinham dezoito anos, com a devoção do Gibi mensal, que os professores de hoje encontram alastrada entre rapagões de colégio, até maiores de vinte e um anos, fãs de Brucutu e heróis quejandos.

Dirão que não é demais ler o Globo juvenil, pois Rui Barbosa lia o Tico-tico. Sim, nada há demais. O que há é muita coisa de menos em um jovem que, no vestíbulo da Universidade, apenas tenha lido e leia dessa reles produção de uma literatura chamada infantil. Tais moços, disse alguém, chegando aos cinqüenta anos, talvez que já estejam no Fon-fon.

Rui Barbosa também, lia o Tico-tico. Mas tenha a bondade o leitor e repita a frase mudando a pausa: Rui Barbosa, também lia o Tico-tico; lia o Tico-tico também, lia até o Tico-tico!

Vai assim, na vírgula, um merecido elogio ao mais terrível e insaciável bibliófago das letras brasileiras.

Idéia puxa idéia e as férias aqui entraram metidas pelo avesso, naquilo em que as do Caraça negavam a noção do nome.

Vejamos o lado direito. A vida não era só rezar e estudar. Era também brincar e brincar muito. Era também passear e passear muito.

Além do grande recreio do jantar e do recreio da ceia, bem como de recreinhos outros, o ritmo dos dias letivos previa a diástole das quartas e domingos, em que a folga da tarde representava uma recuperação física, pela atividade esportiva da Varginha, às quartas-feiras, e pelos passeios excursivos de domingo, dirigidos a algum dos muitos recantos já predestinados.

A exigente vida intelectual e sedentária era compensada pela ativa aplicação dos recreios, dos suetos, feriados e, principalmente, das férias. O recreio só podia ser tomado brincando ou andando. Ninguém podia ficar assentado ou parado.

Havia as horas de jogos obrigatórios – Jogo das cores, da barra-manteiga, da barra-bandeira, do triângulo. Entretanto, o mais popular e querido era o jogo da baleia, organizado livremente, em qualquer recreio, segundo opções pessoais, ótima exercitação da esperteza no correr, no menear do corpo, no empregar da astúcia física.

As férias constituíam legítimo curso intensivo, devido à saída pomeridiana de todo dia, para o jogo da bola ou para as andadas campestres, em que se remexiam todos os recantos da bacia e todos os picos da redondeza.

A topografia caracense faria inventar o alpinismo, pelo convite sugestivo da Carapuça, da Verruguinha, dos Três-Irmãos, da Bocaina, do Pico-do-Sol.

As grandes jornadas alpestres requeriam prevenção especial. Partindo de manhã, ia-se comer para os lados da serra visada. E, enquanto os menores e os comodistas se deixavam ficar na planície, os maiores subiam até as alturas desejadas, vencendo despenhadeiros, enrijando músculos, criando horizontes.

Durante as férias, ainda, o banho no Tanquinho e no rio era transformado em esporte, prolongado o tempo de natação.

Em casa, no pátio, as multiplicadas horas de recreio aumentavam a vida física. Em dia de chuva, como nas férias de janeiro, impedidos de sair, os alunos entregavam-se aos jogos de salão e à leitura, restringindo o esporte às áreas cobertas do pátio. Jogos de salão eram xadrez, dama, dominó, bilboquê, etc.

Outro esporte querido era o pião de fieira, atirado, em exercício singular ou em rodas feitas, à concorrência. Jogava-se também ao gude, a que chamavam bilosca, servindo bolas de vidro ou bolas que os alunos faziam do muito bom mármore do Caraça.

Passeios e mais passeios, recreios e mais recreios, jogos de salão e jogos de pátio, leituras e estudos livres, eis as férias. Ninguém tinha tempo de se entediar ou de sentir que estivesse em prisão. Ainda mais uma prisão insuportável!


7. A Guerra do Paraguai

José Vieira chegara ao Caraça com uns dez dias de antecedência. Começado o ano letivo, logo foram distribuídos os livros escolares, um lote de livros para cada aluno, segundo a série em que se achava. Eram os mesmos livros que haviam servido a cinco, seis ou mais Josés Vieiras anteriores. Livros que trataria com muito cuidado e deixaria para o José Vieira que lhe sucedesse.

O roceiro foi aclimando-se, desaparecendo o acanhamento. A lei da conformidade ajudava adaptações.

Os livros iam ensinando a concretizar toda uma razão de ser da vida, com derivativos sublimadores de incompreensões e angústias.

O paraíso ia revelando-se.

Nunca foi o primeiro aluno da turma. Disputava, porém, a primazia com outros. O Júlio, o herói da caligrafia, ganharia em latim. Maciel, um cearense, venceria em francês. O Tenan, o Italiano, ganhava longe, a todos, em matemática.

Um dia, na aula de História do Brasil, no primeiro ano, José Vieira conseguiu sua primeira celebridade.

O professor marcara a metade da Guerra do Paraguai, capítulo grande até em manuais elementares. A memorização era do regime. E, sendo metade, a lição fora considerada não pequena, entre os alunos.

O professor da matéria, padre Augusto, muito lhano e jovial, era o tipo do professor aperitivo para novatos desambientados. Todos lhe chamavam ‘meu tio'.

Mas argüição era coisa muito séria, mesmo as de ‘meu tio'.

Rezada a oração, assentados os alunos, enchia a sala a angustiosa expectativa que precede à decisão do primeiro nome. No dia da Guerra, a nervosia foi maior, em proporção com a dificuldade.

Padre Augusto abriu a caderneta e começou, vocativamente: Sr. ... sr. ... sr. Josézinho Vieira! (O diminutivo era um improviso hipocorístico do bom padre).

José Vieira levantou-se, entre os olhares dos colegas. Olhares aliviados uns, piedosos outros. Não sabiam se o caso era de ficar alegre quem escapara, ou ficar triste, de dó da vítima. Situação parecida com a daquele coveiro de Flaubert, que plantava defuntos nas sepulturas, e batatas na área reservada do cemitério. Mas veio, certa ocasião, a epidemia, com muitas mortes: não sabia ele se devia regozijar-se com o trabalho abundante ou entristecer-se com a diminuição do batatal, invadido pelas covas. Assim os colegas de José Vieira. Mas, como os homens não são iguais, seus olhares se repartiam em satisfeitos e piedosos.

Meu tio falou: Vamos à lição.

O menino desfiou, implacavelmente, fielmente, palavra por palavra, todo o texto marcado, a metade da Guerra do Paraguai.

Houve um ‘muito bem' efusivo e repetido do professor, encenado pela expressão admirativa da sala e acompanhado de um 'pode assentar-se'.

José Vieira, porém, acrescentou:

- Meu tio, se o sr. quiser eu dou o resto da Guerra do Paraguai.

Todos os olhares se voltaram para ele.

Bonachão, padre Augusto falou, sorrindo: – Então continue.

E José Vieira, seguro, mnemônico, imperturbado, esgotou a outra metade da Guerra do Paraguai!


8. Xavier

Iam passando os dias, enfiando o colar dos meses e o colar dos anos. José Vieira crescia, em tamanho, em idade e em sabedoria. Foi vencendo a infantilidade e a insuficiência roceira. Foi vendo que tinha gosto e capacidade para os estudos. Venceu o primeiro, o segundo e o terceiro ano. Passou o carro de fogo. Pesou ambições e planos, perquiriu a alma, teceu malhas de sonhos e sentiu que seu ideal era a vida de um lazarista, na graça de Deus, na paz monástica de claustro, no convívio de irmãos, no gosto infinito dos livros.

Assim, depois de passar alguns dias em casa, junto à família, durante as férias, após três anos de ausência, voltou para continuar a carreira. E começou o quarto ano.

Foi no segundo semestre que recebeu o nome de Xavier, que tanto aderiu a sua pessoa, com o tempo.

Haviam passado as férias de janeiro, cheias de chuvas e estudos livres. Durante elas, estivera lendo os sermões de Vieira dedicados à glorificação de São Francisco Xavier.

O programa do quarto ano, em português, era Camões: ler, comentar, interpretar e analisar os Lusíadas. Por causa dos Lusíadas, o padre Cruz, notável professor, ensinava a história das epopéias – Homero, Vergílio, Dante, Tasso, Ariosto – a história do Renascimento, a história de Portugal, com seus descobrimentos, a quanta coisa mais Camões obriga, pois Camões é enciclopédico.

Ora, um dia, em aula, referindo-se padre Cruz a um passo de Vieira e querendo lembrar-se de um pormenor literal, José Vieira pediu licença de o esclarecer. Explicou estar bem lembrado porque lera o sermão, durante as últimas férias.

Perguntou-lhe o padre quais sermões havia lido. Respondeu que lera a série da glorificação, enfeixada sob os títulos Xavier dormindo e Xavier acordado.

Foi uma coincidência feliz e o caso ficou notado. Meteram-no à bulha os companheiros, acabando por lhe pregar, em cima do nome, a etiqueta Xavier, que pegou, generalizou, dominou de todo, não sem alguma vaidade de José Vieira que passou a subscrever-se Xavier, na intimidade e nos trabalhos literários.

Mais tarde, pessoas que privaram menos com ele, chegavam a pensar que seu nome todo fosse José Vieira Xavier, separado o Xavier para o trato e o José Vieira para as situações de responsabilidade.


9. Os concursos

A quinta-feira e o domingo eram dias de levantar meia hora mais tarde. Na quinta, em vez das aulas da manhã, havia uma prova escrita chamada concurso, feita entre nove e onze horas, alternando as matérias, cada semana, durante o ano inteiro.

A escala dos concursos do mês era afixada com antecedência, de sorte que sabia cada um, de antemão, quais os dias de português, latim, história, matemática, geografia, etc.

As provas realizavam-se no salão geral, sob a vigilância de um padre, cada turma com seu assunto. Enquanto o primeiro ano fazia, por exemplo, aritmética, fazia português o segundo, latim o terceiro, francês o quarto, história o quinto e grego o sexto.

Descia cada turma à sala de aula, onde deixava os livros e recebia as questões do professor. Desciam ao mesmo tempo, em forma, em silêncio, voltando por turmas despachadas, buscando cada aluno seu lugar no salão. Regia o ato a mais perfeita lisura. Ninguém colava. Se o silêncio do estudo era, normalmente, absoluto, o da hora do concurso era absolutíssimo.

A distribuição dos lugares era naturalmente estratégica, de sorte que um aluno, fazendo prova de português, via, a seu lado, quem fazia matemática e, na sua frente, quem fazia história.

A dureza da prova estava em proporção com a matéria, o professor dela e a sorte do aluno com as questões.

Quem acabava sua prova ia descendo para o pátio de baixo. As onze horas iriam para o banho, no rio ou no Tanquinho. Ao meio-dia estariam jantando.

No refeitório, terminada a refeição, o padre Superior, antes do martirológio – que era a última parte diária da leitura de meio-dia – o padre lia os resultados dos concursos feitos na semana anterior. Era coisa de muito interesse, envaidecendo os que tiravam primeiros lugares e enchendo de humildade os que ficavam para os últimos.

Havia alunos terríveis, como o cearense Otávio Lopes, o Magrelo, que tirava o primeiro lugar em todas as matérias. O comum, porém, era a distribuição emulativa da primazia.

A Xavier, nunca mais lhe saiu do ouvido o ritmo e a voz do padre Superior, quando anunciava a sua turma, nos dois últimos anos.

Se era latim: 1º. Júlio, 2º. Vieira, 3º. Tenan, 4º. ...

Se era português: 1º. Vieira, 2º. Júlio, 3º. Rabelo, 4º. ...

Se era matemática: 1º. Tenan, 2º. Vieira, 3º. Rabelo, 4º. ..

Do quarto ano em diante, a disputa era monótona, porque os valores se definiam, entre os poucos alunos, por uma escala de gradação quase mensurável a compasso. Bastava anunciar a matéria para ficar mais ou menos adivinhada a classificação.

Ao tempo em que Xavier fazia o primeiro ano, o sexto ano era de quatro alunos. A ordem comum dos concursos era: 1º. Pélissié, 2º. Barros, 3º. Clóvis, 4º. Casimiro. Ou então, mais raramente: 1º. Barros, 2º. Pélissié, 3º. Clóvis, 4º. Casimiro.

Aquela prova escrita semanal de quinta-feira era um bom instrumento pedagógico. Forçava a revisão periódica das matérias, retificando e fixando conhecimentos. Equilibrava e distribuía o esforço do estudo, que seria outro e maior, para os exames.

No fim do ano, havia concessão de prêmios e de accessits aos mais bem colocados em cada disciplina.


1O. A cola

A mais penosa decepção que teve Xavier, quando estudante do mundo, foi a que lhe causou o ambiente escolar minado pelo desmazelo, pela papeata, pelo cinismo, pela cola.

Partira de uma cidade do interior, inexperiente e ansiado, rumo a a um ginásio oficial, onde ia fazer exames parcelados.

Havia dois anos que terminara o Caraça. Requerera quatro línguas. Inocentíssimo ainda quanto à relatividade da lei, que o nosso trópico amolece e que a nossa manha achincalha, ficara cheio de medos, ao tomar o programa do Colégio de Pedro II, referto de itens abrangentes, metódicos, profundos, solenes, técnicos.

Desfolhou a sua vaidade caracense aos pés daquela síntese oficial de exigências. E estudou com afinco.

Esperava encontrar, nas centenas de concorrentes que viu, a mesma sisudez e preocupação que levava. Esperava encontrar uma rapaziada grávida de conhecimentos armazenados em fecunda preparação!

O que viu, porém, foi um bando de indivíduos soltos e alegres, despreocupados e barulhentos, risonhos e divertidos, como numa colônia de veraneio, entregues noite e dia aos cafés, às praças, ao divertimento.

Xavier sentiu-se humilhado. Não fizera ele um bom curso e não temia, entretanto, aqueles parcelados? Aquela mocidade devia ser genial para que assim procedesse.

Ora, toda a verdade lhe começou a aparecer, no dia da primeira prova escrita. Para vergonha, horror e acabrunhamento dele.

Encontrou-se diante da mais grosseira e feia comédia que nunca vira! Os super-moços que imaginara, não passavam de pobres diabos analfabetos, deseducados e jejunos, primários e bons, a quem o exame não pedia mais trabalhos do que a cola da prova e a cavação da nota junto aos examinadores.

Xavier acabou duvidando de si, porque não podia compreender. Só o tempo, com sua experiência, lhe fez voltar o conceito à posição inicial do bom senso, quando pôde avaliar o estado em que vive o ensino brasileiro – estado de deliqüescência, dissolvência, putrefação, desmantelo, sornez, moleza, infecção, parasitismo, vergonha, ignomínia.... um inteiro dicionário analógico!

Estava rendido e atordoado. Mas o tempo o acabou apassivando, na repugnância, como quem se ajeita ao que lhe parece não ter cura.

Antes disso, entretanto, a sua vocação para a utopia, que nele contrapesava à lei da conformidade, levou Xavier, quando aluno da Escola de Direito, a redigir e assinar, com alguns companheiros de um Centro de Estudos que tinham, um caloroso apelo contra a cola, endereçado ao Conselho Nacional de Educação.

O Conselho, metido em sua toga laticlava e calçado em seus enfáticos coturnos pedagógicos, discutiu senatorialmente a representação, concluindo, num sorriso genial, que os moços dela, ainda eram do tempo em que se acreditava que exame era critério de avaliar conhecimentos!

Houve réplica apaixonada do Centro, na qual se lembrava que o sol brilhava muito em Belo Horizonte, havendo aqui uma Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico – na ocasião a única do Brasil – ilustrada nas mais avançadas teorias, honrada pelo ensino e presença de professores do Instituto J. J. Rousseau, de Genebra, como Claparede e Helene Antipoff, iluminada nas lições de ex-alunos da Sorbonne, de Paris, e do Teacher's College, da Columbia University.

A réplica era desabafo. A lei da conformidade já havia explicado a Xavier que o clima aqui é muito quente, que não valia a pena fazer força, que era sempre mais suave ‘cavar' alguma coisa e beber um refresco, entre amigos, ouvindo anedotas.

Tudo que sentia era um resíduo bravo da formação caracense e daquela inteireza absoluta com que faziam lá as provas.

O melhor exemplo da intolerância à cola, no tempo de Xavier, fora o caso do espanhol Garcia. Era espanhol, mas a família morava no Rio. E estava ele no terceiro ano.

Aluno comum, suas notas de argüição, inclusive História Universal, assim o mostravam, colocando-o mais para o fim do que para o começo. Entretanto, em dois concursos de História, seguidamente, Garcia tirou o primeiro lugar. Vigiaram-no, desconfiadamente, no terceiro concurso. Foi apanhado. Argüido, confessou.

Era numa quinta-feira, antes do meio-dia. Não houve barulho, não houve escândalo. Somente pôde notar-se que o Espanhol desaparecera, durante o resto do dia.

À noite, à hora costumada para avisos, o padre Superior comunicou a todos que Garcia fora expulso, por ter colado a prova de História Universal.


11. Os exames

A indiferença e pândega em que Xavier encontrou os exames, no mundo, fazia recordar os exames do Caraça, por contraste.

Em janeiro havia os exames do meio do ano letivo; em julho, os do fim. Um mês antes, fervia a comunidade dos alunos, com a grave preocupação. O lugar do livro era no salão de estudos ou na sala de aula. No tempo daquele mês, porém, a disciplina permitia que se andasse com livros pelos recreios e passeios.

Do quarto ano em diante, o exame tinha um sentido profundo. Os cuidados que dava, metiam o aluno pelos cantos do pátio, da Varginha de quarta-feira ou dos passeios de domingo, entregue ao que mais o apertava.

Esfriavam os folguedos. O escrúpulo preparatório dos cavadores acabava exercendo ação mimizante, alastrando geralmente a febre de estudar.

Nada se comparava ao exame oral, na importância e no efeito. Como sabia tremer um aluno, diante da banca, ao persignar-se, tirar o ponto da sorte e esperar o anúncio da matéria pelo examinador! Mestre havia que, detendo a nota mensal no grau nove, guardava o grau dez só para o exame, como a vincar, também nisso, o valor especialíssimo dele. As condições pessoais do examinador faziam variar a força da intensidade, na excitação do examinando.

O professor de grego, por exemplo, no quinto ano de Xavier, introduziu na cerimônia uma nota maliciosa e gaiata, somente pour épater, dizia ele.

O exame de grego era em junta com o de português. E o professor de português, que sabia incutir a paixão da matéria, gostava, mesmo no quinto ano, que o examinando recitasse, limpamente, corretamente, o seu ponto de estilística ou de literatura. Só depois argüia.

A cena impressionava pela sua perfeição.

A fim de não deixar por menos, o professor de grego fez, naquele ano, decorar, previamente, a cada aluno, uma lírica anacreôntica.

Do português passava o examinando ao grego. Sorteado o ponto, lido e traduzido o trecho, atendida a gramática, o professor, enfaticamente, consultando o papel e relembrando o número sorteado, declarava que recitasse a ode tal. Era a combinada. E o moço repetia, gostosamente, o Anacreonte único que sabia, como se fora qualquer entre muitos, ao acaso da urna.

Nas recitações brilhantes, o professor de grego olhava significativamente para o professor de português.

Entretanto, essa comediazinha não corrompia nem o exame nem a nota. E não aliviava ninguém do comum e santo respeito que tinham todos pelo mais impressionante ato da vida estudantil.


12. Professores

A formação do Caraça era profundamente francesa. No esplendor dos tempos colegiais teve a casa vários professores daquela nacionalidade. Com a guerra de 1914, começaram a desaparecer. Mas todos os professores do tempo de Xavier, ou eram europeus formados em França, ou brasileiros que também tinham ido lá, concluir os estudos e a carreira eclesiástica.

Deixou cada um, no espírito do jovem educando, a sua lembrança e a sua impressão. Seria longo, e perigoso para o espírito de justiça, retraçar sinais de cada um. Alguns, porém, lhe deixaram recordações mais fortes, boas e más.

O professor de português influiu profundamente na formação de Xavier. Dele se falará quando se tratar da formação literária.

Um dos seus mestres de latim, o do terceiro ano, era um espanhol que marcava lições modestas: uns cinco versos de Ovídio e pouco mais de uma página de sintaxe, na gramática de Sousa.

Não se assentava, durante a aula. Explicava ou argüia passeando, para lá e para cá, o tempo todo, como fera em sua jaula, acompanhando sem livro a lição que o interrogado fazia, no Ovídio, com a ordem direta e a tradução. Se este errava, o padre dizia não. Se tornava a errar, em segunda investida, dizia não e emendava pelo certo. No fim do mês, vinha a nota, rasteira e surpreendente.

Narigudo, fanhoso, metódico, era suavemente mau, aquele professor. Por causa dele, Xavier tomou antipatia à gramática de Joaquim Alves de Sousa. E teve, bem mais tarde, um gosto de vingança póstuma, quando leu que mestre Epifânio Dias, autoridade admitida, havia descomposto, ousada e bravamente, o latim do homenzinho, numa obra intitulada O latim do sr. Alves de Sousa.

Entretanto, se era mau, era também macio, o professor de latim. O terror do colégio era o professor de matemática, um holandês sangüíneo e gordo, luzidio e bem penteado, que os alunos, entrando na sala, já encontravam na sua cátedra, montanha olímpica de raios que eram um alimento de pavor e uma força de fulminação.

Possuía ele uma abundante capacidade de injuriar, xingando de burro quem não podia com um problema. Punha de joelhos, na aula, e dava cópias, ao aluno que não soubesse ir ao fim de um exercício. Não tolerava nenhuma fraqueza ou dificuldade.

Chamado o aluno, ditava a questão e seguia, calado, as operações. Não auxiliava, não insinuava, não facilitava.

Ia andando o Newtonzinho, apreensivo e cuidado, no silêncio cheio do ruído do giz.

De repente, ouvia um não, que o fazia tremer. Tinha errado. Arripiava caminho, tentava outra via, cortada por outro não mais tonalizado que o primeiro. Interrompia-lhe este, o trânsito cerebral. Um pavor incômodo aquecia o ambiente. Então o padre, numa voz de escalas enfáticas, uma voz abalroada e dramática, uma voz guturalizada e germânica, dizia, escandindo sílabas: – Oh! fique aqui de joelhos!

Mas isso era monstruoso! – estará pensando algum leitor.

Xavier achava duro de suportar, aquilo, mas buscava lembrar-se de que estava numa casa de formação religiosa e de que a humilhação é mérito, na penitência cristã.


13. A lição de Cristo

Ensinou Cristo, no Evangelho, que, a quem nos esbofeteasse uma face, devíamos voltar a outra, oferecida ao acabamento da empresa.

É a doutrina. Mas um bispo francês do século dezoito, malicioso cortesão, perguntado que faria na situação prevista pelo Evangelho, respondeu : – Sei o que deveria fazer, mas não sei o que faria.

A réplica, espirituosa, é sábia e cheia daquela prudência de fraquezas, dos que se conhecem.

Xavier devia ser receptivo. Indignava-se, entretanto, com os processos do professor de matemática.

Aquartelava em si uma das mais insinuantes misérias que nos assaltam no dever moral, que é repugnar o homem seu próximo, porque não cumpriu o que lhe cumpria.

Como cristão e padre, o professor de matemática devia ser manso e persuasivo, influindo caridade, pelo exemplo, na alma dos alunos.

Mas a obrigação do aluno, candidato da perfeição cristã, era aceitar mais contestações ainda.

Se o professor feria a perfeição, primeiro, Xavier a feria depois, com as censuras que fazia.

Menos perfeição com menos perfeição dá mais imperfeição.

É aplicar mal a teoria jurídica das compensações, transferi-la para o campo moral. Se Pedro injuria a Paulo e Paulo a Pedro, igualmente, o juiz dirá que as injúrias se compensaram e nada há que reparar. Moralmente, porém, cristãmente, porém, o que há são duas injúrias que reparar.

Manda a ordem cristã odiar o pecado e amar o pecador. É muito humano, porém, misturar as coisas e desgostar do pecador, por causa do pecado.

Não agrada à mesquinhez – que está no coração qual uma espécie de lei da gravidade – não lhe agrada que o candidato a santo lá se empenhe na virtude, enquanto o seu próximo está no bem-bom de seus maus pendores. E ainda perdoar-lhes!

A tolerância é uma virtude difícil ao cristão esforçado. Entretanto, poderá não o ser para homem relaxado, a quem é mais possível a folga de juízo, conforme a mesma lei das compensações, ou melhor, da creditação mútua. “Tolero-te, amigo, as misérias, para que me toleres as minhas.” É a filosofia prática do ‘macaco, olha teu rabo'.

Vem dela o perdão oceânico, a indulgência plenária, o olho vesgo e sonolento que, num mundo em ocaso, as sociedades deliqüescentes costumam pôr às mais feias ordinarices humanas.

É a tolerância-fraqueza, a tolerância-conivência.

A tolerância cristã é a tolerância de virtude que aceita o pecador e não o seu pecado.

O professor de grego de Xavier servia de prova de que na casa de Deus há várias moradas. Residia ele na desta virtude tão difícil ao virtuoso.

Tinha a feição do acabado repúblico, não no sentido moraisiano de zelador do bem público, mas no sentido de que tinha molde para viver numa república, fazendo o seu e respeitando, no vizinho, o seu - fazer.

Ensinava a língua de Demóstenes euforicamente, sempre lúdico, ou por intuição, ou por experiência. Tinha a competência de quem estudara em Paris. Tudo sem trovoadas nem decretos, nem cominações olímpicas.

Alguns alunos, porém, mais acostumados ao espírito de rigor, àquela seriedade física, na vida cristã, que é um dos mais sérios óbices à verdadeira alegria – interpretavam licenciosamente o regime do helenista.

Entre eles, Xavier. Mais de uma vez cometeu a indelicadeza de se pôr a ler outra coisa, durante a aula. Era dos sisudos e queria modos rituais.

O professor, desentendido e inofenso, mas avisado e discreto, argüia Xavier, propositadamente, não em jeito de surpreender o distraído, aquele jeito policial da censura, mas no tom simples e inagressivo de quem estava em aula com seu aluno.

Xavier desaprovava o professor, mas o professor não era capaz de desaprovar a Xavier. Parece que sabia estar semeando, na ingenuidade verde e presunçosa, o que o tempo havia de florescer em compreensão reconhecida.


14. As notas

A nota mensal construía-se pela argüição em aula e pela avaliação dos exercícios de caderno.

Do terceiro ano em diante, reduzidas as turmas a vinte, quinze, dez, a cinco alunos, a chamada à lição podia multiplicar-se folgadamente.

Os apertos da nota corriam segundo o câmbio, na sistemática de cada professor.

Do quarto ano em diante, era desaire tirar nota inferior a seis. Toda a seleção estava feita e os poucos moços que chegavam àquela série podiam apontar-se como verdadeiros heróis de Gedeão.

O professor de grego, por exemplo, não sabendo censurar nem cominar, ante o risco de ver sua disciplina menoscabada, buscava coerção num original processo de apertar o aluno: dava notas negativas. Com dois ou três graus abaixo de zero, num exercício, era a vítima obrigada a um cuidado total dos exercícios seguintes e a pedir, para si, argüições em aula até reconquistar o equilíbrio desejado.

A publicação das notas tinha, mensalmente, o seu aparato solene. Chegado o dia, encontravam os alunos, ao entrarem para o estudo da noite, um semicírculo de cadeiras em forma com a mesa frontal do salão.

O estudo acabava meia-hora mais cedo, guardando-se livros e cadernos um minuto antes do soar das sete. E um ou dois minutos depois, solenemente, ao levantar de toda a comunidade, vinham surgindo o padre Superior e todos os professores, com a sua compostura eclesiástica, adiantando-se até à frente do salão, postando-se cada um junto à sua cadeira, segundo a hierarquia vocacional, ficando à mesa, num estrado, grave e imponente, o Superior.

Assentava-se ele e, em sucessão, padres e alunos, com aquele sabido ritmo e repercussão de um castelo de cartas assopradas.

Aquietava-se o ruído, silenciando bancos arrastados e tosses concomitantes. É fenômeno de notar, numa comunidade cheia de grandes silêncios, que o tossir também prefere esperar sua oportunidade, como a que lhe dá uma hora geral de sentar ou de levantar.

O padre Superior tirava, pelo salão, um olhar circunspectivo, que acabava no caderno aberto, e começava:

– Sexto ano: Carlos Pélissié!

Erguia-se, na retaquarda, última carteira, um moço alto e magro, vermelho e composto, atrás de uns óculos de hastes douradas. Era francês, da Martinica.

Escutava o aluno de pé, e o Superior lia as notas.

Se tirava, em tudo, dez e nove, a comunidade aplicava-lhe uma salva de palmas. Era coisa difícil. Mas, durante dois anos, Xavier pôde ver o cearense Otávio Lopes, o Magrelo, obter, mês por mês, o consagrado triunfo. E mais não os teve porque não continuou, ao fim do quarto ano.

Durante o primeiro ano, as notas de Xavier oscilavam, dançando entre o nove e o cinco. Houve um mês, no segundo ano, em que elas fizeram rir a comunidade e provocaram um gracejo do Superior.

Este chamou: – José Vieira!

Xavier pôs-se de pé e escutou: – Religião 8, latim 8, português 8, francês 8, álgebra 8, geometria 8, história 8, procedimento 8, aplicação 8.

Todos sorriam. Xavier estava encabulado. O Superior perguntou-lhe: – Qual é o seu número?

Xavier respondeu: – 54.

O Superior disse: – Vamos mudá-lo para 88.


15. Pedagogias

Rezar, dormir e comer, estudar e brincar, ter aula e ter recreio, estar na forma e andar na forma – eis o internato.

Xavier era de cera, quando foi completar doze anos lá. Era menino de roça, inocente e ingênuo, receptivo e macio, todo capaz e maleável para aquela vida artificial. Artificial, mas não tanto quanto a vida artificial também, e manhosa, do século ou do mundo.

A pedagogia moderna recomenda que a criança tenha, na escola, o seu clima, um pequeno mundo para sua personalidade respeitável. Lá dentro desenvolverá seu eu, com a força dos seus impulsos, que as condições do meio, bem estabelecidas, irão dirigindo e corrigindo, até que saia uma boa unidade social, da feliz conjunção entre o homenzinho e a mesologia: o homenzinho que se cresce e a mesologia que se lhe dá.

Ia a dizer um bom sujeito, mas recuei ante a enérgica passividade do termo, cuidando de teoria tão ativa como a da moderna escola, onde a criança há de fazer e não ser feita. Aliás, ainda houve abuso, com a palavra homenzinho: a criança é criança, não é homenzinho.

Ninguém pode negar a simpatia e bom senso de tal pedagogia, toda aceitável até o ponto da discordância lírica entre a escola rousseauniana e a maquiavélica.

Esta discordância lírica está em que a escola maquiavélica tem, na base, o pressuposto de que o homem é naturalmente mau. E a escola rousseauniana a do homem naturalmente bom.

Ora, a pedagogia moderna, partindo de Rousseau, quer o menino ativo, dentro dos seus impulsos, apenas canalizados por um meio bem fornecido.

Ela não forma, conforma, que a forma são as tendências e forças naturais do indivíduo, senhor de sua respeitável enteléquia.

Ora, a pedagogia cristã é maquiavélica. Admite o mal como coisa ínsita no homem, clama e reclama contra ele, não cessa, não dá quartel, quer corrigi-lo, determinando bons hábitos, pela repetição passiva, livre a alma de os animar sempre, com sua participação ativa.

O regime do Caraça tinha explicação no seu objetivo – que era paparar para a vida monástica, segregada e especial, feita de elementos que o meio secular desconhece.

Criava, para os meninos, pedagogicamente, uma atmosfera construída com aquelas substâncias em que se iriam integrar, uma vez homens feitos.

Era um regime vincado de rotina, com inoculações de automatismo e exercitação diária do estar consigo mesmo. A vida monástica é uma vida interior, condicionada por um mínimo de vida exterior. O automatismo e o ensimesmismo visam à libertação do espírito, com sua primazia, num clima de pensamento, meditação e ascese mística.

Aliás, é o clima do cientista. O sábio costuma ser um produto monástico do século. Clima tão natural à ciência que é comum e diário o claustro fazer sábios, ao fazer monges.

Xavier não sentiu o artificialismo. Estava como peixe n'água. E não encontrou, em toda a vida, outra quadra mais feliz, mais tomada de plenitude.

Com os olhos da distância e da imaginação é fácil condenar.

Mete-se o homem feito no complexo de sua vaidade e egoísmo, pressente, em confuso, os resultados de perder sua liberdadezinha, seu gozozinho, seu lugarzinho na vida, e imagina como seria terrível um encarceramento daqueles, condimentado de passividades e monasticismos.

No seu parcialismo enfatuado, tingido de pessoalidade até à medula, esfria e treme só com a hipótese do que teria sido, em chatice e mornez, passar, internado assim, a primeira adolescência.

Ele, que a passou na liberdade desorientada e licenciosa dos convívios soltos, das iniciações equívocas, das inconseqüéncias permitidas, não pode compreender que seja possível haver felicidade dentro de uma vida condicionada, dirigida, impedida, como a de um seminário.

Quanto engano! Internem um Xavier no seu Caraça e verão como será feliz!

Dirão que era um menino bobo, inexperiente, sem referências para a vida e, ainda por cima, carregado de conformidade.

– E então? Acaso vedou alguém o ser feliz a quem é inocente? Ninguém obrigava ninguém a ser feliz, numa casa de portas abertas mais fáceis de transpor, saindo, do que entrando.

É vezo e miséria de nosso imperialismo pessoal negar aos outros condições que não compreendemos para nós.


16. Automatismos

A vida de Xavier não era um paraíso, embora a saudade e a inveja dela, mais tarde, a fizessem classificar de paradisíaca. A formação cristã, que buscava, jamais lhe havia programado vida de paraíso, na terra.

Mas ele experimentou a sensação do paraíso, anos a fio, nos inocentes prazeres que encontrava e no esforço de conformidade que o ideal lhe pedia.

A conformidade às exigências de um ideal cria a paz da consciência. E a paz da consciência é a mais pura e substancial felicidade, na vida.

O que sofreu e sentiu proveio do remorso - esta objetivação de consciência do homem que pecou, do homem que diminuiu ou fintou sua prestação de dever.

O que sofreu e sentiu proveio da contigência - esta relatividade das forças que deviam proporcionar-se, diariamente, ao ideal, mas que falham a cada hora e achatam o homem com a mesquinha sensação de sua miséria.

Até essa miséria, entretanto, podia explorar-se como elemento de consolo, como contribuição de felicidade.

Há, na vida ascética, uma instituição química de comutações, que transforma, cambialmente, em moeda de méritos, no banco da humildade cristã, os deméritos da falência humana.

Isto permite um sistema de economia residual, dos salvados da miséria, remédio às aflições do imperfeito, que a mística apurada e fina pode explorar, descontando em taxas de humildade as tibiezas do viver.

A lei do alfaiate que risca largo para cortar estreito é uma lei universal. É a lei da relatividade, regendo a passagem do Sonho à Ação, compromisso entre a Execução e o Plano.

O que Xavier traçava, para o dia, na oração da manhã, lamentava, em desfalques, à noite, no exame de consciência.

O que prometia a Deus, na contrição hebdomadária da confissão, cumpria a menos ou descumpria, no decurso da semana.

O impulso de perfeição contrariava-se na preguiça da máquina, escasseando o rendimento das atividades diárias, do levantar ao deitar.

O levantar era às cinco horas, esforço duro, principalmente nos dias frios, que são especialmente frios, no Caraça.

Seis anos de madrugar, somados ano a ano, mês a mês e dia a dia, representam um trabalho que só entende e avalia quem o teve.

Mas quem fora capaz de praticar madrugação diária, seis anos a fio, sempre de alma igual?

Pode imaginar-se quanto oscilaria Xavier, em tantíssimos dias, na dificuldade da cama ao lavatório, do lavatório ao vestir-se, do vestir-se ao recompor a cama, daí à espera, da espera à descida, em forma, para a oração, daí à missa, da missa ao estudo, do estudo ao refeitório...

A maior paciência era a das esperas, comandadas a sinais.

Xavier levanta-se, apronta-se e espera a hora de descer; desce e espera o acomodar de todos para a oração; depois, espera sua vez na forma que desce à missa; na capela, de pé, espera que se arranjem todos para o sinal de ajoelhar; no movimento de sair, espera que chegue o seu turno; no estudo, espera o sinal de assentar; no refeitório, espera o de assentar e o de começar.

A comunidade é uma cobra que serpeia por corredores e escadas, do dormitório ao estudo, do estudo à capela, da capela ao estudo, do estudo ao refeitório, do refeitório ao recreio, do recreio ao estudo, do estudo à aula, da aula ao estudo... sempre em forma, sempre comandada por sinais.

- Santo Deus, parecia convento ou casa de correção!

- Parecia convento, não, leitor amigo: era convento!

- Eu não suportaria!

Mas Xavier suportava. Ou melhor, já não suportava, porque vivia esta vida, animando-a com a alma de que o ia informando a educação, em que lhe crescia, progressiva, a liberdade do espírito e da inteligência, em proporção com o automatismo que desenvencilha a reflexão, a vida interior.

Dormia, rezava, estudava, comia, brincava, sofria, gozava, pacientava, impacientava, cismava, concentrava, agora bem, agora mal, hoje triste, amanhã alegre, já eufórico, já desanimado... e, no balanço final, a vida era boa.

Crescia nela e tinha jeito dentro dela.


17. A capela

Uma exposição por menor dos prazeres da piedade, da união com Deus, forneceria matéria de arrazoados aos convencidos exploradores da alma, que têm criado teorias psicologicas da religiosidade adolescente.

Quantas e quantas vezes experimentou Xavier a felicidade perfeita, na capela, diante de Deus.

Era uma capela gótica, muito pura e muito simples de linhas, com seus vitrais desenhados e coloridos, seus altares de mármore, suas colunas como feixes de estípites a desabrochar, no alto, em palmas simetricamente abertas, sustentando a abóbada.

E muito geral ainda, no povo brasileiro, o domínio de uma religião barroca, cheia de crendice, agravada de ignorâncias mas indulgenciada pela simplicidade da alma.

Com esta crença mistura-se o mau gosto rococó do templo e do culto, na sua liturgia popular e na sua música sem arte.

Produz o todo um círculo vicioso em que a mediocridade artística alimenta mal a fé e em que a crença eivada amesquinha a arte religiosa.

A capela do Caraça, na sua pureza estética e no seu gosto, era um fecundo elemento de devoção.

Sua beleza enchia-se de mais beleza, pela correção litúrgica das cerimônias, somada ao valor canônico e artístico do canto sacro.

Mais tarde, a experiência mostrou a Xavier que o coro estava longe de ser digno da Capela Sistina. Entretanto, naquele tempo, mesmo com as imporfeições que Xavier conhecia menos, havia enlevo de plenitude nas harmonias que ritmavam e alevantavam, até quase ao êxtase, o sabor das festas de igreja, como as da Semana Santa, do Natal, São Vicente, etc.

O canonismo era bastante estrito, banidas a vulgaridade ou a impropriedade de tantas músicas que vogam, no culto brasileiro, como sacras.

Ao canto gregorlano, fundamental, entremeava-se a música de Palestrina, Viadana, Vitória, Bach, e as melodias de um bem cuidado Cantuale.

Os números musicais de harmônio incluíam arranjos de Bach, Beethoven, Mozart, Haydn, Haendel, César Franck, Saint-Saëns, Gounod...

Ajunte-se o esmero ritual dos ofícios, de que participava toda a comunidade, cada um com seu Liber usualis.

Havia muito elemento sensório para que a vida de integração em Deus fosse um prazer místico.


18. As festas

As festas eram oásis na mesmice da vida. Começam no antegosto e fruição do seu avizinhar.

O preparatório vesperal tinha um sabor que o desejo de aproveitar intensificava.

Começava na capela, após o levantar satisfeito com a meia hora de sono prorrogado. A missa solene, caprichadamentc litúrgica, era celebrada a três padres, com mestre de cerimônias, acólitos, turiferário, ceroferários, canto especial.

Os recreios enchiam o tempo até o meio-dia, hora esperada por todos, a hora do jantar melhorado, enriquecido a carne de porco, tutu de feijão e vinho, o bom vinho do irmão Chico, generosamente batizado. Mas parece que nem o batismo despaganizava direito o licor pois ele escaldava a cabeça de muitos. Talvez fosse mais por sugestão do que por embriaguez.

O Deo gratias - permissão de conversar à mesa - explodia esfuziante, após a leitura ritual dos versículos da Bíblia, em latim.

Afora circunstâncias festivas, havia Deo gratias comum no jantar de quarta-feira e no domingo.

O passeio pomeridiano era mais animado porque, na volta, à merenda, em lugar do pão, serviam brocojó, uma espécie de rosca, variante querida, principalmente porque era variante.

À noite, ou havia sessão festiva no salão-do-teatro, ou audição musical da ‘furiosa', banda instrumental do alunos.

A ‘furiosa' contribuiu muito para a formação musical de Xavier. Sua preparação teórica abrangia apenas os elementos da divina arte. Mas a gosto formou-se na aristocracia do canto sacro, das peças de execução instrumental e no estudo literário, que a cultura desenvolvia, ampliando informações a respeito de Mozart, de Beethoven, Haydn, Haendel, Schubert, Schumann, Wagner, Verdi, Rossini, Bellini, Gounod, Berlioz, etc., cujos trechos, no salão de música, eram o contrabalanço profano de Palestrina, Vitória, Viadana, Bach, Perosi.

A execução era canhestra e miserável; mas a imaginação criava o clima dos arroubos.

Os ensaios eram diários, durante o ano. Durante as férias, os apaixonados aproveitavam qualquer tempo livre.

Nos últimos anos, Xavier encontrou horas inolvidáveis do prazer musical, improvisando, em cooperação com o Tenan, o Jorge e o Bessa, um singular quarteto.

Como é fácil de criar paraíso na alma ingênua dos adolescentes!

Com que devoção ia buscar-se, nas lições da história da música e da literatura, a notícia da arte que, abaixo de Deus, recebia o mais fervoroso culto daquela gente!

Do Caraça lhe ficou, a Xavier, um definitivo preconceito contra a música superficial ou plebéia e o profundo embevecimento que lhe advinha de uma sinfonia de Beethoven ou Mozart, uma fuga de Bach ou um noturno de Chopin.


19. A formação literária

Xavier teve, no professor de português, um mestre que sabia infundir o gosto da língua.

Um bom professor - e o mesmo professor por cinco anos - é um achado. É desconcerto costumeiro do nosso regime secundário mudar o aluno de mestre, ao mudar de ano.

Padre Cruz acompanhou Xavier do segundo ao último ano. Mas Xavier não pôde compreender o segredo de quem lhe inspirou a paixão literária.

O segundo ano era cheio de lexiologia e análise léxica, travada de método e monotonia. Mas havia as redações, as poesias que decorar e as descrições de Eça de Queiroz, como exercício de ditado.

O terceiro ano era consagrado à sintaxe, na gramática de João Ribeiro, e à análise sintática, pelo método complexo de Carlos Góis, numa sistematização áspera e falida, que Xavier depois condenou, mas que o entusiasmava, naquele tempo.

O quarto ano representava o ponto alto do programa, passado a estudar os Lusíadas com a poesia épica, o Renascimento, a história de Portugal e os descobrimentos. Aperfeiçoava-se o estudo gramatical pela análise de um canto do poema que, no quarto ano de Xavier, foi o canto quinto, esmiuçado estância a estância, durante o ano inteiro.

Os anos quinto e sexto serviam ao estudo da estilística, da literatura brasileira e portuguesa.

Padre Cruz não punia pelos clássicos. Percebia a fascinação contemporânea dos realistas.

Dos clássicos, só a instituição nacional chamada Camões. O resto eram relíquias do passado, fontes da vernaculidade, consubstanciais na fundamentação outorgante das normas.

O mesmo Vieira, clássico legível pelo que diz e não só pelo como diz, o mesmo Vieira se arrolava discretamente no indistinto rebanho dos superados, sob uma calorosa encomendação de elogios.

O que valia eram as doces metáforas, as coradas descrições e as cálidas imaginações de Eça de Queiroz, bem como os vôos hugoanos, ribombantes, pomposos, de Guerra Junqueiro.

Numa casa de formação eclesiástica, estranhará o leitor que recebessem tal preferência dois autores assim - dissolvente um, petroleiro o outro, ímpios ambos.

Mas a cotação era estritamente estética, prevenida, escrupulosamente, com toda a assepsia moral e vernácula.

A discrição contra os clássicos era também uma profilaxia ou cuidado, em casa de clérigos. Os veneráveis mestres de idioma são, comumente, eclesiásticos: frei Tomé de Jesus, frei Heitor Pinto, padre Lucena, frei Luís de Sousa, padre Antônio Vieira, padre Manuel Bernardes... e visavam à edificação cristã. Ora, de toda a obra deles, o que vale hoje é o vernáculo, tesouro notável para um adulto não já para um adolescente.

Atribuía-se-lhes virtude soporífera, ação dormideira, e padre Cruz, em vez de defender os ídolos do clã, maliciosamente consentia. Talvez não pagasse bem o trabalho de defender, pois não era possível tirar muita edificação cristã das ingenuidades milagreiras de uma Nova Floresta ou de uma Vida de São Domingos.

Mas Vieira não é assim, relatarão. - Sim, não era, mas Vieira peca, em contrário, por excesso de malícia e argúcia. Em Bernardes, através da ingenuidade milagreira, ressumbra o espírito de devoção, o calor místico. Vieira, cheio de século e política, preocupado de subtileza e manha, é todo intelectualizado, capaz de sacrificar um sentimento a um trocadilho. Seu cultismo e excesso antitético viciaram a futuros pregadores.

Mas discrição não é guerra e havia quem lesse muito os clássicos. Xavier foi um apaixonado de Vieira e lhe ficou devendo, até, o apelido. O cearense Jorge trazia de memória quase todo um Sermão do Mandato.

Lia-se Eça e Junqueira. Mas Xavier desenvolveu adorações pessoais a Garrett, a Herculano, a Castro Alves.

Os anos quinto e sexto foram cheios de entusiasmos eruditos. A redação não se obrigava mais aos temas do professor, escolhendo o seu, cada um, segundo o gosto que tinha. Avisado da escolha, padre Cruz fornecia livros e conselhos.

Eram trabalhos de fôlego, destinados à Academia Nossa Senhora Mãe dos Homens, grêmio seleto, cujos sócios, tirados entre os alunos dos últimos anos, eram admitidos por convite do Padre Cruz, diretor.

Xavier guardava lembrança dos seus discursos acadêmicos, nos dois últimos anos: Camões, Anti-escravismo, A questão religiosa, Origens do brasileiro, A árvore, Os sinos, etc.


2O. Uma reforma conveniente

Convivendo com universitários, mais tarde aluno da faculdade, Xavier meditava muito na diferença de temperaturas e profundidades. Nela, a ignorância comum, a indiferença intelectual, o desperdício do espírito; lá, o fervor da inteligência, o entusiasmo de suas causas, a busca ansiosa.

Quanta paixão, num caracense, pelas belezas de um Vergílio ou um Camões! Quanto ardor no manejo de um tema histórico ou de uma proposição moral! Que deliciamento na leitura de um Garrett, um Eça, um Herculano, um Rui! Que gosto de Chateaubriand, de Corneille, Racine, La Fontaine, Bosssuet!

Desde o terceiro ano, começava o francês a ser a segunda língua dos alunos, sendo em francês os livros científicos e as edições de autores gregos e latinos.

O capítulo ciência era o ponto fraco do currículo. Xavier pôde ver, depois, que era modesto o programa de matemática. Além disto, a física e a química eram matérias reservadas ao Seminário Maior.

Xavier discutia muito, consigo mesmo e com outros, a sabedoria ou deficiência de um sistema que relegava a ciência experimental para o curso superior dos estudos, quando o aluno se achava na posse de sua força intelectual, desenvolvido pela formação humanística, pelos conhecimentos gerais e pelo domínio tranqüilo de três línguas - português, francês e latim.

É a querela dos clássicos e dos científicos.

Infelizmente, a experiência brasileira não permite conclusões. Nosso mal não é um sistema, é a falta dele, porque a insuficiência dissolve tudo e desonestidade ou incompetência achincalha tudo. Até um modesto e vergonhoso programa colonial nos conviria, contanto que nos regesse. Valeria mais do que programas enciclopédicos - e destratados - cujos autores parece terem tido medo de deixar desconfiar que não conheciam esta ou aquela última conquista da ciência, este ou aquele último pormenor de exibição teórica.

A melhor reforma entre nós, era opinião de Xavier, podia ser, por enquanto, a supressão do Ministério da Educação, aberto o ensino livre à livre concorrência privada, impondo cada colégio as suas bondades.

Para fiscalizar, bastava, no Ministério da Justiça, uma Delegacia Nacional de Policiamento.

Em vez de largos portões, cada escola superior teria uma portazinha de entrada, estreita e vigiada.

Todo colégio se obrigaria a grandes avisos murais de que ninguém é obrigado a ser doutor, de que a vida do Brasil repousa na agricultura, no trabalho honrado de seus proletários, dos filhos de suas escolas de artes e ofícios.


21. A bodega dos coatis

A bodega era uma festa de sabor inconfundível.

Bodega, em Moraes, é 'taverna móvel'. No Pequeno Dic. Bras., é 'tasca, taberna, comida grosseira'. Em espanhol, 'bodega' é também 'adega'. Bodega, adega e botica são palavras irmãs e vêm do grego apothéke. No grego, bodega é prima de biblioteca. Mas a palavra degenerou e desceu tanto que nem se poderia dizer que é de origem helênica; quando muito, é de origem grega.

Bodega era um banquete no mato, uma comida no bosque, um piquenique de glutões, grosso e forte, realizado junto de alguma fonte sonora, cheia de água da montanha, aquela água ferruginosa e fria, aperitiva e pura.

O aproximar-se da época de uma bodega produzia uma sensação especial, no ritmado monótono dos dias. O melhor pregoeiro e anunciador do seu advento era o Saúde, também chamado Porco, extraordinária vocação de epicurista, de olhos sumidos na banha, vigiador alerta do calendário festivo, especializado no conhecimento dos dias de vinho e brocojó.

(O Saúde, também chamado Porco, não chegou a concluir o terceiro ano.)

Na véspera do dia pagão, logo de manhãzinha, desde o primeiro estudo, ouvia a gente o esganiçar de algum suíno, sacrificado lá no 'colégio dos postrofes' - nome criado pelo Saúde, criador de línguas.

O ‘colégio dos postrofes', é de ver-se, ficava a um tiro de berro, do salão de estudos.

Àquela hora, os mais ‘santos', até eles, sentiam imaginações. Os menos sérios entreolhavam-se, compreensivamente, e talvez trocas sem sinais, com o risco de levar "ponto" no caderno do regente.

O corpo estava ali, diante do livro, mas o espírito voava para sob as árvores, quiçá da Mistura ou do Campo de Fora ou do Passeio do Padre Superior.

Rompendo a manhã do dia aprazado, havia uma nota extraordinária de vigor no Deo gratias das cinco e meia, respondido ao Benedicamus Domino com que o Padre Santo despertava a rapaziada.

Após a missa e o almoço, sete e meia, cada um se punha em estilo de ir à bodega, tomando este a machadinha, aquele uma foice, outro um facão, este outro brinquedos que levar. Os líricos sobraçavam livros, que o tempo era muito, desde as oito da manhã às quatro da tarde.

Aos mais prestativos o disciplinário (Padre Santo) entregava cestas de pães, de pratos, de garrafas, enfim o trivial para uma bodega.

De todas as bodegas que viu, Xavier guardou marca especial de uma, que depois se chamou ‘Bodega dos coatis', realizada para os lados da Cangerana, à boca da mata, entre o frescor das árvores e a friúra de uma agüinha que ria entre seixos.

Chegados ao local, foi iniciado o arranjo dele. Construíam-se mesas por grupos ou para grupos combinados, em geral segundo a seriação dos alunos. Iam pelo mato a cortar madeira, a colher cipós, a talhar folhas e palmas, a catar parasitas, entre as mui belas que tem o Caraça.

Por volta do meio-dia, prontas as mesas rústicas, começavam a dar horas o relógio do estômago. Havia esmorecimento na algazarra comum. E teimava, em todos, uma insistência de olhares para a senda por onde viriam os carregadores.

Fechava-se na trilha, enfim, um crespusculozinho de prenúncio, e o preto Pais mais o preto Lopes anoiteciam diante, trazendo o caldeirão de tutu em bangobalê, numa vara. Tais quais os exploradores infiéis, carregando um cacho de uvas da terra prometida, numa página da História Sagrada do primeiro ano.

Estrugia, em recepção, uma salva de palmas. Era como se tivessem acabado de ouvir um discurso de Rui.

Seguintes ao Pais e ao Lopes, outros empregados traziam o arroz, a carne de porco e o mais que faltava.

Servidos todos, em muita ordem, como numa cantina de quartel ou de sopa do governo, ia cada um para sua mesa ou seu canto.

Daí a pouco, distribuindo vinho, passava o Jacaré mais o Magrelo. O mosto criava uma renovação de ânimos. Depois, como tudo cansa, ia morrendo a febre, num entorpecimento sabido, numa aquietação de saciedade.

Naquele dia, o Padre Santo, em vez de levar os fortes e voluntários a alguma ascensão de monte, deixou que ficassem todos pela redondeza, que o lugar era divertido.

Calculada a hora, começou o regresso.

Quando passavam por um campo de beija-mão, à orla de uma mata vizinha do colégio, então se deu o acontecido típico do dia.

Beija-mão é arbustozinho de frutinha miúda como chumbo, a qual, quando madura, cai, amarela, na relva subjacente. Comia-se, com muito gosto, pelos alunos.

Mas parece que coati também gosta dela, pois estava no campo um bando de coatis.

Do lado de cima, ficava a mata, uma mata bem doméstica, muito orquestrada de bugios, que o aluno podia ouvir, desde o salão de estudos, pela manhã ou ao pôr-do-sol. Do lado de baixo, o terreno, vítima de erosões, apresentava uma buraqueira irregular, mas toda vegetalizada, como o campo de cima.

Verem-se e alarmarem-se foi tudo um, para meninos e coatis. O aluno que ia do lado direito do regente Fuíca, arremessou, contra o primeiro animalzinho que pôde, uma garrafa vazia. Tinha mira o diabo do garoto, e o coati caiu, atordoado.

Como o cerco se fez contra a mata, a manada correu para o bo queirão seco e mal florido de ervas e arbustos. A matilha centenar deu sobre eles, mais fazendo que se fora de cães.

O primeiro perseguidor que deu espetáculo foi o Erasmo, tam bém chamado Hipopótamo, nome sonoro e gordo, muito conveniente à coisa. Alcançou ele um inimigo, buscando esmagá-lo com seu notável pé. Mas já era na orla da barranca, disfarçada de mato. O coati deu um guincho sarcástico, afundando nas folhas, enquanto o Hipopótamo rolava da perambeira abaixo.

O Luís Amaral, que vinha trazendo um fonógrafo que alegrava a bodega, deixou a máquina de lado e correu à caçada. Pobres coatis!

O João Emery, ou Mingote, conseguindo prender um, estava a ajuntá-lo, bem vivinho, de pés e mãos, quando este lhe juntou, numa das mãos, os dentes inda mais vivos. A mão sangrou e o animal fugiu, pondo o Mingote fora de combate.

Lecionado pelo caso do Mingote, o Perdigão, ou Chimbica, ou Narigudo, assim que atingiu quem perseguia, tomando-o pela felpuda cauda, rodou-o no espaço, em ensaio de funda, para o tontear. Mas veio, enquanto isso, por detrás, o Magrelo, e o deteve em sua órbita, com uma cacetada. O Chimbica exasperou-se; ficou morto o coati; e o Magrelo riu-se.

A luta foi viva e alegre. Foram prostrados sete animais, dois meteram-se em buracos.

Fez-se uma chegada triunfal ao colégio, com som de buzinas, de taquaris rachados e outras improvisações, levando sete heróis sete troféus.

Ao juntar do dia seguinte, a mesa apresentava um prato de que nunca se ouvira falar antes, nos anais caracenses: coati assado. E aquela bodega ficou sendo chamada "a bodega dos coatis". Mérito raro, porque, apesar de ser instituição velhíssima, uma bodega não passava de uma bodega.


22. Eia, migrandum

Assim era o Caraça, para Xavier, cuja alma aderira ao lugar, quase como a um corpo. Entre os êxtases da capela, cheia de enlevos místicos, os entusiasmos da vida intelectual, cheia de descobrimentos, a paixão da música, cheia de sonhos sonoros, e a doce vida dos hábitos comuns, cheia de suficiência, viu ele fugir os últimos anos.

Fora tão melhor que parasse o tempo, como na história da Bela Adormecida.

O sexto ano correu. Cada dia que passava, cada festa, cada passeio, fazia pensar que era o último. Chegaram os exames finais e a festa de São Vicente de Paulo, a maior festa da casa, como fim de ano letivo e como dia do fundador da Congregação da Missão, a Congregação dos padres do Caraça.

Costumavam estar lá, por esta ocasião, parentes de alunos que partiam e amigos que iam assistir às solenidades de 19 de julho. E sempre se convidava a algum pregador sacro, que fizesse o panegírico do santo.

Tinha um brilho e fervor especial a missa solene, em uma capela profusamente ornada e iluminada,, sugerindo imagens de paraíso.

O jantar do meio-dia era outro número especial, marcado pela presença de visitantes a quem se tributava a rara homenagem de comer com a comunidade. Então algum deles, como nos banquetes, fazia um discurso festivo. [p.65]

A sensação de vulto, porém, era à noite, no salão-de-festas, com um programa literário e teatral. Extra-programa, surgia a palavra de algum visitante .

Foi de uma feita destas que certo orador, antes do encerramento, erguendo-se com o dramático e conhecido ‘peço a palavra' das febras oratórias, inutilizou todo um discurso, por desconhecer o termo do vocábulo ‘acéfalo'. Pois não começou ele a oração, condicionada em boa retórica vocal e braçal, dizendo que os acéfalos padres do Caraça eram credores da gratidão de Minas e quiçá do Brasil?

O zelo da propriedade oratória atingia, entre os alunos, um grau sutil, que os fazia intolerantes - mesmo sem razão - para os deslises dos Bossuets ou Demóstenes que lhes fossem orar. Visitante, talvez no meado, perdia pontos bem perdidos, no câmbio de sua cotação, quando infringia a lei da quantidade, num vocábulo, ou a lei da sintaxe, numa construção.

Certa vez, um padre Carvalho, panegirista de São Vicente, ia conquistando a admiração gongórica do auditório, com seu fraseado precioso, tauxiado de vocábulos raros. Ia mesmo empolgando tudo, com um quadro cujas figuras eram o lírio e o charco.

O interessante é que ao charco não lhe chamava charco. Dizia ‘pântano', ‘atascal', ‘marnel', dizia ‘palude', ‘paul', ‘tremedal'... charco não dizia.

A teoria sinonímica e as cores vivas do desenho iam conquistando a opinião ouvinte, até que, a certa altura da peça, trouxe o orador os 'pólipos', mas trazendo-os graves, isto é, pronunciando-lhes o nome com acento na sílaba li, dizendo polipos, como se fora paroxítono. Pormenor insignificante, mas suficiente, nos comentários de muitos, para que se desfavorecesse e desclassificasse ao tribuno.

A digressão excursiva pelas festas de São Vicente está querendo dizer que não e possível informar, em palavras e quadros, tudo que significou, para Xavier, a comemoração final de seu curso.

A sensação de fim metia-lhe no espírito um vago sentimento de vésperas de expulsão do paraíso, embora sem anjos guardiães de espadas flamejantes, como no livro de História Sagrada do primeiro ano.

Foi encarregado do discurso de despedida. Exibiu saudades antecipadas de tudo que fora e era o Caraça. E terminou recitando uns versos latinos, incuriosamento anônimos na cópia que lhe deram, embora sejam versos dignos de Horácio (atribuídos pelo Pe. Sarneel ao Pe. Marinho):

Summa lux venit! Domus alma nobis
Matris est divae quoque deserenda!
Lacrimas nunc quis premet, ore dicens
'Vive valeque?'


Hic mihi primum - referens levabor –
virtus arrisit, gravis et benigna;
parvulum excepit invenemque fovit
tempore multo.

Hic dolori impar domitare corpus
integrum et pectus didici tueri;
improbos coetus fugere atque sancte
degere vitam.

Hic bonas artes didicisse laetor:
Tullium rostris valide tonantem,
maximum vatem fidibus canentem
'arma virumque'.

Quo feror? Nunquam nemorum latebras,
scrupeos montes iterum videbo,
qui, sacris claustris superimminentes,
sidera tangunt?

Non ego posthac sonitu vocabor
aeris ad templum? Neque me sacerdos,
eloquens ludi, fidei magister,
plura docebit?

Eia, migrandum, pia Virgo Mater!
Quis recessurus feret hunc dolorem?
Testor: en semper tua lacta pectus
stringet imago

O biógrafo de Xavier, que agora o está biografando, traduziu ao vernáculo, assim, esses versos:

Chegou o extremo dia de deixar
teu almo domicílio, ó Mãe de Deus.
E como de saudades não chorar,
neste supremo adeus?

Aqui foi que, primeiro - isto consola –
criança, me sorriu logo a virtude;
e me nutriu, benigna, em sua escola,
durante a juventude.

Aqui me foi ensinado o corpo, embora
fraco, domar e o espírito manter;
fugindo o mal, buscando, em cada hora
santamente viver.

Aqui, nas belas artes me ilustrando,
ouvi de Túlio a voz, como um trovão;
e a do poeta máximo, cantando,
'as armas e o varão'.

Não mais verei os sítios nemorosos
e nem os alcantis que em baixo abrangem,
com a sombra, os sacros claustros silenciosos,
e em cima os astros tangem?

Não mais serei ao templo convocado
por este sino, e hei de perder o dote
de tudo quanto ensina o iluminado
e douto sacerdote?

Devo partir, ó doce Virgem pura!
E como é dolorosa esta viagem.
Mas levarei, consolo da amargura,
comigo, a tua imagem!


23. Sidera tangunt

Passada a festa de São Vicente, ficara o dia 20 como preparativo de viagem do dia seguinte. Dois meses depois estaria em Petrópolis, para o noviciado.

Da mesma curva em que, olhando para a frente, José Vieira enxergara o Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, seis anos passados - agora, olhando para trás, também o avistava, mas com que diversos olhos!

Antes, a intuição, a hipótese; agora, a memória substancial de toda uma vida!

Dizia a ode do adeus que os montes tangem os astros, sidera tangunt. Mais realmente que os montes, porém, tangia os astros o modo de viver que entre eles tivera - existência edênica e polposa, gostosa e simples como as frias águas que bebera, calma e forte como as serras que deixava.

Sim, era uma vida que ia àqueles astros cuja perenidade luminosa fica para além das nuvens que empanam a atmosfera e que o vento move ou desfaz, aéreas e inconstantes.

A Xavier, que viessem falar-lhe, depreciativamente, do secular estabelecimento, relembrando o ranço e tirania de outrora!

Houve, sim, aquele rigor - um rigor de outro tipo e outros tempos, que a lenda assoprava e enchia como balão, e que o boato batia e aumentava, como Hércules, com sua clava, na maçã que, crescendo, lhe impediu o caminho.

Era outro o Caraça de Xavier, conformado numa ideal imagem, cujas máculas, desimportantes, o tempo extinguira.

Era diferente do Caraça brutal das histórias de amedrontar, a que se agarram ferozmente inimigos gratuitos e desconhecedores, olhando com olhos de agora, e olhos intolerantes, o que deviam mirar com olhos de antanho, olhos do Brasil do século dezenove.

E que facilidade no veredicto, de sentença emitida sobre a depoimento da lenda, sem nem ouvir o réu!

Segundo Xavier, o Caraça alcançava um objetivo quase perfeito, ao obter, para a vida que exigia, uma adesão progressiva da sensibilidade e da vontade do aluno.

Criava um conjunto feliz que, parece, não foi possível em nenhum outro estabelecimento do Brasil, entrando nisto a tradição do lugar, a sugestão dele, a segregação natural, a constância feliz, paciente, do método formativo, ao superar desajustes o inarmonias, ao excluir escrupulosamente os inadaptados.

A persuasão insinuante, o império da consciência, governava os atos, libertava de reações a ação modeladora do regime.

Não havia castigos físicos. Os avisos semanais do padre disciplinário eram admoestações suficientes. E a nota de procedimento era uma solene advertência.

O molde lutava contra a rebeldia no primeiro, no segundo e até no terceiro ano. Ou vencia a vontade de se ajeitar ou ia embora o díscolo.

A modelagem era paciente e macia, como de oleiro que tem tempo e só trabalha em argila apropriada.

Para os menores, disciplinarmente, havia a punição da cópia ou do cubículo - que era ficar de pé junto a alguma coluna, durante o recreio. A palavra cubículo, na expressão, devia conter um sentido residual, de algum velho castigo mais forte. Lembra a palavra ‘templum', cuja via semântica principiou num quadrado que o áugure riscava no chão, com a vara, para dele observar outro ‘templo', riscado no espaço.

O preceito da cópia era mais como esforço adminicular de aprender do que propriamente castigo.

Pôr de joelhos em aula era uma aplicação pessoalíssima do padre Bernardo Küenen, professor de matemática.

A natural jurisprudência de todos, vendo desproporção entre a facilidade ou injustiça da pena e a inocência do aluno, também logo lhe negava peso e valor, apenas a tolerando cristãmente, em conta de penitência e mérito ante Deus.

Ninguém se revoltava, embora qualquer se queixasse do rigor daquele padre.

Deu-se mesmo um caso escandaloso, grande prova de submissão, com um ótimo colega de quarto ano, que tinha Xavier.

Chamava-se Nascimento. Havendo decidido não continuar os estudos, estava de viagem marcada para o dia seguinte, mas ainda assistia às aulas de véspera, segundo um costume de só se deixar a vida comum no dia de viajar.

Ora, veio a aula de matemática e padre Bernardo chamou à pedra o Nascimento. Este explicou não ter feito o exercício porque já se considerava desobrigado do trivial, pois se retirava no dia seguinte.

Nascimento era um modelo e, depois do Tenan, era o único aluno que jamais ficara de joelhos em aula. Mesmo assim, às vésperas do seu êxodo foram, para ele, vésperas sicilianas.

Trovejando olimpicamente, o padre mandou o aluno ficar de castigo.

Nascimento poderia pedir licença e retirar-se da sala. Assim o desejavam, silenciosamente, os colegas. Mas preferiu cumprir a sentença, passando a aula de joelhos.

Parece que aquilo era um modo seu de protestar e vingar, frisando com a ênfase de submissão a brutalidade da aplicação.

O caso único da sensação disciplinar que houve, no tempo de Xavier, foi o caso do Italiano, o colega e amigo Tenan.

Tenan era genioso e era regente, posto de responsabilidade e larga importância. Estava-se no quinto ano e o Padre Santo escolhia entre os quintoanistas um dos regentes, distribuindo, às vezes, o lugar, propositalmente, a algum aluno ainda seu tanto arestoso, como o desta história.

Era um tempo em que agitava a comunidade uma destas inquietações que vêm como onda ou epidemia, aumentando, na vida diária, episodiozinhos de brincadeira e dissipação.

O Padre Santo havia já calcado na voz das admoestações sabatinas, embora não alterando o seu angustioso método de contar o milagre sem dizer o nome do santo, enumerando faltas sem indicar faltosos. Eram dissipações na forma, no recreio, no refeitório, no estudo. Frisa quando muito, que, por exemplo, no refeitório, a coisa era na mesa dos maiores.

A técnica de atirar carapuças sem endereço era mui sutil. Quem ouvisse, no fundo da consciência, algum murmuriozinho, podia enfiar a carapuça, ficando ao Padre Santo a vantagem de ter atingido um culpado não previsto.

Muita gente, no recreio, após certos avisos, ia a ele com aquelas palavras dos discípulos, quando na ceia, Cristo lhes prenunciou o traidor: - Numquid ego? Serei eu?

O caso deu-se no Passeio da Mistura. A dissipação alegre, o mau espírito havia culminado em brinquedos excessivos, a que Tenan chamara de jogos olímpicos, salientes ele e outro quintoanista, o Diogo.

O Italiano andava em uma crise prestes a resolver-se e de que já dera confiança a Xavier; não tinha vocação e queria ir embora, já o dissera ao Superior, que o aconselhara a meditar mais um pouco. Entretanto, ia ele amostrando alguma aresta de seu temperamento altivo, o que desagradava ao Padre Santo. A investidura de regente, já foi dito, era uma tentativa psicológica de o ajudar a conseguir a conformidade perfeita.

Sendo ele regente, o caso dos jogos olímpicos era grave.

Alunos que estavam juntos ao Padre Santo, no passeio, puderam ouvir seus comentários reprovantes. Mas nada mais fez do que comentar, guardando um sábio respeito à liberdade de fazer, pois cada um devia ser dono de seus atos. A reação viria na censura pública e na nota de procedimento.

À noite, no fim do grande estudo, à hora dos avisos, o Padre Santo apareceu diante do salão. A expectativa era ansiosa.

Principiou por chamar, em alta voz, o aluno Tenan, que se pôs de pé no seu lugar, atrás de Xavier.

Aquilo de nomear um pecador não era comum, no sutil processo do padre disciplinário. Era extraordinário e vincava a seriedade do caso.

Ele expôs, fortemente, as ocorrências da tarde, frisando a responsabilidade, na desordem, de um agente da ordem.

No fim, mandou que Tenan se pusesse de joelhos perante toda a comunidade.

Xavier esfriou, pois sabia quem era o amigo. Hesitando ele, Xavier cochichou-lhe, duas ou três vezes, que obedecesse. Quando se repetiu a ordem, o Italiano, pisando duro - que este era seu modo - caminhou desde a última carteira até a frente do salão. Mas antes que acabasse de ajoelhar, o padre o mandou levantar-se e tornar ao lugar. Ele veio, assentou-se e disse nos ouvidos de Xavier: - Não fico aqui nem mais um dia!

Deixou o Caraça no dia seguinte.

O caso Tenan, tratado em estilo simbolista, foi o único exemplo de castigo físico disciplinar de que se lembrava Xavier em seis anos de internato.

A ação regimental da pedagogia caracense não era física, não comprimia. Era uma ação moral, delicada e paciente, a criar na alma uma fonte de responsabilidade interior. Ponderava-se o aluno, diariamente, na balança da consciência. Tinha os seus deveres alistados num compêndio mental, delicado e miúdo. Transgredindo-lhe um princípio, estava cometendo um pecado de estado, um pecado venial de que se acusava em confissão.

Como o pecado mortal era raro, muito raro, vivia o penitente a repetir semanalmente, aos pés do confessor, que perdera tempo no estudo, que fora tíbio nas orações, que infringira o silêncio, que se dissipara, que faltara à caridade com um seu irmão...

Catalogar três faltas leves que acusar, aliviava o confessado, pois não agradava o exibir santidade, chegando ao padre e dizendo que não tinha coisa de que se penitenciar. [p.72]

A comunhão era diária, sendo isso normal entre os maiores. Ninguém passava dois ou três dias sem o alimento da Eucaristia.

Xavier ouviu, mais tarde, referências à imoralidade de certos internatos e até de seminários.

A maledicência humana é fácil, mas a fraqueza humana também.

Do Caraça, testemunhava ele convictamente.

Fora para lá inocente e de lá saiu puro, cheio de respeito à castidade, que o ensinamento cristão lhe pregou.

A moralidade era absoluta. A linguagem não admitia o grosseiro nem o dúbio. Vigorava a decência nos atos, nos gostos, nas palavras.

Não havia a mínima tolerância para qualquer manifestação desonesta, a qual provocava imediata expulsão do mau elemento.

A batalha da castidade feria-se com armas agudas: a convicção de sua beleza, o horror comum ao pecado, a comunhão diária, em permanente renovação das forças espirituais.

Dirá um esperto que só um tolo poderia submeter-se a tal vida e encontrar um ideal no internato caracense.

Um menino da roça, cheio de conformidade, de ignorância da vida e desconhecimento da civilização, é que podia aceitar aquilo.

Não o negava Xavier. Dizia que os simples e puros, tomados do ideal religioso, estavam feitos para o Caraça. E só para eles servia o Caraça.

Talvez se ponha aos muxoxos algum enfatuado objetador, cheio de lógica e iluminação racional.

É pena! Podia muito bem respeitar o direito da felicidade a quem o busca sem lesão do alheio, ainda que seja a felicidade ingênua de Xavier.


24. Didicisse laetor

Dizia a ode: Didicisse laetor; alegrou-me o aprender. E Xavier muito aprendera. Sobretudo, aprendera a ser feliz.

Era uma felicidade simples que se resumia em quatro comunhões: a comunhão de Deus, a comunhão de Vergílio, a comunhão de Mozart e a comunhão da natureza.

Descubram os sociólogos vida mais bela e os pedagogos métodos mais vivos.

Na comunhão de Deus encontrava Xavier explicação do universo e da vida. [p.73]

A existência tinha termos, agradavelmente definida, oferecendo aos por-quês da alma os porquês da explicação divina.

Colocado como alfa de todo ser e ômega de toda a destinação, era Deus, naquela vida, o sentido da vida.

A razão ficava satisfeita de ver o mundo entre dois marcos. Dois marcos que eram, afinal, o grande Marco, abrangendo o eu e o não-eu no seu Infinito largo, em que a idéia alfa e a idéia ômega - princípio e fim - eram duas extremas de um TODO que encerrava tudo e explicava tudo.

Dirão os presumidos de livros e adiantados que isto era medievalismo barato e satisfação de primarismo a crismar de Deus as cegas forças do incognoscível, o dinamismo da Matéria.

A estes pode responder-se que é fácil deitar hipóteses, enredar teias que não podem conter o Universo, excessivo para as malhas de uma aranha e que é respeitável, bela e fecunda a intuição da fé, nos que sentem a presença de Deus na luz trêmula da inteligência e na palpitação infinita do mundo.

Para o crente, tem a vida um sentido explicado, correndo entre dois pólos que nela influem, gerando o vivo desejo de simbiose que põe Deus no endereço de todas as ações.

Há um repouso profundo na sabedoria da razão apoiada em Deus.

Havia, para a alma caracense, intermináveis caminhos de marchas abstratas e místicas, no largo Mar Ilimitado que compreendia tudo, aquém e além dos alcances sensoriais.

Mas só gostando os segredos da Ascese pode imaginar-se o que são as delícias abismais e profundas da Mística.

A comunhão em Vergílio significava o prazer dos frutos da inteligência, a vida pelo Humanismo.

O idioma francês era uma segunda língua, a língua da cultura, o polido canal daquele claro humanismo que, em francês, parece mais cristalino e civilizado que o que ocorre em inglês ou alemão.

Acabando em humanização e antropocentrismo, o Renascimento, venenoso e sutil, minou as bases cristãs da civilização ocidental.

Entretanto, no Caraça, não podia constituir perigo este humanismo de versão envenenada, porque a vida em Deus era intensa e a vida em si bem segregada e resguardada. Ingênua e pura, a inteligência podia saborear até os filtros de Horácio que, sendo pagão, estava explicado.

Pasteur dizia, que mais do que o micróbio, importa a natureza do terreno em que se aloja. E o terreno da inteligência ia defendido por um sábio mitridatismo, uma natural suficiência mesológica. As emoções estéticas da beleza pagã ou as lições da História e da Literatura submetiam-se à inevitável catálise da preservação.

A higiene mental era rigorosa. Edições como as de Horácio e Camões eram ad usum delphini..

Não vingava o mal dos subterfúgios, a eiva das iniciações clandestinas, desamparo comum na mocidade de formação urbana.

Os problemas da adolescência, as contrariedades da inteligência - tudo se discutia nas lições progressivas de moral, de apologética ou na orientação espiritual que recebia cada um.

Bastante donos do português, do francês e do latim – chegando aos anos quinto e sexto - os alunos podiam expandir-se em veementes ensaios de inteligência, imaginação criadora e presunção literária.

Motivos históricos, estéticos, apologéticos, científicos, enchiam as páginas dos cadernos, em português, em francês, em latim.

Alguns alunos, canhestros e gagos embora, acreditavam ter atingido o sublime, ingênuos e verdes, pensavam ter chegado ao planalto da capacidade.

Isso não era ridículo porque era adolescente. E era uma forma de felicidade.

Talvez ria, mesmo assim, algum destes moços de adolescência indefinida e excusa, cheia de anos pecos e mornos, abandonada a inteligência ao azar dos regimes licenciosos, entregue o espírito ao efeito insalubre das iniciações equívocas, comprometido o corpo na precocidade malsã de experiências infelizes.

Tal sorriso não mudaria de um iota a delícia de sonho daquela ingenuidade apaixonada e feliz.

A comunhão em Mozart queria dizer a felicidade pela música.

Restringida a vida às atividades intensas do espírito, é de imaginar as influências da divina arte na imaginação e na alma de seres alcandorados entre as agrestias daquela natureza, feita de montanhas ascéticas.

Lendo Jean Christophe, um dia, Xavier invejou aquele herói de Romain Rolland que, desde criança, vivia iluminadamente, entre os bons gênios da sagrada arte - enquanto a iniciação dele, Xavier, se fizera às escuras, intuitivamente, apenas aquecida pelo clima.

Uma vez, quando estudante de direito, Xavier passou, literalmente, três dias inteiros, fechado em casa, sozinho, em companhia de uma eletrola, a Nona Sinfonia, a Missa em ré, La vie de Beethoven, de Herriot e o ensaio Beethoven, de Ludwig, em "Trois Titans".

Quantas e quantas vezes, também se esqueceu horas inteiras no insondável prazer de uma orquestra de Stokowski ou Toscanini ou algum piano de Backhaus...

Meu Deus, como a grande música, hoje, é possível de ir a toda parte!

Entretanto, aquelas emoções não alcançaram a leveza e sugestão das que sentira no Caraça, quando, no coro, ouvia cantar ou ajudava a cantar Palestrina, Vitória ou Viadana, ou alguma simples melodia gregoriana, como o Christus natus est da festa de Natal, tudo com lamentável insuficiência, mas tudo suprido com inefável imaginação.

O mesmo podia dizer-se do assassínio instrumental de Mozart, Berlioz, Gounod, Verdi, Bellini, etc., sobretudo quando, nas férias, o Tenan, o Jorge, o Bessa e ele, tomando das partituras de saxofone, clarineta, piston e bombardino, passavam horas inteiras de estranho quarteto.

Era tudo felicidade.

Era felicidade também a vida no seio da natureza.

Pela manhã, nos meses de maio e junho, o Padre Santo batia palmas, gritava Benedicamus Domino o acendia as luzes.

Eram cinco horas, fazia escuro e fazia frio. E que frio!

Os moços bocejavam Deo gratias, pulando, sonolentos, da cama.

Depois, aos poucos, através da janela, vinha vindo, do céu, a beleza das cores da manhã. À névoa enchia de brancura, maciez e diluição, o dorso rude das serras. O pico dos Três Irmãos inflamava-se de tons irisados.

Sabia-se que o sol viria dali.

A hora do primeiro estudo matutino, olhando a horta e as montanhas, ouvia Xavier cantar os pássaros, vozear os animais, entre falas perdidas de seres humanos. Para além medroso de sol, montanha acima, ia o nevoeiro, que afogava serras e vales.

Que fina emoção! A fria alvura das encostas fugia de manso, expondo à luz o dorso negro dos penhascos.

Para lá da Carapuça e para cá da Bocaina, descendo quase do céu, alvejava uma cascata esguia e clara, alta e distante, como um véu de glória que a manhã tecia.

Os olhos que lá estavam, por um momento, talvez saíam de uma página de Chateaubriand ou de uma bucólica de Vergílio, enquanto a imaginação vogava solta e sem regente, nas ondas hígidas da luz.

Ajuntem pedagogias os filósofos e vejam se criam imagens tais e tão simples, para a adolescência que se agita na sedução tumultuária dos meios urbanos!

Metida entre a natureza e o livro, a vida é diferente.

A alma vai modelando-se equilibradamente, sadiamente, como ânfora ao sol, orgulho do oleiro que a concretizou, ao senti-la rija e sonora, receptiva para o vinho e suave para o olhar.

Quanta sugestão excitante nas manhãs frias de junho e nas suas noites frias de luar, cheias de montanhas álgidas, entre reflexos de prata!

Para enrijar os músculos, jogos e passeios.

Pico do Sol, Bocaina, Verruguinha, Carapuça, Três Irmãos, vós todas, altas serras do Caraça, atestais que havia bom alpinismo, na comunhão da vida natural, que se buscava!

E vós, bosques e matas da Cangerana, dos Tabuães, da Capelinha, da Ponte de Pedra, do Campo de Fora, da Mistura, bem vos lembrais de como Vergílio emprestava a alma das bucólicas aos que procuravam a intimidade verde de vossos recessos!

Levantar cedo, rezar a Deus, estudar, viver com a natureza, sentir-se por baixo do céu e por cima da terra - eis a vida.

Dirá um moderno que faltava plenitude, que faltava ambiente para o inteiro despertar da personalidade. Mas o que Xavier encontrou foi justamente plenitude, na formação a que se destinava.

Tinha uma vocação e um programa - viver vida monástica.

A esse ideal devia sacrificar um conjunto de coisas que se compendiam nos prazeres da família e do sangue, nos apelos do mundo e da carne.

- Em que consistem as oportunidades dos moços do século? Campo aberto à inteligência e campo aberto à vida física?

- Tudo tinha o caracense, tendo só isto, concentrada a existência numa completa vida de estado, vida de aluno, sem relações de família, nem da sociedade, nem do meio urbano e suas dissoluções.

Que viria fazer, na vocação de sacerdote, a atividade social de outros destinos - o convívio familiar, a ação co-educativa dos meios mistos, a ação dispersiva das matinês, do avenidismo, dos cafés, das piscinas, dos clubes, e até dos lugares suspeitos?

Temos sofrido os graves efeitos de nossa mal tentada transição, enquanto vamos buscando entrar na modelagem saxônica e desprezando a nossa alma latina, menos do que latina, ibérica. Não se admire de castigos e enganos quem erra seus caminhos e não sabe andar por vias novas. Nossa mocidade está muito entregue a si mesma, alongada do alcance de nosso aparelhamento pedagógico, torcida pela indisciplina pessoal e esterilizada pela dissipação improfícua.

Sua vida é um puro vegetar: a educação não educa, o colégio não ensina e a formação deforma.

Vazia e jovial, primária e despreparada, substitui as forças nobres, que não lhe cultivaram, pelas imediatas e estreitas preocupações do hedonismo, da inconsciência, da cavilagem.

O moço que levou de casa um ideal, ou vence pela sua bondade superior ao meio, ou acaba inutilizado, ou se traduz pela astúcia, pela 'cavação', palavra que revela todo o sentido de um momento, na vida de um povo.

Cavação e futebol foram os dois centros de interesse que Xavier encontrou, mais tarde, no meio universitário, como se toda uma raça de inteligências tivesse enfezado, no abandono, feito campos maninhos que a Natureza esqueceu.


25. Quo feror?

Aonde vou, para onde sou levado? - dizia a ode.

Quando Xavier contemplou, em derradeira visão, a imagem branca e suave do colégio, estava longe de se perguntar a si mesmo para onde ia. Estava ciente e seguro de que, passados dois meses em casa, depois seguiria para o noviciado lazarista, o Seminário Maior, o sacerdócio.

Sabia para onde caminhava, mas não sabia para onde era levado. Quo feror?

Ia agora para a Fazenda dos Coités, a fazenda de seu Timóteo, que o mandara buscar numa besta apresentada e estradeira, boa e mansa como se fora de abade.

O camarada era o Zéu, também chamado Itabirano.

A distância de seis anos e a discrição doutoral dos ares que nele via, transformaram em seu Zezinho - para o Itabirano - o modesto Zezinho da Miloca.

Dizia ele:

- Como vancê botou corpo, seu Zezinhol Ficou taludo e bonitão. Vai dar um padre e tanto! Mas tome cuidado com as moças do arraial!

Aquele cumprimento sertanejo criou uma intumescência na alma do seminarista, que se disfarçava, inábil, a declarar saudades do pessoal que ia ver e a gabar a excelência de Chacota, que dava gosto em montar.

Chacota era o nome da besta. Quem se lembra da Caterva poderá ver que seu Timóteo gastava letras no batismo dos animais.

Xavier tornou a ver a fazenda e os parentes, reconstituindo, com saudades, a humilde infância de José Vieira.

Passou também vários dias em Jacaré, solicitado e mimado por aquela gente boa e amiga. Seu vigário e seu Rodrigues exibiam o jovem levita como quem mostrava uma sua criação. Tia Prudência bendizia os efeitos do estudo no sobrinho, promessa de glória da família.

Satisfeito e feliz, Xavier procedia com aquela calma e plano conseqüente que lhe ditava, no fundo da alma, o conselho evangélico de deixar pai, mãe e parentes, ao chamado de Cristo.

Operava nele uma tranqüila força de desenraizamento, desligando-o da terra e da gente, como quem pertencia a outro destino.

Um dia partiu, entre as lágrimas de sua mãe, rumo ao noviciado, no Seminário São Vicente de Paulo.

Xavier, que tanto amava relembrar a vida caracense, guardou sempre discrição a respeito dos vinte meses de seu noviciado.

Suas crônicas íntimas, do tempo imediato à experiência, revelam um desespero e uma angústia que explicam, talvez, porque deixava na penumbra aquele momento de sua formação.

O noviciado fora, para ele, quase dois anos de penitência e provação. Foram dois anos rijos, intensos, interiores, humildes, ardentes, cheios de experimentos, de anulações de si mesmo, de solilóquios prolongados, de inquirições íntimas, na afirmação decidida de que podia e queria, ao termo da prova, ligar sua vida pelos solenes e perpétuos compromissos religiosos.

Era o seu ideal monástico, longamente preparado, desde que, um dia, o mandaram para o Caraça.

E tudo lhe arrancaram da frente, com brutalidade, num golpe que lhe produziu na alma a violenta comoção de um traumatismo.

Andara ele atingido, nos três últimos meses da reclusão noviça, de uma excitabilidade, um esgotamento que merecera cuidados médicos.

Fizera o primeiro ano, seguramente, sob a direção de um padre brasileiro. Mas, começando o segundo ano, caiu o noviciado em mãos de um padre francês, com quem Xavier se viu mal, desentendido e difícil.

Submetendo-se à direção formal do mestre dos noviços, buscou, entretanto, a verdadeira direção espiritual com um outro padre, inteligente e querido professor dos estudantes (seminaristas que, feito o noviciado e ligados por votos, já estavam no curso superior da carreira).

Era aquilo um direito e liberdade que tinha. Mas a implicância humana e a falibilidade dos juízos escolhe pouco ou nada, lugares e pessoas em que existir. Dos melindres do diretor e dos conceitos de seu juízo, nasceu a interrupção de um caminho, o desmoronamento de um sonho. Xavier fora condenado, sem discussão nem defesa.

Um dia, chamado a comunicação, o Superior declarou-lhe, abruptamente, surpreendentemente, que, devido ao estado de saúde, ele ia ser mandado para casa.

De joelhos, como devia ficar um noviço no gabinete do Superior, Xavier o ouviu dizer:

- Já escrevi ao sr. seu pai. (O pai de Xavier morrera havia 15 anos). Escrevi também ao sr. arcebispo de Diamantina e o sr. pode ficar no seminário de lá, de uma vez, se quiser ser padre secular. De qualquer jeito, o sr. embarca amanhã cedo, para Diamantina, e, se preferir não ficar, de lá tome condução para sua casa.

Eram três horas da tarde. O noviço respondeu que jamais pensara em ser um padre secular. Se não podia ser congregado, queria ir para casa.

Deixou o gabinete do Superior absolutamente arrasado. Dançava-lhe na alma a ironia ridícula de o Superior ter escrito a quem já morrera, quando Xavier tinha cinco anos. Humilhava-o, amargamente, o grosseiro subterfúgio da doença, desmascarado pela proposta de ir, diretamente, para o seminário da Diamantina.

O desespero, a desorientação, o abatimento, a passividade lamentosa, tudo que revelam suas crônicas daquele tempo estão provando que o golpe fora profundo.

Transformou-se em desilusão insuportável aquele romper de um plano substancial na sua vida. Vinte meses mais seis anos, esperançosamente construídos, perdiam todo o sentido.

Vinte meses e mais seis anos de sugestão e daquela certeza diária de ser lazarista, tudo anulado, num momento, pela fria decisão de uma voz autoritária que dizia: - De qualquer jeito, o sr. embarca amanhã cedo.

Ao golpe do inimigo, numa luta, resiste-se ou suporta-se, porque o guerreiro sabe que o golpe do inimigo é possibilidade lógica de uma luta.

A surpresa de um passo infeliz pode ser apenas meia surpresa, dentro do plano geral das contigências que afetam a vida de quem se rege por si, de quem faz o que quer.

Mas não há traição mais brutal, nem interferência tão cruel como a da negação repentina de um plano, de uma esperança, na existência de quem se entregou totalmente a um sonho, entregando ao arbítrio alheio a sua vontade, a sua iniciativa, a sua vida.

Preparado pelo Caraça, admitido no Seminário de São Vicente de Paulo, via-se Xavier definitivamente aceito e integrado, sem nem ao menos alevantar, alguma vez, a hipótese de interromper ou ver interrompido o seu caminho. Terminado o noviciado, aguardava já, confiado e decidido, o momento de se comprometer solenemente, ligando, de vez, o seu destino à congregação.

Aquela tarde de repulsa, aquela transmissão fria de uma ordem, caíra sobre ele como a ruína de um mundo sobre um corpo. Esmagava.

E esmagava mais, porque feria uma ingenuidade profunda, uma confiança quieta.

Pergunta Cristo, no Evangelho, qual o pai que dá serpente ao filho que pede peixe: Si piscem petierit, numquid serpentem porriget ei? (Mat. VII, 10).

Xavier esperava peixe e deram-lhe serpente.

Se o leitor nunca teve medo, diante da vida, entenderá menos o do noviço, desarvorado ante o imprevisto e o inadmitido.

Não o medo físico, mas o medo moral, a treva no caminho de uma alma, a incapacidade de aceitar o século e suas dificuldades.

Eram apenas vinte anos de idade e, dentro deles, oito de preparação à segurança monástica, para, subitamente, receber a ordem de ir para o mundo!

Sua alma não agüentava aquilo. Queria salvar-se e já encontrara o abrigo das tempestades. Não queria ser atirada ao mar.

Mas estava escrito que devia enfrentar o proceloso mundo, que, no dia seguinte, voltaria ao mar que deixara na sua infância. Cras ingens iterabimur aequor.

No dia seguinte, cedo, envolvido num terrível fato de brim pintadinho, desajeitado, vencido, automatizado, sonâmbulo, estúpido entrara Xavier num trem da Leopoldina, de regresso a Minas.

Cobria-lhe, a cabeça um chapéu de palhinha, que ele evitava tirar, por vergonha da sua tonsura, uma tonsura claustral, uma coroinha aberta no alto do crânio.

Era a sua segunda viagem por via férrea. A primeira, levara-o ao seminário.

Mas, com toda a sua formidável novidade, o trem-de-ferro não comovia.

De Entre-Rios em diante, além da vergonha canhestra, o incômodo impertinente de uma tremenda superlotação, que fez o moço ficar, o dia inteiro, quieto e acanhado num canto até Congonhas do Campo, onde o vagão deixou quase toda a carga que trazia. Então explicaram que aquilo eram ‘congonheiros'.

Em Belo Horizonte, o gerente do Hotel Avenida recebeu, com estranha impressão e expressão, o esquisito moço de roupa de brim e chapéu de palhinha. Viu, com certeza, que o terno era de outrem e o chapéu era novato, naquela cabeça. E Xavier não sabia que o hotel, naquele tempo, era o segundo dos poucos hotéis da capital mineira.

Informando-se do hóspede, numa inquirição preocupada, também o informou o gerente a respeito da viagem para Diamantina, para dali a três dias. Depois, disse que o pagamento era adiantado.

Que pensaria daquele adolescente ridículo, de olhar desambientado, de modos medrosos, de gestos inacabados, tão feiamente trajado, e batendo à porta de um hotel importante?

No dia seguinte, sabendo, na estação, as condições da passagem, calculou o rapaz que lhe sobravam uns trinta mil réis. Subindo à cidade, entrou numa livraria que viu. Comprou os Lusíadas, o Eurico, a Poeira da Estrada - de Afrânio Peixoto - a gramática de João Ribeiro, as Espumas flutuantes, Os simples, A musa em férias, tudo por vinte e poucos mil réis.

Passou os três dias de espera lendo, fechado no quarto, onde podia ficar sem chapéu. Para as refeições, descia taticamente e escolhia um lugar estratégico, de onde escondesse a coroinha no alto da cabeça.

Quando entrou no trem para Diamantina, sentiu algum alívio.

Mas foi passageiro o consolo. Muito mais do que o incômodo da desambientação e o próprio da coroinha, pesava-lhe na alma, em proporção de toneladas, uma angústia profunda, uma angústia sem nome.

Rompia o trem pelo sertão a fora, na longa viagem.

O ex-levita entregou-se à lassidão passiva e morna de um cansaço vazio, um cansaço que não tinha desculpa física. E a vida flutuava ao desamparo, sem bases nem referências.

A alma era um escrínio desmantelado, entulhado de fragmentos, esfacelado o precioso tesouro de seu ideal, cujas peças desagregadas lhe produziam tédio da vida.

Reconstituía, para si mesmo, o enervante contraste do que era a vida, seis dias antes, comparada com aquele pesadelo de agora.

Paralisando-lhe a previsão e a capacidade de agir, estava na sua frente o estranho muro de um pânico alastrado e pueril, embebido na sua travosa incapacidade de imaginar o futuro.

Repetia monotonamente, sem palavras, dentro de si, a pergunta ansiosa dos que perderam o destino: - Aonde vou? Para onde sou levado? Quo feror?

A mesmice narcotizante da ferralha a rolar sobre fitas de aço, multiplicava a pergunta infinita: quo feror - quo feror - quo feror?

E Xavier fechava os olhos, que desejavam mas não queriam adormecer, pesada a alma de uma incomportável fadiga sem sono.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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