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Sobre José Lourenço e sua obra > Pe. Lauro Palú, C. M.
Livro Xavier e o Caraça

PREFÁCIO DO LIVRO XAVIER E O CARAÇA

 
 

Padre Laulo Palú, C.M.

 

Conheci o Professor José Lourenço de Oliveira depois de 1953, quando fui para o Caraça estudar para ser padre. Lourenço estava pe­los 50 anos, no esplendor. Conheci-o numa excursão organizada pela AEALAC (Associação dos Ex-Alunos Lazaristas e Amigos do Caraça).

Compareciam ao Caraça, quase todo ano, os antigos Alunos do Seminário de Senhora Mãe dos Homens, alguns de Diamantina e Mariana e também de outros Seminários ou Colégios.

E o Lourenço, por ser bom no latim, era encarregado de ler a Bíblia e o Martirológio, no início e no fim daquele almoço barulhento, regado a muito vinho caracense e cortado de risadas dos antigos companheiros que ficavam contando histórias do seu tempo. Participei, algumas vezes, desses almoços, como "servente", ajudando a distribuir a comida pelas mesas, e escutei a turma contando suas histórias.

Depois, perdi o Lourenço de vista, muitos anos. Terminei meu curso no Caraça, em 1956, e fui para o Noviciado em Petrópolis, como o Lourenço conta da vida dele. Um dia, soube que o nosso co-irmão Padre Pedro Sarneel fizera uma linda tradução, para o latim, do livro de Henriqueta Lisboa sobre o Caraça (Montanha Viva - Caraça) e mais tarde, soube que estava estudando uma segunda versão, feita, a partir da dele, pelo Professor José Lourenço, que era cunhado de D. Henriqueta.

Depois, Padre Sarneel morreu (1963), não se publicou tradução nenhuma, embora eu já conhecesse um pouco as duas versões. Por uma dessas coisas boas da vida, acabei eu mesmo cuidando da edição bilíngüe de Montanha Viva - Caraça / Mons vivus seu Mons Caracensis (1977), em nossa Editora São Vicente, em Belo Horizonte. Foi nessa ocasião que o Professor Lourenço me conheceu. Primeiro, por carta e telegrama (foi assim que me esclareceu algumas dúvidas sobre o texto). Depois o fui visitar em sua casa.

Tive do Lourenço uma impressão forte, entre Bernanos e Malraux, por seu jeito alto, cabeça desassombrada, um cabelo que acompanhava o vôo das idéias, aumentando a impressão de grandeza e força intelectual, uma cultura que nos fazia pequeninos e humildes (mas nunca humilhados), um gosto da vida nos seus aspectos bons (amizade, inteligência e seus jogos, curiosidade, alegria, música, família, o Caraça, falar mal dos políticos; ironizar alguns intelectuais, etc). E conheci o Lourenço que aparece nestas páginas, sob o seu apelido caracense, o Xavier.

De tudo o que Lourenço escreveu, e são centenas de textos, ele mesmo gostou demais de um pequeno trecho em que se referia à sua vida no Caraça. Publicou-o num artigo para o Jornal do Brasil, num suplemento dedicado a Minas Gerais, de 31 de outubro de 1974, p. 22. O artigo se intitula CARAÇA, VÉRTICE DA CULTURA. E o Lourenço, depois de descrever o projeto educacional do Caraça e as suas realizações, desde 1820, conclui:

"Foi esse o meu Caraça, faz mais de 50 anos; simples felicidade inenarrável; na comunhão de Deus se resumia, unida com três outras comunhões: da natureza, de Vergílio e de Mozart. Um menino campônio tinha descoberto o paraíso; inexperto da vida e sem mais referências, foi fácil de conformar-se; livre na inteligência e na emoção, pôde ali definir-se como peixe n'água; nada o proibiu de ser feliz".

XAVIER E O CARAÇA é a história dessa felicidade. É o testemunho sem sombra nenhuma de uma alegria simples, sempre maior, única, perfeita, completa, calma, profunda, irradiante, realizadora, consciente e instintiva, conquistada e espontânea, merecida e gratuita, fruída e partilhada, dom de Deus e tarefa do homem. Lendo o XAVIER, vamos encontrar estas expressões:

"Xavier não sentiu o artificialismo. Estava como peixe n'água. E não encontrou, em toda a vida, outra quadra mais feliz, mais tomada de plenitude".

”Internem um Xavier no seu Caraça e verão como será feliz! Dirão que era um menino bobo, sem referências para a vida e, ainda por cima, carregado de conformidade. – E então? Acaso vedou alguém o ser feliz a quem é inocente? Ninguém obrigava ninguém a ser feliz, numa casa de portas abertas, mais fáceis de transpor, saindo, do que entrando. ”

O Antelóquio do Lourenço é meio complicado, porque ele quer esconder atrás de um josé vieira o seu eu que era dotado de um orgulho duro e titânico e, ao mesmo tempo, de uma humildade enorme diante da vida, que se transformava em vontade de lutar, porque não ganhara nem ganhava as coisas de graça. Ele tenta justificar que escreva a vida de alguém que foi apenas um momento no efêmero dos milênios e de milhões de anos. Entretanto, se mais não houvesse na sua vida, nestas páginas de saudade bastariam duas coisas para justificá-las como obra do mais alto humanismo e da mais alta condição da arte: são um testemunho da felicidade e da dor. Da alegria mais funda de ser feliz e da dor mais doída de se ver, de repente, despojado violentamente de tudo. (Estou escrevendo isto e sinto-me como quem conta o desfecho de um enredo fascinante). O livro, em poucas palavras, é isto: Lourenço estudou, no Caraça, o curso do Seminário Menor, depois foi para Petrópolis, para o Noviciado, a Filosofia e a Teologia, esperando ser Padre. Mas, antes do término do Noviciado o mandaram embora, por razões ditas de saúde. E o mundo do Lourenço desmoronou. Sua vida praticamente acabou ali. Pelo menos no plano que ele quis testemunhar. O que deixou escrito termina ali. No prefácio, para o leitor que quer situar o Xavier, com data de nascimento e morte, Lourenço diz que o Xavier foi lutar na guerra, foi ferido na Itália, transportado para os Estados Unidos, mas morreu da guerra. O sentido dessa morte só existe se lermos a sua vida no Caraça e em Petrópolis. O que lhe aconteceu foi tão bruto e estúpido como a guerra, como a morte violenta.

Eu conheci melhor o Lourenço depois do derrame cerebral que o imobilizou e praticamente acabou com ele. Quando fui ao hospital, ele sofria porque ninguém entendia suas palavras, a boca ainda paralisada. E depois não melhorou muito e ele foi ficando cada vez mais calado, porque não queria e não podia suportar não ser entendido, ter que ficar repetindo, ver a gente perguntando ou sorrindo como se tivesse entendido, e eram aqueles silêncios constrangedores, porque ele, às vezes, perguntava e a gente respondia: "Pois é". Mas foi nesses tempos de silêncio e lágrimas que eu conheci bem o Lourenço, não o gigante que eu sempre vira, mas o menino frágil e inocente. Ele perguntava sobre o Caraça, os Padres, o Jorge, amigo dele que morava no Rio, contava casos dos outros colegas e perguntava mais notícias. E, na hora de sair, eu uma vez lhe dei a bênção, fazendo-lhe na testa o sinal da cruz. Ele não escondeu a lágrima, ou ela o venceu. E nós sentimos, D. Alaíde e eu, como o Lourenço se emocionou, naquele instante. O livro explica porquê. Guardou pelos Padres do Caraça a mais alta veneração, na alma não tinha uma só mágoa contra eles, e me sentiu como se eu o fizesse recuperar tudo aquilo dos anos que viveu no Caraça. Estou chorando, ao escrever isto, porque o Lourenço não podia mais andar, nem falar direito não falava, e ainda se sonhava e se sabia a correr pelos corredores, pelos pátios, e, com a boca torta, sonhava e falava ainda do quarteto de instrumentos de sopro que formará com os colegas, para tocar a música que o salvou tantas vezes. O Jorge já tinha morrido, no Rio, fazia alguns anos, e eu nunca contei ao Lourenço. Dizia-lhe sempre, quando me perguntava, que o Jorge andava fraco, muito doente, não sabia se agüentaria muito tempo ainda, mas nunca falei que já morrera. O Lourenço não podia agüentar mais uma morte assim. Quando o Lourenço morreu, certo que me perdoou e entendeu que eu tenha escondido.

A passagem pela morte há de ter sido para ele como a subida da Serra do Caraça: de repente, a montanha na frente, mas ele sabia que dentro da cadeia de montanhas estava o Caraça. Ele sabia, também, que dentro daquilo tudo que se avizinhava (como morte) estava o Jorge, o Júlio, os outros, e estava Deus.

As experiências de misticismo e mística que o Lourenço descreveu, na capela gótica do Caraça, se conservaram como força, toda a sua vida. Aquelas minhas cruzes na sua testa, que o emocionavam tanto, o reconduziam, vertiginosamente, no tempo, ao passado, ao Caraça. As experiências de oração o terão projetado, também, vertiginosamente, mas do passado para o coração mais fundo de Deus.

Roma, 6 de janeiro de 1987
Padre Lauro Palú, C.M

 

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