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Sobre José Lourenço e sua obra > Pe. Lauro Palú, C. M.

LOURENÇO, UM HUMANISTA

 
 

Pe. Lauro Palú, C. M.

 

O próprio Lourenço estranharia que estejamos celebrando seu centenário... Ele foi sempre, e somente, aquele menino e adolescente, o apenas começado rapaz que retratou na autobiografia, Xavier e o Caraça.


I

Conheci o Professor José Lourenço de Oliveira em 1953, quando fui para o Seminário do Caraça estudar para Padre. Ali ele também estudara, de 1916 a 1922. Conheci-o numa excursão organizada pela Associação dos Ex-Alunos Lazaristas e Amigos do Caraça (AEALAC). Compareciam ao Caraça, quase todo ano, antigos Alunos do Seminário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, alguns de Diamantina e Mariana e também de outros Seminários ou Colégios.

O Lourenço, por ser bom no latim, era encarregado de ler a Bíblia e o Martirológio, no início e no fim do almoço barulhento, regado a muito vinho caracense e cortado das risadas dos companheiros. Participei, alguma vez, daqueles almoços, como servente, distribuindo a comida pelas mesas, e escutei a turma contando suas histórias.

Depois, perdi o Lourenço de vista, por muitos anos. Terminei o curso no Caraça, em 1956, e fui para o Noviciado em Petrópolis, como contou da vida dele. Um dia, soube que o nosso co-irmão Padre Pedro Sarneel fizera uma linda tradução, para o latim, do livro de Henriqueta Lisboa sobre o Caraça (MONTANHA VIVA – CARAÇA) e mais tarde, soube que estava estudando uma segunda versão, feita, a partir da dele, pelo cunhado de D. Henriqueta, o Professor José Lourenço.

O Padre Sarneel morreu em 1963 e não se publicou nenhuma tradução. Eu já conhecia um pouco as duas versões. Por uma dessas coisas boas da vida, acabei eu mesmo cuidando da edição bilíngüe de MONTANHA VIVA – CARAÇA / MONS VIVUS SEU MONS CARACENSIS. Foi nessa ocasião que o Professor Lourenço me conheceu. Primeiro, por carta e telegrama (tirando-me algumas dúvidas sobre o texto). Depois fui visitá-lo em sua casa.

A imagem muito forte que me ficou do Lourenço, desde que o pude conhecer, foi seu vulto impressionante, sua aparência físico-moral. A cabeça aparecia como a de um leão, testemunhando a grande força que eu sentia nele. Eu o via sempre como um misto de André Malraux e Georges Bernanos, por seu porte alto, cabeça desassombrada, um cabelo que acompanhava o vôo das idéias, aumentando a impressão de grandeza e força intelectual, uma cultura ante a qual nos sentíamos pequeninos e humildes (mas nunca humilhados), um gosto da vida nos seus aspectos bons (amizade, inteligência e seus jogos, curiosidade, alegria, música, família, o Caraça, falar mal dos políticos, ironizar alguns intelectuais, etc.). Sua força física o fez enfrentar tanto tempo a enfermidade que o prostrou e aniquilou, mas não quebrou sua resistência interior, sua coragem.

Parecia-me gigantesco, fisicamente forte, moralmente enorme, uma estatura que penso não ter exagerado. Assim o senti sempre, com muito respeito, quando me aproximei do Lourenço, um respeito que também me engrandecia, por reconhecer o valor dele e me beneficiar de seus ensinamentos, de suas observações maliciosas de mestre de vida, nunca mesquinhas nem menores.

Não sei o que ele acharia desta minha impressão. Malraux e Bernanos fizeram da inteligência uma afirmação da natureza humana, da lucidez um testemunho da beleza de ser homem humano e da coragem uma definição do que podemos ser de melhor, mais alto, mais útil, mais humanizador. Imagino o Lourenço dando suas aulas, desafiando os Alunos, estimulando-os pelo que era e sabia e falava e fazia. Terá sido para seus Alunos um mestre de largos horizontes, um desbravador, nutrido de humanidades como meio de sermos mais humanos.

E conheci, no fundo sem volta de sua enfermidade, o Lourenço que aparece nas páginas da autobiografia, sob o seu apelido caracense, o Xavier.

De tudo o que escreveu, centenas de textos, ele mesmo gostava demais de um pequeno trecho em que se referia à sua vida no Caraça. Depois de descrever o projeto educacional do Caraça e as suas realizações, desde 1820, Lourenço concluiu:

“Foi esse o meu Caraça, faz mais de 50 anos; simples felicidade inenarrável; na comunhão de Deus se resumia, unida com três outras comunhões: da natureza, de Vergílio e de Mozart. Um menino campônio tinha descoberto o paraíso; inexperto da vida e sem mais referências, foi fácil de conformar-se; livre na inteligência e na emoção, pôde ali definir-se como peixe n'água; nada o proibiu de ser feliz”.

XAVIER E O CARAÇA é a história dessa felicidade. É o testemunho solar, sem nenhuma sombra, de uma alegria simples, sempre maior, única, perfeita, completa, calma, profunda, irradiante, realizadora, consciente e instintiva, conquistada e espontânea, merecida e gratuita, fruída e partilhada, dom de Deus e conquista do homem. Lendo o XAVIER, vamos encontrar estas expressões:

“Xavier não sentiu o artificialismo. Estava como peixe n'água. E não encontrou, em toda a vida, outra quadra mais feliz, mais tomada de plenitude” (Xavier e o Caraça, p. 53)..

“Internem um Xavier no seu Caraça e verão como será feliz! Dirão que era um menino, um bobo, sem referências para a vida e, ainda por cima, carregado de conformidade. – E então? Acaso vedou alguém o ser feliz a quem é inocente? Ninguém obrigava ninguém a ser feliz numa casa de portas abertas, mais fáceis de transpor, saindo, do que entrando” (ib.).

O prefácio do Lourenço (“antelóquio”, escreveu ele) é meio complicado, porque, atrás de um josé vieira, quis esconder o seu eu, dotado de orgulho duro e titânico e, ao mesmo tempo, de humildade enorme diante da vida, que se transformava em vontade de lutar, porque não ganhara nem ganhava as coisas de graça. Tenta justificar que escreva a vida de alguém que foi apenas um momento no efêmero dos milênios e de milhões de anos.

Entretanto, se não tivesse vivido mais nada na vida, bastariam duas coisas, nessas páginas de saudade, para justificá-las como obra do mais alto humanismo e da mais alta condição da arte: são um testemunho da felicidade e da dor. Testemunho da alegria mais funda de ser feliz e da dor mais doída, por se ver, de repente, despojado violentamente de tudo. Escrevo isto e sinto-me como quem conta o desfecho de um enredo fascinante. O livro, em poucas palavras, é isto: Lourenço estudou, no Caraça, fez ali o curso de Humanidades (o Seminário Menor), depois foi para Petrópolis, fazer o noviciado e os cursos de Filosofia e Teologia, esperando ser Padre. Mas, antes do término do Noviciado o mandaram embora, por falta de saúde. E o mundo do Lourenço desmoronou. Sua vida praticamente acabou ali, pelo menos no plano que ele quis testemunhar. O que deixou escrito termina ali. No prefácio (e sintomaticamente não no próprio livro), para o leitor que quer situar o personagem, com data de nascimento e morte, Lourenço diz que o Xavier foi lutar na guerra, foi ferido na Itália, transportado para os Estados Unidos, mas morreu da guerra. O sentido dessa morte só existe se lermos a sua vida no Caraça e em Petrópolis. O que lhe aconteceu, quando o mandaram embora do Seminário, foi tão bruto e estúpido como a guerra, como a morte violenta. Embora tenha chegado soberbamente aos 80 anos, foi como se sua vida, uma sua vida, tivesse terminado ali.

Conheci melhor o Lourenço depois do derrame cerebral que o imobilizou e praticamente acabou com ele. Quando fui ao hospital, ele sofria porque ninguém entendia suas palavras, a boca ainda paralisada. Depois não melhorou muito e foi ficando cada vez mais calado, porque não queria e não podia suportar não ser entendido, ter que ficar repetindo, ver a gente perguntando ou sorrindo como se tivesse entendido, e eram aqueles silêncios constrangedores, porque, às vezes, fazia uma pergunta e a gente respondia: “Pois é”. Foi nesses tempos de silêncio e lágrimas que conheci profundamente o Lourenço, não o gigante que eu sempre vira, mas o menino frágil e inocente. Perguntava sobre o Caraça, os Padres que tinham sido seus colegas, o Jorge Soares, amigo que morava no Rio, contava casos de outros colegas e perguntava mais notícias,

Possivelmente tinha vergonha de parecer tão necessitado e fragilizado como o víamos, como o veríamos, se tentasse fazer mais coisas e não o conseguisse. Essa imagem de força que caracterizava o Lourenço, era, entretanto, para mim, entremeada da certeza de sua delicadeza, de sua ternura e meninice de coração. Morreu menino, o menino caracense que se comovia quando falávamos do Caraça, de seus colegas de infância e adolescência.

Uma vez lhe dei a bênção, na hora de me despedir, fazendo o sinal da cruz na testa dele. Não escondeu a lágrima, ou ela o venceu. E nós sentimos, D. Alaíde e eu, como o Lourenço se emocionara, naquele instante. Eu me comovia sempre, quando me beijava a mão e inclinava a cabeça para eu o abençoar, como sempre gostei de fazer. O Lourenço para mim, nisto, era um filho e era um pai! Senti-me honrado e feliz, por ter podido privar, um pouco que fosse, e de quando em quando, da intimidade dele, sobretudo quando comentava o Caraça ou alguma coisa de Petrópolis e de seus amigos. Suas memórias de menino e adolescente explicam o motivo por que agia assim:

Guardou a maior veneração pelos Padres do Caraça, não tinha na alma uma só mágoa contra eles, e me sentiu como se o fizesse recuperar toda a riqueza e ternura dos anos que viveu no Seminário. Escrevi estas frases chorando, porque o Lourenço já não podia mais andar, nem falar direito não falava, e ainda se sonhava e ainda falava do quarteto de instrumentos de sopro que formara com os colegas, para tocar a música que o salvou tantas vezes. O Jorge já tinha morrido, no Rio, fazia alguns anos, e nunca contei ao Lourenço. Quando me perguntava, sempre lhe dizia que o Jorge andava fraco, muito doente, não sabia se iria agüentar muito tempo, mas nunca lhe contei. Ele não podia agüentar mais uma morte assim. Quando Lourenço morreu, certo que me perdoou e entendeu que tenha escondido dele.

A passagem pela morte há de ter sido para ele como foi na infância a subida da Serra do Caraça: de repente, a montanha enorme na frente, mas ele sabia que dentro da cadeia de montanhas estava o Caraça. Também sabia que, dentro de tudo aquilo que se avizinhava (como morte), estava o Jorge, o Júlio, os outros, e estava Deus.

Muitas vezes me perguntei sobre os rumos dele para Deus: acho que nunca andou distante e o buscou como força, como fonte da retidão que imprimiu a toda a sua vida, como plenitude da beleza que o comovia, como fim último de todo humanismo, que Lourenço pesquisou e engrandeceu, no que escreveu e no que falava. As experiências de misticismo de seu tempo de menino, na capela gótica do Caraça, se conservaram como força, toda a sua vida. Minhas cruzes na sua testa, que o emocionavam tanto, o reconduziam, vertiginosamente, no tempo, ao passado, ao Caraça. As experiências de oração o terão projetado, também, vertiginosamente, mas do passado para o coração mais fundo de Deus.

Essa é uma das coisas que me faziam pensar em Bernanos e Malraux, quando via o Lourenço: um humanista, alguém que se orgulhava de ser gente e irmão da gente, até quando desprezava quem diminuiu em sua vida a imagem melhor do homem e não soube ser grande. A ironia do Lourenço, nisso, era uma sua concepção do homem, que ele conseguiu ser numa dimensão tão impressionante.


II

Pois a impressão de grandeza da cultura do Lourenço se torna ainda maior e, ao mesmo tempo, se explica, quando se conhece a sua formação. Depois da escola de sua terra, contou o que lhe ensinaram e aprendeu no Caraça. Não comentou nada que estudou em Petrópolis.

Pois dali a pouco, o moço começa seus estudos superiores, e será bacharel e doutor em Direito, doutor em Letras Neolatinas, livre docente em Direito Romano, professor de Humanidades, de Português, Francês e Latim, professor catedrático de Língua Latina, professor de Semântica, de Filologia Românica, de Lingüística, um monte de títulos e atividades, uma série infindável de cargos, de competências, de desafios. Tudo assumido, enfrentado, ponderado, vencido, na consciência serena de que era capaz e estava preparado. Os pesquisadores que estão trabalhando suas fichas, notaram como as escrevia, como as completava, como as fazia germinar e produzir novos brotos, novos enfoques, novas conclusões. Seu caminho começou no mato, na serra, depois trilhou espaços cosmopolitas, como Petrópolis e Belo Horizonte, viajou, ampliou-se em ramificações de leituras, espetáculos, resenhas, concursos, noites de autógrafos, filmes, óperas, concertos, livros, cartas, visitas, compras, exposições, congressos, provas, conversas, coleções, traduções, academias, igrejas, hospital, silêncio, angústia, escuridão, angústia, medo, angústia.

O que mais me admira neste percurso de Lourenço, do menino camponês ao catedrático, do espírito irreverente ao terníssimo tradutor de miudezas, é a desproporção entre o início e o fim, entre a preparação e os resultados maduros. Mas ele mesmo mostrou, no XAVIER, como foi altamente motivadora sua estada no Caraça. Mencionou que o punham em comunhão com Deus, transfigurando de sua alma menina e adolescente, jovem e adulta, três outras comunhões: a da natureza, de Mozart e Vergílio. E elencou, nas páginas de suas memórias caracenses, ainda no arraial nativo, os Contos Pátrios de Coelho Neto e Bilac (e deste o vocabulário: bipenata, gládio, aríetes, ginetes, clâmides, broquel, pilum, buccina, eneatores, sagitários), Carlos Góis e as Histórias da Terra Mineira, e Raimundo Correia; depois, no Caraça, César, Tito Lívio, Cícero, Salústio, Tácito, Ovídio, Vergílio, Horácio, Homero, Anacreonte, Xenofonte, Demóstenes, Aníbal, Alexandre, Cipião, as epopéias de Dante, Tasso, Ariosto, os Lusíadas de Camões, Frei Tomé de Jesus, Frei Heitor Pinto, Pe. Lucena, Frei Luís de Souza, Iracema, O Guarani, Moreninha, Retirada da Laguna, Eurico, O Monge de Cister, O Bobo, Lendas e Narrativas, A Harpa do Crente, o Camões de Garret, Luz e Calor de Bernardes, os Sermões de Vieira, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Le Génie du Christianisme, La Cathédrale de Huysmans, Visions du Brésil de Gaffre, L'Homme et l'Univers de Brettes, peças de Corneille, Racine, Molière, La Fontaine, Bossuet, Voltaire, Victor Hugo; Oliveira Martins, Teófilo Braga, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Castro Alves; o canto gregoriano, Palestrina, Viadana, Vittória, Perosi, Bach, Beethoven, Mozart, Haydn, Haendel, Schubert, Schumann, Chopin, Wagner, Verdi, Berlioz, Rossini, Bellini, César Franck, Saint-Saëns, Gounod, Debussy, não se pode dizer que fosse pouco...

Não se pode dizer.

Mas ainda assim, espanta ver aonde chegou o menino vivo e curioso. Por muitos anos, serão publicados trabalhos dele, que os pesquisadores estão lendo/decifrando, as fichas das aulas, as preparações de seus discursos, das aulas, das preleções.

Nem menciono os títulos de seus trabalhos. Veja-se sua bibliografia, nos livros de D. Alaíde, nas obras que vão sendo publicadas. Prefiro a demonstração menor, mas muitíssimo verdadeira, de suas traduções. E comento três exemplos perfeitos de competência, de bom gosto, de sabedoria, de classe.

Primeiro, um soneto de Dante:

Tanto gentile e tanto onesta pare
la donna mia quand'ella altrui saluta
ch'ogne lingua deven tremando muta
e li occhi no l'ardiscon di guardare.
Ella si va sentendosi laudare
benignamente d'umiltà vestuta
e par che sia una cosa venuta
da cielo in terra a miracol mostrare.

Mostrasi sì piacente a chi la mira
che dà per li occhi una dolcezza al core
che 'ntender non la può chi non la prova:

e par che de la sua labbia si mova
uno spirito soave pien d'amore
che va dicendo a l'anima: Sospira.

A tradução é de 1956:

Mostra-se tão gentil e tão honesta
a minha dama, no seu leve andar,
que toda língua cala e em todo olhar
logo se apaga a audácia manifesta.
Benigna e simples, ela segue, a festa
do seu louvor sentindo, ao caminhar.
Parece até milagre que mostrar
acaso o céu quisesse à terra infesta.

Agrada, tanto, vê-la, a quem a mira
e tanto aquece o coração no peito
que só quem prova é quem sabe e entende.

Dos lábios seus macio se desprende,
cheio de amor, um suave alento, um jeito
que, na alma, vai dizendo-nos: suspira!

Segundo exemplo, o soneto de Félix Arvers:

Mon âme a son sécret, ma vie a son mystère:
un amour éternel en un moment conçu.
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dû le taire,
et celle qui l'a fait n'en a jamais rien su.
Hélas! J'aurai passé près d'elle inaperçu,
toujours à ses côtés et pourtant solitaire,
et j'aurai jusqu'au bout fait mon temps sur la terre,
n'osant rien demander et n'ayant rien reçu.

Pour elle, quoique Dieu l'ait faite douce et tendre,
elle ira son chemin, distraite et sans entendre
ce murmure d'amour élevé sur ses pas.

À l'austère devoir pieusement fidèle,
elle dira, lisant ces vers tout remplis d'elle:
“Qu'elle est donc cette femme?” et ne comprendra pas.

A tradução do Lourenço:

Tenho n'alma e na vida o mistério e o segredo
de um grande e eterno amor, nascido de um momento.
É um triste mal sem cura e que eu calei a medo:
aquela que o causou jamais pôs nele intento.
Se passo perto dela, é impercebido e isento.
Sempre a seu lado estou, mas sempre no degredo.
Da vida irei ao termo, assim discreto e quedo,
nem nada ousar nem ter, recluso em meu tormento.

Ela, entanto, que Deus fez boa, terna e santa,
o murmúrio de amor que empós de si levanta
sem nunca ouvir, abstrata, à frente seguirá.

Austera no dever em que, constante, vela,
há de exclamar, lendo estes versos cheios dela:
“Mas quem é essa mulher?” e não compreenderá.

[Leio o carinho e o capricho desses versos e fico pensando no que significou para o Lourenço traduzi-los. Como os apresentou / ofereceu depois a D. Alaíde? Com que palavras? Perguntou pela tradução, se era bonita, se estava perfeita? Ou ficou olhando os olhos dela, para ver a alegria dela, sentindo-se louvar pelos poetas, louvar-e-louvar pelo marido, sob color de poema? Releia-se o poema, reveja-se a homenagem, sinta-se o orgulho do marido: “Benigna e simples, ela segue, a festa / do seu louvor sentindo, ao caminhar”. “Ela, entanto, que Deus fez boa, terna e santa, / o murmúrio de amor que empós de si levanta / sem nunca ouvir, abstrata, à frente seguirá”. É o marido contente de ver que os outros vêem e admiram sua amada. O louvor dela é o murmúrio deles, o silêncio dela, a atenção dele. Grande Lourenço!]

O terceiro exemplo, magistral, é a tradução do livro de Henriqueta Lisboa, MONTANHA VIVA – CARAÇA . O primeiro a traduzir o Caraça de Henriqueta foi o Pe. Pedro Sarneel, lazarista, ex-professor no Caraça, latinista da melhor cepa. Henriqueta se inspirara muito no Guia Sentimental do Caraça, escrito pelo Pe. Sarneel, que foi seu guia na visita que fez ao Santuário em 1956.

Escrevi na introdução da edição bilíngüe (p. 9-10) da MONTANHA VIVA / MONS VIVUS:

“O Caraça, sítio de peregrinações, eremitério, colégio e enfim seminário, pareceu a Henriqueta Lisboa antes 'um conceito de vida, uma forma de existir, uma filosofia tanto mais real quanto mais poética'. Densidade e valor real das coisas, na proporção da poesia que encerram: este é o Caraça apresentado em Montanha Viva. Henriqueta Lisboa se aproxima da Montanha, dos personagens, das lendas, da concepção de vida e das linhas pedagógicas do velho colégio, das suas relíquias, de suas flores e seus animais, de sua herança cultural, do seu fascínio, com atitude de interrogação (...), admiração (entendida como 'coração tomado de maravilha' e também como contemplação), embebendo-se do ambiente, e procura descobrir, por sintonia, nas fibras mais íntimas, a resposta ao mistério do Caraça:

Aonde vai essa gente a subir a encosta,
essa gente que leva o semblante sombrio
e entrementes recobra o sorriso da infância? (...)
Tudo é misterioso ao extremo.
E eu bem quisera, unida à montanha viva,
participar do segredo que se resguarda
no seio das pedras sob a coroa de nuvens. [Romaria]”

Nessa descrição palpita o coração do Lourenço, chegando menino ao Caraça, como ele se descreveu:

“Subiram mais. Andaram mais. De repente, desde uma aberta entre árvores, numa curva da altura, avistou, ali na frente, o Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, o CARAÇA, projetando a sua massa branca e a torre do seu templo, contra o fundo escuro das montanhas!” (Xavier e o Caraça, p. 30).

Na descrição de Henriqueta palpita ainda o coração do Lourenço saindo moço do Caraça, comoele se descreveu:

“Da mesma curva em que, olhando para a frente, José Vieira enxergara o Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, seis anos passados – agora, olhando para trás, também o avistava, mas com que diversos olhos!” (ib., p. 68).Das dificuldades de verter em latim a poesia de Henriqueta falaram o Pe. Sarneel e o Lourenço, nas introduções que escreveram. Disse o Pe. Sarneel: “Comecei a traduzir com otimismo. Bem cedo, porém, desanimei. É impossível vestir elegantemente com roupagens à antiga uma composição literária de estrutura moderníssima.

(...) Desanimava. Desisti. Fechei dentro da gaveta os meus primeiros rascunhos, os meus pobres ensaios e arranjos. Tinha cruzado os braços. Mas Horácio me aconselhava que continuasse a malhar na bigorna da minha tenda. Ovídio me prometia que o amor havia de superar todos os obstáculos, e Vergílio me assegurava que o trabalho perseverante tudo vence. Recomeço a traduzir. Rasgo os versos já feitos. Mudo de técnica e tática. Não medirei mais hexâmetros nem mesmo graciosas estrofes sáficas tão do meu gosto. Imitarei os poetascristãosda Idade Média que criaram uma nova métrica para o canto dos seus hinos e seqüências litúrgicas.

Fui feliz na revolução? Talvez não. Mais valor cultural teria, sem dúvida, a minha tradução se fosse em versos virgilianos, mas menos fiel eu seria em reproduzir a versificação de Montanha Viva que é libérrima e muito variada” (Montanha Viva / Mons Vivus, p. 18-19).

Disse o Professor Lourenço:

“É rotina comum traduzir do latim ao vernáculo, não porém traduzir ao latim, língua que deixou de ser primeira, quando deixou de ser nativa para um povo; a posse de meia força que oferece aprende-se na fala escrita dos antigos, muito sujeita a mitos de exegese, na mal segura diacronia do passado; no íntimo vigor do seu poder, sumiram-se matizes da cor autêntica, vernácula; isso dificulta traduzir ao latim sobretudo uma poesia moderna como a de Henriqueta Lisboa, dona de claros ritmos recentes, onde voga a beleza, ora em largos de sinfonias de Beethoven, ora em leves de suavidade à Debussy.

Tivemos, pois, de transigir, ao ver que não podia espartilhar-se, em metro horaciano, o lucro estético de Montanha Viva. Usou-se, em vez da métrica romana, a intensidade pós-românica do metro; em vez de certos ritmos liberados, na música da autora, um nivelar mais comedido, nos versos em latim; em vez de rimas, quase como querendo compensar, uma presença intencional de muitos dáctilos finais. (...)

Foi isso que sentiram bem, os tradutores, na poesia de Henriqueta Lisboa; parecia mais densa que o latim. Viram ainda como é relativo, de importância mecânica, o fato de valer, por duas nossas, uma palavra única latina. É que o traduzir, seja para cá ou para lá, requer um trato especial de analogias, com paráfrases e mais expedientes, como o decalque por exemplo, mero disfarce que repete em vez de traduzir, na esperança de ver iluminadas, pelo novo contexto, a cor do empréstimo e a força do sentido.” (ib., p. 21-22)

Um exemplo, com o poema em que Henriqueta Lisboa descreve/intui/sugere a aparição de Nossa Senhora ao Fundador do Caraça, Irmão Lourenço, quando morria:

APARIÇÃO
Alguém penetrou a furto na cela escura.
Alguém tocou as tábuas toscas do assoalho.
Alguém se aproximou docemente do leito rude.
Talvez uma fímbria de luar entre arbustos,
um cálido estalido de madeira, espontâneo,
a evocação de um afago materno.
Porém o lírio da madrugada descerra as pétalas,
o véu da montanha torna-se diáfano,
a água de que bebem os pássaros transluz:
Na alcova do ancião enfermo – toda bela,
Maria.

VISIO

Videtur quis in cellam furtim intravisse.
Videtur tabulatum pede tetigisse
et rudem ad grabatum proxime cessisse.
Forsan lunaris fimbria ut quando inter arbusta
seu crepitus in ligno sponte sua factus
seu maternae blanditiae in mentem revocatio.
Sed vere radiat matutinae lucis lilium,
fulget translucidus in monte levis nimbus
et luce splendet aqua clara avibus grata
dum tota pulchra infirmi senis in cubiculo
stat Maria. (ib., p. 46-47).

Nessa luz, transfigurado, Lourenço consumou em Deus sua existência.

Rio de Janeiro, 28 de abril de 1984
Roma, 6 de janeiro de 1987
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2004

 

 

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