Mons Vivus tem dois autores: um, professor
do Caraça no início do século, foi perito
em poesia latina. É o saudoso padre SARNEEL, falecido em
1963. O outro é um ex-aluno do Caraça, entre 1916
e 1922.
É rotina comum traduzir do latim ao vernáculo,
não porém traduzir ao latim, língua que deixou
de ser primeira, quando deixou de ser nativa para um povo. A posse
de meia força que oferece aprende-se na fala escrita dos
antigos, muito sujeita a mitos de exegese, na mal segura diacronia
do passado. No íntimo vigor de seu poder, sumiram-se matizes
da cor autêntica, vernácula. Isso dificulta traduzir
ao latim, sobretudo uma poesia moderna como a de HENRIQUETA LISBOA,
dona de claros ritmos recentes, onde voga a beleza, ora em largos
de sinfonias de Beethoven, ora em leves de suavidade à
Debussy.
Tivemos pois de transigir, ao ver que não podia espartilhar-se, em metro horaciano, o lucro estético de Montanha Viva. Usou-se, em vez da métrica romana, a intensidade pôs-românica do metro. Em vez de certos ritmos liberados, na música da autora, um nivelar mais comedido, nos versos em latim. Em vez de rimas, quase como querendo compensar, uma presença intencional de muitos dáctilos finais.
Com essa infidelidade instrumental, insinuou-se,
inevitável, a coleante infidelidade semântica, tributo
costumeiro, pagado à forma interna do idioma. Faz-se maior
o esforço de criar, quando se quer obter, por outras sintonias,
a mesma comunhão do original.
Tomás de Aquino recomenda ao tradutor: -
conserve a sentença, mas troque o modo da expressão
pelo da língua em que traduz: - servet sententiam,
mutet autem modum loquendi, secundum proprietatem linguae in quam
transfert. Resta saber se a tradução recebe
idêntica, nas morfias do agora, uma essência encontrada
em morfias de outrora, visto que o tempo é um pertinaz
transformador diacrônico. No último bimilênio,
tornou-se mui notável a distância entre o modo romano
e o modo moderno. Influiu mais que antes, na mesmice genérica
do homem, a variação específica dos homens.
Esteve mais sobre si, na hominidade
geral da humanidade, a hominidade
peculiar dos indivíduos, iniciados na tensão aristotélica,
na melodia comum dos hábitos humanos. O estilo pessoal,
multiplicando invenções, foi derramando a cor do
subjetivo, na semelhança geral da sincronia, cujo fugaz
momento muda e passa, no suceder tradicional da diacronia. Por
sintoma fatal a uma língua comum, entrou nessas mudanças
o fracionar-se do latim romano, dialetado em idiomas pós-românicos,
moldado cada um com sua forma interna, em seu doméstico
feitio.
Num estilo vernáculo, a forma e o conteúdo
casam por ajuste costumeiro, e essa intimidade cultivada nem sempre
encontra, em outra língua, a segura expressão correspondente.
Promete ser maior o desajuste, se é maior a distância
dos momentos.
Foi isso que sentiram bem, os tradutores, na poesia
de HENRIQUETA LISBOA. Parecia mais densa que o latim. Viram ainda
como é relativo, de importância mecânica, o
fato de valer, por duas nossas, uma palavra única latina.
É que o traduzir, seja para cá ou para lá,
requer um trato especial de analogias, com paráfrases e
mais expedientes, como o decalque por exemplo, mero disfarce que
repete em vez de traduzir, na esperança de ver iluminadas,
pelo novo contexto, a cor do empréstimo e a força
do sentido.
Mons Vivus mostra o que se obteve, ao se
latinizar Montanha Viva. Que valha, ao menos, como preito,
nossa boa intenção de louvar o Caraça, estância
onde o latim foi mais mineiro e o Brasil foi mais cultura ocidental.
Seja penhor de nossa devoção este nosso carinhoso
entretenimento impossível. No belo ramo de poesia recendente,
a fita de latim que foi passada põe cor local de mais intimidade,
junto ao altar que tem, lá na montanha, Nossa Senhora Mãe
dos Homens.
Belo Horizonte. Natal de 1963.
J. Lourenço de Oliveira.
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