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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Conceitos de Lingüística Fabular
Vida: 1962

O TEMPO E A FUNÇÃO FABULAR

 
 

Revista da Universidade de Minas Gerais, n.° 12, 1962; Conceitos de Linguística Fabular (p. 130-148)

 

1 - GÊNESE

Olhando o verbete tempo, no dicionário de Lalande, pode-se dali tirar três idéias do tempo, visto como sucessão, continuidade e meio fenomênico. A sucessão vai de um evento a outro evento. A continuidade vem na deveniência por que um presente se faz passado. O fenomênico, análogo do espaço, meio indefinido, contém o evento. Newton achava que o tempo existe em si. Mas Kant achava que só existe no pensamento.

Nas minhas velhas meditações de linguagem, fui levado a uma outra idéia do tempo, quando comecei a refletir na erigem da manifestação fabular, transgredindo os vedados términos da Lingüística Francesa, que infielmente acompanho. A questão da origem, diz Saussure, ce n'est pas même une question à poser. (Cf. Cours, p. 105). Levantando a questão, acabei supondo que o ato fabular - entre Primo que fala e Secundo que ouve - teve início num procedimento teatral, no dia em que nele se começou a imitir uma intenção veicular, um endereco interindividual.

Feita a hipótese, foram logo surgindo conseqüências revolucionárias:

- vi que o homem, desenvolvendo uma capacidade fabular chamada linguagem, praticou um exercício fabular chamado fala, criando um patrimônio fabular chamado língua ;

- vi que a língua não é um sistema e sim um produto. Foi partindo de uma concepção da História, hegelianamente definida como Vontade, que Schleicher, ao ver que a língua se faz fora da vontade, achou de concluir que a lingüística não é matéria de História, mas de sistema. Apoiado nessa idéia, armou Saussure aquela sua enganosa e travada sistemação de antinomias. Entretanto, uma boa meditação, que não carece de Hegel, mostra-nos a fala gerando a língua, tempo em fora, como um produto;

- vi que a fala se traduz na frase, diacronicamente afeiçoada, sendo pois a frase, e não o vocábulo, a primeira unidade da língua. Uma frase não se faz de vocábulos. Em verdade, o vocábulo, não só não faz a frase como até se fez na frase;

- vi muitas outras coisas que não é hora de esgotar, pois já podemos concluir com uma conclusão importante: se a língua não é um sistema e sim um produto, que vem da fala, se a fala é uma expressão do homem, que é um ser histórico - então a Lingüística não tem base peculiar que lhe permita a autonomia de um sistema, devendo portanto imergir no tempo, imergir na História, imergir nas ciências do Homem.

Essa História em que tem de caber, começou no início da hominização, naquela fase imemorial em que um ser meramente zoológico, ens álalum, ganhou o poder fabular, o poder espiritual do homo lóquens.

A História começou com a vida do homem, atribuindo-se ao vocábulo vida aquele sentido primeiro de Ortega y Gasset, quando diz que "vida" é o que aparece na biografia e não o que aparece na biologia.

A História, dizia Hegel, é a mais alta forma de conhecimento. De fato, no infindável ciclo iterativo do fenomênico, e ciência física estuda redutibilidades e mesmices. A História, porém, conta a história do Espírito.

 

2 - NÍVEIS

Floresceu na Grécia, banhada em luz mediterrânea, a curiosidade racional. Opondo-se metodicamente, como do Sujeito, ao externo Objeto, o homem helênico foi transformando em astronomia o que para os caldeus era astrologia. E em ciência da natureza, o que para os orientais era magia.

Até na língua se vê indício desta atitude racional, como no modo, por exemplo, de chamar o "fogo" e a "água". No latim, ignis aqua, e no sânscrito, agní ápah, os vocábulos de tais elementos são do gênero animado e mítico. No grego porém, púr húdor, o gênero é objetivado e neutro. Já viam como sem alma elementos tão repercussivos, na imaginação do homem arcaico.

Esse enfrentar a coisa com vontade de entender representa um momento plástico e fecundo, na progressiva linha hominizante. Já estava longe, na espessura multimilenar da distância evolutiva, o antigo nível da mera reação vital ante a coisa. E não estava longe o nível de ensaio e erro, cujo exercício propiciava a riqueza, no domínio oicológico da terra. Agora, na contemplação racional, vencendo a barreira do infralógico, definia-se o homem como criador.

Na prática da capacidade fabular, recurso de ação interindividual, o homem desenvolveu a socialidade. Na prática da ordenação metódica, ia desenvolver a conquista do mundo.

O passo histórico desta diferença marca dois níveis de importância, na marcha da espécie: o da folga meramente vivencial, infra-lógico ou pré-aristotélico, e o nível aristotélico da eficiência racional.

Busca-se na Grécia a referência e toma-se por símbolo o Estagirita, porque ele dominou a inteligência mediterrânea longamente, ao longo de uma idade que foi cristã na fé e aristotélica na razão. Ainda em pleno século XVII, seu poder continental provocava a reação insular do empirismo britânico, expressa na humorosa declaração de John Locke: Não é verdade que Deus, economizando no homem, apenas o tenha feito com duas pernas e tenha deixado a Aristóteles a incumbência de o fazer racional. God has not been so sparing to men, to make them barely two-legged creatures, and le ft it to Aristotle to make them rational.

Esse dizer de Locke era um tiro de graça mas não era um tiro de misericórdia. Além de tudo, mirava, não ao filósofo, mas ao seu prestígio europeu. Em assunto de espírito contra o espírito, Hegel ia fazer muito pior, atirando um zaguncho pesado contra um coetâneo de Locke, o grande Newton. Diz Hegel: "Três vezes foi fatal a maçã: foi fatal ao homem com Adão. Foi fatal a Tróia com Páris. E foi fatal à ciência com Newton."

 

3 - A CIÊNCIA

Hegel não teve graça contra Newton. Cabe, um motejo, quando é caricatura do verossímil, não quando sonega um consenso.

Na observação física, a ciência de Einstein superou a de Newton, que ultrapassava de muito a ciência de Aristóteles, enorme para seu tempo. Na ciência do Espírito, não se pode alinhar um tão claro progresso. Faltam-lhe Newtons que lhe apurem alguma exatidão de sistema. O Espírito é uma qualidade que se avalia e não uma quantidade que se pesa.

Se Hegel não teve graça, teve-a Locke. Mas não teve razão. Na linha da hominidade, primeiro se vê surgir o ser fabular, vivencial. Depois, milênios e milênios passando, é que entra o uso de razão, vindo com a Grécia.

No meu tempo de catecismo, ensinava-se que a idade de razão vem com os sete anos. É admissível, portanto, que após deixar a espécie em longa infância, Deus haja mandado que o homem fosse aprender a lógica de Aristóteles. E o homem foi. Mas, daí por diante, absorvido no empenho de ordenar o mundo, foi esquecendo de se ordenar a si mesmo.

Desenvolvendo os germes da cultura helênica, ressemeados pelo Renascimento, a perquirição física do século XIX armou o poder do século XX. Em tal poder, o que mais aparece é o poder de ver e mover, com grande lucro lúdico do vulgo. Para grandes deslocações espaciais, a mecânica aumentou a mobilidade animal: antes do homem vai um cão.

É fruto de uma teoria inicialmente helênica, somada a dois milênios de exercício, esse nosso formidável domínio, servilizador da natureza. Posse quantiadora e dispositiva, que tem permitido à diligência de alguns, alargar e alargar os sentidos de todos. Já é tempo de o homem olhar mais, para dentro de si, construindo, sobre o Sujeito, teorias tão úteis como as que tem sobre o Objeto.

A ciência física toma da matéria, examina-lhe o proceder, extrai-lhe o juro de muitas vantagens para nossa instalação animal e assim muito nos contenta. Mas só vê procedimentos. Ao buscar o ser que procede, então ele se dilui em fórmulas de energia. Na ciência do Objeto, portanto, não existe solução para as angústias daqueles que, em vez de milhões, estão querendo resposta aos seus porquês.

Entretanto, o racionalismo do século XIX procurou integrar a ciência do Homem na ciência do Objeto, continuando-se até hoje a posição. Estabelecida a hipótese evolucionista, a psicologia do procedimento fez-se psicologia zoológica, admitindo um campo residual do "espírito" para os restos de reações cheias de restos. Não conta com o tempo e quer medir só o biológico. Pesquisando a fabularidade, sinal específico do homem, a lingüística se arvora em sistema e descarta o problema da origem. Na ciência que estuda a sociedade, o homem já aparece como "homem", ao qual se distribui graduação de civilidade, conforme alturas de seu agrupado urbano ou tribal.

A psicologia rodeia as formas do procedimento biológico. A lingüística ordena formas da língua. A sociologia confronta formas da sociedade. A história ajuda a todas ou em todas se recita a história. Entretanto, falta uma conveniente imersão histórica. Não basta imergir no tempo da humanidade. Cumpre observar também o tempo hominizador. Não o tempo cronometrado, tela de projeção dos eventos, mas o tempo eficiente, condensado em hominidade. Tempo legítimo, que só ele é tempo, e não o tempo análogo.

 

4 - HOMINIZAÇÃO

O ordenador do mundo com apenas dois milênios de efetivo exercício, conta um vastíssimo passado de preparação. É a longa infância da humanidade, desde a promoção a homem do não-homem, desde o início da capacidade fabular, numa era facilmente lançada para além da cota dos 500 mil anos.

A assimilação tradicional do passado, amadurecida em vivências, é que constitui a consciência do homem histórico, Em nível infra-aristotélico ela não floresce. Falta-lhe dimensão de tempo em que se condensar. O que aí germina é uma consciência mitizada e difusa, desmarcada e fantástica. Só um vivo sentimento de tempo, mediterraneamente elaborado, faria dizer como Baudelaire: J'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans.

Começou no esforço de compreender o Objeto, com os físicos jônios, a ordenarão racional dos gregos. Veio depois o esforço de compreender o Sujeito, na pedagogia dos sofistas e principalmente com Sócrates.

De tais dois pontos partiram: a ciência do fato, verificadora do físico, e a ciência do direito, denormadora do social. Costuma-se falar em "ciências de fato" e "ciências de direito".

A inteligência triunfou largamente, na ciência do Objeto, grande provocador de nosso gosto lúdico. Examinou-se pacientemente o fato físico, o procedimento da matéria.

Entretanto, na ciência do Sujeito, não conseguimos ultrapassar os fundamentos de Sócrates. Repetimos, sem vantagem, a lógica, a ética e a estética, de Platão a Aristóteles. A filosofia contemporânea tem glosado a intuição e o saber discursivo, coisas que já eram, em Platão, nóesis e diánoia. Troca-se um pouco daqui e dali, sobredominando o grande tema da intuição, que Santo Tomás colocara acima da inte1igência e Bergson colocou abaixo do instinto.

Tais subtilezas não podiam empolgar o século XIX, que não era de Santo Tomás e sim de S. Tomé. Preocupado em "naturalizar", ele acabou "animalizando" o homem. Quando o mergulhou na evolução e viu que subia na escala zoológica, em vez de descer das mãos de Deus, então ficou espantado, e insistiu no sadismo de reincluir o homem no rebanho, esquecido de que era homem, ordenador do Real. A metódica do século não soube discriminar entre a ciência do Objeto e a ciência do Sujeito. Só viu o homem biológico, máquina vital, e pois, Objeto. Olvidou o Espírito, que está no homem, ser cognoscente, logo Sujeito.

Para começo de ordenação da ciência do Sujeito, vale a notícia de que o homem é uma expressão espacial em busca de tradução temporal. É um ser que se faz tempo e emite tempo nas coisas, de si acrônicas e espaciais. É um ser histórico por definição.

 

5 - CENTROS

Desde Aristóteles, com a filosofia primeira ou teológica e a filosofia segunda ou física, a tradição mediterrânea situara o homem num cosmo teocêntrico. Examinando a tensão entre o humano e o divino, a inteligência ordenava o criado em função do Criador.

A partir do Renascimento, sem se negar a filosofia primeira, começou a crescer a importância do homem, num cosmo praticamente antropocêntrico.

No século XIX, com exaltação da filosofia segunda e o fervor racional da pesquisa, foi relegada, e até renegada, a filosofia primeira. O homem, posto no centro do mundo, fez-se medida de todas as coisas. Avassalado por simpatia atávica, diluiu o Espírito na função biológica, anulando, ante impulsos vitais, a produção diacrônica da energia hominizante. Imergido no Objeto e nivelado com o bruto, viu-se no seu cosmo zoocêntrico.

Envolvido que estava na surpresa gloriosa de tantos achados, pode-se-lhe desculpar a espontaneidade. Mas o fato é que não soube ver a força condicionante dos milênios e esqueceu a distância que separa, da fosca sensibilidade nebular do pitecantropo, a clara expressão mental de Platão.

Estão por aí, fermentando, os efeitos do zoocentrismo. Admitido que Adão tinha sido macaco, entrou a funcionar a saudade animal. Não se deu importância ao hiato, nem se ponderou muito o sentido da ascensão. Por outro lado, não era difícil diluir a alma em biologia e reduzir o pensamento a secreção glandular ou excreto cerebral, embora isso não desse na cabeça de nenhum outro dos demais antropóides, apesar da mesma possibilidade biológica, da mesma garantia oicológica, na mesma diacronia de milênios.

Comprimido o homem na estreita dimensibilidade zoológica, e esbulhado de seu Sujeito por anulação de seu tempo, começou a vogar a psicologia sem alma e a sociologia gregarizante, mera sociologia de rebanho, posta em voga pelo marxismo intelectual do Ocidente, e posta em prática pelo "massante" Estado Socialista.

Assim veio progredindo, sempre e sempre, o esfacelamento da tradição mediterrânea:

1°. aquela irracionalidade da inteligência moderna, começada no Renascimento, como aponta Whitehead;

2°. esta nossa disponibilidade moral, depois que fomos reduzidos a desmotivação, pela ética do século XIX;

3°. a fascinação lúdica de nossas facilidade mecânicas, num mundo oicologicamente bem fornecido, contracenada pela neurose traumática de nossas guerras.

 

6 - PERSPECTIVA

Na máquina de viver a natureza armou duas necessidades: uma, a pervivência do indivíduo. Outra, a sobrevivência da espécie. São necessidades do plano vital. No homem, porém, há um plano vivencial acima do plano vital. O plano vivencial contém uma oficina de recondicionamentos, onde o estímulo vital se reelabora em criação, eximindo ao plano da necessidade a resposta de nossos procedimentos.

Adstrito a contingências do meio, o bruto adapta-se ao mundo, enquanto o homem adapta a si o mundo, pois rege contingências do meio. Para isso, a humanidade foi capitalizando juros do contacto vital, através de experimentos primeiro só casuais e depois também programados. O mundo que se interna em consciência é um mundo que se elabora em criação.

Na função biológica, já foi dito, a necessidade cria o órgão. Na função espiritual, pode ser dito, à necessidade cria o órgão, gerando o hábito de um novo procedimento. Veja-se um exemplo na saturação condicionante da propaganda moderna. Ela é capaz de criar, em certos "boys", a carência "biológica" de beber coca-cola. Ou ainda, o que é muito pior, ela é capaz de criar carência "racional" de marxismos, em certas inteligências imaturas.

Desenvolvida no plano vivencial do espírito, nossa hominidade é uma estrutura de opções e não uma estrutura de necessidades. Razão por que a economia humana, economia política, se o campo é de criação e de opções, não pode ser reduzida a estreitezas da economia animal, regida pela necessidade. A economia humana é uma capitalização de possibilidades.

Eximir-se da necessidade biológica, sublimada em vivência criadora, nisso consiste nossa hominidade, nisso consiste o homem.

Custou muito, e sempre custa, levar do plano biológico ao plano do Espírito, a regência da vida. Foram necessários extensos milênios de capitalização.

O materialismo econômico é fruto de uma grosseira miopia, com sua visão anti-humana e anti-histórica. Representa a teoria de um século que não soube ver a hominização da espécie. Um século que fundia, em sistema único, a ciência da matéria ordinanda, regida de necessidade, e a ciência do ordenador da matéria, instituído em liberdade.

 

7 - A FALA

Há um conto de Eça que começa: Adão, pai dos homens, foi criado no dia 28 de outubro, às 2 horas da tarde. Aí se narram as aventuras primeiras do marido de Eva, ao sair da "mata onde passara a sua manhã de longos séculos" enquanto lhe ia surgindo "dentro do crânio bisonho, como uma alvorada que penetra numa toca, o sentimento das formas diferentes e da vida diferente que as anima". Finalmente comenta o autor: "Sois já irremediavelmente humanos, e cada manhã progredireis, com tão poderoso arremesso, para a perfeição do corpo e esplendor da razão, que em breve, dentro dumas centenas de milhares de curtos anos, Eva será a formosa Helena e Adão será o imenso Aristóteles! "

É uma jóia, o conto. Sob a finura maliciosa do estilo, e o sabor finissecular do tempero, corre uma vigorosa imaginação evolucionista, bem afinada com a hipótese de que a Natureza, um dia, no desvão esconso dos milênios, apôs haver escolhido, numa grei antropóide, o destinado macaco, aí lhe concedeu o poder germinal de um futuro Mister Universo.

O que o século XIX não supôs foi o poder da fala como instrumento da evolução: o poder da eficiência fabular, criando a transitividade mental e a socialidade entre os indivíduos, veiculando a idéia individualmente elaborada e interindividualmente enriquecida, durante a comunhão das vivências e a diacronia da tradição. Faltou ver que a fala hominizou o homínida. É uma hipótese que hoje se faz, graças a várias subministrações da Sociologia, à concatenação diacrônica da Lingüística e à teoria do condicionamento de Pávlov.

Conseguido o modo de simbolizar a representação mental, posto a serviço da sintonia inter-individual, aí começou a diferença que vai do macaco a Platão. Diferença que foi deixando registro de si, na carta subcraniana do neo-encéfalo.

Foi o exercício fabular o eficiente obreiro da especificação, recondensado em tempo o indivíduo, desde aquele momento em que ficou possível, mediante vozeio veicular e fiduciário, provocar a idéia sem a coisa, na simultânea representação de Primo e de Secundo.

 

8 - HIPÓTESES

Na estrutura da capacidade fabular, meio de superação do plano zoológico, há sinais de três aptidões biológicas: sensibilidade, mobilidade, vocalidade.

I. A sensibilidade carreia estímulos que vão da coisa ao centro do sistema, eficiente proporcionador de equações vitais entre o indivíduo e o meio. Surgido o estímulo surge a resposta, promovida por reflexos equacionais.

No homem contudo, provido de energia superadora, desenvolveu-se outro centro, acima do primeiro, que é zoológico, vital: nesse outro centro, vivencial, o reflexo primário se converte em potencial reflexivo. Aí se recondiciona a resposta, imbuída de tempo. Em vez da resposta reflexa, mecânica - a resposta ventura, possível.

Foi assim que o Sujeito aprendeu a inovar o sentido do estímulo, a explorar as energias do meio oicológico, recriando um mundo mental de que vive, vivendo no mundo.

II. A capacidade mímica e lúdica é um poder da mobilidade animal. Na função lúdica, o indivíduo finge um procedimento. Reproduz, em situação de brinquedo, estruturas de uma recreação que a vida costuma exigir. Na função mímica, ele aprende a copiar feitios vistos, inclusive através de lições policiadas, que o filhote recebe dos pais.

III. A vocalidade vem da capacidade fônica, um poder de emitir vozes expansivas, provocadas por estímulos vitais.

É impressionante que a energia homínica haja encontrado na voz o grande veículo da superação, enobrecendo o exercício de uma aparelhagem primariamente zoológica. Pela fala, o homem recondicionou em vozeio expressivo o que era voz expansiva comum. Ao vozeio estilizado, prendeu um conteúdo vital, que desprendera do estímulo aderido à coisa, depois do elaborado em conteúdo vivencial.

Surgiu longínqua, na antemanhã da espécie, a instituição tabular. Imagine-se Primo e Secundo, na mesma sintonia vital e no mesmo procedimento comum de reação ante a coisa, emitindo gestos e vozes, iterativamente teatrais, que acabam adquirindo sentido de intenção, principalmente nas horas lúdicas de fingimento e mímica, horas de repetição vivencial, já não mais ante a coisa.

O ato-de-fala deve ter nascido de procedimentos assim teatrais, mediante conjugação da capacidade mímica e da capacidade fônica. Esse procedimento teatral como um todo é que se fez veículo da representação mental, dinamizado pela intencão expressiva. Se lhe chamamos "ato-de-fala" é por adiantamento de nomenclatura, numa fase em que o vozeio era parcela modesta, fundindo-se a parte auditiva na forte função da parte visual. Para esse tempo, a melhor denominação é a de "procedimento teatral", admitido o adjetivo como ligado à idéia "ver", que está na raiz do vocábulo grego de "teatro".

O que define o ato fabular é a intenção. Intenção de estabelecer entre Primo e Secundo, não a sintonia vital ante a coisa, mas ante a idéia da coisa, vivencialmente elaborada no Espírito.

Com a superação, a voz foi avultando em capacidade. Além da antiga voz expansiva, provocada pela presença material da coisa, na hora vital, ela se fez também voz expressiva,provocadora da presença mental, na ausência da coisa.

Assim o homem foi aprendendo a construir, sobre o esquema de um procedimento vital presencialista impulsivo o esquema de um procedimento vivencial ausencial reflexivo.

Aprendeu a guardar a reação para outro lugar-e-hora, eximindo-se à servilidade hic-nunc-ista do procedimento zoológico.

Elaborando o mundo no Espírito, mudou o reflexo do meio em reflexão sobre o meio.

Criou a sua riqueza mental, fabularmente veiculada no intercâmbio, inter-individualmente afeiçoada na sintonia, humanamente capitalizada na tradição.

Aprendendo a distribuir a existência entre procedimentos vitais, zoológicos, e procedimentos vivenciais, homínicos, foi nutrindo o seu Eu, através das idades, construindo um Sujeito que ordena o Objeto.

 

9 - PRINCÍPIOS

Pela superação, a humanidade pode sublimar impulsos de empatia, simpatia, antipatia, convertendo em socialidade a contigüidade gregária.

É costume repetir-se, nos lingüistas, que a fala é individual e a língua é social. É culpa da Lingüística não haver equacionado melhor o problema, por evitar a questão da origem. Caso recedesse à nascente, iria ver a fala socializando o homem e produzindo a língua. O que a caracteriza não é o fato de ser um procedimento individual, mas o fato de conter uma intencão veicular, um endereço interindividual. É de Primo o procedimento, mas é um procedimento para Secundo.

A fala é social, enquanto a língua é um mero estado intra-individual. A fala é ato e a língua é potência. A fala é produtora da língua e a língua não é produtora da fala. A fala nasce de outra fala.

O ato fabular é um procedimento iterativo, principalmente no seu nível inferior, de hominidade menor. Na tradição fabular, Secundo, ao receber a mensagem, com ela recebe o molde, que depois lhe serve, quando também transmite. Já vem no procedimento anterior a receita do posterior. Nessa iteração cotidiana é que se adquire a posse da língua, recebida em lenta infusão fabular condicionante.

Para o uso comum chega a posse comum. Dela vive a comum humanidade. Mas o homem aristotélico, pertinaz ordenador do fenomênico, indo além da posse comum, quis também adquirir a consciência da língua. Era um estudo subtil, evasivo e subtil como a própria hominidade a que serve. Não admira, portanto, que nele se enganasse o primeiro ensaio mediterrâneo.

Inspirando-se no pressuposto de que o vocábulo nomeia a coisa, a lingüística dos gregos partiu do vocábulo. Para que vissem bem, não havia luz bastante.

Se passamos à lingüística do século XX, notamos que ela também é "vocabulista". O fato admira e faz pensar na humildade em que estão as ciências do Homem.

Saussure repetiu e todo mundo repete afirmações que tais: o vocábulo é a primeira unidade da língua. A frase é feita de vocábulos.

Já era tempo de ver que a primeira unidade é a frase. Já era tempo de ver que o vocábulo não faz a frase mas, pelo contrário, se fez na frase. Já era tempo de ver que a língua é um extrato da fala, sedimentado num estrato bem mais complexo do que uma resenha de vocábulos: primeiro os moldes da frase, da melodia, dos sintagmas. Depois, em anatomia menor, o vocábulo, etc.

 

10 - HIATO

No mistério da superação existe um passo, ou falta de passo, que tem preocupado o naturalismo zoocêntrico: falta um elo na cadeia evolutiva e sobra um hiato na via que vai do antropo até o piteco. Parece também que só uma família zoológica recebeu o favor da mudança e isso dá na curiosidade de saber porque o orango e o chimpa tiveram de continuar na sua mesmice antropóide, sem direito a promoção, num mundo igual para todos.

Nessa lacuna de ignorância, lançamos uma hipótese fabular, imaginando como foi que se fez humo lóquens um ser que antes não falava, ens álalum, e não era homem.

A hipótese, como vimos, finge Primo, ante Secundo, reproduzindo gestos e vozes em que punha uma intenção de significar alguma coisa que passava dentro dele, Primo. Essa alguma coisa, nesse procedimento teatral, podia ser uma intenção imperativa, invitativa, ou simplesmente expansiva. Sabemos como o animal domesticado mostra ao dono uma "intenção", por meio de procedimentos teatrais. Estilizando a função mímica e a função fônica, munidas de intenção veicular, a humanidade foi criando a fala. Primeiro o signo adjacente, pouco diverso do signo aderido, mais o predomínio do visual sobre o auditivo, num contexto de procedimento (vivencial) que era cópia agarrada do procedimento vital. Depois, vindo a melhoria veicular, a progressiva liberação do signo auditivo, a capitalização dos milênios...

Queremos relembrar, em exposição tão imaginária, a diferença entre uma sintonia vital e uma sintonia fabular.

É vital ou zoológica, a sintonia estabelecida entre o indivíduo e a coisa emissora de estímulos: repercutindo sensoriamente no estimulado, a coisa provoca uma resposta zoológica, um procedimento vital. No indivíduo gregário existe um condicionamento de co-sintonia (ou sis-sintonia), pelo qual o indivíduo B reage, mimicamente, estimulado não pela coisa mas pelo procedimento do indivíduo A.

A co-sintonia é uma distribuicão interindividual da sintonia, em dois indivíduos simultaneamente estimulados pela coisa. Ela tem de ser imaginada como fase anterior à sintonia fabular. Acontece, até hoje, de Secundo não entender a fala de Primo, quando a significação é de língua não comum aos dois.

A sintonia fabular, veiculando vivência, tem de ser posterior à sintonia vital. Assim como a co-sintonia vital é de dois indivíduos ante a coisa, a sintonia fabular é uma co-sintonia ante a representação mental, isto é, ante a idéia rivencial da coisa.

A sintonia vital é interindividual ou não: a sintonia fabular, ou vivencial, é interindividual por definição.

A grande sabedoria da natureza está na equação vital instintiva, resolvida em procedimentos de primeira vista, em sintonia original. O comum procedimento zoológico abrange um patrimônio de receitas adquiridas. experimentalmente condicionadas. Mas há procedimentos fundamentais, não aprendidos: é tão estreita a faixa existencial, entre certos animálculos, que nos dão a impressão de eles não viverem a vida e sim de a vida os viver.

Como exemplo de procedimento fundamental, há um caso da cadelinha Diana, criatura de cidade, nascida e crescida intra-muros, que nunca saiu à rua e nunca foi ao circo. Não tem mais convívio animal que o dos voláteis do terreiro. Dali noticia latindo tudo que passa na entrada da casa. Se entra "alguma coisa ", dirige-se à porta da sala, com intenção de inspeccionar, chegando em som policial. Nunca ouvira falar em onça. Mas um dia entrou pela porta um couro de pintada, e já estava estendido à vista, quando veio a inspetora, correndo. Logo porém se deteve em distância e fugiu. Nenhum jeito ou persuasão conseguiu que Diana fizesse novo conhecimento.

A humanidade, economizando juros multimilenares, da sintonia interindividual, foi ensinando ao homem a trocar a resposta biológica, primária e reflexa, por alguma variante sobre-biológica, secundária e reflexiva.

A resposta biológica, taxada de ímpeto vital, é de estrita dieta e, em certas instâncias, coerciva. A resposta solire-biológica, superadora da economia natural, é uma resposta de criação, capitalizada em riqueza, oferecida em opções.

Por isso é que a hominidade não está no ser zoológico mas no ser fabular. E um ser reminiscente, recondensado em tempo, imerso numa duração que o liberou de muitas equações biológicas, visto que aprendeu a reintegrar-se na permanente atualizabilidade do passado.

 

11 - O TEMPO

Com o exercício da fala teórica, isenta a urgências do proceder vital, a humanidade foi aprendendo a ser reminiscente, isto é, a ser tempo.

Veja-se a diferença de patrimônios, comparando o patrimônio de um grupo tribal, vegetativo, com o patrimônio de um grupo histórico, aristotélico.

A fraca imersão temporal produz uma unidade mal autônoma, cheirando ao gregário, revelando sintomas de crase não desfeita, entre o Sujeito e o Objeto. Com sua curta faixa de tempo, o homem não aristotélico sofre de hipocronia, sofre de insucessão, na sua débil cadeia de passado-presente-futuro. Seu difuso agora, sem janelas para o amanhã, cai logo na sombra do ontem, limbo de mitos.

O homem hominizado está sempre recapitalizando a experiência, bebendo, pertemporalmente, na tradição da fala rscrita, a lição de outras idades. Observando, na linha histórica, entre ciclos de ondulação, a mesmice da ciclagem, ele tira desenho da tenacidade específica, vendo, com o poeta, que o passado é o melhor profeta: The best prophet of the Future is the Past.

O homem é histórico por definição, mas o homem hominizado é histórico por consciência. Inquirindo o passado, confere as diferenças e conclui suas lições.

Informa-nos Gordon Childe, (cf. Los orígenes de la civilización), que, faz mais de 4 mil anos, o homem da Anatólia já conhecia cobre, vidro, bronze, número, escrita, etc. - mas, para o sumério de então, a idéia de "espaço", cheia de concretice e pragmatismo, coincidia com a idéia de um campo que recebe a semente, não porém com a de deserto ou de céu azul. Logo se vê que ainda estava bem longe, aquele sumério, das alturas vivenciais de nosso Carlos Drummond, quando anuncia, comercialmente: "O nosso negócio é a contemplação da nuvem".

 

12 - O SUJEITO

Gordon Childe, acima referido, buscando relação entre o número, a história natural e a história humana, comenta o caso da população da Inglaterra entre 1600 e 1850, relacionado com a Revolução Industrial.

Vamos arredondar o autor e os algarismos: durante o século 17, a Inglaterra cresceu de 5 para 6 milhões, mas cresceu de 7 para 27, no século que vai entre 1750 e 1850.

Relembrando, de passagem, a inumanidade zoocêntrica da "sociologia de rebanho", vamos insistir em que não foi por história natural que a Inglaterra, num século, passou de 7 a 27 milhões. Foi só por história humana, por efeito hominizante, não em milhões, mas naqueles poucos criadores da ciência e da técnica, ensejadores de uma concentração oicológica suficiente à numerosa proliferação.

O fenômeno demográfico do século XIX não é segredo só inglês mas europeu. A Europa, que até o ano, de 1800 jamais ultrapassara a casa dos 180 milhões, entretanto subiu para 460 milhões de habitantes, entre 1800 e 1914.

A informação é de Werner Sombart, veiculada em Ortega y Gasset, que comenta o fato de, durante apenas três gerações, aquela massa precipitada de seres humanos haver sido atirada na área histórica, sem tempo de receber educação tradicional, condenada assim à primarice e à barbárie.

Vê-se como é toda outra, a lição do pensador ibérico, profundamente humanista, homem que viu na vida "um repertório de possibilidades" e viu no viver um "exercitar da liberdade".

Fazer ciência do Sujeito não é afogar o Eu ordenador no lago biológico da psicologia zoocêntrica. É uma ciência da superação, da qualidade, perfeitamente distinta da ciência do Objeto, ciência que mede quantidades, na sua mesmice redutível.

Para mostrar a soberania do Sujeito, bastava essa mesma ciência do Objeto, ciência cujo poder diluiu a concreção da matéria, examinando-lhe a intimidade profunda e reduzindo-a a uma acabada servilidade, sob forma de reexistências que a natureza não previra.

A história natural da vida é um história de eventos elementarmente evolutivos. Mas a história humana é uma história de inventos, de criação, de superação. Ensaios e erros, conquistas e perdas, variações e devaneios, foi tudo somado numa continuidade milenar que rende juros homínicos.

Por tão altas razões é que a História não pode ser reduzida a uma planta de fome e tirania econômica. Marx, filho de um século tendencioso, foi um complexado. Ele sufocou a visão histórica na visão fenomênica de um proletariado emergente, produto de uma inundação não prevista, numa sociedade não preparada para assimilar a pletora. Tendo vivido num círculo de hulha, a fumaça que lhe irritava as narinas e lhe tapava o céu, também se lhe configurou em materialismo de fumaça, numa teoria que avilta a hominidade da espécie, imaginada tempo em fora como constituída de dois tipos opostos: um mineiro de Gales, macilento e negro, explorado por um faraó que se refestela e goza.

 

13 - SUPERAÇÃO

A hominidade é uma superação em marcha. A idéia de un uomo finito, sugerida em Papini, exemplifica uma relativa perfeição individual do momento, na série que continua.

O estofo de que se faz o Sujeito é a duração. O modo de o recondensar é a tradição, fabularmente veiculada. A meta obtinenda é uma boa tradução temporal de seres espaciais.

A marcha prevê ocupação, recuperação, progressão. O caso do século xx, por exemplo, está pedindo que se recupere dos seus profundos desvios de hominidade. Ele tem de enfrentar três agências nocivas:

1°. a ruptura da tradição mediterrânea, ofendida pela irracionalidade da inteligência contemporânea e dificultada na pletora demográfica do século XIX. Absorvida na quantiação, a inteligência desdeixou o humano, relegando o qualitativo, desenxergando o Sujeito que ordena o Objeto. O excesso demográfico, elevando a produção de massa humana a um ritmo superior ao da modelação tradicional, multiplicou pavorosamente o peso da primarice;

2°. a descalagem entre a alma e o corpo da cultura: há uma tremenda desproporção entre a gloriosa eficiência técnica da provisão oicológica e a obscura insuficiência homínica do fruidor, antes acostumado à paciente conquista, agora metido em uma facilidade que se oferece. O tempo da alma não sincronizou com o tempo da matéria: não se é mais um homem que trabalha, mas um homem que funciona. E o moço de agora, entrado num mundo com automóvel, telefone, eletricidade, vive nele como se ele todo fosse um mundo natural. E estranha que os velhos não tenham sabido melhor o aplicar. A fascinação da eficácia faz a muitos pensar que a Rússia é que sabe fazer;

3°. finalmente, os efeitos traumáticos de duas batalhas mundiais, 1914 e 1939, nesta guerra inconclusa do século.

 

14 - O INDIVÍDUO

A feição de um meio assim dificulta oxigênio ao Sujeito, extraído de si pela alteração que o rodeia. A velocidade espacial do mundo de fora é nociva à estrutura de tempo do mundo interior.

Hoje, o que mais cresce e prospera em cada um é o seu indivíduo, esse espontâneo senhor que se instala na prerrogativa e se mostra fácil doutor de princípios.

A montagem do mundo que temos foi obra de uma aristocracia do espírito, sob os olhos do respeito tradicional. Antes, relembra Ortega y Gasset, um homem do vulgo não se arvorava a ter "idéias". Tinha crenças, tradições, provérbios, e não se metia a doutrinar sobre o que deve ser. Existia nele - continuamos nós - a intuição dos limites e a capacidade de ouvir, dieta que facilita a circulação da energia socializante. A vida era ordenada em função de valores morais. Hoje não: qualquer indivíduo, de Sujeito mui leve, tem a "sua" teoria, ordenada por ele em torno de si mesmo. É um produto apressado, cozido na facilidade mecânica, esvaziado de tradicão e de ética.

Renan previra que o domínio do individualismo seria o fim da civilização. Si l'esprit de puissance individuelle venait à régner parmi nous, ce serait la fin de toute civilization, de toute tendance à la raison.

Na verdade, estamos pagando pecados de uma culpa transmitida pelo século XIX, inclusive Renan, quando nos preparava, não para a fé racional que sonhara, mas para esta enfadonha disponibilidade nossa, de seres desmotivados.

O individualismo reina solto e falaz, criando nossa intransitividade lerda e morna, que esgota a socialidade. Esvaindo o calor humano da sintonia, em que se nutre a comunhão com o Real. A simpatia da Natureza quer vida natural e repele esta existência de brinquedos mecânicos, em cidades jardins-de-infância, cheias de meninões. O individualismo impede o crescimento, impede a varonia. Esgotando o Sujeito, prepara o candidato a rebanho.

É marca de nosso tempo a recessão gregarizante. Primeiro são manadas ocasionais. Depois, se não se busca remédio, pode vir o pastor bruto e forte, que a todos nos mate a saudade do aprisco.

 

15 - CICLOS

Um fim de ciclo não é o fim dos ciclos. Além do mais, antes de anoitecer é possível nascer a madrugada.

Para a recuperação hominizante, cumpre restabelecer um sistema vascular apropriado à recirculação da seiva mediterrânea. A receita manda reimergir no tempo.

Com História, Arqueologia e Lingüística, um pesquisador acompanha o jeito de afeiçoar que o tempo tem, desde a fase pré-mediterrânea. Aos vinte séculos da continuidade histórica, na tradição indeuropéia, ele pode somar outros vinte séculos de bons indícios pré-históricos. Perfaz assim 40 séculos, não aqueles que Napoleão vira encimando um incômodo cume de pirâmide, mas 40 séculos vivenciais, diacronicamente hominizantes.

O observador descobre que a civilização ocidental está sempre renascendo, após um embate da força contra o Espírito: o Espírito mediterrâneo e a força do mar Báltico, precipitada em hordas árias invasoras, vindas em busca da luz do Sul, onde primeiro desfazem, invadindo, para depois refazer, assimilando.

Entre os séculos XX e XII antes de Cristo, eles desceram, nórdicos e bárbaros, devastando a Grécia, aniquilando Creta e incendiando Tróia. Depois, tendo recebido o Espírito, vão merecer as graças do "milagre helênico", germinadas naquela racionalidade que iniciou a ordenação do mundo. E o lento assimilar, espraiando-se na clara concha do Mare Nostrum, quebrou vagas também na Itália, ocupada de árias também. Em seguida, nos primórdios da idade cristã, outra vez turvando o céu com seu crepúsculo, desceu o Báltico outro fluxo de árias, seres de especificação retardada, imergindo na luz, agora batismal, enfim levada ao Norte, ao mar hostil.

Finalmente, já mediterranizado o Ocidente, a barbárie da força repete-se, nesta última centena do milênio, ainda com árias, os últimos árias inassimilados e orientalizantes.

Desde a planura infesta de Moscóvia, sopra encanado um rude inverno. Zumbe, na sua linha de som, a soturna ameaça das eremias cíticas, outrora tão temidas pelos gregos. De conluio com ela, paira uma torva sugestão de cavalgadas hunas, com seus Átilas insepultos. Mais ao longe, no fundo, o ganido mongol dos ventos de Genghis Khan.

A vitória final deve ser do Espírito. Mas, quando chega o rumor dos beócios, chega também a hora dos Boécios, fiéis e firmes, entregues ao labor de traduzir Platão, em meio aos alaridos góticos, da corte gótica de Teodorico.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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