1 - GÊNESE
Olhando o verbete tempo, no dicionário
de Lalande, pode-se dali tirar três idéias do tempo,
visto como sucessão, continuidade e meio fenomênico.
A sucessão vai de um evento a outro evento. A continuidade
vem na deveniência
por que um presente se faz passado. O fenomênico, análogo
do espaço, meio indefinido, contém o evento. Newton
achava que o tempo existe em si. Mas Kant achava que só
existe no pensamento.
Nas minhas velhas meditações de linguagem,
fui levado a uma outra idéia do tempo, quando
comecei a refletir na erigem da manifestação fabular,
transgredindo os vedados términos da Lingüística
Francesa, que infielmente acompanho. A questão da origem,
diz Saussure, ce n'est pas même une question à
poser. (Cf. Cours, p. 105). Levantando
a questão, acabei supondo que o ato fabular - entre Primo
que fala e Secundo
que ouve - teve início num procedimento teatral, no
dia em que nele se começou a imitir uma intenção
veicular, um endereco interindividual.
Feita a hipótese, foram logo surgindo conseqüências
revolucionárias:
- vi que o homem, desenvolvendo uma capacidade
fabular chamada linguagem, praticou um exercício
fabular chamado fala, criando um patrimônio fabular
chamado língua ;
- vi que a língua não
é um sistema e sim um produto. Foi partindo de uma
concepção da História, hegelianamente definida
como Vontade, que Schleicher, ao ver que a língua se faz
fora da vontade, achou de concluir que a lingüística
não é matéria de História, mas de
sistema. Apoiado nessa idéia, armou Saussure aquela sua
enganosa e travada sistemação de antinomias. Entretanto,
uma boa meditação, que não carece de Hegel,
mostra-nos a fala gerando a língua, tempo em fora, como
um produto;
- vi que a fala se traduz na frase, diacronicamente
afeiçoada, sendo pois a frase, e não o vocábulo,
a primeira unidade da língua. Uma frase não se faz
de vocábulos. Em verdade, o vocábulo, não
só não faz a frase como até se fez na frase;
- vi muitas outras coisas que não é
hora de esgotar, pois já podemos concluir com uma conclusão
importante: se a língua não é um sistema
e sim um produto, que vem da fala, se a fala é uma expressão
do homem, que é um ser histórico - então
a Lingüística não tem base peculiar que lhe
permita a autonomia de um sistema, devendo portanto imergir no
tempo, imergir na História, imergir nas ciências
do Homem.
Essa História em que tem de caber, começou
no início da hominização, naquela fase imemorial
em que um ser meramente zoológico, ens álalum,
ganhou o poder fabular, o poder espiritual do homo lóquens.
A História começou com a vida do
homem, atribuindo-se ao vocábulo vida aquele sentido
primeiro de Ortega y Gasset, quando diz que "vida" é
o que aparece na biografia e não o que aparece na biologia.
A História, dizia Hegel, é a mais
alta forma de conhecimento. De fato, no infindável ciclo
iterativo do fenomênico, e ciência física estuda
redutibilidades e mesmices. A História, porém, conta
a história do Espírito.
2 - NÍVEIS
Floresceu na Grécia, banhada em luz mediterrânea,
a curiosidade racional. Opondo-se metodicamente, como do Sujeito,
ao externo Objeto, o homem helênico foi transformando em
astronomia o que para os caldeus era astrologia. E em ciência
da natureza, o que para os orientais era magia.
Até na língua se vê indício
desta atitude racional, como no modo, por exemplo, de chamar o
"fogo" e a "água". No latim, ignis
aqua, e no sânscrito, agní ápah,
os vocábulos de tais elementos são do gênero
animado e mítico. No grego porém, púr
húdor, o gênero é objetivado e neutro.
Já viam como sem alma elementos tão repercussivos,
na imaginação do homem arcaico.
Esse enfrentar a coisa com vontade de entender
representa um momento plástico e fecundo, na progressiva
linha hominizante. Já estava longe, na espessura multimilenar
da distância evolutiva, o antigo nível da mera reação
vital ante a coisa. E não estava longe o nível de
ensaio e erro, cujo exercício propiciava a riqueza, no
domínio oicológico da terra. Agora, na contemplação
racional, vencendo a barreira do infralógico, definia-se
o homem como criador.
Na prática da capacidade fabular, recurso
de ação interindividual, o homem desenvolveu a socialidade.
Na prática da ordenação metódica,
ia desenvolver a conquista do mundo.
O passo histórico desta diferença
marca dois níveis de importância, na marcha da espécie:
o da folga meramente vivencial, infra-lógico ou pré-aristotélico,
e o nível aristotélico da eficiência
racional.
Busca-se na Grécia a referência e
toma-se por símbolo o Estagirita, porque ele dominou a
inteligência mediterrânea longamente, ao longo de
uma idade que foi cristã na fé e aristotélica
na razão. Ainda em pleno século XVII, seu poder
continental provocava a reação insular do empirismo
britânico, expressa na humorosa declaração
de John Locke: Não é verdade que Deus, economizando
no homem, apenas o tenha feito com duas pernas e tenha deixado
a Aristóteles a incumbência de o fazer racional.
God has not been so sparing to men, to make them barely two-legged
creatures, and le ft it to Aristotle to make them rational.
Esse dizer de Locke era um tiro de graça
mas não era um tiro de misericórdia. Além
de tudo, mirava, não ao filósofo, mas ao seu prestígio
europeu. Em assunto de espírito contra o espírito,
Hegel ia fazer muito pior, atirando um zaguncho pesado contra
um coetâneo de Locke, o grande Newton. Diz Hegel: "Três
vezes foi fatal a maçã: foi fatal ao homem com Adão.
Foi fatal a Tróia com Páris. E foi fatal à
ciência com Newton."
3 - A CIÊNCIA
Hegel não teve graça contra Newton.
Cabe, um motejo, quando é caricatura do verossímil,
não quando sonega um consenso.
Na observação física, a ciência
de Einstein superou a de Newton, que ultrapassava de muito a ciência
de Aristóteles, enorme para seu tempo. Na ciência
do Espírito, não se pode alinhar um tão claro
progresso. Faltam-lhe Newtons que lhe apurem alguma exatidão
de sistema. O Espírito é uma qualidade que se avalia
e não uma quantidade que se pesa.
Se Hegel não teve graça, teve-a Locke.
Mas não teve razão. Na linha da hominidade, primeiro
se vê surgir o ser fabular, vivencial. Depois, milênios
e milênios passando, é que entra o uso de razão,
vindo com a Grécia.
No meu tempo de catecismo, ensinava-se que a idade
de razão vem com os sete anos. É admissível,
portanto, que após deixar a espécie em longa infância,
Deus haja mandado que o homem fosse aprender a lógica de
Aristóteles. E o homem foi. Mas, daí por diante,
absorvido no empenho de ordenar o mundo, foi esquecendo de se
ordenar a si mesmo.
Desenvolvendo os germes da cultura helênica,
ressemeados pelo Renascimento, a perquirição física
do século XIX armou o poder do século XX. Em tal
poder, o que mais aparece é o poder de ver e mover, com
grande lucro lúdico do vulgo. Para grandes deslocações
espaciais, a mecânica aumentou a mobilidade animal: antes
do homem vai um cão.
É fruto de uma teoria inicialmente helênica,
somada a dois milênios de exercício, esse nosso formidável
domínio, servilizador da natureza. Posse quantiadora e
dispositiva, que tem permitido à diligência de alguns,
alargar e alargar os sentidos de todos. Já é tempo
de o homem olhar mais, para dentro de si, construindo, sobre o
Sujeito, teorias tão úteis como as que tem sobre
o Objeto.
A ciência física toma da matéria,
examina-lhe o proceder, extrai-lhe o juro de muitas vantagens
para nossa instalação animal e assim muito nos contenta.
Mas só vê procedimentos. Ao buscar o ser que
procede, então ele se dilui em fórmulas de energia.
Na ciência do Objeto, portanto, não existe solução
para as angústias daqueles que, em vez de milhões,
estão querendo resposta aos seus porquês.
Entretanto, o racionalismo do século XIX
procurou integrar a ciência do Homem na ciência do
Objeto, continuando-se até hoje a posição.
Estabelecida a hipótese evolucionista, a psicologia do
procedimento fez-se psicologia zoológica, admitindo um
campo residual do "espírito" para os restos de
reações cheias de restos. Não conta com o
tempo e quer medir só o biológico. Pesquisando a
fabularidade, sinal específico do homem, a lingüística
se arvora em sistema e descarta o problema da origem. Na ciência
que estuda a sociedade, o homem já aparece como "homem",
ao qual se distribui graduação de civilidade, conforme
alturas de seu agrupado urbano ou tribal.
A psicologia rodeia as formas do procedimento biológico.
A lingüística ordena formas da língua. A sociologia
confronta formas da sociedade. A história ajuda a todas
ou em todas se recita a história. Entretanto, falta uma
conveniente imersão histórica. Não basta
imergir no tempo da humanidade. Cumpre observar também
o tempo hominizador. Não o tempo cronometrado,
tela de projeção dos eventos, mas o tempo eficiente,
condensado em hominidade. Tempo legítimo, que só
ele é tempo, e não o tempo análogo.
4 - HOMINIZAÇÃO
O ordenador do mundo com apenas dois milênios
de efetivo exercício, conta um vastíssimo passado
de preparação. É a longa infância da
humanidade, desde a promoção a homem do não-homem,
desde o início da capacidade fabular, numa era facilmente
lançada para além da cota
dos 500 mil anos.
A assimilação tradicional do passado,
amadurecida em vivências, é que constitui a consciência
do homem histórico, Em nível infra-aristotélico
ela não floresce. Falta-lhe dimensão de tempo em
que se condensar. O que aí germina é uma consciência
mitizada e difusa, desmarcada e fantástica. Só um
vivo sentimento de tempo, mediterraneamente elaborado, faria dizer
como Baudelaire: J'ai plus de souvenirs que si j'avais mille
ans.
Começou no esforço de compreender
o Objeto, com os físicos jônios, a ordenarão
racional dos gregos. Veio depois o esforço de compreender
o Sujeito, na pedagogia dos sofistas e principalmente com Sócrates.
De tais dois pontos partiram: a ciência do
fato, verificadora do físico, e a ciência do direito,
denormadora do social. Costuma-se falar em "ciências
de fato" e "ciências de direito".
A inteligência triunfou largamente, na ciência
do Objeto, grande provocador de nosso gosto lúdico. Examinou-se
pacientemente o fato físico, o procedimento da matéria.
Entretanto, na ciência do Sujeito, não
conseguimos ultrapassar os fundamentos de Sócrates. Repetimos,
sem vantagem, a lógica, a ética e a estética,
de Platão a Aristóteles. A filosofia contemporânea
tem glosado a intuição e o saber discursivo, coisas
que já eram, em Platão, nóesis e diánoia.
Troca-se um pouco daqui e dali, sobredominando o grande tema
da intuição, que Santo Tomás colocara acima
da inte1igência e Bergson colocou abaixo do instinto.
Tais subtilezas não podiam empolgar o século
XIX, que não era de Santo Tomás e sim de S. Tomé.
Preocupado em "naturalizar", ele acabou "animalizando"
o homem. Quando o mergulhou na evolução e viu que
subia na escala zoológica, em vez de descer das mãos
de Deus, então ficou espantado, e insistiu no sadismo de
reincluir o homem no rebanho, esquecido de que já era
homem, ordenador do Real. A metódica do século não
soube discriminar entre a ciência do Objeto e a ciência
do Sujeito. Só viu o homem biológico, máquina
vital, e pois, Objeto. Olvidou o Espírito, que está
no homem, ser cognoscente, logo Sujeito.
Para começo de ordenação da
ciência do Sujeito, vale a notícia de que o homem
é uma expressão espacial em busca de tradução
temporal. É um ser que se faz tempo e emite tempo
nas coisas, de si acrônicas e espaciais. É um ser
histórico por definição.
5 - CENTROS
Desde Aristóteles, com a filosofia primeira
ou teológica e a filosofia segunda ou física, a
tradição mediterrânea situara o homem num
cosmo teocêntrico. Examinando a tensão entre o humano
e o divino, a inteligência ordenava o criado em função
do Criador.
A partir do Renascimento, sem se negar a filosofia
primeira, começou a crescer a importância do homem,
num cosmo praticamente antropocêntrico.
No século XIX, com exaltação
da filosofia segunda e o fervor racional da pesquisa, foi relegada,
e até renegada, a filosofia primeira. O homem, posto no
centro do mundo, fez-se medida de todas as coisas. Avassalado
por simpatia
atávica, diluiu o Espírito na função
biológica, anulando, ante impulsos vitais, a produção
diacrônica
da energia hominizante. Imergido no Objeto e nivelado com o bruto,
viu-se no seu cosmo zoocêntrico.
Envolvido que estava na surpresa gloriosa de tantos
achados, pode-se-lhe desculpar a espontaneidade. Mas o fato é
que não soube ver a força condicionante dos milênios
e esqueceu a distância que separa, da fosca sensibilidade
nebular do pitecantropo, a clara expressão mental de Platão.
Estão por aí, fermentando, os efeitos
do zoocentrismo. Admitido que Adão tinha sido macaco, entrou
a funcionar a saudade animal. Não se deu importância
ao hiato, nem se ponderou muito o sentido da ascensão.
Por outro lado, não era difícil diluir a alma em
biologia e reduzir o pensamento a secreção glandular
ou excreto cerebral, embora isso não desse na cabeça
de nenhum outro dos demais antropóides, apesar da mesma
possibilidade biológica, da mesma garantia oicológica,
na mesma diacronia de milênios.
Comprimido o homem na estreita dimensibilidade
zoológica, e esbulhado de seu Sujeito por anulação
de seu tempo, começou a vogar a psicologia sem alma e a
sociologia gregarizante, mera sociologia de rebanho, posta
em voga pelo marxismo intelectual do Ocidente, e posta em prática
pelo "massante" Estado Socialista.
Assim veio progredindo, sempre e sempre, o esfacelamento
da tradição mediterrânea:
1°. aquela irracionalidade da inteligência
moderna, começada no Renascimento, como aponta Whitehead;
2°. esta nossa disponibilidade moral, depois
que fomos reduzidos a desmotivação, pela ética
do século XIX;
3°. a fascinação lúdica
de nossas facilidade mecânicas, num mundo oicologicamente
bem fornecido, contracenada pela neurose traumática de
nossas guerras.
6 - PERSPECTIVA
Na máquina de viver a natureza armou duas
necessidades: uma, a pervivência do indivíduo. Outra,
a sobrevivência da espécie. São necessidades
do plano vital. No homem, porém, há um plano vivencial
acima do plano vital. O plano vivencial contém uma
oficina de recondicionamentos, onde o estímulo vital se
reelabora em criação, eximindo ao plano da necessidade
a resposta de nossos procedimentos.
Adstrito a contingências do meio, o bruto
adapta-se ao mundo, enquanto o homem adapta a si o mundo, pois
rege contingências do meio. Para isso, a humanidade foi
capitalizando juros do contacto vital, através de experimentos
primeiro só casuais e depois também programados.
O mundo que se interna em consciência é um mundo
que se elabora em criação.
Na função biológica, já
foi dito, a necessidade cria o órgão. Na função
espiritual, pode ser dito, à necessidade cria o órgão,
gerando o hábito de um novo procedimento. Veja-se um exemplo
na saturação condicionante da propaganda
moderna. Ela é capaz de criar, em certos "boys",
a carência "biológica" de beber coca-cola.
Ou ainda, o que é muito pior, ela é capaz de criar
carência "racional" de marxismos, em certas inteligências
imaturas.
Desenvolvida no plano vivencial do espírito,
nossa hominidade
é uma estrutura de opções e não uma
estrutura de necessidades. Razão por que a economia humana,
economia política, se o campo é de criação
e de opções, não pode ser reduzida a estreitezas
da economia animal, regida pela necessidade. A economia humana
é uma capitalização de possibilidades.
Eximir-se da necessidade biológica,
sublimada em vivência
criadora, nisso consiste nossa hominidade, nisso consiste
o homem.
Custou muito, e sempre custa, levar do plano biológico
ao plano do Espírito, a regência da vida.
Foram necessários extensos milênios de capitalização.
O materialismo econômico é fruto de
uma grosseira miopia, com sua visão anti-humana e anti-histórica.
Representa a teoria de um século que não soube ver
a hominização
da espécie. Um século que fundia, em sistema único,
a ciência da matéria ordinanda, regida de necessidade,
e a ciência do ordenador da matéria, instituído
em liberdade.
7 - A FALA
Há um conto de Eça que começa:
Adão, pai dos homens, foi criado no dia 28 de outubro,
às 2 horas da tarde. Aí se narram as aventuras
primeiras do marido de Eva, ao sair da "mata onde passara
a sua manhã de longos séculos" enquanto lhe
ia surgindo "dentro do crânio bisonho, como uma alvorada
que penetra numa toca, o sentimento das formas diferentes e da
vida diferente que as anima". Finalmente comenta o autor:
"Sois já irremediavelmente humanos, e cada manhã
progredireis, com tão poderoso arremesso, para a perfeição
do corpo e esplendor da razão, que em breve, dentro dumas
centenas de milhares de curtos anos, Eva será a formosa
Helena e Adão será o imenso Aristóteles!
"
É uma jóia, o conto. Sob a finura
maliciosa do estilo, e o sabor finissecular do tempero, corre
uma vigorosa imaginação evolucionista, bem afinada
com a hipótese de que a Natureza, um dia, no desvão
esconso dos milênios, apôs haver escolhido, numa grei
antropóide, o destinado macaco, aí lhe concedeu
o poder germinal de um futuro Mister Universo.
O que o século XIX não supôs
foi o poder da fala como instrumento da evolução:
o poder da eficiência fabular, criando a transitividade
mental e a socialidade
entre os indivíduos, veiculando a idéia individualmente
elaborada e interindividualmente enriquecida, durante a comunhão
das vivências e a diacronia da tradição. Faltou
ver que a fala hominizou o homínida. É
uma hipótese que hoje se faz, graças a várias
subministrações da Sociologia, à concatenação
diacrônica
da Lingüística e à teoria do condicionamento
de Pávlov.
Conseguido o modo de simbolizar a representação
mental, posto a serviço da sintonia
inter-individual, aí começou a diferença
que vai do macaco a Platão. Diferença que foi deixando
registro de si, na carta subcraniana do neo-encéfalo.
Foi o exercício fabular o eficiente obreiro
da especificação, recondensado em tempo o indivíduo,
desde aquele momento em que ficou possível, mediante vozeio
veicular e fiduciário, provocar a idéia sem a coisa,
na simultânea representação de Primo e de
Secundo.
8 - HIPÓTESES
Na estrutura da capacidade fabular, meio de superação
do plano zoológico, há sinais de três aptidões
biológicas: sensibilidade, mobilidade, vocalidade.
I. A sensibilidade carreia estímulos que
vão da coisa ao centro do sistema, eficiente proporcionador
de equações vitais entre o indivíduo e o
meio. Surgido o estímulo surge a resposta, promovida por
reflexos equacionais.
No homem contudo, provido de energia superadora,
desenvolveu-se outro centro, acima do primeiro, que é zoológico,
vital: nesse outro centro, vivencial, o reflexo primário
se converte em potencial reflexivo. Aí se recondiciona
a resposta, imbuída de tempo. Em vez da resposta
reflexa, mecânica - a resposta ventura, possível.
Foi assim que o Sujeito aprendeu a inovar o
sentido do estímulo, a explorar as energias do meio
oicológico, recriando um mundo mental de que vive,
vivendo no mundo.
II. A capacidade mímica e lúdica
é um poder da mobilidade animal. Na função
lúdica, o indivíduo finge um procedimento. Reproduz,
em situação de brinquedo, estruturas de uma recreação
que a vida costuma exigir. Na função mímica,
ele aprende a copiar feitios vistos, inclusive através
de lições policiadas, que o filhote recebe dos pais.
III. A vocalidade vem da capacidade fônica,
um poder de emitir vozes expansivas, provocadas por estímulos
vitais.
É impressionante que a energia homínica
haja encontrado na voz o grande veículo da superação,
enobrecendo o exercício de uma aparelhagem primariamente
zoológica. Pela fala, o homem recondicionou em vozeio
expressivo o que era voz expansiva comum. Ao vozeio
estilizado, prendeu um conteúdo vital, que desprendera
do estímulo aderido à coisa, depois do elaborado
em conteúdo vivencial.
Surgiu longínqua, na antemanhã da
espécie, a instituição tabular. Imagine-se
Primo e Secundo, na mesma sintonia
vital e no mesmo procedimento comum de reação ante
a coisa, emitindo gestos e vozes, iterativamente teatrais, que
acabam adquirindo sentido de intenção, principalmente
nas horas lúdicas de fingimento e mímica, horas
de repetição vivencial, já não mais
ante a coisa.
O ato-de-fala deve ter nascido de procedimentos
assim teatrais, mediante conjugação da capacidade
mímica e da capacidade fônica. Esse procedimento
teatral como um todo é que se fez veículo da
representação mental, dinamizado pela intencão
expressiva. Se lhe chamamos "ato-de-fala" é
por adiantamento de nomenclatura, numa fase em que o vozeio
era parcela modesta, fundindo-se a parte auditiva na
forte função da parte visual. Para esse
tempo, a melhor denominação é a de "procedimento
teatral", admitido o adjetivo como ligado à idéia
"ver", que está na raiz do vocábulo grego
de "teatro".
O que define o ato fabular é a intenção.
Intenção de estabelecer entre Primo e Secundo, não
a sintonia
vital ante a coisa, mas ante a idéia da coisa, vivencialmente
elaborada no Espírito.
Com a superação, a voz foi avultando
em capacidade. Além da antiga voz expansiva, provocada
pela presença material da coisa, na hora vital, ela
se fez também voz expressiva,provocadora da presença
mental, na ausência da coisa.
Assim o homem foi aprendendo a construir, sobre
o esquema de um procedimento vital presencialista impulsivo o
esquema de um procedimento vivencial ausencial reflexivo.
Aprendeu a guardar a reação para
outro lugar-e-hora, eximindo-se à servilidade hic-nunc-ista
do procedimento zoológico.
Elaborando o mundo no Espírito, mudou o
reflexo do meio em reflexão sobre o meio.
Criou a sua riqueza mental, fabularmente veiculada
no intercâmbio, inter-individualmente afeiçoada na
sintonia, humanamente capitalizada na tradição.
Aprendendo a distribuir a existência entre
procedimentos vitais, zoológicos, e procedimentos vivenciais,
homínicos, foi nutrindo o seu Eu, através das idades,
construindo um Sujeito que ordena o Objeto.
9 - PRINCÍPIOS
Pela superação, a humanidade pode
sublimar impulsos de empatia, simpatia, antipatia, convertendo
em socialidade
a contigüidade gregária.
É costume repetir-se, nos lingüistas,
que a fala é individual e a língua é social.
É culpa da Lingüística não haver equacionado
melhor o problema, por evitar a questão da origem. Caso
recedesse à nascente, iria ver a fala socializando o homem
e produzindo a língua. O que a caracteriza não é
o fato de ser um procedimento individual, mas o fato de conter
uma intencão veicular, um endereço interindividual.
É de Primo o procedimento, mas é um procedimento
para Secundo.
A fala é social, enquanto a língua
é um mero estado intra-individual. A fala é ato
e a língua é potência. A fala é produtora
da língua e a língua não é produtora
da fala. A fala nasce de outra fala.
O ato fabular é um procedimento iterativo,
principalmente no seu nível inferior, de hominidade
menor. Na tradição fabular, Secundo, ao receber
a mensagem, com ela recebe o molde, que depois lhe serve, quando
também transmite. Já vem no procedimento anterior
a receita do posterior. Nessa iteração cotidiana
é que se adquire a posse da língua, recebida
em lenta infusão fabular condicionante.
Para o uso comum chega a posse comum. Dela vive
a comum humanidade. Mas o homem aristotélico, pertinaz
ordenador do fenomênico, indo além da posse comum,
quis também adquirir a consciência da língua.
Era um estudo subtil, evasivo e subtil como a própria hominidade
a que serve. Não admira, portanto, que nele se enganasse
o primeiro ensaio mediterrâneo.
Inspirando-se no pressuposto de que o vocábulo
nomeia a coisa, a lingüística dos gregos partiu do
vocábulo. Para que vissem bem, não havia luz bastante.
Se passamos à lingüística do
século XX, notamos que ela também é "vocabulista".
O fato admira e faz pensar na humildade em que estão as
ciências do Homem.
Saussure repetiu e todo mundo repete afirmações
que tais: o vocábulo é a primeira unidade da língua.
A frase é feita de vocábulos.
Já era tempo de ver que a primeira unidade
é a frase. Já era tempo de ver que o vocábulo
não faz a frase mas, pelo contrário, se fez na frase.
Já era tempo de ver que a língua é um extrato
da fala, sedimentado num estrato bem mais complexo do que uma
resenha de vocábulos: primeiro os moldes da frase, da melodia,
dos sintagmas. Depois, em anatomia menor, o vocábulo, etc.
10 - HIATO
No mistério da superação existe
um passo, ou falta de passo, que tem preocupado o naturalismo
zoocêntrico: falta um elo na cadeia evolutiva e sobra um
hiato na via que vai do antropo até o piteco. Parece também
que só uma família zoológica recebeu o favor
da mudança e isso dá na curiosidade de saber porque
o orango e o chimpa tiveram de continuar na sua mesmice antropóide,
sem direito a promoção, num mundo igual para todos.
Nessa lacuna de ignorância, lançamos
uma hipótese fabular, imaginando como foi que se fez humo
lóquens um ser que antes não falava, ens
álalum, e não era homem.
A hipótese, como vimos, finge Primo, ante
Secundo, reproduzindo gestos e vozes em que punha uma intenção
de significar alguma coisa que passava dentro dele, Primo.
Essa alguma coisa, nesse procedimento teatral, podia ser uma intenção
imperativa, invitativa, ou simplesmente expansiva. Sabemos como
o animal domesticado mostra ao dono uma "intenção",
por meio de procedimentos teatrais. Estilizando a função
mímica e a função fônica, munidas de
intenção veicular, a humanidade foi criando a fala.
Primeiro o signo adjacente, pouco diverso do signo aderido, mais
o predomínio do visual sobre o auditivo, num contexto de
procedimento (vivencial) que era cópia agarrada do procedimento
vital. Depois, vindo a melhoria veicular, a progressiva liberação
do signo auditivo, a capitalização dos milênios...
Queremos relembrar, em exposição
tão imaginária, a diferença entre uma sintonia
vital e uma sintonia
fabular.
É vital ou zoológica, a sintonia
estabelecida entre o indivíduo e a coisa emissora de estímulos:
repercutindo sensoriamente no estimulado, a coisa provoca uma
resposta zoológica, um procedimento vital. No indivíduo
gregário
existe um condicionamento de co-sintonia (ou sis-sintonia), pelo
qual o indivíduo B reage, mimicamente, estimulado não
pela coisa mas pelo procedimento do indivíduo A.
A co-sintonia é uma distribuicão
interindividual da sintonia, em dois indivíduos simultaneamente
estimulados pela coisa. Ela tem de ser imaginada como fase anterior
à sintonia
fabular. Acontece, até hoje, de Secundo
não entender a fala de Primo, quando a significação
é de língua não comum aos dois.
A sintonia
fabular, veiculando vivência, tem de ser posterior à
sintonia
vital. Assim como a co-sintonia vital é de dois indivíduos
ante a coisa, a sintonia
fabular é uma co-sintonia ante a representação
mental, isto é, ante a idéia rivencial
da coisa.
A sintonia
vital é interindividual ou não: a sintonia
fabular, ou vivencial, é interindividual por definição.
A grande sabedoria da natureza está
na equação vital instintiva, resolvida em procedimentos
de primeira vista, em sintonia
original. O comum procedimento zoológico abrange um
patrimônio de receitas adquiridas. experimentalmente
condicionadas. Mas há procedimentos fundamentais, não
aprendidos: é tão estreita a faixa existencial,
entre certos animálculos, que nos dão a impressão
de eles não viverem a vida e sim de a vida os viver.
Como exemplo de procedimento fundamental, há um caso
da cadelinha Diana, criatura de cidade, nascida e crescida
intra-muros, que nunca saiu à rua e nunca
foi ao circo. Não tem mais convívio animal que
o dos voláteis do terreiro. Dali noticia latindo tudo
que passa na entrada da casa. Se entra "alguma coisa
", dirige-se à porta da sala, com intenção
de inspeccionar, chegando em som policial. Nunca ouvira falar
em onça. Mas um dia entrou pela porta um couro de pintada,
e já estava estendido à vista, quando veio a
inspetora, correndo. Logo porém se deteve em distância
e fugiu. Nenhum jeito ou persuasão conseguiu que Diana
fizesse novo conhecimento.
A humanidade, economizando juros multimilenares,
da sintonia
interindividual, foi ensinando ao homem a trocar a resposta biológica,
primária e reflexa, por alguma variante sobre-biológica,
secundária e reflexiva.
A resposta biológica, taxada de ímpeto
vital, é de estrita dieta
e, em certas instâncias, coerciva. A resposta solire-biológica,
superadora da economia natural, é uma resposta de criação,
capitalizada em riqueza, oferecida em opções.
Por isso é que a hominidade
não está no ser zoológico mas no ser fabular.
E um ser reminiscente, recondensado em tempo, imerso numa duração
que o liberou de muitas equações biológicas,
visto que aprendeu a reintegrar-se na permanente atualizabilidade
do passado.
11 - O TEMPO
Com o exercício da fala teórica,
isenta a urgências do proceder vital, a humanidade foi aprendendo
a ser reminiscente, isto é, a ser tempo.
Veja-se a diferença de patrimônios,
comparando o patrimônio de um grupo tribal, vegetativo,
com o patrimônio de um grupo histórico, aristotélico.
A fraca imersão temporal produz uma unidade
mal autônoma, cheirando ao gregário, revelando sintomas
de crase não desfeita, entre o Sujeito e o Objeto. Com
sua curta faixa de tempo, o homem não aristotélico
sofre de hipocronia, sofre de insucessão, na sua débil
cadeia de passado-presente-futuro. Seu difuso agora, sem janelas
para o amanhã, cai logo na sombra do ontem, limbo de mitos.
O homem hominizado está sempre recapitalizando
a experiência, bebendo, pertemporalmente, na tradição
da fala rscrita, a lição de outras idades. Observando,
na linha histórica, entre ciclos de ondulação,
a mesmice da ciclagem, ele tira desenho da tenacidade específica,
vendo, com o poeta, que o passado é o melhor profeta: The
best prophet of the Future is the Past.
O homem é histórico por definição,
mas o homem hominizado é histórico por consciência.
Inquirindo o passado, confere as diferenças e conclui suas
lições.
Informa-nos Gordon Childe, (cf. Los orígenes
de la civilización), que, faz mais de 4 mil anos,
o homem da Anatólia já conhecia cobre, vidro, bronze,
número, escrita, etc. - mas, para o sumério de então,
a idéia de "espaço", cheia de concretice
e pragmatismo, coincidia com a idéia de um campo que recebe
a semente, não porém com a de deserto ou de céu
azul. Logo se vê que ainda estava bem longe, aquele sumério,
das alturas vivenciais de nosso Carlos Drummond, quando anuncia,
comercialmente: "O nosso negócio é a contemplação
da nuvem".
12 - O SUJEITO
Gordon Childe, acima referido, buscando relação
entre o número, a história natural e a história
humana, comenta o caso da população da Inglaterra
entre 1600 e 1850, relacionado com a Revolução Industrial.
Vamos arredondar o autor e os algarismos: durante
o século 17, a Inglaterra cresceu de 5 para 6 milhões,
mas cresceu de 7 para 27, no século que vai entre 1750
e 1850.
Relembrando, de passagem, a inumanidade zoocêntrica
da "sociologia de rebanho", vamos insistir em que não
foi por história natural que a Inglaterra, num século,
passou de 7 a 27 milhões. Foi só por história
humana, por efeito hominizante, não em milhões,
mas naqueles poucos criadores da ciência e da técnica,
ensejadores de uma concentração oicológica
suficiente à numerosa proliferação.
O fenômeno demográfico do século
XIX não é segredo só inglês mas europeu.
A Europa, que até o ano, de 1800 jamais ultrapassara a
casa dos 180 milhões, entretanto subiu para 460 milhões
de habitantes, entre 1800 e 1914.
A informação é de Werner Sombart,
veiculada em Ortega y Gasset, que comenta o fato de, durante apenas
três gerações, aquela massa precipitada de
seres humanos haver sido atirada na área histórica,
sem tempo de receber educação tradicional, condenada
assim à primarice e à barbárie.
Vê-se como é toda outra, a lição
do pensador ibérico, profundamente humanista, homem
que viu na vida "um repertório de possibilidades"
e viu no viver um "exercitar da liberdade".
Fazer ciência do Sujeito não é
afogar o Eu ordenador no lago biológico da psicologia zoocêntrica.
É uma ciência da superação, da qualidade,
perfeitamente distinta da ciência do Objeto, ciência
que mede quantidades, na sua mesmice redutível.
Para mostrar a soberania do Sujeito, bastava essa
mesma ciência do Objeto, ciência cujo poder diluiu
a concreção da matéria, examinando-lhe a
intimidade profunda e reduzindo-a a uma acabada servilidade, sob
forma de reexistências que a natureza não previra.
A história natural da vida é um história
de eventos elementarmente evolutivos. Mas a história
humana é uma história de inventos, de criação,
de superação. Ensaios e erros, conquistas e perdas,
variações e devaneios, foi tudo somado numa continuidade
milenar que rende juros homínicos.
Por tão altas razões é que
a História não pode ser reduzida a uma planta de
fome e tirania econômica. Marx, filho de um século
tendencioso, foi um complexado. Ele sufocou a visão histórica
na visão fenomênica de um proletariado emergente,
produto de uma inundação não prevista, numa
sociedade não preparada para assimilar a pletora. Tendo
vivido num círculo de hulha, a fumaça que lhe irritava
as narinas e lhe tapava o céu, também se lhe configurou
em materialismo de fumaça, numa teoria que avilta a hominidade
da espécie, imaginada tempo em fora como constituída
de dois tipos opostos: um mineiro de Gales, macilento e negro,
explorado por um faraó que se refestela e goza.
13 - SUPERAÇÃO
A hominidade
é uma superação em marcha. A idéia
de un uomo finito, sugerida em Papini, exemplifica uma
relativa perfeição individual do momento, na série
que continua.
O estofo de que se faz o Sujeito é a duração.
O modo de o recondensar é a tradição, fabularmente
veiculada. A meta obtinenda é uma boa tradução
temporal de seres espaciais.
A marcha prevê ocupação, recuperação,
progressão. O caso do século xx, por exemplo, está
pedindo que se recupere dos seus profundos desvios de hominidade.
Ele tem de enfrentar três agências nocivas:
1°. a ruptura da tradição mediterrânea,
ofendida pela irracionalidade da inteligência contemporânea
e dificultada na pletora
demográfica do século XIX. Absorvida na quantiação,
a inteligência desdeixou o humano, relegando o qualitativo,
desenxergando o Sujeito que ordena o Objeto. O excesso demográfico,
elevando a produção de massa humana a um ritmo superior
ao da modelação tradicional, multiplicou pavorosamente
o peso da primarice;
2°. a descalagem entre a alma e o corpo da
cultura: há uma tremenda desproporção entre
a gloriosa eficiência técnica da provisão
oicológica e a obscura insuficiência homínica
do fruidor, antes acostumado à paciente conquista, agora
metido em uma facilidade que se oferece. O tempo da alma não
sincronizou com o tempo da matéria: não se é
mais um homem que trabalha, mas um homem que funciona. E
o moço de agora, entrado num mundo com automóvel,
telefone, eletricidade, vive nele como se ele todo fosse um mundo
natural. E estranha que os velhos não tenham sabido melhor
o aplicar. A fascinação da eficácia faz a
muitos pensar que a Rússia é que sabe fazer;
3°. finalmente, os efeitos traumáticos
de duas batalhas mundiais, 1914 e 1939, nesta guerra inconclusa
do século.
14 - O INDIVÍDUO
A feição de um meio assim dificulta
oxigênio ao Sujeito, extraído de si pela alteração
que o rodeia. A velocidade espacial do mundo de fora é
nociva à estrutura de tempo do mundo interior.
Hoje, o que mais cresce e prospera em cada um é
o seu indivíduo, esse espontâneo senhor que se instala
na prerrogativa e se mostra fácil doutor de princípios.
A montagem do mundo que temos foi obra de uma aristocracia
do espírito, sob os olhos do respeito tradicional. Antes,
relembra Ortega y Gasset, um homem do vulgo não se arvorava
a ter "idéias". Tinha crenças, tradições,
provérbios, e não se metia a doutrinar sobre o que
deve ser. Existia nele - continuamos nós - a intuição
dos limites e a capacidade de ouvir, dieta
que facilita a circulação da energia socializante.
A vida era ordenada em função de valores morais.
Hoje não: qualquer indivíduo, de Sujeito mui leve,
tem a "sua" teoria, ordenada por ele em torno de si
mesmo. É um produto apressado, cozido na facilidade mecânica,
esvaziado de tradicão e de ética.
Renan previra que o domínio do individualismo
seria o fim da civilização. Si l'esprit de puissance
individuelle venait à régner parmi nous, ce serait
la fin de toute civilization, de toute tendance à la raison.
Na verdade, estamos pagando pecados de uma culpa
transmitida pelo século XIX, inclusive Renan, quando nos
preparava, não para a fé racional que sonhara, mas
para esta enfadonha disponibilidade nossa, de seres desmotivados.
O individualismo reina solto e falaz, criando nossa
intransitividade lerda e morna, que esgota a socialidade. Esvaindo
o calor humano da sintonia, em que se nutre a comunhão
com o Real. A simpatia
da Natureza quer vida natural e repele esta existência de
brinquedos mecânicos, em cidades jardins-de-infância,
cheias de meninões. O individualismo impede o crescimento,
impede a varonia. Esgotando o Sujeito, prepara o candidato a rebanho.
É marca de nosso tempo a recessão
gregarizante. Primeiro são manadas ocasionais. Depois,
se não se busca remédio, pode vir o pastor bruto
e forte, que a todos nos mate a saudade do aprisco.
15 - CICLOS
Um fim de ciclo não é o fim dos ciclos.
Além do mais, antes de anoitecer é possível
nascer a madrugada.
Para a recuperação hominizante, cumpre
restabelecer um sistema vascular apropriado à recirculação
da seiva mediterrânea. A receita manda reimergir no tempo.
Com História, Arqueologia e Lingüística,
um pesquisador acompanha o jeito de afeiçoar que o tempo
tem, desde a fase pré-mediterrânea. Aos vinte séculos
da continuidade histórica, na tradição indeuropéia,
ele pode somar outros vinte séculos de bons indícios
pré-históricos. Perfaz assim 40 séculos,
não aqueles que Napoleão vira encimando um incômodo
cume de pirâmide, mas 40 séculos vivenciais, diacronicamente
hominizantes.
O observador descobre que a civilização
ocidental está sempre renascendo, após um embate
da força contra o Espírito: o Espírito mediterrâneo
e a força do mar Báltico, precipitada em hordas
árias invasoras, vindas em busca da luz do Sul, onde primeiro
desfazem, invadindo, para depois refazer, assimilando.
Entre os séculos XX e XII antes de Cristo,
eles desceram, nórdicos e bárbaros, devastando a
Grécia, aniquilando Creta e incendiando Tróia. Depois,
tendo recebido o Espírito, vão merecer as graças
do "milagre helênico", germinadas naquela racionalidade
que iniciou a ordenação do mundo. E o lento assimilar,
espraiando-se na clara concha do Mare Nostrum, quebrou vagas também
na Itália, ocupada de árias também. Em seguida,
nos primórdios da idade cristã, outra vez turvando
o céu com seu crepúsculo, desceu o Báltico
outro fluxo de árias, seres de especificação
retardada, imergindo na luz, agora batismal, enfim levada ao Norte,
ao mar hostil.
Finalmente, já mediterranizado o Ocidente,
a barbárie da força repete-se, nesta última
centena do milênio, ainda com árias, os últimos
árias inassimilados e orientalizantes.
Desde a planura infesta de Moscóvia, sopra
encanado um rude inverno. Zumbe, na sua linha de som, a soturna
ameaça das eremias cíticas, outrora tão temidas
pelos gregos. De conluio com ela, paira uma torva sugestão
de cavalgadas hunas, com seus Átilas insepultos. Mais ao
longe, no fundo, o ganido mongol dos ventos de Genghis Khan.
A vitória final deve ser do Espírito.
Mas, quando chega o rumor dos beócios, chega também
a hora dos Boécios, fiéis e firmes, entregues ao
labor de traduzir Platão, em meio aos alaridos góticos,
da corte gótica de Teodorico.
|