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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

PROL [*]

 

Até o começo do século vinte [i], podia um lingüista europeu chegar a um lugarejo qualquer e, desenhando-lhe figura da língua, na fala dos homens da terra, encontrar um patrimoniozinho [ii] específico e estável, revestido de pátina de imemorialidade, na área tranqüila de um grupo fechado sobre si. Isto fazia, por exemplo, Luís Gauchat, em 1903, com um dialetozinho de Charmey, no cantão de Friburgo.

Em tempos de infância, conheci uma terra cuja língua teria oferecido ao curioso as mesmas condições de especificidade tranqüila, embora sem marcas dialetais nem insinuações de imemorialidade, que não condizem com o nosso recente viver colonial e cisatlântico. Mas era um lugarejo de vida fechada sobre si.

Era um arraial como outro arraial [iii]. A igreja a escola o cemitério a farmácia o comércio; o casario residencial com suas hortas e quintais; o ribeirão limítrofe; a pastaria periférica. Em pequena distância, duas igrejas: a igreja velha no morro e a igreja nova na várzea. Entre elas, num hiato de rua que não era praça, grandes pés de casuarina enfileirados.

Dentro do lugar os viventes: homens mulheres criação. Terra sem doutores nem autoridade mais superior. Homens e mulheres, não assim genericamente, mas nomeadamente, recitáveis, um por um, no seu que fazer e que viver. O vigário padre Félix, o professor Chico Dias, o farmacêutico Antônio Guedes, a mestra dona Augusta; seu João Rodrigues, seu João da Cunha, seu Vicente Roberto; o Luís de siá Ritinha, o Zéu Itabirano, o Mila da Maria Germana; o Cista o Batica o Sinval o Getúlio o Ostino...

Até os animais, todos, traziam apelidos de sua individuação: o cachorro Piloto, o cavalo Garboso, a besta Caterva, o touro Soslaio, a vaca Chiqueza...

A vida corria entre limites topográficos bem aconchegados: o morro do Neco, a serra do Paraguai, o fim da rua da Várzea.

Nem sei para que menoscabar uma existência tão simples, de gente tão simples, alegando contra ela, despectivamente, que seus horizontes não ultrapassavam a linha do campanário. Começa que lá nem havia campanário, pois o que lá havia era a torre da igreja. Sim, a torre da igreja, e não as torres das igrejas [iv], pois embora sendo duas existiam vivencialmente como cada uma. Não se usava dizer 'as igrejas'. Disse antes que as igrejas eram duas; disse-o porque pensava quantitativamente, distraído por uma inobservância que agora se corrige. Não eram duas igrejas, mas sim uma igreja e outra igreja; não se somavam; era a igreja velha e era a igreja nova. Ninguém dizia 'as igrejas' 'as torres'; não carecia. Diziam 'a igreja'; Mas, havendo necessidade, acrescentavam 'a igreja velha'. Ou então 'a igreja nova'.

Numa terra fechada sobre si, o patrimônio da língua tem estabilidade conferível, sistência vagarosa, dimensões numeráveis. Era assim aquela terra da infância; porém, não tanto que fosse impermeável ao outro mundo. Esse ali penetrava por mais de uma via - seja no regresso do tropeiro, cujo ofício era viajar para fora, seja na lembrança da jovem que ia longe fazer o seu curso normal, ou de algum jovem que estivera em seminário (caso menos comum e contrário ao ritmo do costume: rapazes primários e moças instruídas). Finalmente, entrava nas letras do tardio jornal, cuja matéria de informações era matéria da conversa, no adro, antes da reza, entre o vigário, o mestre e o boticário, todos recitando nomes como 'França Inglaterra Marne kaiser Alemanha'.

No entretanto, esse outro mundo mal chegava para nutrir a imaginação de poucos, transformado em rápido assunto de alto proseio, num encontro dominical de compadres. Não repercutia no prático; não tomava corpo de vivência, valendo menos para a língua daquela gente, afeita ao seu modesto armazém de cotidianidade.

Se quereis inventariar os bens de língua de um grupo social, primeiro respeitai o inefável; medi então o conteúdo fabulável que está na alma de cada um dos indivíduos do grupo. Todavia, como o falável é imperceptível, espreitai os falados, espreitai as falas; nelas é que a língua se manifesta; delas é que extraireis a paciente média dos recursos fabulares que buscáveis.

Naquele tempo, um recenseador podia confiar em que estava computando alguma riqueza estabelecida e conservada. Hoje, porém, devido à ubiqüidade da onda hertziana e à facilidade veicular das comunicações, a instabilidade invadiu todo lugar, inutilizando fronteiras sagradas de recantos mimosos, abrindo toda terra às inquietações da distância, às ventanias cósmicas da alteração. É difícil a ipsidade, a persistência do ontem no dia seguinte.

Sendo um grupo fechado, havia algum poder de investigar limites, medir quantidades e avaliar qualidades; mas hoje, como recensear bem o estado de língua, não do arraial, mas das cidades inúmeras que tem a nação? Pode-se recensear mal: o tempo da pesquisa não alcança o ritmo da alma coletiva, movido o povo por inquietações do globo todo, aberto o espírito às multiplicadas solicitações de uma curiosidade sem fronteiras.

Ainda que se alcance bastante quantidade, como avaliar a qualidade, como apreender bem os matizes muitos de um estado atual de língua?

Tome-se a língua portuguesa, em seu momento de agora, internada na mente dos que a falam. Cumpriria medir, no vasto espaço geográfico, o patrimônio fabular de cada indivíduo, componentes de imponderável massa humana; massa psiquicamente irrigada, todo dia, pelo tremendo alcance da divulgação mecânica, variando seu reagir, sob a pressão condicionante, conforme efeitos da divulgação mecânica, variando seu reagir, sob a pressão condicionante, conforme efeitos da região, ou da peculiaridade subjetiva; massa infiltrada de espírito diacrônico, naqueles a que não chega a diária coloquialidade e que se vão abastecer nas falas dos autores de todas as épocas: mergulham nos tempos idos, trazendo, de volta, a riqueza renovada. Ninguém põe fronteiras à tradição nem ao vigor da influência histórica.

Só a diacronia pode exprimir a sincronia. Define-se esta como um estado de língua. (Estado de língua é um estado de homem. E que é estado de homem? Estado do instável, estado de um ser que se move no espaço alimentando-se de tempo, pois o homem é uma expressão espacial em busca de tradução temporal. Nos minutos da hora que passa, entre os indivíduos da cidade, flui a tepidez misteriosa e milenar dos meridianos vários da larga história do homem. Cada ser social é uma unidade ou feixe espiritual emanando de ondas de antanho. A vivência é uma projeção vertical do antanho aflorando na superfície de hoje. E tudo isso maquinado ou esboçado na expressão ou nas intuições da vida significadas no patrimônio fabular da sociedade, veiculadas na tradição. Variando de ser para ser, a extensão e densidade da imersão no passado. Seria curioso o gráfico de alma, da alma de um grupo, se fosse fácil a estatística reveladora de tal gráfico. E ele se traduziria em valores fabulares - os valores de língua da língua - cheios de tempo e distâncias). Ora, estado é imobilidade e não existe imobilidade no que anda e evolve, segundo uma necessidade da vida do espírito. A língua, a serviço da expressão do homem, nunca está, move-se. A sincronia é uma aparência. É como no instantâneo de um corpo em movimento. Ele cinde um processo cuja realidade o espírito restabelece, ao integrar a idéia do movimento, na soma do antes e do depois. A sincronia tem o jeito do instantâneo; é um movimento da trajetória: explica-se pelo antes e contém promessas do depois. Língua é diacronia; não é estado, é mudança. Não a sentimos porque nos falta a conveniente externidade, porque seu ritmo coletivo nos escapa, além de ser espiritual e não mecânico. Também por ser espiritual foge à necessidade física da lei física. É mudança cuja direção geral percebemos, depois, classificável como tendência. Mudança cuja previsão não tem garantia: a promessa de hoje pode acabar no engano de amanhã. Mede-se a largos tratos de tempo, grosseiramente, pois é matéria subtil: passado o fato, confrontamos o estado seguinte com o estado anterior, recompondo o caso por informações que uma boa sorte ministrou, entre imaginações e subvenções da analogia humana.

A língua é um fruto da dinâmica do espírito e nas forças do espírito se há de buscar a sua força. No documento histórico, se firma; e exibe a linha geral da sua persistência. Todo estado atual de língua indeuropéia revela uma sedimentação residual que não cessou em quarenta séculos de sociedade humana. Sedimentação que a pesquisa rastreia segura, embora deficiente, na larga sotoposição dos seculares planos sincrônicos.

Mas esta sedimentação de camadas é de camadas do espírito e não de camadas da matéria. Camadas de um depósito que repercute: a forma do espírito agora é capaz de sentir a forma do espírito outrora: valores que persistem na cota de número 20 sabem reconhecer-se em anterioridades encontráveis nas cotas 15 10 5 1 -1 -5 -10 -15.

Mais ainda: valores de idades vencidas, emergindo sob estratos temporais, podem vir luzir de novo à tona, pelos retornos cíclicos do espírito, no curso e recurso da civilização mediterrânea.

O passado das línguas ocidentais mergulha forte na língua latina. Foi ela que lhes deu flexibilidade continente, desde que lhe foram absorvendo a nutrição espiritual do cristianismo. Foi ela que lhes deu mecanicidade instrumental quando lhes transmitiu, com o Renascimento, os lucros da mutuação interdialetal, pelo sistema do empréstimo helênico, feliz assimilação imperial, pois o latim da cultura é grego absorvido. Assim como é latim absorvido o inglês da cultura ou qualquer língua ocidental de cultura.

Se para uma língua germânica mergulhar no latim foi mergulhar em outra língua, para uma língua neolatina isso foi mergulhar em si mesmo, um fundo imergir nas águas do próprio ser. Uma língua neolatina - diz a Lingüística - não é outra língua mas sim a mesma língua latina, pervivendo no tempo e no espaço e dialetando-se.

Investigue-se a identidade do nosso idioma português, examinando-a diacronicamente, através de seus planos sincrônicos, do século vinte ao século um: a via histórica, sem erro nem eliminação da identidade, leva a pesquisa ao tempo de Augusto: embora vinte séculos de mudança, a língua de Rui é a língua de Cícero. A diferença dos traços fisionômicos é um fruto do tempo e da vida, comparável à que se nota entre duas imagens do mesmo indivíduo - uma, de quando criança, outra do homem feito.

A língua de Rui é a língua de Cícero. As falas é que foram diversas. Os homens divergem uns dos outros e as expressões deles com eles. A fala de Cícero não é a fala de César, nem a fala de Rui é a de Machado ou Vieira.

Depois que a genial observação de Saussure permitiu à metódica definir as figuras centrais que são a Fala e a Língua, deixou de ter promessas de bons frutos a confusão tradicional de nossos tratadistas. Cumpre remodelar conceitos de origem empírica, instalando-os por princípios racionais.

Um exemplo: deve banir-se o conceito pluralício de "línguas indeuropéias", trocado pelo singular "língua indeuropéia". Pluralícia é a fala mas a língua é uma só, embora não uma, como patrimônio fabular da sociedade humana. Empobrece e enriquece, muda e transmite-se, com o ritmo imprevisível da história. O bidimensionismo da comparação boppiana [v] permitiu rastrear, como língua dos povos ocidentais, quarenta séculos de língua indeuropéia, ordenando provas do comprovando e deduzindo argumentos do provável.

Existe, pois, uma língua em que Cícero falava e em que falou Rui Barbosa. Dizer que o português vem do latim é dizer mal. Não são duas línguas mas dois estados da mesma língua. Não são duas línguas sucedendo-se, mas uma língua persistindo, pervivendo, sendo, evolvendo, juntamente com o homem, segundo contingências do mesmo existir.

Enquanto não se decida por qual dos nomes chamar esta língua, vigore pelo menos o conceito, à espera de que a novidade envelheça, esbatendo a vaidade emocional.

O bom conhecimento ama chegar às origens. Desama a noção parcelar, a notícia incompleta. Ora, depois que foi corrigida a miopia tradicional pela retificação ocular da lente metódica, fica visto que a boa notícia de nosso idioma pede, no mínimo, vinte séculos de perspectiva, indo de Rui a Cícero. [vi]

Não se envaideça de o bem conhecer quem andou somente parte do caminho. Se este nos parecer que estendeu muito, não nos esqueça que sair do engano é coisa que não estende nem diminui: apenas corrige.

Para consolo do peregrino, fica o sabor das novas intimidades, as esperanças da firmeza, os confortos da solidariedade humana - que tudo ele pode achar, em vinte séculos de tradição.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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