Faz mais de dois milênios que a filosofia
ocidental vem tratando a matéria como "substância",
repartida em "coisas" que o nome identifica, dotada
de procederes que o verbo traduz.
De um ponto de vista vital, a teoria da substância
não passa de perspectiva inocente, livre o homem de observar
o proceder da matéria e de lhe ditar novos procederes,
lentamente criando a sua economia, aquela com que foi superando
a economia zoológica, no esforço de adaptar para
si a casa do mundo.
Entretanto, no nível da razão eficaz,
e vivencialmente falando, temos de reconhecer que a teoria da
substância representa uma conclusão exocêntrica.
Ela excede a premissa dos procederes, aquilo por que a matéria
se mostra e que a experiência pode observar: a inteligência
ordena a coisa em nós, mas não pode chegar à
coisa em si. Ela não pode ver o que está sob
a epifania
dos procederes. É incapaz de entender o sub estante,
a substância.
A coisa em si repercute nos sentidos vitais, mas
os sentidos vitais não carecem de ser homínicos,
pois basta serem zoológicos, alheios a consciência.
Essa repercussão, carreada ao centro mental, aí
se transforma em idéia da coisa ou coisa em nós.
Ora, está visto que a coisa em nós não é
a coisa em si. A coisa em nós é um "mentado
tradicional", um destilo repercussivo de procederes elaborados.
A coisa em si é uma presença de matéria espacializada.
A coisa em nós, idéia inespacial
da coisa, é um extrato temporizado.
A filosofia, como ciência da coisa em nós,
é uma ciência da motivação. Trata morfias
temporais. Trata mnemiatos
que o Sujeito elabora, a partir de efeitos espaciais do Objeto,
sensoriamente internados. Repercutindo no homem zoológico,
a coisa em si influi emissões que o homem antrópico
vai configurando em idéias. Motiva assim a matéria
de que se recobre a substância.
Já é tempo de se adotar uma filosofia
do proceder, atendendo ao princípio de que no princípio
era o Verbo.
A hominidade
representa uma rampa diacrônica, na planura espacial da
zooidade. Estudá-la é ordenar uma economia de dois
momentos e três fases: um momento zoológico, espacial,
evolutivo e sem tempo, e um momento antrópico, inespacial,
progressivo e com tempo. Entra neste a fase infra-lógica
do "Homo loquens", marcada pela superação
do zoológico. É uma longa fase de centimilênios,
lenta no teor de seu ritmo temporal e de seu ritmo progressivo.
A outra fase é a fase lógica do "homo sapiens",
restrita e não segura, mas cheia de superação
do infra-lógico.
No nível natural do zoológico, vigora
ao natural o regime biológico. A vida é um receituário
de procederes atualizáveis na hora, sem traçados
de futuro. Esse receituário é um legado genético,
passado a indivíduos espaciais e sem tempo: ignorando a
sintonia
inter-homínica, ignoram o comércio mental. Vivendo
no seu agora de simbiose
e simpatia, são indivíduos sem Sujeito, distribuídos
no espaço do Objeto.
No nível pós-natural
do antrópico, surge o Sujeito com sua primeira hominidade
revelada pelo Objeto. Entra em cena o construtor de idéias,
espelho refletor do cosmo, oposto à luz do fenomênico.
(Reagindo contra a poesia do cristianismo, o racionalista menoscaba
a ignorância de se dizer que o sol foi feito para iluminar
a terra do homem. Entretanto, sem o homem com seu Sujeito, o mundo
todo se anularia, feito Objeto desmotivado.)
O terceiro nível é o da segunda superação.
A primeira, vencendo a cota
zoológica, fora lenta e longa no decorrer, embora curta
na dimensão, tachada de ipsidade
iterativa, no fraco teor de vivência
da sua posse mental. Um dia, porém, na concha mediterrânea,
começou a luzir, com reflexo metódico, o sol da
razão. Veio a marcha que vai da posse casual à posse
causal, diligente no esforço de ordenar em cosmo interno
o mundo externo.
Portanto, tomando referência na hominidade,
temos um mundo de Objeto sem Sujeito, antes de um mundo de Objeto
e Sujeito transmudável em mundo de Sujeito e Objeto: O(S)
- O.S. - S.O.
No mundo sem Sujeito, ausente a sintonia
mental, é de simbiose e simpatia
o regime da dieta
zoológica.
No mundo com Sujeito, a parceria Primo
e Secundo industrializa a idéia do Objeto, operando
no comércio mental. Seu regime, socialista e capitalista,
cresce por cooperação inter-individual e tradição
inter-generacional. A fórmula defectiva O(S) abre-se na
fatoração da fórmula O.S., denunciadora da
presença antrópica. É a presença de
um Sujeito que volta sobre o Objeto e o adapta. No regime do código
natural, o indivíduo zoológico, emparelhando com
a coisa, tem sempre o lugar de estimulado. No
regime pós-natural
da dieta
homínica, o indivíduo fez-se capaz de inverter o
sentido da equação, de estimular a coisa
e lhe ditar procederes.
Mas o homem adâmico, fraco na sintonia
e forte na simpatia, ama diluir-se no Objeto, centro gravitário
da fatoração O.S. Nos monótonos centimilênios
da primeira jornada, saindo de si para um mundo que o chama, existe
um Sujeito hominicamente iterativo e ralo, misturando as fronteiras
do eu e do não-eu. Vizinho e parente dos bichos, rola para
a simpatia
zoológica. Vê pouca distância entre si e o
animal, sentindo nele, nitidamente, uma ancestralidade que o totemismo
ritualiza.
Chegou enfim o dia mediterrâneo da nova hominidade,
na eficácia racional da superação aristotélica.
A fórmula O.S. muda para S.O., mostrando um Sujeito que
se opõe ao Objeto, deslocando o centro gravitário
da fatoração. Elaborando o mundo no espírito,
é quase capaz de o fechar entre parênteses, de realizar
a fórmula S(O).
Vencida a barreira infra-lógica, a humanidade
ocidental precipitou o teor do ritmo progressivo, com a densidade
da destilação temporal. Descobrindo a eficácia
do espírito, o homem se fez a medida do mundo, para o qual,
quando sai, pode sair verificando e taxando, como um nomóteto.
Esse homem, faz mais de dois milênios, tenta
motivar uma filosofia da substância. Vê causas onde
há casos, querendo porquês onde estende alguns comos.
Encontrando o acessível porquê estrutural de um proceder,
quer o porquê do procededor, o fundamento da coisa em si.
Em verdade, porém, só há dois
observáveis no campo endofísico: o proceder do Objeto
e o proceder do Sujeito. Um é o proceder da matéria
física e fisiológica, influidor de estímulos
vitais para o corpo e de estímulos vivenciais para o espírito.
O outro é o proceder de elaboração mental
do fenoménico, sensoriamente captado, para riqueza do Sujeito,
ordenador do Objeto.
A ciência começou, contingente e espontânea,
com os observares do proceder macrofísico, na circunstância
vital. O meio é capaz de dois efeitos no homem. Nutrir-lhe
o corpo no espaço e nutrir-lhe a mente no tempo. Formulando
equações de procederes, foi fugindo devagar à
servilidade zoológica, própria do animal que sabe
proceder ante a coisa, mas não sabe induzir a coisa a proceder
ante si. Após a lenta espera da primeira fase, entre modestas
invenções, iniciou a grande adaptação
oicológica. Submetendo o mundo a programa, vai passando
de homem da gleba a senhor do mundo. Imerge ludicamente no proceder
microfísico da matéria, na intimidade final. Chegando
aí, porém, vê que a substância desaparece,
esvaída no espaço, qual "energia engarrafada".
A Ciência do Objeto não acaba em filosofia de
substância, mas na filosofia do proceder.
A Ciência do Objeto, com seus procederes,
é uma ciência do espacial. A Ciência
do Sujeito. com seus procederes, é uma ciência
do temporal.
A Ciência do Objeto está adiantada.
mas a Ciência do Sujeito carece de melhor codificação.
Empiricamente, ela é velha como a filosofia e a história.
Metodicamente, só agora está compondo alguns capítulos
mais convincentes, na glotologia, na sociologia, na psicologia.
Como ciência da hominidade, a Ciência
do Sujeito estuda a qualidade antrópica do homem,
semeada na gleba zoológica. Estuda a alma no corpo, sendo
que o homem é Sujeito na alma e Objeto no corpo. É
a unidade hipostática de sua forma temporal na sua
forma espacial.
Conclui-se daí que a Ciência do Sujeito,
ciência do temporal, é uma ciência histórica.
É histórica a filosofia, a glotologia, a sociologia,
a psicologia. Na subvenção dela, trabalham ciências
como a biologia e a zoologia, ciências do espacial ou do
Objeto.
A LINGÜÍSTICA estuda um proceder do
Sujeito. Motiva-se nos fatos da língua, nascidos nos atos
de fala, por um proceder de Primo ante Secundo. A fala, como proceder
de manifestação, fecha um circuito "sócio
e sócio". Como fala interior ou proceder de um pensar,
fecha-se num circuito mental: SS.
Foi na fala de manifestação que começou
a fala e a hominidade, fomentando, pelo comércio mental,
a socialidade, a aculturação inter-individual e
a tradição diacrônica
das gerações.
Como proceder de manifestação, a
fala é inter-individual. Como proceder de um pensar, é
intra-individual. No fundo, ambos são manifestações
do pensar, quer na fala coloquial de Primo com Secundo, quer na
fala
soliloquial de Primo consigo mesmo. É sempre o circuito
"homem-homem".
A fala deve ter começado na sincronia de
um fazer a dois, instalando um circuito "homem-homem"
na hora do circuito "homem-coisa". Nasceu vivencial,
na concomitância
de um proceder vital.
Naquele tempo, antes de haver chegado a proceder
autônomo e sub-seqüente, estilizava gestos e vozeios
pré-fabulares, na hora teatral do encontro. Ante a coisa,
junto com o proceder de resposta, valia como um proceder adminicular,
veiculando sintonias mentais entre os sócios. Devia ser
muito visual, espacializada no agora do momento. Depois,
através de esquecidos milênios foi crescendo em capacidade
auditiva. Melhorando em semântica, melhorou a continuidade
pós-contactual do pensar, estendido no alhures-outrora.
Imergindo na duração, demarcou as sucessões
da vivência, roteando a cartografia do pretérito.
Ensinou a humanidade a tecer de tempo a hominidade.
Assim vem caminhando o homem progressivo, o homem
que se hominiza. Repartindo a experiência, promove a socialidade.
Persistindo na tradição docente-discente, capitaliza
a experiência. Para tanto possível, teve o dom zoológico
da linguagem, estiliza do em falas, cujo exercício
foi gerando a língua, um cabedal de "moldes"
mentais que a passada expressão deixa à futura expressão.
A partir do sub-solo zoológico, a hominidade
é uma estratificação diacrônica. Ainda
se nota, no feitio do homem atual, o seu possível jeito
arcaico. Ora na morfia pré-fabular da expansão interjectiva,
ora na sumária economia infra-fabular da fala pragmática.
A ductilidade
veicular da fala
teórica é uma conquista serôdia.
Do piteco
ao antropo, a diferença é uma rampa de tempo, erigida
na planura da especialidade zoológica.
Os enganos
A fala deve ter nascido como um vozeio
concomitante, apoiado em sintaxe de gestos e presenças.
Daí se foi promovendo a lenta riqueza. Da posse imemorial,
infra-aristotélica, sub-hominicamente vegetativa e hipocrônica,
chegou à fase metódica da consciência na consciência
de quem ordena o fenomênico. Busca entender o mundo e entender-se.
Quer o Objeto e o Sujeito. Tarde para ver a aurora, era ainda
cedo para compreender o dia. Em vez de tomar a via que leva à
fala, o observador se perdeu no momento pós-fabular
do vocábulo. E em vez de entender a frase como expressão
do homem, quis compreendê-la como expressão
da coisa.
Assim procedendo, não pôde concatenar
os seguintes princípios fundamentais:
1 - o vozeio
da frase é uma estrutura de sintagmas, vazados
em moldes que ficam na língua. A frase não
é, pois, uma construção de vocábulos;
2 - a frase, emitida na hora inter-individual dos
contatos, mas persistindo na lembrança de Secundo, vivencialmente,
aí se desfaz num soluto
mental de idéias veiculáveis e de morfias veiculares.
A fala é de Primo e a língua é de Secundo;
3 - tais morfias veiculares constituem-se no patrimônio
fabular de Secundo
Primo. Um patrimônio chamado língua, feito
de moldes e elementos, a serviço de falas venturas;
4 - tais moldes ou formas, onde a frase é
fundida, vêm a ser de três tipos: o molde posicional
ou topológico, o molde prolatório ou melo-rítmico
e o molde sintágmico.
5 - somente na análise do molde sintágmico
é que vai aparecer o vocábulo, devidamente
endereçado por seu morfema fabular. O vocábulo
e o morfema são os dois elementos do sintagma;
6 - a língua é, pois, um patrimônio
com três tipos de moldes e dois elementos.
O sintagma é da frase, cujo molde é
da língua. Mas o vocábulo é só da
língua. Vocábulo e sintagma, ainda que iguais na
aparência, diferem por notas como as seguintes:
1) o vocábulo é uma produção
pós-fabular. Procede da fala de Primo docente à
memória de Secundo
discente. Aí se reduz, com o tempo, à figura que
tem, no patrimônio de sua língua. É a figura
de um possível valor, na hora da fala de Secundo
Primo. O sintagma, posto na fala, é um vozeio
efetivo, devidamente endereçado por morfemas;
2) o vocábulo é candidato a veículo
de um sentido que a experiência multiplica e varia. É,
como aparece no léxico, polissêmico ou plurivalente.
O sintagma, porém, como aparece na frase, é univalente
ou monossêmico;
3) o sintagma é uma unidade da fala. O vocábulo
é um elemento da língua, atualizável na fala,
mediante o morfema fabular.
O aspecto mórfico da diferença entre
um sintagma e um vocábulo, mais perceptível no português,
é difícil no inglês, cuja devastação
morfêmica, unificando o aspecto, aproximou o sintagma e
o vocábulo. O mal do inglês atingiu também
o francês, mas este guardou, pela conjugação,
contraste mórfico bastante para o nome e o verbo. Desinencialmente
empobrecido, o inglês recorre a topomorfema (posição
do sintagma na estrutura), a tonomorfema (divisor rítmico
da prolação) ou ao teatral. Segundo desconfiava
Ortega y Gasset, nem mesmo disso careceria, pois quando um primeiro
inglês vai falar, o segundo já sabe o que ele vai
dizer.
Para um idioma assim tão léxico,
a diferença entre sintagma e vocábulo tem de se
concentrar no fato de o vocábulo, virtual e polissêmico,
divergir da atualidade monossêmica do sintagma.
A carência desinencial do inglês é
estado posterior à riqueza de outrora. Perdendo substância
mórfica, o sintagma tendeu para a sua igualdade com o vocábulo.
Na área mediterrânea, os dialetos
peninsulares guardaram mais vizinhança com o estado anterior,
mais sensível no latim e no grego, onde, ao contrário
do inglês, o vocábulo é que não queria
desigualar-se do sintagma. Continuava agarrado à velha
concretice da mente infra-aristotélica, de vigor fracamente
analógico, vivencialmente elementar, entre tachas e resíduos
do antigo magma vital.
Temos, pois, a redução vocabular
dos dialetos de agora e a presença sintágmica
dos dialetos de outrora. É mais fácil agora
do que outrora, distinguir entre um estado-de-fala e um estado
de-língua. Se vale, para o lingüista de hoje, ao não
haver chegado a tal distinção, a desculpa de que
o fechou a perspectiva do século XIX, para uma lingüista
de há 20 séculos tem de caber até justificativa
no magma estrutural da língua do tempo. Nem ao pós-platônico
Aristóteles, nem ao pós-alexandrino Varrão,
a nenhum era fácil discriminar sintagma e vocábulo,
dentro daquela polimorfia casual cheia de atualidade, onde apenas
talvez ao nominativo podia sobrar um pouco de sugestão
virtual. Faltava-lhes, na matéria. uma sutileza que a perseverança
racional da Idade Média iria definindo. Faltava-lhes conceituar
melhor a idéia de caso, declinação e conjugação:
para eles. equinus, equile, equitare, equitatus eram
formas declinadas de equus. Varrão não
estava preparado para a diferença entre o morfema fabular
(endereçador da função fabular - equus,
equum, equo) e o morfema vocabular (que altera o
conteúdo semântico, multiplicando cognatos: equus,
equinus, equile, equitatus.
Entretanto, sob a fraca posse metódica,
de um assim evasivo possidendo, o que admira, na razão,
é a maravilhosa coragem racional do heleno quando, disposto
a tudo perquirir, enfrenta o caso da expressão humana.
Como a posse era velha, não admira que não haja
chegado a melhor consciência, se
melhor consciência até hoje nos falta. Não
admira que aceitasse o fundo patrimonial da tradição
vigente.
A idéia da matéria, nos reinos do
animal, do vegetal e do mineral, era uma idéia de "substância",
macrossemicamente influída pela experiência vital.
As coisas da circunstância tinham seu nome
"substantivo" e "adjetivo", repartindo-se
eles entre o concreto sensível e o abstrato
inteligível, pois o homem, sabendo sentir o
real epifânico, também o sabe entender na
sua presença criptofânica.
O bom gramático nunca se deu bem com a dicotomia
abstrato-concreto. Todo nome, veículo de uma idéia,
é veículo de uma abstração, íncola
do reino vivencial. Concreta é a coisa, no espaço
vital a que o homem pode passar, em segundo momento, quando da
idéia ao objeto vital que a motivou e com ele o nome, que
carreia essa idéia.
A função de "nomear a coisa",
desde uma antiga idade mágica, era vista como traduzindo
a relação direta "homem-coisa'", estabelecida
no encontro vital. A fala, portanto, traduzia a coisa, no
externo do mundo, e não o homem no interno da idéia.
Sem chave metódica para subir às
origens, o bimilênio seguinte foi repartindo a tradição
escolar, até que o século XIX a renovasse, transpondo,
no comparatismo histórico, a perspectiva da língua.
Do século XIX até agora, eis o que
conseguiu a lingüística, no seu formidável
trabalho de campo:
- identificou a diacronia da matéria fabular
indeuropéia, ensinando a encadear estados de língua.
Na linha latina, por exemplo, recebe-se do pós-românico
ao românico, do românico ao romano, e do romano ao
pré-romano, segundo uma convergência que aponta na
direção de uma antiga unidade anterior, para onde
confluem ramos mediterrâneos e bálticos;
- indo em busca da "natureza" da língua,
passou da curiosidade homoglótica à pesquisa aloglótica,
estudando, além de falas semíticas e asiáticas,
os inúmeros falares tribais que caçou pelas selvas
do mundo, a fim de enjaular em grades gramaticais.
Eis, no entretanto, o que não fez:
- acomodando-se à tradição
vocabulista, não deu importância à primazia
da fala, esbulhada como Jacó, perdeu assim de descobrir
uma chave metódica, por não haver meditado na economia
dos sintagmas e por não haver eplicado, ao progredir histórico
do homem. certa lição da analogia
evolutiva;
- em conivência com melindres nativistas,
deixou prevalecer a distinção pluralícia
de "línguas", ao deixar de promover o registro
técnico da idéia singular "língua",
exibida na realidade histórica do indeuropeu, patrimônio
comum dos falares ocidentais;
- fascinada pelo naturalismo de um tempo vaidosamente
positivista, preferiu excluir dos cuidados que tinha o cuidado
das origens, materialmente inacessíveis;
- enganada na ilusão da língua vista
em si, como produto natural, não viu que a língua
é não em si mas no homem, como fruto pós-natural
de um proceder chamado "fala":
- enfim, preferiu submetê-la a uma espécie
de legislação natural, estando fora da lei natural,
pelejando por incluí-la entre as categorias do Objeto,
sem descobrir que a língua está no Sujeito, ordenador
do Objeto.
Sem a devida subvenção do lingüista,
não admira que o filósofo, ao buscar consciência
pela intuição racional, também se deixasse
envolver no prestígio do nome, firmado na posse primaz
da mera intuição vivencial.
Cada indivíduo, desde que nasce, vai recebendo,
em duplo efeito condicionante, junto ao sentido fenomênico
da repercussão vital o sentido vivencial da notícia
docente. Assim, ele vê crescer a diacronia de sua homidade,
enquanto elabora os mnemiatos
da vida, continuamente temperando, na duração interior,
a lembrança da coisa e a lembrança do nome. É
a mesma coisa lembrar o nome e lembrar a coisa, ou lembrar a coisa
e lembrar o nome.
Em certa fase anterior da hominidade, é
tamanha a presença da sensação "nome-coisa",
que se faz capaz de traduzir em magia, isto é, um rito
de domínio em que o oficiante, possuindo o vozeio
do nome, crê possuir o concreto da coisa.
Mesmo em nível posterior, a sensação
"nome-coisa" pertence aos costumes do homem. Vê-se
daí como cada indivíduo, exibindo seu estrato geológico
de heranças diacrônicas, anda mais inclinado a viver
de posse que de consciência. Mesmo quando
se faz categórico, dizendo "pão pão,
queijo queijo", tautologicamente, exibe uma gnômica
do tipo elementar, com cheiro de infância mágica,
tomada de uma ênfase em que o vital predomina.
A sensação "nome-coisa"
pertence a uma fase etimológica do proceder nomínico,
vito--vivencialmente prorrogado. Quando Secundo
Primo se lembra da coisa ante o nome ou se lembra do nome ante
a coisa, é porque tem na memória, como dois possíveis
previamente condicionados, a idéia da coisa e a idéia
do nome. Entretanto, o que mais cumpria ver, em tal observado,
é que o ato de lembrar é um ato de pensar, e
o ato de pensar é um ato de fala. É um ato
de fala interna, inserto
na continuidade mental de Secundo
Primo, um ato que o metodista esqueceu, por culpa do vezo de conceituar
como fala a manifestação prolatória, desaprendido
de que a fala é uma estrutura veicular a serviço
da idéia. É como se a vida não fosse, muito
mais, uma constância interna de falas mentais, esporadicamente
semeada de falas externas, distanciadas, quais ilhas emergentes,
na mesmice das águas.
Mesmo num proceder inacabado, lembrar é
pensar e pensar é falar, num trabalho não de "compor
vocábulos e idéias", mas de "repetir moldes
frásticos", numa iteração que a vida
favorece, pois a vida gosta de iteração. Mesmo no
pensar criador, quando a novidade aspectiva lembra um faciendo,
a fala recorre à frase feita, analogicamente adaptada.
Em suma, proceder vital, constando de um fazer, supõe o
circuito "homem-coisa". Fez-se vito vivencial porque,
superado o limite do receituário zoológico, trocou
suas respostas por respostas vivencialmente estilizadas. O proceder
vivencial, constando de um pensar, criou-se na equação
"homem-homem" por uso de um comércio mental,
onde não entra a coisa mas a idéia da coisa, fabularmente
veiculada.
A fala faz correr uma sintonia
temporal entre os dois pólos do circuito "sócio
e sócio". Ela desmente o pessimismo daquele filósofo,
que dizia voltar menos homem cada vez que de entre os homens voltava;
quoties inter homines fui, minor homo reddi; (é
como se lê, de Seneca, apud De imitatione Christi L.I,
XX, 2). De fato, na aculturação diacrônica
da existência, o indivíduo pode voltar mais homem
de cada encontro com o sócio. Ao efeito vital do circuito
"homem-coisa" pode somar a notícia do Objeto,
vinda no efeito vivencial do circuito "homem-homem",
levando assim consigo, pós-contactual, a colheita da coisa
no espaço e a notícia da coisa no tempo. Mergulhado
esse todo, iterativamente confirmável, no batismo da vivência,
aí se dilui o atual da fala em seus possíveis. Um
soluto
mental de idéias veiculáveis e de morfias veiculares.
No atual da fala, um veículo veiculando um veiculado. No
possível da língua, um veículo disponível,
junto a idéias disponíveis.
Ao analisar estados-de-fala em estados-de-língua,
a vivência toma às falas ouvidas o cabedal das falas
dicendas. Cria, pois, uma situação em que o "possível"
precede o "atual". Foi de certo ante quejandas insinuações
da fenomênica interna que o filósofo imaginou o "ser
possível" como anterior ao "ser real", num
pressuposto reino de essências imissíveis, prontas
para o existir sensível...
Deixemos, porém, tal visão lá
em seu mundo metafísico, evitando sair de nosso cosmo endofísico,
onde o real que se mostra ao Sujeito é um atual que não
é, mas está sendo, ou melhor, procedendo,
ante ele; quer no epifânico de seu modo sensível,
quer no criptofânico de seu modo íntimo.
De tal proceder, iterativo e mesmista, deflui no
Sujeito nossa idéia de lei, bem como nossa idéia
de possível. Não o possível
de um ser, mas o possível de um "proceder". Recluir-lhe
a estrutura em equações de ipsidade
é o que tem na sua mira a intenção da ciência.
A idéia que se destila em cada Sujeito,
com marca subjetiva, é uma idéia individual como
posse, mas trans-individual na etimologia. Inter-individualmente
transmissível, a idéia é uma qualidade temporal
e diacrônica. Toma ensejo nativo no circuito "homem-coisa",
na hora dos contatos vitais do Sujeito com o Objeto. Forma-se
então no Sujeito, mas não propriamente pelo Sujeito.
Vive nele e dele toma destinos, mas depois de a ele haver chegado,
na figura imemorial da tradição. Dele pode receber
algum afeiçoado individual, capaz de passar ao patrimônio
do grupo, quando trans-individualizado pela manifestação.
É assim que vão surgindo as contribuições
de mudança, contingentes e incertas, fáceis de esquecer
no tempo, com a distância da fonte, o seu ponto de origem.
Com elas a hominidade
progride. As idéias de um homem, forma-as a humanidade,
e não ele. Consigo as cria, mas de Primo as recebe. Ao
nível da cota aristotélica, afeita ao programa escolar,
o hábito de ler amplia o convívio com Primos ausentes
que, mesmo alongados no espaço e na época, os pósteros
fazem seus mestres da idéia.
A idéia, que começou no espaço,
pois começou no objeto, é um valor que se temporiza.
Mas a língua de Secundo já começa no tempo,
advinda a ele nas falas de Primo, durante sintonias mentais que
são um puro negócio do Sujeito.
A filosofia é uma curiosidade que pede bom
teor homínico, boa vigência diacrônica, em
céu mental despejado, isento às névoas míticas
daquela hipocronia fantasiosa em que vive a hominidade retardada.
A filosofia, ao pôr cuidados na fala, tinha
já perante si um homem hominizado, embora não tanto
quando convém à Ciência do Sujeito, capciosa
e evasiva. Fundada em anamnese, ela pede a destreza do "nosce
te ipsum", de cumprimento não fácil. O homem
é um ser ainda muito zoológico e "alterável".
É recente a mudança do centro gravitário,
na tensão "Objeto-Sujeito". Recente e restrita,
pois é mediterraneamente ocidental, continuando a gravitar
para o Objeto, detida em níveis anteriores, a massa maior
da humanidade.
A filosofia da fala pede o conhecer-se, pede anamnese.
Conhecer-se é definir a própria identidade temporal,
na leve linha da vivência. É sondar o eu nuclear
de um velho assimilador de não-eu. É recensear as
vantagens da digestão, num teimoso digestor da alteridade
fenomênica. É medir-lhe a perícia, na arte
de converter em tempo a espacialidade vital.
A filosofia grega, embora não madura para
a consciência da língua, estava adiantada
na posse, afeita ao exercício de resolver em nomes
e idéias o complexo da notícia fabular.
A idéia, como qualidade temporal, desespacializa
em reminiscência o espacial fenomênico. No começo
da sua etimologia, ela padeceu os rigores do limite espacial,
na apertada contingência do circuito "indivíduo-coisa".
Eram as primeiras induções do comércio mental
entre Primo e Secundo. Mas na origem dessa mutação,
por que se desenvolveu o poder de exprimir-se, coincidem os sintomas
da qualidade antrópica, sinonimicamente apelidável
de "faculdade ideadora", "fabularidade", "socialidade",
"hominidade".
A idéia, nascendo entre efeitos do contato
fenomênico, entre tais efeitos se renova até hoje.
Mas já era, desde o início, um elaborado mental,
um transposto que não medrou em outras glebas zoológicas.
Tome-se o caso de um símio inteligente. Embora tendo alguma
visão, não chega a ter idéias marcáveis,
sujeito a viver perenemente intransitivo, no sub-desenvolvido
horizonte da sua capacidade infra-econômica.
Na gleba homínica, porém, a polinização
fabular fez a idéia crescer e espigar em riqueza diacrônica,
somando juros da tradição docente. Foi o poder
tradicional que salvou a geração discente, livrando-a
de ser uma geração de Sísifos, eternamente
a recriar a idéia.
Nascendo, é verdade, do contato vital que
a mente elabora, a idéia chega ao paciente, não
pela coisa, mas pela notícia da coisa, fabularmente veiculada.
Da coisa até o indivíduo provêm certos efeitos
vitais, outrora zoologicamente recebidos. Mas a idéia provém
dos contatos vivenciais entre sócios do grupo. O instalar
da condição humana, didaticamente preparado, começa
no primeiro dia da infância. E o homem se habitua a mover-se
no conhecido, geralmente a salvo de surpresas do novo que, surgindo,
provoca impactos zoológicos. (Retirem um homem de seu meio
costumeiro, vivencialmente assimilado, para uma circunstância
vital desconhecida. É o mesmo que levar papagaio falante
a casa de estranhos. Conforme os sustos que tenha, pode até
perder a tramontana, refluindo-lhe a hominidade, esvaída
e reflexa, ao porão do zoológico. Veja-se o exemplo
corriqueiro de uma criança, quando desamparada em situação
nova. Sobretudo se veja o tremendo exemplo dos "lavadores
de cérebro", capazes de aviar a receita com arte e
com ódio, mais a requerida acidez e coragem de profanar
a pessoa humana. Como quem esvazia e torna a encher, trocam almas
antigas por mecânicas almas pré-fabricadas).
Todo homem começou infante, como Secundo
discente, aberto a lições de Primo docente. Chegado
à integração de Secundo Primo, está
cheio de idéias recebidas. O nível delas mede-se
na cota
homínica do grupo integrador. É uma discência
precessora, que influi seu ritmo de vivência
na iteração do rito vital, motivando o dizer-se
que o homem olha não para ver, mas para verificar.
No esquisito de as idéias já estarem
dentro do indivíduo, quando se dá por Sujeito, é
que Platão deve ter intuído o seu reino de essências
sobre-lunares. E Descartes, o seu campo de idéias inatas.
E Kant, o seu recinto apriórico.
Faltou-lhes ver, na idéia. o que a idéia
tem de comparável a seixos rolados, seixos que a viveza
das águas afeiçoa, não, porém, de
águas mesmas, pois são águas sucessivas.
Intra-hominicamente elaborável, a idéia se faz é
no giro da sintonia
inter-homínica. Acerva-se num receituário que cresce
enquanto vai, crescit eundo. Junta lucros vito-vivenciais
de um suceder que é feito de experiência e abstração.
Iniciada na paciência do fenomênico,
soma em si aquela energia equacionante, com que, voltando sobre
o fenomênico, então lhe dita procederes.
Como a idéia, também o vocábulo
começou no contato vital da equação "indivíduo-coisa",
mas pertence a outro momento: a idéia vem no estímulo
da coisa e o vocábulo no proceder de resposta do indivíduo.
O germe da idéia, fenomenicamente espacial e sensoriamente
internado, veio no proceder estimulante da coisa. O germe da fala,
vivencialmente temporal. veio com o proceder de resposta do Sujeito.
Não propriamente nele mas com ele, no acessório
de certos vozeios zoologicamente emissíveis. Foi tal vozeio,
devidamente estilizado, que chegou a signo fabular, dotando-se
de veicularidade semântica e de intenção inter-individual.
(Não dizemos signo vocabular, no sentido saussuriano, porque
se trata de um signo realmente fabular. Entra nele o
elemento vocábulo, mas com ele não se iguala.
Consta a mais no conceito de signo: a idéia de um endereço
fabular e uma idéia de atualidade). Se Caio diz vai,
ao determinar um proceder de seu parceiro Lúcio, usa
de um só vocábulo, mas um vocábulo cheio
de sintomas. Não é um signo vocabular, mas um signo
fabular: a) está situado na espacialidade do contexto
teatral, campo das possibilidades da díxis; b) está
tingido de melodia prolatória que discrimina entre imperativo
vai e indicativo vai; c) exibe na feição
desinencial a morfia apropriada à 2ª pessoa, ao procededor
Lúcio com quem Caio está falando. Do contexto teatral,
do contexto prolatório e da morfia fabular tira o sintagma
a força veicular de sua função.
A idéia de signo coincide com a idéia
de estímulo. Na equação "indivíduo-coisa",
do primeiro sistema, o signo fenomênico está
na própria coisa que requer a resposta. Numa equação
do segundo sistema, equação metafórica,
outra coisa que não a vital é que requer a resposta:
em vez de a comida, um som de gongo pode mover o início
da digestão. No reflexo condicionado, o estímulo
da coisa vital, inundando a franja de um proceder concomitante,
aí lhe confere eficácia.
Uma equação de signo fabular merece
o nome de terceiro sistema :
1º) porque não é uma equação
"indivíduo-coisa" mas uma equação
"homem-homem". Seu signo, embora espacial e auditivo,
tem qualidade notadamente temporal e semântica;
2º) por que excita, não um proceder
vital, mas um proceder vivencial. Acorda a sintonia
de um pensar, não de um fazer. Suscita a imagem de um proceder
mentalmente representado. Que o ouvinte, querendo, passe
ao ato, isso é outro passo. A força de mover a obediência
de Secundo
não está, por exemplo, no imperativo fabular, mas
no poder de sanção que esteja em Primo ou no dispositivo
de adesão do procededor Secundo.
Crescendo a experiência homínica do
grupo, cresce o poder de referência da sua fala. Variando
a fisionomia dos vozeios, varia a qualidade e quantidade da língua,
no seu configurado cabedal de morfias fônicas. Alargando-se
o corpo da frase, abre-se em lugares destinados ao competente
sintagma, no todo de um molde frástico ou topológico.
O vozeio
reparte-se ou demora, melo-ritmicamente, no todo do molde
prolatório, pluri-vocabularmente enfestável,
o molde de sintagma nominal amplia-se em lugares
para os adnominais.
É possível de historiar, no mundo
ocidental, a marcha da riqueza fabular: tendo florido na Grécia,
daí passou ao mundo romano, na sincronia da aculturação
helênica. Um milênio depois, na diacronia da reaculturação
mediterrânea, começou a renovar a capacidade dos
vários europeus, mais ou menos sincronicamente, pela base
internacional do latim.
A língua é uma lembrança na
memória, um patrimônio individual da expressão.
Cresce, intra-individual, na riqueza da experiência inter-individual,
chegando a Secundo
nas falas de Primo.
Na cota
social infra-aristotélica, a língua é um
valor de mera posse. Mas na cota
social aristotélica, feita de curiosidade metódica,
faz-se matéria de posse e consciência,
vale dizer, de uso e estudo.
Nos momentos inter-individuais da fala ouvida,
chega a língua, atual, à compreensão
de Secundo
Primo. Chega, pois, "fabularmente", para depois, na
continuidade intra-individual da reminiscência, então
se potencializar em valores de língua. É
quando as falas se analisam, vivencialmente, depositando na memória,
junto a sentidos veiculáveis, as suas formas veiculares.
Nascem assim, das falas ditas, os recursos das falas dicendas.
A fala é uma expressão do homem,
ora na sintonia
reflexiva da fala-solilóquio, a fala intra-individual do
pensar, ora na oferta de sintonia
mental entre Primo
e Secundo no circuito vivencial "homem-homem".
Não é, portanto, uma expressão da coisa,
cuja presença vem noutro circuito, o circuito vital
do contato "indivíduo-coisa".
Sendo expressão da unidade homínica,
a fala, matriz da língua, tem sua unidade na frase;
que tem suas unidades no sintagma, este feito de "elementos"
que são o vocábulo e o morfema.
A expressão tem moldes fabulares em que
se vaza: o molde topológico, o molde prolatório
e o molde sintágmico. Tais moldes são da
língua: pertencem ao patrimônio fabular do grupo
e servem de objeto principal da lingüística. A língua
não é um rol ou ror de vocábulos, como pretendia
Saussure.
(Verifiquemos a noção de molde,
examinando a frase Caius emit domum / Caio comprou
casa:
a) seu molde topológico revela, nos
sintagmas, a ordem 2.1.3 ou NVA;
b) seu molde prolatório mostra seu tom
assertivo. Diverso, por exemplo do interrogativo;
c) seu molde sintágmico. três
vezes exibido, mostra, sob os morfemas - s - it - m,
as bases vocabulares Caiu- em- domu -).
É tempo de a lingüística, metodicamente precavida,
admitir certas verdades fundamentais como:
1º) a língua está na frase
e não no sentido da frase. Nos moldes veiculares e
não nas idéias veiculadas. Cumpre distinguir
sentido e forma, veiculado e veículo, viajor e viatura;
2º) na frase está o sintagma, unidade
atual constituída de vocábulo e morfema, seus
dois elementos. Se o sentido metódico vai da fala,
atual, à língua, virtual, fica visto que a frase
não é feita de vocábulos, sendo ao contrário
o vocábulo uma figura extraí da da frase - uma
figura virtual, pós-fabular. O sintagma é um
produto tradicional da posse da língua, mas o vocábulo
só frutifica na análise mental de quem tome
consciência de tal posse. Cumpre, pois, demitir o vocábulo
de sua monarquia lingüística;
3º) a frase é uma unidade de fala.
Os moldes, como unidades da frase, são unidades da
língua, mas o vocábulo e o morfema, constitutivos
do sintagma, não são unidades tão somente,
mas parcelas;
4º) há na frase um plano mórfico
e um plano semântico, abertos no tempo, que é
lugar da fala: no plano mórfico, um todo frástico
de sintagmas binomialmente relacionados com o sintagma verbal,
e o todo de cada sintagma, estruturado sobre si. No plano
semântico, um todo mental, relacionalmente distribuível,
como veiculado, às morfias do veículo;
5º) estando o vocábulo submerso
na linha da fala, carece de importância maior, na linha
submersa do vocábulo, o escafandrismo fonicista, a
moda recente, dos medidores de sons, curiosos caçadores
de opositismos. É um novo engano que arrolar com enganos
velhos, como o engano de se querer distribuir os vocábulos
por categorias lógicas, adictos à responsabilidade
semântica de serem substantivos, adjetivos, verbos etc.
Dialetalmente movida, nos quatro milênios
de sua diacronia historiável, somente a língua indeuropéia,
até agora, pôde oferecer matéria bastante
para uma boa perspectiva lingüística. Estando ela
ricamente demarcada de falas escritas, na sua rota mediterrânea,
foi possível rastrear, nos estados-de-fala das falas, os
estados-de-língua, da língua, entrevendo-se, durante
a marcha, a direção estrutural da mudança,
na mudança estrutural, e também o pendor semântico
dos sentidos, no pendor dos sentidos.
(À modesta diacronia vocabular
de Saussure opõe-se a diacronia fabular. Esta,
isenta à barreira tradicional que vê três
línguas no francês, no latim e no indoeuropeu,
imerge constante na continuidade do tempo anterior. A diacronia
vocabular, isolando os efeitos mórficos que estuda
em cada vocábulo, também os marca segundo fronteiras
de alguma "língua" anterior, além
de os opor, como diacronia, ao fato sincrônico. A diacronia
fabular, não só opõe, mas compõe.
Sendo, em vez de singular, coletiva, ela não isola,
mas correlaciona. É uma diacronia de planos sincrônicos,
feita de sucessivos estados-de-língua da língua.
Coordena, etimologicamente, estados atuais como o pós-românico,
o românico, o romano, e o pré-romano, a fim de
obter, de tal confronto, a perspectiva da sucessão
ou diacronia. Sua figura visualizada, em lugar de ser a cruzeta
saussuriana de duas linhas (CD cortando AB, pág. 115
do Curso), aquela figura podia ser de planos horizontais
sotopostos, cada um deles sendo um plano sincrônico.
Estaria no conjunto, em visão vertical, etimológica,
a figura da imagem diacrônica).
Aos sintomas de nível, na integração
veicular da fala, correspondem sintomas de nível, na integração
antrópica do grupo, desde aquela superação
de cota
infra-lógica até à cota
lógica da segunda superação. A hominidade
da espécie constitui um progresso constante, embora incerto
e imprevisível, economicamente aleatório e contingente.
Assentado entre novidades da mudança e tenacidades da persistência,
podemos demarcar-lhe uma ordem de marcha, na marcha que vai do
pré-fabular ao infra-fabular e daí ao fabular.
Começou com vozeios reflexos, do tipo interjectivo,
recendendo a adjacências do zoológico, na era pré-fabular.
Dominavam em tais vozeios, não estímulos de sociedade,
mas estímulos fenomênicos de simbiose, dentro de
conjunturas não vivenciais, mas vitais. É uma qualidade
que lhes merece o nome de "pré-fabulares".
Foram vindo com o tempo vozeios intencionais do
tipo "fogo", "socorro", que são mais
de expansão que de expressão. Mostram, na sua feição,
a qualidade infra-fabular do seu todo, mais apoiado na sintaxe
do teatral que na sintaxe do auditivo, constituindo-se numa fala
mais de gestos que de vozes. Essa mesma característica
teatral da fala expansiva dominará também a feição
econômica da fala pragmática, entremeada com o fazer
de Primo, na ajuda executiva de um fazer.
Finalmente amadureceu, como fala de um pensar,
apropriada aos lazeres da vida reminiscente, a fala teórica,
feita de vozeios discriminados, integrada em riquezas
de fala "fabular". É uma fala que imerge no tempo
e dispensa o teatro. Apoiada na eficácia fônica,
dotou o sintagma de relacionalidade e contraste.
Como primeiro dialeto europeu de boa plenitude,
o grego emprestou sua tendência ao latim, semanticamente
helenizado. Por sua vez o latim, após a lenta conserva
medieval, transmitiu capacidade aos dialetos ocidentais, recolhida
em cinco séculos de aculturação programada.
A Europa forjou sua ductilidade
fabular, na riqueza mental mediterrânea. Num exercício
histórico sem par, de persistente mutuação,
ora se importava o sentido novo transfundido num molde vernáculo
(diassemia), ora se importava o vocábulo e o sentido (transvocabulação),
ora elementos vocabulares desmobilizados com que fundir nome novo
de conceituação nova, criando f(ô)rma de permanente
serviço, no hábil serviço da nomenclatura
técnica. Lotou-se, com essa abundância internacional,
o patrimônio vocabular da metódica, disseminando-se
no continente a inteligência mediterrânea. Um léxico,
por exemplo, como o inglês, tem hoje, sobre o fundo germânico
de seus trinta por cento, setenta por cento de grego e latim.
Por isso, rever a lingüística do indeuropeu é
rever um conceituário mediterrâneo, ocidentalmente
afeiçoado pela cultura.
Faz vinte séculos e tanto que a inteligência
grega iniciou a humanidade na tarefa racional de ordenar o mundo.
Filtrando experiência e fantasia, começou o exercício
da reflexão metódica, diversa da reflexão
mítica oriental. Com a lógica peripatética,
o espírito, começou a observar, nos efeitos da repercussão
fenomênica, o binômio equacional de um proceder
atribuível a um procededor, representado,
na estrutura do pensar, pelo binômio verbo e nome. Entretanto,
por culpa de um vezo mental até hoje reinante, era visto
na ordem nome e verbo. Deixou-se enganar pela estática
dos seres, em vez de adaptar à dinãmica dos
procederes, na etimologia da idéia. Viu no mundo, segundo
a mítica tradicional, um todo de "seres", cada
um com seu "nome", capazes de um proceder que o "verbo"
refere.
(Posta na origem do padrão ocidental,
a racionalidade mediterrânea divide a humanidade em
dois níveis de hominidade:
a hominidade
do homem posterior, dotado de razão ativa que, ordenando
o cosmo, adapta o mundo circunstante, e a hominidade do homem
anterior, de razão folgada, vegetativo e tribal. O
homem que, internando o Objeto, se faz Sujeito e centro de
gravidade, e o homem de Sujeito infantil, que gravita para
o Objeto. O primeiro, social, é o homem lógico
ou aristotélico. O segundo, tribal, é infra-lógico
ou infra-aristotélico).
Catalogando as partes do discurso, Aristóteles
achou que o vocábulo podia ser nome, verbo ou liame,
servindo para dizer a coisa, o fazer da coisa e suas relações.
Admitindo uma relação direta nome-coisa,
a filosofia grega instalou uma explicação até
hoje admitida, embora já se desconfie. Para filósofos
e lingüistas, ainda não se clareou a teoria do trânsito
entre a fenomênica do vital e a fenomênica do vivencial.
Não se vê bem a diferença que corre entre
a posição indivíduo-coisa, no contato
vital, e a posição nome-idéia, na
elaboração vivencial.
Essa a razão de a dupla nome-verbo,
além de vir expressa em tal ordem, trazer consigo
o cheiro de uma subordinação que se funda na primazia
do ser. Por isso é que vem nos manuais, como fundamental,
a regra de que o verbo concorda com o sujeito. Pode ver-se
todavia, em termos não de lógica mas de fala, que
não existe subordinação entre o proceder
e o procededor. O que existe é uma coordenação
que, vivencialmente instalada, instala conveniência entre
um sujeito e um predicado.
A lingüística, embora já admitindo
que a gramática não é um tratado de lógica,
ainda não aprendeu a sobrepor a teoria do proceder à
teoria do ser. Continua envolvida pela grande figura da lógica
tradicional, a figura do ser, entidade sutil e flogística,
policialmente investigada por dois milênios de meditação
filosófica.
A vida funciona por equações do proceder:
equações do meio vital, no proceder zoológico,
e equacionamentos vivenciais, no proceder homínico. Ao
proceder da coisa circunstante, na equação indivíduo-coisa,
responde um proceder do estimulado. Se é na cota
zoológica, o que o estímulo dispara, como resposta,
é a resposta reflexa de um saber inato. Na cota
homínica, porém, pode existir a reflexiva resposta
de um saber construído.
O saber construído, inter-individualmente
se constrói, no comércio do espírito, um
comércio de idéias vivencialmente mentadas e fabularmente
sintonizadas. Existe e persiste, graças à tradição
que corre entre Primo docente e Secundo
discente, num convívio social próprio do modo homínico,
a transitar na fala, veículo de uma hominidade
que circula.
1) Captando no espírito os efeitos vitais
da repercussão fenomênica, intra-individualmente
elaboráveis pela vivência, e inter-individualmente
notificáveis pela fala, a humanidade foi progredindo em
hominidade
cada vez mais transitiva, graças à capitalização
tradicional de perseverante, embora lenta, diacronia social;
2) foi convertendo a espacialidade vital em presença temporal,
mediante o recurso do signo fabular. Mesmo na ausência do
objeto estimulante, a vivência
pôde menear a lembrança do estímulo, presente
entre os mentados de que a alma se povoa;
3) elaborando equações do proceder
natural, foi criando um receituário pós-natural
de procederes, vivencialmente refletidos e diacronicamente
progressivos;
4) foi instalando um poder judiciário na
surda e zoológica eficácia do poder executivo, redispondo
com isso a legislação do viver, nisso aproveitando,
com os achados individuais da experiência, a aculturação
inter-individual dos achados;
5) afeiçoando mnemiatos, na matriz das idéias
- isto é, afeiçoando lembranças do proceder
vital - foi condicionando em cada indivíduo a sua qualidade
de Sujeito, legatário de uma herança cooperativamente
trabalhada, numa incerta mas progressiva tradição
de habilidades.
Com uma tal perspectiva do observável, dentro
do real endofísico, chega-se, é bem de ver, a uma
teoria, não de subordinação, mas de coordenação.
Chega-se a uma coordenada de procederes e procededores, não
a uma subordinada de procederes subordinados a seres.
(Convém insistir em que aqui nos limitamos
ao endocosmo do real endofísico. Não se nega a existência
do ser, cuja essência, de cota
metafísica, tem de ser perquirida além, no mistério
da origem profunda. Declare-se também que os postulados
da teoria do autor não lhe vieram de meditações
filosóficas, mas de inquirições lingüísticas,
na diacronia da fala. Nos indícios da etimologia
fabular, há uma grande conformidade com a teoria do proceder.)
A etimologia
da frase, como unidade da fala, insere-se naquele proceder teatral
de outrora, quando se começou a construir a habilidade
veicular da língua.
Antes do seu nível de plenitude, que é
o da fala reminiscente, apropriado à fala de um pensar
ou fala teórica, está o nível da
fala pragmática ou fala de um fazer, no aqui-agora
da ação. É uma fala que está na origem
da fala e também da própria hominidade. No seu proceder
encenado, mais para os olhos que para os ouvidos, entra a sintaxe
de três contextos:
1 - seu "visível" contexto
teatral, consta das presenças de Primo
e Secundo (isto é, de duas pessoas), mais a presença
das coisas que dão "assunto" ao discurso;
2 - seu contexto mímico,
também visual, que se exibe na "fala de corpo",
no teor fisionômico, no gesto díctico e plástico;
3 - seu contexto fabular, auditivo, nos
vozeios semânticos da frase.
-Mais apoiada na sintaxe do visível, a fala
pragmática é definidamente presencial, dotada
de uma estrutura anterior à da fala teórica. Esta,
concentrando-se no auditivo, fez-se toda capaz de ser ausencial.
Munida de riqueza anafórica, foi trocando por presenças
temporais as antigas presenças espaciais,
mediante o recurso de passar aos ouvidos o que aos olhos faltasse.
Comprovando a feição de sua natureza
residual e diacrônica, num modo de vida que não mudou,
o homem conserva até hoje o estilo de se manifestar por
fala
teórica e fala pragmática.
A fala
teórica deve ter começado numa tímida
rerniniscente, curta na representação e na estrutura,
paulatinamente ampliada pelos primeiros estetas, os primeiros
criadores da riqueza expressiva, narradores do fato e da fantasia,
doutrinadores da vida e do sonho. À fala reminiscente,
bastou-lhe deixar o agora presencial e encenar-se no outrora,
para que atingisse o nível da fala teórica, aberta
às imaginações da vivência, conformada
ao gosto de quem se queira instalar na duração,
ou seja, de se hominizar, visto que hominizar-se é tecer-se
de tempo.
Quando melhora a hominidade, melhora a fala e melhora
a língua: em lugar da estreiteza pragmática, a boa
capacidade teórica. Subtilizando-se na disciplina mental,
ganha as leves abstrações da fala técnica,
finamente sensível às modulações da
inteligência. Entretanto, por estar destinada ao serviço
de exprimir o homem e não a coisa, nossa linguagem
serve mal aos rigores exatos da isenção objetiva.
Por muito que seja asséptica, é sempre fala homínica
a fala técnica, marcada de participação.
Requerer-lhe o primor que lhe está requerendo a logística,
ultra-aristotelicamente, é tão somente sonhar com
algum poder de magia, um poder que já teve e ainda tem,
na economia da mente infra-aristotélica.
A língua amadurece é no exercício
da fala teórica, para cá do mister ancilar da fala
executiva que descansa nas facilidades visuais do teatro primeiro.
Na fala teórica, em vez de gesto díctico, funciona,
sob a urgência anafórica do alhures, o vozeio
que lembra situações anteriores.
Tendo condensado no tempo o seu poder de notícia,
a fala apresenta o assunto, refere os procederes, narra a história,
alimenta a tradição, enriquecendo a hominidade
da espécie.
Junho de 1964
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