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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos
Vida: 1964

A ORIGEM DA FALA

 
 

In: Espírito Mediterrâneo - estudos. 2 ed. ampliada, Belo Horizonte, O Lutador, 1994, p. 229-50.

 

Faz mais de dois milênios que a filosofia ocidental vem tratando a matéria como "substância", repartida em "coisas" que o nome identifica, dotada de procederes que o verbo traduz.

De um ponto de vista vital, a teoria da substância não passa de perspectiva inocente, livre o homem de observar o proceder da matéria e de lhe ditar novos procederes, lentamente criando a sua economia, aquela com que foi superando a economia zoológica, no esforço de adaptar para si a casa do mundo.

Entretanto, no nível da razão eficaz, e vivencialmente falando, temos de reconhecer que a teoria da substância representa uma conclusão exocêntrica. Ela excede a premissa dos procederes, aquilo por que a matéria se mostra e que a experiência pode observar: a inteligência ordena a coisa em nós, mas não pode chegar à coisa em si. Ela não pode ver o que está sob a epifania dos procederes. É incapaz de entender o sub estante, a substância.

A coisa em si repercute nos sentidos vitais, mas os sentidos vitais não carecem de ser homínicos, pois basta serem zoológicos, alheios a consciência. Essa repercussão, carreada ao centro mental, aí se transforma em idéia da coisa ou coisa em nós. Ora, está visto que a coisa em nós não é a coisa em si. A coisa em nós é um "mentado tradicional", um destilo repercussivo de procederes elaborados. A coisa em si é uma presença de matéria espacializada. A coisa em nós, idéia inespacial da coisa, é um extrato temporizado.

A filosofia, como ciência da coisa em nós, é uma ciência da motivação. Trata morfias temporais. Trata mnemiatos que o Sujeito elabora, a partir de efeitos espaciais do Objeto, sensoriamente internados. Repercutindo no homem zoológico, a coisa em si influi emissões que o homem antrópico vai configurando em idéias. Motiva assim a matéria de que se recobre a substância.

Já é tempo de se adotar uma filosofia do proceder, atendendo ao princípio de que no princípio era o Verbo.

A hominidade representa uma rampa diacrônica, na planura espacial da zooidade. Estudá-la é ordenar uma economia de dois momentos e três fases: um momento zoológico, espacial, evolutivo e sem tempo, e um momento antrópico, inespacial, progressivo e com tempo. Entra neste a fase infra-lógica do "Homo loquens", marcada pela superação do zoológico. É uma longa fase de centimilênios, lenta no teor de seu ritmo temporal e de seu ritmo progressivo. A outra fase é a fase lógica do "homo sapiens", restrita e não segura, mas cheia de superação do infra-lógico.

No nível natural do zoológico, vigora ao natural o regime biológico. A vida é um receituário de procederes atualizáveis na hora, sem traçados de futuro. Esse receituário é um legado genético, passado a indivíduos espaciais e sem tempo: ignorando a sintonia inter-homínica, ignoram o comércio mental. Vivendo no seu agora de simbiose e simpatia, são indivíduos sem Sujeito, distribuídos no espaço do Objeto.

No nível pós-natural do antrópico, surge o Sujeito com sua primeira hominidade revelada pelo Objeto. Entra em cena o construtor de idéias, espelho refletor do cosmo, oposto à luz do fenomênico. (Reagindo contra a poesia do cristianismo, o racionalista menoscaba a ignorância de se dizer que o sol foi feito para iluminar a terra do homem. Entretanto, sem o homem com seu Sujeito, o mundo todo se anularia, feito Objeto desmotivado.)

O terceiro nível é o da segunda superação. A primeira, vencendo a cota zoológica, fora lenta e longa no decorrer, embora curta na dimensão, tachada de ipsidade iterativa, no fraco teor de vivência da sua posse mental. Um dia, porém, na concha mediterrânea, começou a luzir, com reflexo metódico, o sol da razão. Veio a marcha que vai da posse casual à posse causal, diligente no esforço de ordenar em cosmo interno o mundo externo.

Portanto, tomando referência na hominidade, temos um mundo de Objeto sem Sujeito, antes de um mundo de Objeto e Sujeito transmudável em mundo de Sujeito e Objeto: O(S) - O.S. - S.O.

No mundo sem Sujeito, ausente a sintonia mental, é de simbiose e simpatia o regime da dieta zoológica.

No mundo com Sujeito, a parceria Primo e Secundo industrializa a idéia do Objeto, operando no comércio mental. Seu regime, socialista e capitalista, cresce por cooperação inter-individual e tradição inter-generacional. A fórmula defectiva O(S) abre-se na fatoração da fórmula O.S., denunciadora da presença antrópica. É a presença de um Sujeito que volta sobre o Objeto e o adapta. No regime do código natural, o indivíduo zoológico, emparelhando com a coisa, tem sempre o lugar de estimulado. No regime pós-natural da dieta homínica, o indivíduo fez-se capaz de inverter o sentido da equação, de estimular a coisa e lhe ditar procederes.

Mas o homem adâmico, fraco na sintonia e forte na simpatia, ama diluir-se no Objeto, centro gravitário da fatoração O.S. Nos monótonos centimilênios da primeira jornada, saindo de si para um mundo que o chama, existe um Sujeito hominicamente iterativo e ralo, misturando as fronteiras do eu e do não-eu. Vizinho e parente dos bichos, rola para a simpatia zoológica. Vê pouca distância entre si e o animal, sentindo nele, nitidamente, uma ancestralidade que o totemismo ritualiza.

Chegou enfim o dia mediterrâneo da nova hominidade, na eficácia racional da superação aristotélica. A fórmula O.S. muda para S.O., mostrando um Sujeito que se opõe ao Objeto, deslocando o centro gravitário da fatoração. Elaborando o mundo no espírito, é quase capaz de o fechar entre parênteses, de realizar a fórmula S(O).

Vencida a barreira infra-lógica, a humanidade ocidental precipitou o teor do ritmo progressivo, com a densidade da destilação temporal. Descobrindo a eficácia do espírito, o homem se fez a medida do mundo, para o qual, quando sai, pode sair verificando e taxando, como um nomóteto.

Esse homem, faz mais de dois milênios, tenta motivar uma filosofia da substância. Vê causas onde há casos, querendo porquês onde estende alguns comos. Encontrando o acessível porquê estrutural de um proceder, quer o porquê do procededor, o fundamento da coisa em si.

Em verdade, porém, só há dois observáveis no campo endofísico: o proceder do Objeto e o proceder do Sujeito. Um é o proceder da matéria física e fisiológica, influidor de estímulos vitais para o corpo e de estímulos vivenciais para o espírito. O outro é o proceder de elaboração mental do fenoménico, sensoriamente captado, para riqueza do Sujeito, ordenador do Objeto.

A ciência começou, contingente e espontânea, com os observares do proceder macrofísico, na circunstância vital. O meio é capaz de dois efeitos no homem. Nutrir-lhe o corpo no espaço e nutrir-lhe a mente no tempo. Formulando equações de procederes, foi fugindo devagar à servilidade zoológica, própria do animal que sabe proceder ante a coisa, mas não sabe induzir a coisa a proceder ante si. Após a lenta espera da primeira fase, entre modestas invenções, iniciou a grande adaptação oicológica. Submetendo o mundo a programa, vai passando de homem da gleba a senhor do mundo. Imerge ludicamente no proceder microfísico da matéria, na intimidade final. Chegando aí, porém, vê que a substância desaparece, esvaída no espaço, qual "energia engarrafada". A Ciência do Objeto não acaba em filosofia de substância, mas na filosofia do proceder.

A Ciência do Objeto, com seus procederes, é uma ciência do espacial. A Ciência do Sujeito. com seus procederes, é uma ciência do temporal.

A Ciência do Objeto está adiantada. mas a Ciência do Sujeito carece de melhor codificação. Empiricamente, ela é velha como a filosofia e a história. Metodicamente, só agora está compondo alguns capítulos mais convincentes, na glotologia, na sociologia, na psicologia.

Como ciência da hominidade, a Ciência do Sujeito estuda a qualidade antrópica do homem, semeada na gleba zoológica. Estuda a alma no corpo, sendo que o homem é Sujeito na alma e Objeto no corpo. É a unidade hipostática de sua forma temporal na sua forma espacial.

Conclui-se daí que a Ciência do Sujeito, ciência do temporal, é uma ciência histórica. É histórica a filosofia, a glotologia, a sociologia, a psicologia. Na subvenção dela, trabalham ciências como a biologia e a zoologia, ciências do espacial ou do Objeto.

A LINGÜÍSTICA estuda um proceder do Sujeito. Motiva-se nos fatos da língua, nascidos nos atos de fala, por um proceder de Primo ante Secundo. A fala, como proceder de manifestação, fecha um circuito "sócio e sócio". Como fala interior ou proceder de um pensar, fecha-se num circuito mental: SS.

Foi na fala de manifestação que começou a fala e a hominidade, fomentando, pelo comércio mental, a socialidade, a aculturação inter-individual e a tradição diacrônica das gerações.

Como proceder de manifestação, a fala é inter-individual. Como proceder de um pensar, é intra-individual. No fundo, ambos são manifestações do pensar, quer na fala coloquial de Primo com Secundo, quer na fala soliloquial de Primo consigo mesmo. É sempre o circuito "homem-homem".

A fala deve ter começado na sincronia de um fazer a dois, instalando um circuito "homem-homem" na hora do circuito "homem-coisa". Nasceu vivencial, na concomitância de um proceder vital.

Naquele tempo, antes de haver chegado a proceder autônomo e sub-seqüente, estilizava gestos e vozeios pré-fabulares, na hora teatral do encontro. Ante a coisa, junto com o proceder de resposta, valia como um proceder adminicular, veiculando sintonias mentais entre os sócios. Devia ser muito visual, espacializada no agora do momento. Depois, através de esquecidos milênios foi crescendo em capacidade auditiva. Melhorando em semântica, melhorou a continuidade pós-contactual do pensar, estendido no alhures-outrora. Imergindo na duração, demarcou as sucessões da vivência, roteando a cartografia do pretérito. Ensinou a humanidade a tecer de tempo a hominidade.

Assim vem caminhando o homem progressivo, o homem que se hominiza. Repartindo a experiência, promove a socialidade. Persistindo na tradição docente-discente, capitaliza a experiência. Para tanto possível, teve o dom zoológico da linguagem, estiliza do em falas, cujo exercício foi gerando a língua, um cabedal de "moldes" mentais que a passada expressão deixa à futura expressão.

A partir do sub-solo zoológico, a hominidade é uma estratificação diacrônica. Ainda se nota, no feitio do homem atual, o seu possível jeito arcaico. Ora na morfia pré-fabular da expansão interjectiva, ora na sumária economia infra-fabular da fala pragmática. A ductilidade veicular da fala teórica é uma conquista serôdia.

Do piteco ao antropo, a diferença é uma rampa de tempo, erigida na planura da especialidade zoológica.

 

Os enganos

A fala deve ter nascido como um vozeio concomitante, apoiado em sintaxe de gestos e presenças. Daí se foi promovendo a lenta riqueza. Da posse imemorial, infra-aristotélica, sub-hominicamente vegetativa e hipocrônica, chegou à fase metódica da consciência na consciência de quem ordena o fenomênico. Busca entender o mundo e entender-se. Quer o Objeto e o Sujeito. Tarde para ver a aurora, era ainda cedo para compreender o dia. Em vez de tomar a via que leva à fala, o observador se perdeu no momento pós-fabular do vocábulo. E em vez de entender a frase como expressão do homem, quis compreendê-la como expressão da coisa.

Assim procedendo, não pôde concatenar os seguintes princípios fundamentais:

1 - o vozeio da frase é uma estrutura de sintagmas, vazados em moldes que ficam na língua. A frase não é, pois, uma construção de vocábulos;

2 - a frase, emitida na hora inter-individual dos contatos, mas persistindo na lembrança de Secundo, vivencialmente, aí se desfaz num soluto mental de idéias veiculáveis e de morfias veiculares. A fala é de Primo e a língua é de Secundo;

3 - tais morfias veiculares constituem-se no patrimônio fabular de Secundo Primo. Um patrimônio chamado língua, feito de moldes e elementos, a serviço de falas venturas;

4 - tais moldes ou formas, onde a frase é fundida, vêm a ser de três tipos: o molde posicional ou topológico, o molde prolatório ou melo-rítmico e o molde sintágmico.

5 - somente na análise do molde sintágmico é que vai aparecer o vocábulo, devidamente endereçado por seu morfema fabular. O vocábulo e o morfema são os dois elementos do sintagma;

6 - a língua é, pois, um patrimônio com três tipos de moldes e dois elementos.

O sintagma é da frase, cujo molde é da língua. Mas o vocábulo é só da língua. Vocábulo e sintagma, ainda que iguais na aparência, diferem por notas como as seguintes:

1) o vocábulo é uma produção pós-fabular. Procede da fala de Primo docente à memória de Secundo discente. Aí se reduz, com o tempo, à figura que tem, no patrimônio de sua língua. É a figura de um possível valor, na hora da fala de Secundo Primo. O sintagma, posto na fala, é um vozeio efetivo, devidamente endereçado por morfemas;

2) o vocábulo é candidato a veículo de um sentido que a experiência multiplica e varia. É, como aparece no léxico, polissêmico ou plurivalente. O sintagma, porém, como aparece na frase, é univalente ou monossêmico;

3) o sintagma é uma unidade da fala. O vocábulo é um elemento da língua, atualizável na fala, mediante o morfema fabular.

O aspecto mórfico da diferença entre um sintagma e um vocábulo, mais perceptível no português, é difícil no inglês, cuja devastação morfêmica, unificando o aspecto, aproximou o sintagma e o vocábulo. O mal do inglês atingiu também o francês, mas este guardou, pela conjugação, contraste mórfico bastante para o nome e o verbo. Desinencialmente empobrecido, o inglês recorre a topomorfema (posição do sintagma na estrutura), a tonomorfema (divisor rítmico da prolação) ou ao teatral. Segundo desconfiava Ortega y Gasset, nem mesmo disso careceria, pois quando um primeiro inglês vai falar, o segundo já sabe o que ele vai dizer.

Para um idioma assim tão léxico, a diferença entre sintagma e vocábulo tem de se concentrar no fato de o vocábulo, virtual e polissêmico, divergir da atualidade monossêmica do sintagma.

A carência desinencial do inglês é estado posterior à riqueza de outrora. Perdendo substância mórfica, o sintagma tendeu para a sua igualdade com o vocábulo.

Na área mediterrânea, os dialetos peninsulares guardaram mais vizinhança com o estado anterior, mais sensível no latim e no grego, onde, ao contrário do inglês, o vocábulo é que não queria desigualar-se do sintagma. Continuava agarrado à velha concretice da mente infra-aristotélica, de vigor fracamente analógico, vivencialmente elementar, entre tachas e resíduos do antigo magma vital.

Temos, pois, a redução vocabular dos dialetos de agora e a presença sintágmica dos dialetos de outrora. É mais fácil agora do que outrora, distinguir entre um estado-de-fala e um estado de-língua. Se vale, para o lingüista de hoje, ao não haver chegado a tal distinção, a desculpa de que o fechou a perspectiva do século XIX, para uma lingüista de há 20 séculos tem de caber até justificativa no magma estrutural da língua do tempo. Nem ao pós-platônico Aristóteles, nem ao pós-alexandrino Varrão, a nenhum era fácil discriminar sintagma e vocábulo, dentro daquela polimorfia casual cheia de atualidade, onde apenas talvez ao nominativo podia sobrar um pouco de sugestão virtual. Faltava-lhes, na matéria. uma sutileza que a perseverança racional da Idade Média iria definindo. Faltava-lhes conceituar melhor a idéia de caso, declinação e conjugação: para eles. equinus, equile, equitare, equitatus eram formas declinadas de equus. Varrão não estava preparado para a diferença entre o morfema fabular (endereçador da função fabular - equus, equum, equo) e o morfema vocabular (que altera o conteúdo semântico, multiplicando cognatos: equus, equinus, equile, equitatus.

Entretanto, sob a fraca posse metódica, de um assim evasivo possidendo, o que admira, na razão, é a maravilhosa coragem racional do heleno quando, disposto a tudo perquirir, enfrenta o caso da expressão humana. Como a posse era velha, não admira que não haja chegado a melhor consciência, se melhor consciência até hoje nos falta. Não admira que aceitasse o fundo patrimonial da tradição vigente.

A idéia da matéria, nos reinos do animal, do vegetal e do mineral, era uma idéia de "substância", macrossemicamente influída pela experiência vital.

As coisas da circunstância tinham seu nome "substantivo" e "adjetivo", repartindo-se eles entre o concreto sensível e o abstrato inteligível, pois o homem, sabendo sentir o real epifânico, também o sabe entender na sua presença criptofânica.

O bom gramático nunca se deu bem com a dicotomia abstrato-concreto. Todo nome, veículo de uma idéia, é veículo de uma abstração, íncola do reino vivencial. Concreta é a coisa, no espaço vital a que o homem pode passar, em segundo momento, quando da idéia ao objeto vital que a motivou e com ele o nome, que carreia essa idéia.

A função de "nomear a coisa", desde uma antiga idade mágica, era vista como traduzindo a relação direta "homem-coisa'", estabelecida no encontro vital. A fala, portanto, traduzia a coisa, no externo do mundo, e não o homem no interno da idéia.

Sem chave metódica para subir às origens, o bimilênio seguinte foi repartindo a tradição escolar, até que o século XIX a renovasse, transpondo, no comparatismo histórico, a perspectiva da língua.

Do século XIX até agora, eis o que conseguiu a lingüística, no seu formidável trabalho de campo:

- identificou a diacronia da matéria fabular indeuropéia, ensinando a encadear estados de língua. Na linha latina, por exemplo, recebe-se do pós-românico ao românico, do românico ao romano, e do romano ao pré-romano, segundo uma convergência que aponta na direção de uma antiga unidade anterior, para onde confluem ramos mediterrâneos e bálticos;

- indo em busca da "natureza" da língua, passou da curiosidade homoglótica à pesquisa aloglótica, estudando, além de falas semíticas e asiáticas, os inúmeros falares tribais que caçou pelas selvas do mundo, a fim de enjaular em grades gramaticais.

Eis, no entretanto, o que não fez:

- acomodando-se à tradição vocabulista, não deu importância à primazia da fala, esbulhada como Jacó, perdeu assim de descobrir uma chave metódica, por não haver meditado na economia dos sintagmas e por não haver eplicado, ao progredir histórico do homem. certa lição da analogia evolutiva;

- em conivência com melindres nativistas, deixou prevalecer a distinção pluralícia de "línguas", ao deixar de promover o registro técnico da idéia singular "língua", exibida na realidade histórica do indeuropeu, patrimônio comum dos falares ocidentais;

- fascinada pelo naturalismo de um tempo vaidosamente positivista, preferiu excluir dos cuidados que tinha o cuidado das origens, materialmente inacessíveis;

- enganada na ilusão da língua vista em si, como produto natural, não viu que a língua é não em si mas no homem, como fruto pós-natural de um proceder chamado "fala":

- enfim, preferiu submetê-la a uma espécie de legislação natural, estando fora da lei natural, pelejando por incluí-la entre as categorias do Objeto, sem descobrir que a língua está no Sujeito, ordenador do Objeto.

Sem a devida subvenção do lingüista, não admira que o filósofo, ao buscar consciência pela intuição racional, também se deixasse envolver no prestígio do nome, firmado na posse primaz da mera intuição vivencial.

Cada indivíduo, desde que nasce, vai recebendo, em duplo efeito condicionante, junto ao sentido fenomênico da repercussão vital o sentido vivencial da notícia docente. Assim, ele vê crescer a diacronia de sua homidade, enquanto elabora os mnemiatos da vida, continuamente temperando, na duração interior, a lembrança da coisa e a lembrança do nome. É a mesma coisa lembrar o nome e lembrar a coisa, ou lembrar a coisa e lembrar o nome.

Em certa fase anterior da hominidade, é tamanha a presença da sensação "nome-coisa", que se faz capaz de traduzir em magia, isto é, um rito de domínio em que o oficiante, possuindo o vozeio do nome, crê possuir o concreto da coisa.

Mesmo em nível posterior, a sensação "nome-coisa" pertence aos costumes do homem. Vê-se daí como cada indivíduo, exibindo seu estrato geológico de heranças diacrônicas, anda mais inclinado a viver de posse que de consciência. Mesmo quando se faz categórico, dizendo "pão pão, queijo queijo", tautologicamente, exibe uma gnômica do tipo elementar, com cheiro de infância mágica, tomada de uma ênfase em que o vital predomina.

A sensação "nome-coisa" pertence a uma fase etimológica do proceder nomínico, vito--vivencialmente prorrogado. Quando Secundo Primo se lembra da coisa ante o nome ou se lembra do nome ante a coisa, é porque tem na memória, como dois possíveis previamente condicionados, a idéia da coisa e a idéia do nome. Entretanto, o que mais cumpria ver, em tal observado, é que o ato de lembrar é um ato de pensar, e o ato de pensar é um ato de fala. É um ato de fala interna, inserto na continuidade mental de Secundo Primo, um ato que o metodista esqueceu, por culpa do vezo de conceituar como fala a manifestação prolatória, desaprendido de que a fala é uma estrutura veicular a serviço da idéia. É como se a vida não fosse, muito mais, uma constância interna de falas mentais, esporadicamente semeada de falas externas, distanciadas, quais ilhas emergentes, na mesmice das águas.

Mesmo num proceder inacabado, lembrar é pensar e pensar é falar, num trabalho não de "compor vocábulos e idéias", mas de "repetir moldes frásticos", numa iteração que a vida favorece, pois a vida gosta de iteração. Mesmo no pensar criador, quando a novidade aspectiva lembra um faciendo, a fala recorre à frase feita, analogicamente adaptada. Em suma, proceder vital, constando de um fazer, supõe o circuito "homem-coisa". Fez-se vito vivencial porque, superado o limite do receituário zoológico, trocou suas respostas por respostas vivencialmente estilizadas. O proceder vivencial, constando de um pensar, criou-se na equação "homem-homem" por uso de um comércio mental, onde não entra a coisa mas a idéia da coisa, fabularmente veiculada.

A fala faz correr uma sintonia temporal entre os dois pólos do circuito "sócio e sócio". Ela desmente o pessimismo daquele filósofo, que dizia voltar menos homem cada vez que de entre os homens voltava; quoties inter homines fui, minor homo reddi; (é como se lê, de Seneca, apud De imitatione Christi L.I, XX, 2). De fato, na aculturação diacrônica da existência, o indivíduo pode voltar mais homem de cada encontro com o sócio. Ao efeito vital do circuito "homem-coisa" pode somar a notícia do Objeto, vinda no efeito vivencial do circuito "homem-homem", levando assim consigo, pós-contactual, a colheita da coisa no espaço e a notícia da coisa no tempo. Mergulhado esse todo, iterativamente confirmável, no batismo da vivência, aí se dilui o atual da fala em seus possíveis. Um soluto mental de idéias veiculáveis e de morfias veiculares. No atual da fala, um veículo veiculando um veiculado. No possível da língua, um veículo disponível, junto a idéias disponíveis.

Ao analisar estados-de-fala em estados-de-língua, a vivência toma às falas ouvidas o cabedal das falas dicendas. Cria, pois, uma situação em que o "possível" precede o "atual". Foi de certo ante quejandas insinuações da fenomênica interna que o filósofo imaginou o "ser possível" como anterior ao "ser real", num pressuposto reino de essências imissíveis, prontas para o existir sensível...

Deixemos, porém, tal visão lá em seu mundo metafísico, evitando sair de nosso cosmo endofísico, onde o real que se mostra ao Sujeito é um atual que não é, mas está sendo, ou melhor, procedendo, ante ele; quer no epifânico de seu modo sensível, quer no criptofânico de seu modo íntimo.

De tal proceder, iterativo e mesmista, deflui no Sujeito nossa idéia de lei, bem como nossa idéia de possível. Não o possível de um ser, mas o possível de um "proceder". Recluir-lhe a estrutura em equações de ipsidade é o que tem na sua mira a intenção da ciência.

A idéia que se destila em cada Sujeito, com marca subjetiva, é uma idéia individual como posse, mas trans-individual na etimologia. Inter-individualmente transmissível, a idéia é uma qualidade temporal e diacrônica. Toma ensejo nativo no circuito "homem-coisa", na hora dos contatos vitais do Sujeito com o Objeto. Forma-se então no Sujeito, mas não propriamente pelo Sujeito. Vive nele e dele toma destinos, mas depois de a ele haver chegado, na figura imemorial da tradição. Dele pode receber algum afeiçoado individual, capaz de passar ao patrimônio do grupo, quando trans-individualizado pela manifestação. É assim que vão surgindo as contribuições de mudança, contingentes e incertas, fáceis de esquecer no tempo, com a distância da fonte, o seu ponto de origem. Com elas a hominidade progride. As idéias de um homem, forma-as a humanidade, e não ele. Consigo as cria, mas de Primo as recebe. Ao nível da cota aristotélica, afeita ao programa escolar, o hábito de ler amplia o convívio com Primos ausentes que, mesmo alongados no espaço e na época, os pósteros fazem seus mestres da idéia.

A idéia, que começou no espaço, pois começou no objeto, é um valor que se temporiza. Mas a língua de Secundo já começa no tempo, advinda a ele nas falas de Primo, durante sintonias mentais que são um puro negócio do Sujeito.

A filosofia é uma curiosidade que pede bom teor homínico, boa vigência diacrônica, em céu mental despejado, isento às névoas míticas daquela hipocronia fantasiosa em que vive a hominidade retardada.

A filosofia, ao pôr cuidados na fala, tinha já perante si um homem hominizado, embora não tanto quando convém à Ciência do Sujeito, capciosa e evasiva. Fundada em anamnese, ela pede a destreza do "nosce te ipsum", de cumprimento não fácil. O homem é um ser ainda muito zoológico e "alterável". É recente a mudança do centro gravitário, na tensão "Objeto-Sujeito". Recente e restrita, pois é mediterraneamente ocidental, continuando a gravitar para o Objeto, detida em níveis anteriores, a massa maior da humanidade.

A filosofia da fala pede o conhecer-se, pede anamnese. Conhecer-se é definir a própria identidade temporal, na leve linha da vivência. É sondar o eu nuclear de um velho assimilador de não-eu. É recensear as vantagens da digestão, num teimoso digestor da alteridade fenomênica. É medir-lhe a perícia, na arte de converter em tempo a espacialidade vital.

A filosofia grega, embora não madura para a consciência da língua, estava adiantada na posse, afeita ao exercício de resolver em nomes e idéias o complexo da notícia fabular.

A idéia, como qualidade temporal, desespacializa em reminiscência o espacial fenomênico. No começo da sua etimologia, ela padeceu os rigores do limite espacial, na apertada contingência do circuito "indivíduo-coisa". Eram as primeiras induções do comércio mental entre Primo e Secundo. Mas na origem dessa mutação, por que se desenvolveu o poder de exprimir-se, coincidem os sintomas da qualidade antrópica, sinonimicamente apelidável de "faculdade ideadora", "fabularidade", "socialidade", "hominidade".

A idéia, nascendo entre efeitos do contato fenomênico, entre tais efeitos se renova até hoje. Mas já era, desde o início, um elaborado mental, um transposto que não medrou em outras glebas zoológicas. Tome-se o caso de um símio inteligente. Embora tendo alguma visão, não chega a ter idéias marcáveis, sujeito a viver perenemente intransitivo, no sub-desenvolvido horizonte da sua capacidade infra-econômica.

Na gleba homínica, porém, a polinização fabular fez a idéia crescer e espigar em riqueza diacrônica, somando juros da tradição docente. Foi o poder tradicional que salvou a geração discente, livrando-a de ser uma geração de Sísifos, eternamente a recriar a idéia.

Nascendo, é verdade, do contato vital que a mente elabora, a idéia chega ao paciente, não pela coisa, mas pela notícia da coisa, fabularmente veiculada. Da coisa até o indivíduo provêm certos efeitos vitais, outrora zoologicamente recebidos. Mas a idéia provém dos contatos vivenciais entre sócios do grupo. O instalar da condição humana, didaticamente preparado, começa no primeiro dia da infância. E o homem se habitua a mover-se no conhecido, geralmente a salvo de surpresas do novo que, surgindo, provoca impactos zoológicos. (Retirem um homem de seu meio costumeiro, vivencialmente assimilado, para uma circunstância vital desconhecida. É o mesmo que levar papagaio falante a casa de estranhos. Conforme os sustos que tenha, pode até perder a tramontana, refluindo-lhe a hominidade, esvaída e reflexa, ao porão do zoológico. Veja-se o exemplo corriqueiro de uma criança, quando desamparada em situação nova. Sobretudo se veja o tremendo exemplo dos "lavadores de cérebro", capazes de aviar a receita com arte e com ódio, mais a requerida acidez e coragem de profanar a pessoa humana. Como quem esvazia e torna a encher, trocam almas antigas por mecânicas almas pré-fabricadas).

Todo homem começou infante, como Secundo discente, aberto a lições de Primo docente. Chegado à integração de Secundo Primo, está cheio de idéias recebidas. O nível delas mede-se na cota homínica do grupo integrador. É uma discência precessora, que influi seu ritmo de vivência na iteração do rito vital, motivando o dizer-se que o homem olha não para ver, mas para verificar.

No esquisito de as idéias já estarem dentro do indivíduo, quando se dá por Sujeito, é que Platão deve ter intuído o seu reino de essências sobre-lunares. E Descartes, o seu campo de idéias inatas. E Kant, o seu recinto apriórico.

Faltou-lhes ver, na idéia. o que a idéia tem de comparável a seixos rolados, seixos que a viveza das águas afeiçoa, não, porém, de águas mesmas, pois são águas sucessivas. Intra-hominicamente elaborável, a idéia se faz é no giro da sintonia inter-homínica. Acerva-se num receituário que cresce enquanto vai, crescit eundo. Junta lucros vito-vivenciais de um suceder que é feito de experiência e abstração.

Iniciada na paciência do fenomênico, soma em si aquela energia equacionante, com que, voltando sobre o fenomênico, então lhe dita procederes.

Como a idéia, também o vocábulo começou no contato vital da equação "indivíduo-coisa", mas pertence a outro momento: a idéia vem no estímulo da coisa e o vocábulo no proceder de resposta do indivíduo. O germe da idéia, fenomenicamente espacial e sensoriamente internado, veio no proceder estimulante da coisa. O germe da fala, vivencialmente temporal. veio com o proceder de resposta do Sujeito. Não propriamente nele mas com ele, no acessório de certos vozeios zoologicamente emissíveis. Foi tal vozeio, devidamente estilizado, que chegou a signo fabular, dotando-se de veicularidade semântica e de intenção inter-individual. (Não dizemos signo vocabular, no sentido saussuriano, porque se trata de um signo realmente fabular. Entra nele o elemento vocábulo, mas com ele não se iguala. Consta a mais no conceito de signo: a idéia de um endereço fabular e uma idéia de atualidade). Se Caio diz vai, ao determinar um proceder de seu parceiro Lúcio, usa de um só vocábulo, mas um vocábulo cheio de sintomas. Não é um signo vocabular, mas um signo fabular: a) está situado na espacialidade do contexto teatral, campo das possibilidades da díxis; b) está tingido de melodia prolatória que discrimina entre imperativo vai e indicativo vai; c) exibe na feição desinencial a morfia apropriada à 2ª pessoa, ao procededor Lúcio com quem Caio está falando. Do contexto teatral, do contexto prolatório e da morfia fabular tira o sintagma a força veicular de sua função.

A idéia de signo coincide com a idéia de estímulo. Na equação "indivíduo-coisa", do primeiro sistema, o signo fenomênico está na própria coisa que requer a resposta. Numa equação do segundo sistema, equação metafórica, outra coisa que não a vital é que requer a resposta: em vez de a comida, um som de gongo pode mover o início da digestão. No reflexo condicionado, o estímulo da coisa vital, inundando a franja de um proceder concomitante, aí lhe confere eficácia.

Uma equação de signo fabular merece o nome de terceiro sistema :

1º) porque não é uma equação "indivíduo-coisa" mas uma equação "homem-homem". Seu signo, embora espacial e auditivo, tem qualidade notadamente temporal e semântica;

2º) por que excita, não um proceder vital, mas um proceder vivencial. Acorda a sintonia de um pensar, não de um fazer. Suscita a imagem de um proceder mentalmente representado. Que o ouvinte, querendo, passe ao ato, isso é outro passo. A força de mover a obediência de Secundo não está, por exemplo, no imperativo fabular, mas no poder de sanção que esteja em Primo ou no dispositivo de adesão do procededor Secundo.

Crescendo a experiência homínica do grupo, cresce o poder de referência da sua fala. Variando a fisionomia dos vozeios, varia a qualidade e quantidade da língua, no seu configurado cabedal de morfias fônicas. Alargando-se o corpo da frase, abre-se em lugares destinados ao competente sintagma, no todo de um molde frástico ou topológico. O vozeio reparte-se ou demora, melo-ritmicamente, no todo do molde prolatório, pluri-vocabularmente enfestável, o molde de sintagma nominal amplia-se em lugares para os adnominais.

É possível de historiar, no mundo ocidental, a marcha da riqueza fabular: tendo florido na Grécia, daí passou ao mundo romano, na sincronia da aculturação helênica. Um milênio depois, na diacronia da reaculturação mediterrânea, começou a renovar a capacidade dos vários europeus, mais ou menos sincronicamente, pela base internacional do latim.

A língua é uma lembrança na memória, um patrimônio individual da expressão. Cresce, intra-individual, na riqueza da experiência inter-individual, chegando a Secundo nas falas de Primo.

Na cota social infra-aristotélica, a língua é um valor de mera posse. Mas na cota social aristotélica, feita de curiosidade metódica, faz-se matéria de posse e consciência, vale dizer, de uso e estudo.

Nos momentos inter-individuais da fala ouvida, chega a língua, atual, à compreensão de Secundo Primo. Chega, pois, "fabularmente", para depois, na continuidade intra-individual da reminiscência, então se potencializar em valores de língua. É quando as falas se analisam, vivencialmente, depositando na memória, junto a sentidos veiculáveis, as suas formas veiculares. Nascem assim, das falas ditas, os recursos das falas dicendas.

A fala é uma expressão do homem, ora na sintonia reflexiva da fala-solilóquio, a fala intra-individual do pensar, ora na oferta de sintonia mental entre Primo e Secundo no circuito vivencial "homem-homem". Não é, portanto, uma expressão da coisa, cuja presença vem noutro circuito, o circuito vital do contato "indivíduo-coisa".

Sendo expressão da unidade homínica, a fala, matriz da língua, tem sua unidade na frase; que tem suas unidades no sintagma, este feito de "elementos" que são o vocábulo e o morfema.

A expressão tem moldes fabulares em que se vaza: o molde topológico, o molde prolatório e o molde sintágmico. Tais moldes são da língua: pertencem ao patrimônio fabular do grupo e servem de objeto principal da lingüística. A língua não é um rol ou ror de vocábulos, como pretendia Saussure.

(Verifiquemos a noção de molde, examinando a frase Caius emit domum / Caio comprou casa:

a) seu molde topológico revela, nos sintagmas, a ordem 2.1.3 ou NVA;

b) seu molde prolatório mostra seu tom assertivo. Diverso, por exemplo do interrogativo;

c) seu molde sintágmico. três vezes exibido, mostra, sob os morfemas - s - it - m, as bases vocabulares Caiu- em- domu -).


É tempo de a lingüística, metodicamente precavida, admitir certas verdades fundamentais como:

1º) a língua está na frase e não no sentido da frase. Nos moldes veiculares e não nas idéias veiculadas. Cumpre distinguir sentido e forma, veiculado e veículo, viajor e viatura;

2º) na frase está o sintagma, unidade atual constituída de vocábulo e morfema, seus dois elementos. Se o sentido metódico vai da fala, atual, à língua, virtual, fica visto que a frase não é feita de vocábulos, sendo ao contrário o vocábulo uma figura extraí da da frase - uma figura virtual, pós-fabular. O sintagma é um produto tradicional da posse da língua, mas o vocábulo só frutifica na análise mental de quem tome consciência de tal posse. Cumpre, pois, demitir o vocábulo de sua monarquia lingüística;

3º) a frase é uma unidade de fala. Os moldes, como unidades da frase, são unidades da língua, mas o vocábulo e o morfema, constitutivos do sintagma, não são unidades tão somente, mas parcelas;

4º) há na frase um plano mórfico e um plano semântico, abertos no tempo, que é lugar da fala: no plano mórfico, um todo frástico de sintagmas binomialmente relacionados com o sintagma verbal, e o todo de cada sintagma, estruturado sobre si. No plano semântico, um todo mental, relacionalmente distribuível, como veiculado, às morfias do veículo;

5º) estando o vocábulo submerso na linha da fala, carece de importância maior, na linha submersa do vocábulo, o escafandrismo fonicista, a moda recente, dos medidores de sons, curiosos caçadores de opositismos. É um novo engano que arrolar com enganos velhos, como o engano de se querer distribuir os vocábulos por categorias lógicas, adictos à responsabilidade semântica de serem substantivos, adjetivos, verbos etc.

 

Dialetalmente movida, nos quatro milênios de sua diacronia historiável, somente a língua indeuropéia, até agora, pôde oferecer matéria bastante para uma boa perspectiva lingüística. Estando ela ricamente demarcada de falas escritas, na sua rota mediterrânea, foi possível rastrear, nos estados-de-fala das falas, os estados-de-língua, da língua, entrevendo-se, durante a marcha, a direção estrutural da mudança, na mudança estrutural, e também o pendor semântico dos sentidos, no pendor dos sentidos.

(À modesta diacronia vocabular de Saussure opõe-se a diacronia fabular. Esta, isenta à barreira tradicional que vê três línguas no francês, no latim e no indoeuropeu, imerge constante na continuidade do tempo anterior. A diacronia vocabular, isolando os efeitos mórficos que estuda em cada vocábulo, também os marca segundo fronteiras de alguma "língua" anterior, além de os opor, como diacronia, ao fato sincrônico. A diacronia fabular, não só opõe, mas compõe. Sendo, em vez de singular, coletiva, ela não isola, mas correlaciona. É uma diacronia de planos sincrônicos, feita de sucessivos estados-de-língua da língua. Coordena, etimologicamente, estados atuais como o pós-românico, o românico, o romano, e o pré-romano, a fim de obter, de tal confronto, a perspectiva da sucessão ou diacronia. Sua figura visualizada, em lugar de ser a cruzeta saussuriana de duas linhas (CD cortando AB, pág. 115 do Curso), aquela figura podia ser de planos horizontais sotopostos, cada um deles sendo um plano sincrônico. Estaria no conjunto, em visão vertical, etimológica, a figura da imagem diacrônica).

Aos sintomas de nível, na integração veicular da fala, correspondem sintomas de nível, na integração antrópica do grupo, desde aquela superação de cota infra-lógica até à cota lógica da segunda superação. A hominidade da espécie constitui um progresso constante, embora incerto e imprevisível, economicamente aleatório e contingente. Assentado entre novidades da mudança e tenacidades da persistência, podemos demarcar-lhe uma ordem de marcha, na marcha que vai do pré-fabular ao infra-fabular e daí ao fabular.

Começou com vozeios reflexos, do tipo interjectivo, recendendo a adjacências do zoológico, na era pré-fabular. Dominavam em tais vozeios, não estímulos de sociedade, mas estímulos fenomênicos de simbiose, dentro de conjunturas não vivenciais, mas vitais. É uma qualidade que lhes merece o nome de "pré-fabulares".

Foram vindo com o tempo vozeios intencionais do tipo "fogo", "socorro", que são mais de expansão que de expressão. Mostram, na sua feição, a qualidade infra-fabular do seu todo, mais apoiado na sintaxe do teatral que na sintaxe do auditivo, constituindo-se numa fala mais de gestos que de vozes. Essa mesma característica teatral da fala expansiva dominará também a feição econômica da fala pragmática, entremeada com o fazer de Primo, na ajuda executiva de um fazer.

Finalmente amadureceu, como fala de um pensar, apropriada aos lazeres da vida reminiscente, a fala teórica, feita de vozeios discriminados, integrada em riquezas de fala "fabular". É uma fala que imerge no tempo e dispensa o teatro. Apoiada na eficácia fônica, dotou o sintagma de relacionalidade e contraste.

Como primeiro dialeto europeu de boa plenitude, o grego emprestou sua tendência ao latim, semanticamente helenizado. Por sua vez o latim, após a lenta conserva medieval, transmitiu capacidade aos dialetos ocidentais, recolhida em cinco séculos de aculturação programada. A Europa forjou sua ductilidade fabular, na riqueza mental mediterrânea. Num exercício histórico sem par, de persistente mutuação, ora se importava o sentido novo transfundido num molde vernáculo (diassemia), ora se importava o vocábulo e o sentido (transvocabulação), ora elementos vocabulares desmobilizados com que fundir nome novo de conceituação nova, criando f(ô)rma de permanente serviço, no hábil serviço da nomenclatura técnica. Lotou-se, com essa abundância internacional, o patrimônio vocabular da metódica, disseminando-se no continente a inteligência mediterrânea. Um léxico, por exemplo, como o inglês, tem hoje, sobre o fundo germânico de seus trinta por cento, setenta por cento de grego e latim. Por isso, rever a lingüística do indeuropeu é rever um conceituário mediterrâneo, ocidentalmente afeiçoado pela cultura.

Faz vinte séculos e tanto que a inteligência grega iniciou a humanidade na tarefa racional de ordenar o mundo. Filtrando experiência e fantasia, começou o exercício da reflexão metódica, diversa da reflexão mítica oriental. Com a lógica peripatética, o espírito, começou a observar, nos efeitos da repercussão fenomênica, o binômio equacional de um proceder atribuível a um procededor, representado, na estrutura do pensar, pelo binômio verbo e nome. Entretanto, por culpa de um vezo mental até hoje reinante, era visto na ordem nome e verbo. Deixou-se enganar pela estática dos seres, em vez de adaptar à dinãmica dos procederes, na etimologia da idéia. Viu no mundo, segundo a mítica tradicional, um todo de "seres", cada um com seu "nome", capazes de um proceder que o "verbo" refere.

(Posta na origem do padrão ocidental, a racionalidade mediterrânea divide a humanidade em dois níveis de hominidade: a hominidade do homem posterior, dotado de razão ativa que, ordenando o cosmo, adapta o mundo circunstante, e a hominidade do homem anterior, de razão folgada, vegetativo e tribal. O homem que, internando o Objeto, se faz Sujeito e centro de gravidade, e o homem de Sujeito infantil, que gravita para o Objeto. O primeiro, social, é o homem lógico ou aristotélico. O segundo, tribal, é infra-lógico ou infra-aristotélico).

Catalogando as partes do discurso, Aristóteles achou que o vocábulo podia ser nome, verbo ou liame, servindo para dizer a coisa, o fazer da coisa e suas relações.

Admitindo uma relação direta nome-coisa, a filosofia grega instalou uma explicação até hoje admitida, embora já se desconfie. Para filósofos e lingüistas, ainda não se clareou a teoria do trânsito entre a fenomênica do vital e a fenomênica do vivencial. Não se vê bem a diferença que corre entre a posição indivíduo-coisa, no contato vital, e a posição nome-idéia, na elaboração vivencial.

Essa a razão de a dupla nome-verbo, além de vir expressa em tal ordem, trazer consigo o cheiro de uma subordinação que se funda na primazia do ser. Por isso é que vem nos manuais, como fundamental, a regra de que o verbo concorda com o sujeito. Pode ver-se todavia, em termos não de lógica mas de fala, que não existe subordinação entre o proceder e o procededor. O que existe é uma coordenação que, vivencialmente instalada, instala conveniência entre um sujeito e um predicado.

A lingüística, embora já admitindo que a gramática não é um tratado de lógica, ainda não aprendeu a sobrepor a teoria do proceder à teoria do ser. Continua envolvida pela grande figura da lógica tradicional, a figura do ser, entidade sutil e flogística, policialmente investigada por dois milênios de meditação filosófica.

A vida funciona por equações do proceder: equações do meio vital, no proceder zoológico, e equacionamentos vivenciais, no proceder homínico. Ao proceder da coisa circunstante, na equação indivíduo-coisa, responde um proceder do estimulado. Se é na cota zoológica, o que o estímulo dispara, como resposta, é a resposta reflexa de um saber inato. Na cota homínica, porém, pode existir a reflexiva resposta de um saber construído.

O saber construído, inter-individualmente se constrói, no comércio do espírito, um comércio de idéias vivencialmente mentadas e fabularmente sintonizadas. Existe e persiste, graças à tradição que corre entre Primo docente e Secundo discente, num convívio social próprio do modo homínico, a transitar na fala, veículo de uma hominidade que circula.

1) Captando no espírito os efeitos vitais da repercussão fenomênica, intra-individualmente elaboráveis pela vivência, e inter-individualmente notificáveis pela fala, a humanidade foi progredindo em hominidade cada vez mais transitiva, graças à capitalização tradicional de perseverante, embora lenta, diacronia social;

2) foi convertendo a espacialidade vital em presença temporal, mediante o recurso do signo fabular. Mesmo na ausência do objeto estimulante, a vivência pôde menear a lembrança do estímulo, presente entre os mentados de que a alma se povoa;

3) elaborando equações do proceder natural, foi criando um receituário pós-natural de procederes, vivencialmente refletidos e diacronicamente progressivos;

4) foi instalando um poder judiciário na surda e zoológica eficácia do poder executivo, redispondo com isso a legislação do viver, nisso aproveitando, com os achados individuais da experiência, a aculturação inter-individual dos achados;

5) afeiçoando mnemiatos, na matriz das idéias - isto é, afeiçoando lembranças do proceder vital - foi condicionando em cada indivíduo a sua qualidade de Sujeito, legatário de uma herança cooperativamente trabalhada, numa incerta mas progressiva tradição de habilidades.

Com uma tal perspectiva do observável, dentro do real endofísico, chega-se, é bem de ver, a uma teoria, não de subordinação, mas de coordenação. Chega-se a uma coordenada de procederes e procededores, não a uma subordinada de procederes subordinados a seres.

(Convém insistir em que aqui nos limitamos ao endocosmo do real endofísico. Não se nega a existência do ser, cuja essência, de cota metafísica, tem de ser perquirida além, no mistério da origem profunda. Declare-se também que os postulados da teoria do autor não lhe vieram de meditações filosóficas, mas de inquirições lingüísticas, na diacronia da fala. Nos indícios da etimologia fabular, há uma grande conformidade com a teoria do proceder.)

A etimologia da frase, como unidade da fala, insere-se naquele proceder teatral de outrora, quando se começou a construir a habilidade veicular da língua.

Antes do seu nível de plenitude, que é o da fala reminiscente, apropriado à fala de um pensar ou fala teórica, está o nível da fala pragmática ou fala de um fazer, no aqui-agora da ação. É uma fala que está na origem da fala e também da própria hominidade. No seu proceder encenado, mais para os olhos que para os ouvidos, entra a sintaxe de três contextos:

1 - seu "visível" contexto teatral, consta das presenças de Primo e Secundo (isto é, de duas pessoas), mais a presença das coisas que dão "assunto" ao discurso;

2 - seu contexto mímico, também visual, que se exibe na "fala de corpo", no teor fisionômico, no gesto díctico e plástico;

3 - seu contexto fabular, auditivo, nos vozeios semânticos da frase.

-Mais apoiada na sintaxe do visível, a fala pragmática é definidamente presencial, dotada de uma estrutura anterior à da fala teórica. Esta, concentrando-se no auditivo, fez-se toda capaz de ser ausencial. Munida de riqueza anafórica, foi trocando por presenças temporais as antigas presenças espaciais, mediante o recurso de passar aos ouvidos o que aos olhos faltasse.

Comprovando a feição de sua natureza residual e diacrônica, num modo de vida que não mudou, o homem conserva até hoje o estilo de se manifestar por fala teórica e fala pragmática.

A fala teórica deve ter começado numa tímida rerniniscente, curta na representação e na estrutura, paulatinamente ampliada pelos primeiros estetas, os primeiros criadores da riqueza expressiva, narradores do fato e da fantasia, doutrinadores da vida e do sonho. À fala reminiscente, bastou-lhe deixar o agora presencial e encenar-se no outrora, para que atingisse o nível da fala teórica, aberta às imaginações da vivência, conformada ao gosto de quem se queira instalar na duração, ou seja, de se hominizar, visto que hominizar-se é tecer-se de tempo.

Quando melhora a hominidade, melhora a fala e melhora a língua: em lugar da estreiteza pragmática, a boa capacidade teórica. Subtilizando-se na disciplina mental, ganha as leves abstrações da fala técnica, finamente sensível às modulações da inteligência. Entretanto, por estar destinada ao serviço de exprimir o homem e não a coisa, nossa linguagem serve mal aos rigores exatos da isenção objetiva. Por muito que seja asséptica, é sempre fala homínica a fala técnica, marcada de participação. Requerer-lhe o primor que lhe está requerendo a logística, ultra-aristotelicamente, é tão somente sonhar com algum poder de magia, um poder que já teve e ainda tem, na economia da mente infra-aristotélica.

A língua amadurece é no exercício da fala teórica, para cá do mister ancilar da fala executiva que descansa nas facilidades visuais do teatro primeiro. Na fala teórica, em vez de gesto díctico, funciona, sob a urgência anafórica do alhures, o vozeio que lembra situações anteriores.

Tendo condensado no tempo o seu poder de notícia, a fala apresenta o assunto, refere os procederes, narra a história, alimenta a tradição, enriquecendo a hominidade da espécie.

Junho de 1964

 

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