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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

O MODO E O TEMPO NA EXPRESSÃO FABULAR [1]

 

I

1. Ao proceder vital de um fazer, próprio da economia zoológica, a hominidade somou o proceder vivencial de um pensar, próprio da economia antrópica.

O proceder vital de um procededor move-se no espaço e repercute fora, na simpatia vital de um observador. Mas o proceder vivencial, desenvolvido no tempo não repercute fora. Identifica-se num internato mental de onde pode sair, no veículo da fala, para a sintonia mental de Secundo.

Na simpatia vital, o estimulado recebe, pelo estímulo sensível, a figura espacial do proceder observado. Na sintonia mental, o estimulado só recebe o estímulo sensível da fala, encarregada de suscitar, na memória do ouvinte, a figura temporal do proceder. A função do vozeio emitido é despertar, no receptor, uma idéia que já tinha consigo, admitida em vivência anterior. Por isso, embora sensório, o signo fabular não vale pela espacialidade sensível mas pela intenção temporal em que imerge, ao veicular, reminiscente, um veiculado reminiscível.


2. Se admitirmos o espaço como a não-coisa externa, um lugar lá fora onde as coisas estão, diremos que o tempo é uma não-coisa interna, uma duração cá dentro onde estão as idéias.

O espaço contém o homem e o homem contém o tempo, hominicamente condensável.

O espaço é a condição do corpo e o tempo é a condição do espírito, cujo poder vivencial ordena o mundo, num mundo fabularmente manifestável.

O tempo, que flui por duração, é uma tela inespacial de lembranças. Cresce com a hominidade do Sujeito, acumulando idade mental. [2]

O tempo homínico, sendo homínico, é por isso mesmo um tempo fabular, um tempo de Primo, um campo de epifanias da memória, um depósito de outroras passados, convocáveis num agora presente e projetáveis num futuro depois.

Falamos em tempo verbal porque Primo, noticiando o proceder de um procededor, ao situá-lo no tempo fabular, sinaliza devidamente o sintagma do verbo. Mas o tempo verbal, não sendo tempo, é apenas um indício morfêmico.

3. Um ato fabular implica dois momentos: um no aqui-agora da fala, outro no proceder noticiado. São co-presentes, como no sintagma "canta", ou co-distanciados, como no sintagma "cantou" e no sintagma "cantará". Quando se noticia, na frase, mais de um preceder, surge um terceiro momento. Então os momentos verbais, coordenados com o da fala, também se coordenam entre si, por conseqüência temporal: "Caio saiu mas não demora", "saiu quando o outro chegava". [3]

4. Na fase pré-romana da língua indeuropéia, o verbo era fraco de tempo e de conjugação. Seu vozeio aspectivo, simpaticamente envolvido nas adjacências do agora, pela debilidade infra-aristotélica de então, ainda se não podia librar no campo do tempo como o vôo da águia no campo do céu. Somente mais tarde, na tradição mediterrânea, viria o destilo da diferença presente / passado / futuro. Um antepretérito "viera" e um imperfeito "vinha" - vênit, vênerat, veniebat - assim como no porvir, junto a um futuro "virá", um antefuturo "terá vindo" - veniet, vênerit. Para tanto, foi tingindo de tempo as formas do "infecto" e do "perfecto", convenientemente morfemadas, e até sem prejuízo maior da intenção aspectiva anterior, pois guardou contrastes como do tipo momentâneo e durativo: sistit "pára" e stat "está de pé". Do tipo ingressivo e terminativo: senescit "envelhece", senuit "ficou velho". Do tipo não freqüentativo e freqüentativo, como na progressão salit - saltat - saltitat, onde saltare, iterativo de salire, ainda se reitera em saltitare. Mas sobretudo, além disso, firmou o determinismo dos provérbios, vincando diferenças como séquitur / conséquitur "segue / consegue", orat / exorat "pede / obtém", caedit / occidit "fere / mata".

De tal modo se temporizando, a língua de Cícero foi construindo sua riqueza, num enriquecimento que cederia de si, na refusão românica seguinte, prorrogada na crase medieval. Descera a temperatura de uma civilização em declínio, devorada pela aculturação da barbárie báltica. Em ritmo com o diluir do vigor dos morfemas, cresceu a inflação auxiliar, até que mais tarde, outra vez, na reaculturação renascentista, pudesse o latim reabilitar os dialetos pós-românicos e habilitar ainda os pós-germânicos.


II


5. A fala de Primo situa o proceder no tempo fabular, tempo de representação, no agora fabular, de um outrora fenomênico (anterior ou futuro) ou de uma coincidência do fenomênico presente com o momento fabular. Mas recebe modo fabular da atitude de Primo ante o proceder. Enquanto Primo situa o proceder no tempo, o proceder situa Primo no modo, estimulando-lhe uma atitude volitiva ou intelectiva. Da atitude volitiva ou pragmática nasceu a fala volitiva ou fala de um fazer, inserida, como elemento executivo, na equação de um proceder vital de resposta a um estímulo recebido. Da atitude intelectiva, vivencia1mente amadurada, nasceu a fala intelectiva, uma fala teórica, mera notícia de proceder, visto como atual, como possível e como inatual.

Portanto, sob o estímulo do evento noticiável, Primo:

se volitivo:
a) manda (imperativo) - fale de você;
b) deseja (optativo) - fale de você;
(No tom prolatório da frase é que está o veículo do matiz imperativo ou optativo);

se intelectivo; Primo sabe, ignora, duvida, inquire, admira, teoriza, no indicativo, no potenciativo, no subjuntivo;

no indicativo:
a) sabe que sim e noticia - falou de você;
b) sabe que não e noticia o não evento: não falou de você;
c) ignora e noticia a ignorância: não sei se falou de você;
d) alheia-se ao caso: não me importa se falou de você;
e) duvida do caso: fala hoje talvez. (cf: "talvez fale hoje")
f) inquire do caso: falou de você?
g) admira do caso: falou de você?!

no potenciativo:
h) teoriza o evento: nunca fala de você

no subjuntivo:
i) noticia o possível: espero que fale de você (cf.: "talvez fale...") [4]


6. Os cinco modos que admitimos são: imperativo, optativo, indicativo, subjuntivo, potenciativo. [5]


7. A fala volitiva, noticiando uma vontade capaz, toma grau imperativo : "saia daqui!". Mas toma grau optativo - "saia, por favor", se noticia uma vontade incapaz. É uma fala executiva e comovente que além de se corar, auditiva, no teor prolatório do vozeio, encontra subministração visualizante no teor gesticular das atitudes corporais de Primo.


8. Pelo imperativo, modo da vontade capaz, exige Primo de Secundo um proceder: "levanta-te, toma teu grabato, e anda" / surge, tolle grabatum tuum, et ámbula. [6]


9. Pelo optativo, próprio da vontade incapaz, Primo exibe um desejo. Deseja uma coisa que pode estar num proceder seu, de Secundo, ou de um terceiro procededor: "viva eu cá na terra sempre triste"; " repousa lá no céu, eternamente"; "sangue chova o ar". (Exemplos de Camões)


10. A fala intelectiva usa dos modos indicativo, potenciativo e subjuntivo.

pelo modo indicativo, Primo noticia um proceder atual. É assim no exemplo "o cão corre", no sentido de "está correndo";

pelo modo potenciativo, Primo noticia um proceder potenciado ou inatual, como no mesmo exemplo "o cão corre" mas com o sentido de "é capaz de correr".

pelo modo subjuntivo, noticia um proceder possível: "espero que venha".

11. O modo potenciativo, que também se pode chamar de modo gnômico, merece, por sua novidade uma lição especial, que começa na diferença entre fala pragmática e fala teórica, uma interessada num fazer e outra num pensar.

Pela fala pragmática, Primo insere, na dimensão de proceder noticiado, a notícia de sua vontade imperativa ou optativa. Pela fala teórica, noticia apenas o proceder, visto como atividade, como possibilidade, ou como potência. Na terceira diferença é que esta o modo potenciativo.

No indicativo e no subjuntivo, o sintagma verbal traz em si, co-presentes ou co-distanciados, o momento da fala e o momento do proceder, visto como atual presente, "corre", como atual revocável, "correu", como atual projetável, "correrá", ou como atual possível, "talvez corra".

No potenciativo porém, o proceder é inatual. O cão não está correndo em "o cão corre". O proceder existe mas não funciona. O sintagma verbal, armado só de tempo fabular, não traduz o tempo efetivo de proceder, registrado na pertemporidade gnômica da experiência de Primo. Daí o fato de o modo potenciativo ser um modo altamente teórico, noticiador de condicionados habituais, adestrado na função de traduzir, não a realidade fenomênica do ato, mas a realidade vivencial da potência: "o trem sai às duas", "o seguro morreu de velho", "devagar se vai ao longe"... [7]


12. Em resumo:

a)
b)
c)
d)
e)

o modo imperativo optativo indicativo subjuntivo potenciativo noticia o proceder como vontade
desejo
evento possível teoria
de Primo
de Primo
para Primo
para Primo
para Primo
[saia daqui]
[saia, por favor]
[saiu logo]
[espero que venha]
[o trem sai às duas]


13. O progresso de sua capacidade veicular, no verbo indeuropeu, imagina-se em concomitância com o progresso da hominidade indeuropéia, enquanto aquela antiga humanidade foi aprendendo a filtrar, analogicamente, no intelectivo do espírito, o volitivo animal. A sublimar a espacialidade zoológica do mero fazer na temporidade antrópica do pensar. A converter agoras vitais, fenomênicos, em outroras vivenciais, reminiscentes. Resumindo na idéia o estímulo do mundo, reformulou paulatina as equações do observado, trocando a sensibilidade do adjacente por figuras mentais fabularmente veiculáveis. Inserindo a liberdade do outrora na urgência zoológica do agora, foi conseguindo redimir-se da antiga pressão espacial, isto é, foi aprendendo, opcionista, a ser homem. Por esse motivo é que se tem de exigir, na diátese fabular do verbo indeuropeu, a luz semântica da temporização, o corte geológico de uma diacronia que, nutrida de exercício analógico, nutriu o ritmo ultra-volitivo de progresso racional, um progresso que soube, na paciente invenção da inteligência, capitalizar os juros da volição primeira.


14. Esse rumo da temporização intelectiva rastreia-se, como indício, na fisionomia do modo verbal. Sobe da hipocronia pré-romana, aspectiva, ao tingimento crônico seguinte. Da atitude volitiva do agora, às posições da intelectiva, capaz de florir nos campos do outrora.

O modo volitivo, com seu clima de agora, começou numa co-presença hipocrônica dos dois momentos admitidos num sintagma verbal, o momento da fala e o momento de proceder. Quer no imperativo, com que Primo requer um proceder de Secundo, quer no optativo, quando deseja um acontecer. Mas depois, com a fala teórica, no primeiro exercício temporal de exprimir um mentado, a pressão do suceder fenomênico foi sendo distribuída, reminiscente, numa linha de agoras que, defluindo do antes, vão profluir no depois. São as lembranças do modo indicativo, próprio da atitude intelectiva. Depois, esse poder da teoria, iniciado no indicativo, atingiu as morfias do subjuntivo que, sem perder a primeira intenção volitiva, entrou no serviço da intelectiva. A estruturas do tipo "venha já" e "venha a nós", volitivas, juntou-se o tipo "quero que venha", onde também o modo é subjuntivo, não só as morfias. (O volitivo em "quero" reduziu "venha" a subjuntivo do possível).

Nota [14]: Uma estrutura do tipo volo veniat / quero que venha, etimologicamente examinada, revela a geração do modo subjuntivo, com passagem do volitivo ao intelectivo. De primeira, na frase "volo veniat", o sintagma "veniat", ainda optativo, compunha uma estrutura de duas orações justapostas, com dois momentos prolatórios "volo; veniat". Depois, chegando "veniat" a intelectivo, a fusão metatáctica reduziu a um só os dois momentos prolatórios, gerando a unidade frástica volo veniat, semanticamente igual a quero que venha.

Na estrutura do modo subjuntivo, uma vez forjada, o segundo verbo, mudando de volitivo para intelectivo, passou a traduzir não mais um desejo e sim um possível. (cf in fine nota [14])


15. A um novo estímulo da experiência do viver a experiência do dizer costuma tratar com analogia: buscando parecenças do velho nas aparências do novo, tenta incluir "b" na receita de "a". A via analógica é o viático do enriquecimento mental. Facilita passar do agora pragmático ao outrora teórico. Dilui na temporidade reminiscente a urgência espacial. Distribui as morfias do fazer pelas distâncias do pensar. Alivia a pressão volitiva em compreensão intelectiva. Alimenta o regime das atitudes de Primo ante o regime fenomênico, segundo uma economia em que se mostra, ora praticamente volitivo, ora teoricamente intelectivo, e até potenciativo.


16. O progresso da analogia, na replenação fônica da morfia fabular, pode ser rastreado no imperativo indeuropeu:

a) mobilizando morfemação tonal e gesticular, o imperativo indeuropeu fez da base do verbo um sintagma: i - dic - doce / " vai - dize - ensina".

b) depois, ante um Secundo coletivo, ampliou fonicamente o sintagma, ajustando à base um conveniente morfema: ite - dicito - docete / "ide - dizei ensinai". (cf nota [16]).

c) depois ainda, melhorando o costume dos distanciamentos mentais, no progresso intelectivo, tornou-se capaz de situar no futuro uma determinação volitiva: cras venito / "venha amanhã" - impius ne audeto / "não ouse o ímpio".

Com esse jeito do trocar a urgência volitiva em propósito programado, elevando o pragmático a teórico, refinou o latim um consabido regime de fala gnômica, expressivamente mandamentosa, mui romanicamente legislativa: in ius dúcito, suo vívito, sacrificia ne sunto [conduze-te para o que é direito, viva do seu, não haja sacrifícios?] [8]

A polidez bizantina, com seu estilo de "fala oblíqua", pôs em voga a figura do um Secundo representativo, dignificado em seguida por aquele plural de majestade que a cortesia ocidental implantou, quer no tratamento direto (" vós, poderoso rei" Cam 1.8) quer nas formas indiretas de vossa majestade, vossa mercê, etc.

Na área ibérica, depois de se haver diluído, na intimidade plebéia, a distância de vossa mercê, desenvolveu-se o tratamento você, não mais do mesmo naipe semântico de vossa majestade.

Tal tipo do tratamento, endereçado a uma condição social do ouvinte, remete assim mesmo à segunda pessoa do discurso, o segundo dos três procededores fabulares. Remete a Secundo. Apesar de se prover de terceiras morfias, não remete ao terceiro procededor, a impertinente "terceira pessoa" da rotina gramatical. Numa frase do tipo você veio é bom anotar, nos dois sintagmas, que a sua forma terceira está a serviço da segunda pessoa, segunda e última. Confronte-se-lhe a estrutura e sentido com a estrutura e sentido de ele veio, onde tudo é terceiro, as formas e o procededor.


17. A disponibilidade vivencial do volitivo, aberta para um agora presente, também se foi abrindo a um futuro depois, na direção intelectiva da vontade teórica. Após a imediatez do tipo dic, afeiçoamentos como dicas ou dícito permitiram corar um campo de expressão, próprio do imperativo ético, aberto às posições temporais, tanto na co-presença do presente, como na co-distância do futuro, e até na co-distância do pretérito.

a) tace / "cale-se" é um imperativo urgente. Mas taceas / "convém calar-se" insinua, no agora, alguma coisa que se livrou da pressão do momento.

b) num mesmo passo do Mercator, 762, Plauto junta o futuro e o presente, quando, ao cozinheiro que pede paga, responde Lisímaco: " pede amanhã, que se pagará. Agora vai daqui" / cras pétito, dábitur. Nunc abi.

c) tomaremos três exemplos de imperativo pretérito, com Plauto, Cícero e Corneille:

no Rudens /"O calabre", de Plauto está o cáperes fustem / "tomasse um pau", 751. A Trakhálio, explicando não haver matado por não ter tido espada no momento, Pleusidipo responde: "Tomasse então um pau ou uma pedra".

(Eis a sequência dialogal:

- "Por que não o matou logo?" / - quin obcidisti extemplo?

- "Não tinha espada" / - gladius non erat

- "Tomasse um pau ou uma pedra" / - cáperes aut fustem aut lapidem).

Cícero, na defesa de Rabírio Póstumo, ao supor o que deveria ter feito o seu constituinte, imagina o Acusador Mêmio a responder: "que morresse" / moreretur.

Com esse mesmo imperativo ético de pretérito, subiu Corneille um dia ao sublime, num passo mui recitado de seu Horace,1021: - que vouliez-vous qu'il fit contre trois?-qu'il mourût [- que queríeis que ele fizesse contra três? - que ele morresse]


18. O próprio nome de subjuntivo já está dizendo que este modo é um modo que se ajunta depois, no segundo lugar de uma estrutura difrástica: espero que venha. Contém pois o duplo indício de ser veículo de um possível e de ter uma posição relacional ou secundária. Portanto, estando a morfia numa posição primeira, própria da estrutura monofrástica, o modo não será subjuntivo, por não ser intelectivo mas volitivo. Faça-se a luz, chova sangue o ar. [9]

A estrutura fabular da língua oscila entre contaminados assim: quero que venha, creio que vem, não creio que venha - não sei se vou, não sei se vá - acontece que vem, cumpre que venha.

Trata-se de um subjuntivo ora subtil, ora mecânico. Para dizer "aconteceu que era lua cheia", César, em vez de "era" escreveu "fosse": áccidit ut esset luna plena (BG 4.29). Não queria ele noticiar uma lua cheia, mas sim ter acontecido, naquela noite, que a lua, em vez de outra, fosse cheia, tão cheia como infeliz, para as naus que tinha na Britânia: eadem nocte, áccidit ut esset luna plena. [10]


19. A experiência vivencial, gnomizando situações etimologicamente volitivas, abriu a via do serviço intelectivo às morfias do serviço volitivo. Assim não pôde manter, na fronteira modal, e firmeza dos sinais. A morfia pode ser do modo tal, como se aprende na gramática, mas o modo pode não ser o de tal morfia. Cumpre buscar, portanto, nos indícios do modo, um valor persistente, capaz de resistir, na variedade semântica, às infiltrações analógicas do uso. Eis alguns deles, considerados como determináveis:

a) no imperativo pragmático, a pressão da vontade capaz: toma e lê.

b) no optativo, a expansão da vontade incapaz: Deus te ajude!

c) no imperativo ético, e liberação intelectiva: ama teu próximo, não furtarás.

d) no indicativo, o atual do proceder: saiu agora mesmo.

e) no potenciativo, o inatual do proceder: o trem sai às duas.

f) no subjuntivo, o possível do proceder: espero que venha.


20. A fala indeuropéia, melhorando o cronismo, depois da antiga hipocronia, melhorou paulatina o conjugado verbal, a fim de colher na rede a sucessão do tempo. Primo, desde seu agora central foi podendo noticiar:

a) um proceder co-presente, simultâneo do agora: delet / " apaga".

b) um proceder pretérito, revocável de seu antes: delevit / "apagou".

c) um proceder futuro, projetável no depois: delebit / "apagará".

Para isso o latim, a mais de temporizar velhos morfemas aspectivos, teve de fundir outros morfemas temporo-modais, implantados na antiga base do infecto e do perfecto. Sistemou uma conjugação cheia de tempo. Na fase anterior, o infecto delet fazia pensar num proceder inacabado, diverso do perfeito de1evit, noticiador de um proceder acabado. Na fase posterior, retingindo as morfias, que nos dois temas conseguia, o latim fez pensar em presente, passado e futuro, promovendo uma série de contrastes modo-temporais como delet / deleat, delebit / delebat, deleret / delebat, delet / delevit, delevit / deléverat, deléverat / delevisset... [11]

A morfia delebat, por exemplo, com três parcelas fônicas "dele-ba-t" pode ser assim analisada:

a) dele- (inicial), representa o tema do infecto, diverso de delev-, - tema do perfecto.

b) -ba- (médio), temporo-modal ou categórico, é um morfema vocabular. Implantado na base dele-, arma a base particular deleba -, atualizável nos seis sintagmas delebam - delebas - delebat - delebamus - delebatis - delebant.

c) -t (parcela final) como endereço do terceiro procededor, é um morfema fabular.


III


21. O tempo é uma sedimentação interior que a diacronia faz crescer. Um campo inespacial da consciência, um estofo insubstancial com que o Sujeito vai tecendo, na duração, a sua hominidade. A filosofia, porém, simetrizando espaço e tempo, tenta fazer do tempo uma dimensão do real, uma condição do Objeto. Ainda sob a mítica de Crono, vê nele uma categoria, não externada, mas externa.

Fora, no espaço, integrado na fenomênica de seus procederes, fica o Objeto, emissor de estímulos sensíveis. Chega depois, observando, o criador de imagens, o Sujeito. Aí é que ele, sujeito à repercussão dos estímulos, destila no espírito, como lembrança e tempo, suas idéias de procederes e procededores. Nessa filtragem vivencial, instala idéias mnemicamente associáveis a vozeios fabulares. Com tais idéias, monta equações do proceder fenomênico. Com tais equações, vai reformulando a sua teoria do Objeto, enquanto relaciona, depois da experiência vital, a feição vivencial dos elaborados que configura no espírito e o contributo cooperativo da tradição inter-individual em que se move, dentro do convívio social, fabularmente veiculado. Com tais reformulados da teoria, dita novos precederes à coisa, fazendo-se de sujeito sujeitor, arvorado em Sujeito que se opõe ao Objeto.

Na consciência desse internador de estímulos, a dimensão "tempo" é um não-espaço onde cresce o mundo, como representação, enquanto cresce a hominidade do Sujeito. Como veículo de tal progresso, tem o poder de noticiar procederes e procededores, reminiscentemente graduáveis, na escala da sucessão agora-outrora.

Nesse poder fabular, primeiro foi a imaturidade infra-aristotélica da fase pré-romana, fechada nas adjacências do agora. Depois, na diacronia do amadurar mediterrâneo, a língua foi aprendendo a recolher, na morfia da fala, os outroras mentados. Assim pôde exibir-se, na sistemação do verbo latino, aquela virtude que parece um laurel da grandeza romana, quando soube mobilizar as bases de uma herança aspectiva, semanticamente helenizada, na plenitude superior da sua conjugação.


22. O modo fabular, como sintonia em Primo, conseguiu manter, através do progresso, a constante geral da sua linha semântica. Não conseguiu porém morficamente, como sintoma no sintagma, outra melhor unidade, porque toda criação fônica, emergindo no tempo, emerge e imerge, oscila e passa, movediça e analógica. Além disso, quando progride a hominidade, se progride também o poder fabular, nunca lhe falta um desencontro de ritmos, entre o ritmo da velocidade homínica e o ritmo da velocidade fabular, por isso nunca faltando, nos incertos da marcha, os lamentadores de insuficiências do próprio idioma. A esse desajuste intra-grupal cumpre somar, aumentando a pressão negativa, um outro desajuste, agora inter-grupal, exibido nas várias cotas nacionais, de povos que se fecham sobre si. Foi entre tais barreiras vernáculas, tomadas de fronteirismo segregário, fautor de juros dialectizantes, que a língua indeuropéia se repartiu nos seus vários idiomas, guardados por ciúmes nativistas, rêmoras da aculturação inter-grupal.


23. Para entender a constância do modo, a direção concreto abstrato, a marcha volitivo intelectivo, cumpre admitir que a hominidade é um princípio que cresce, tanto no tempo individual da cada um, dentro da sociedade, como no tempo social do grupo, dentro da humanidade. Não é como deixa entrever certo sociologismo espacialista e mecânico, satisfeito de haver podido retrair a hominidade até o nível primeiro da cota zoológica, para dali a querer explicar, destemporizada, nos meros limites equacionais da necessidade primeira. Essa metódica apressada, renaturizando um ser que ela reimerge na cota anterior, peleja por desclassificar a cota antrópica, na lenta aspiração pós-natural com que subiu.

Desde seu início verticalizante, aberto na horizontalidade zoológica, a cota antrópica é uma cota de tempo, diacronicamente acervado. Desde que nela entrou, a humanidade foi mudando, vivencialmente, o equacionário instintivo da cota vital, num equacionário de inteligência e vontade. O animal evolutivo anterior foi cedendo o primeiro passo ao homem progressivo: contra certo abstratismo sociológico, pretenso descobridor de determinismos, convém lembrar que a hominidade não é uma coisa que é mas que vai sendo, afeita aos níveis do seu momento histórico. Sobe com a humanidade, incertamente progressiva, mas progressiva, configurada numa qualidade que mentalmente se configura e fabularmente se exprime.


24. A hominidade indeuropéia, entre-suposta nos indícios da língua, deixa entrever como a visão primeira, cheia de agora, foi cedendo a uma outra visão que se enchia de outroras, condensados no tempo.

Na primeira visão, a curta distância concreta, a curta adjacência do estímulo, dentro numa circunstância vital que se aperta e confirma, cada hora, na presença da coisa. Adejando num círculo mítico, de forte simbiose e de fraca vivência, funciona um viver de que mal se desprende, alterado e infantil, um Sujeito precário, anterior à digestão do 0bjeto.

Na segunda visão, começo de um mundo platonicamente meditado, a eficácia do destilo abstrativo, o paciente carteio daqueles universais em que se move o espírito, quando identifica, na presença espacial da coisa, a presença temporal da idéia. Enfim, o paciente exercício de criar o mundo no espírito, um peculiar exercício de hominidade, próprio do homem verificador, pois o homem olha, já foi dito alhures, não para ver mas para verificar.

A visão antiga, particulista, afinava com a tendência polimorfêmica do primeiro indeuropeu, nos vinte séculos pré-cristãos. A visão abstrativa, nos vinte séculos seguintes, fomentou a tendência hipomorfêmica, tão acentuada no pós-românico e no inglês (pós-germânico), idioma de uma civilização mais romanizada que a da Alemanha.

No suceder de tal tendência monomórfica, seguinte à polimorfia primeira, não tem sentido a diferença, que por alguns se levantou, entre língua sintética e língua analítica. Toda síntese requer prévio estado de análise. Ora, na riqueza desinencial indeuropéia, longe de haver sintetizado alguma valia anterior, existe apenas, emergente, um acervar justapositivo, por sedimentação adluvial da sua antiga fantasia, mítica e patética.


25. Mudando o modo de mentar o mundo, a forma veicular da expressão também muda. Do romano ao pós-românico, vemos como o núcleo do sintagma nominal, desmorfemando-se, cada vez mais se pareceu com um vocábulo: vemos como a freqüência dinâmica da frase latina, multiplicadora de centros verbais, contrasta com a visão não dinâmica do francês de agora, estaticamente gostoso de sintagmas nominais, preferindo dizer la course du cheval [a corrida do cavalo] onde seria, para o romano, equuus currit [o cavalo corre].

Mas convém notar, para a definibilidade do modo, que não mudaram, na atitude homínica, os fundamentos da intenção volitiva e intelectiva. Achar, pois, que o grego teve optativo mas que o português não o tem, é estreitar sem razão o conceito de modo. Evitem-se impertinências que tais, do vocabulismo, esquecido de que a fala, como veículo, tem de ser vista sob a luz semântica do veiculado. Numa estrutura do tipo "me dá uma esmola" corre aquela intenção optativa da vontade incapaz. E esconde-se, no curto vozeio volitivo de uma frase como "saia", todo um variado matiz que, prolatoriamente demarcável, pode ser imperativo e optativo, ora de cor semântica jussiva cominativa dirimente... ora de cor semântica deprecativa suasória insinuante comiserativa etc.


26. Nas frases "venha já" - "venha a nós" - "peço que venha", a monomorfia visual de venha esconde uma polimorfia auditiva. [Ver nota [14]). Cada venha difere do outro, na atualização prolatória, segundo a conformidade semântica do veiculado. São três morfias fônicas distintas, requeridas por três distintos sintagmas. Entretanto, a rotina vocabulista, esquecendo-lhe a atualidade fabular, contenta-se com a idéia de um "venha" monomórfico. Afeita a seu engano metódico, ela pensa na frase em termos de composição, como se a realidade vivencial fosse da língua à fala, sujeita à direção que vai do léxico à frase. Ressuma constante, nos tratadistas, a idéia de que a fala é um ato de construção, apesar de ela ser, reminiscente, um ato de repetir, pois quem fala repete estruturas vigentes, infundindo em seus moldes, já feitos, o conteúdo mental requerido.

No internato da consciência, que é um recinto de tempo, registram-se os feitos vivenciais da atividade de Primo, elaborador de mentados que o pensamento iterativo repete, na livre reminiscência da memória espontânea. Mesmo no pensar dirigido, quando em busca de uma nova equação que parece um "faciendo", ainda assim a atividade mental se conserva nos limites do "feito", pois toda nova equação, em verdade, não passa de uma velha equação redisposta.

A frase, fruto análogo da fala, não é uma construção que inventar mas um repetir que repetir. Falar é escolher, nas falas ouvidas, o modelo de fala dicenda. Quem se exprimiu na frase "venha já", longe de haver tomado, num construendo, dois tijolos, apenas mobilizou, reminiscente, uma estrutura já construída. Para isso é que ocorre, na vivência do grupo aquela iteração cotidiana, movida de pai a filho, de docente a discente. E a fala firma-se na posse. Uma posse que, sendo comum na cota comum, não impede que Primo, na cota criadora, descubra redisposições opcionais e analógicas, ao sentir que já não cabe, num velho molde, uma nova idéia.

Francis Bacon dissera, num falar sugestivo, que o vocábulo é uma téssera de noções: verba notionum tésserae sunt. Num falar metódico porém, não se lhe despondera a sua condição pós-fabular de elemento da língua. O seu corpo fônico mental. A sua figura, desatualizada e virtual, de candidato a veículo. Sua condição de socialidade reminiscente com o seu possível termo semântico, após a efetiva sociedade em que viera, no sintagma ouvido, e antes da futura sociedade em que pode sair, quando quem já aprendeu vai então repetir. No estado-de-fala da frase, a unidade atual é o sintagma, capaz de se desfazer, por análise mental, em dois elementos do estado-de-língua: o vocábulo e o morfema. Na fala, pois, univalente e atual, a unidade sintagma. Na língua, porém, o elemento vocábulo, plurivalente e virtual. É uma lembrança pós-fabular que se extrai do sintagma, unidade esta que se identifica na frase e que na fala se vai modelando, tradicionalmente, entre gerações e gerações de Primos, ao longo de um longo exercício de atos-de-fala. No vozeio veicular do sintagma aparece o vocábulo, cuja figura se faz na frase mas não faz a frase, pois sendo produto, não é produtor.

No vocábulo, pois, e no morfema fabular, um como base veicular e outro como endereçador da função, a metódica tem de identificar os dois constituintes do sintagma, registrando ambos, mnemicamente, no patrimônio vernáculo, juntamente com os moldes fabulares, num todo de elementos chamado língua. [12]

Repartir uma veicularidade é trabalho que pede respeito ao todo da frase, onde se tem de olhar:

a) a estrutura tópica do molde frástico e
b) a estrutura melo-rítmica do molde prolatório.

Com o duplo todo do molde frástico e do molde prolatório é que se identifica um molde fabular, responsável pelo carreto semântico de um veiculado. Além dos endereçadores do sintagma, desinenciais ou conectivos, existe o seu lugar na sucessão auditiva (morfema tópico) e a melodia do vozeio na sucessão prolatória (morfema prolatório). Fora, na subvenção teatral, fica a visibilidade do gesto, dotável de intenção veicular.

São valores que não são de esquecer, na busca etimológica do fato, embora levemente se esqueçam, no observador que se avezou, menos atento, às fixações da rotina vocabulista.

Para bem se entender, a fala, de que sai a língua, deve supor-se no seu lugar de exercício, quer dizer, no espaço teatral do convívio entre Primo e Secundo. Isso, não apenas em momento tal e tal, de situação essa ou aquela, mas num inquérito aberto, segundo a imemorial iteração de um antigo exercício, de incerto registro. Faltando o sinal, valha o indício aflorado, e valha sempre a hipótese analógica, motivada na tradição de mesmice da essência homínica.

Explicar uma frase - com sintagmas de que saem vocábulos - é explicar um veículo em uso, na linha tradicional da expressão. E essa linha, não no espaço, mas no tempo, tem de ter instâncias diacrônicas notandas. Instâncias que o etimólogo percorra, nos estados anteriores do uso, a fim de remarcar, na língua a estratificação vertical do patrimônio.

Quem deseje ordenar a matéria da fala assim tem de fazer. Se basta, para viver, uma posse do uso, cumpre entretanto, para conhecer, chegar à consciência da posse, à consciência da língua.

 

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