banco de textosvidalivroshome
Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Ao Correr do Tempo - 2

MOBILIDADE DO MORFEMA FABULAR

 
 

In: Ao Correr do Tempo 2 - Aulas e conferências. Belo Horizonte, O Lutador, 1990, p.45-61.

 

1.

A boa metódica deve pôr diferença entre o morfema fabular e o morfema vocabular. O primeiro, na estrutura da frase indo-européia. O segundo, na estrutura do vocábulo indo- europeu.

 

2.

O morfema fabular atualiza os sintagmas da frase, no atual de um ato de fala: canis currit, "o cão corre". São morfemas fabulares o -s de canis, em Nominativo, e o -t de currit, como endereço de um terceiro procededor, isto é, um procededor que não é Primo que fala nem Secundo que ouve.

O morfema vocabular é um conformador de vocábulos, isto é, daqueles elementos pós-fabulares que Secundo Primo vai guardando na memória, à medida em que vai aprendendo a sua língua. Recebe-os do sócio docente, atualizados nos sintagmas da fala, mas possíveis de se pontecializarem, como elementos da língua, ao longo daquela espontânea reflexão vivencial em que dos atos de fala se vão gerando os fatos da língua. A unidade chamada "sintagma", então se desfaz nos seus elementos constitutivos, isto é, o elemento chamado "vocábulo" e o elemento chamado "morfema fabular".

Se o morfema fabular é um atualizador de sintagmas, o morfema vocabular é um conformador de vocábulos. Vocábulos que cada um memoriza, na medida em que aprende a sua língua, recebida na fala do sócio docente. Vão procedendo, para ele, dos atos de fala que ouve, os fatos da língua que vai possuindo. Além do molde frástico e do molde prolatório, avulta, na lembrança, o molde da unidade chamada sintagma, vivencialmente desmonstável nos seus elementos constitutivos: sua base vocabular, endereçada por um morfema fabular.

O morfema vocabular, conformador de vocábulos, não interessa à estrutura da frase, mas à riqueza léxica do idioma: fundindo-se a uma base pré-existente, forma novos vocábulos, outros tantos veículos potenciais, capazes de entrar no molde sintágmico, devidamente atualizados pelo morfema fabular. No estado romano da língua indo-européia, a base -leg- do nome lex admitindo a função de vários morfemas vocabulares, multiplicou, no seu rebanho cognatício, vocábulos como lex legalis illegalis legálitas (lex leg-ali-s - in-leg-ali-s - leg-ali-ta-s). Junto à palavra lei, no seu estado pós-românico, as formas legal ilegal legalidade são meras adaptações letradas de um empréstimo feito a um estado anterior da língua, chamado latim.

 

3.

Convém insistir em que a morfemação fabular, que atualiza o sintagma da frase, interessa diretamente ao regime estrutural de uma língua. O mesmo não acontecendo com a morfemação vocabular, de interesse indireto. O sintagma, univalente e atual, é uma unidade da língua, mas o vocábulo, plurivalente e potencial, é apenas um elemento, contraponteado pelo morfema fabular, outro elemento da língua. O estudo da formação vocabular, atomizando vocábulos, exibindo seus moldes e motivando suas existências, ilumina a via veicular dos cognatos e enriquece a posse vocabular de quem o faz, mas não pertence, diretamente, ao cuidado maior da lingüística, posto, como convém, na estrutura da frase, na estrutura da fala. O vocábulo é um elemento que se formou na frase e não uma unidade com que se formam frases. É um valor pós-fabular, guardado na lembrança, capaz de veicular um sentido. Existe em socialidade com seu termo semântico, mas só passou a existir, na posse do discente, depois que lhe veio, da boca do docente, na sociedade do sintagma em que veio, dentro da frase recebida. Tal sintagma, preexistente, é que se desfaz, sob análise reflexiva, no elemento vocábulo e no elemento morfema. Tal discente, quando lhe chega a vez de falar, toma das frases ouvidas o material das frases audiendas. Fala por frases feitas, não por frases faciendas. Não constrói. Repete o construído. Na variedade da riqueza tradicionalmente acumulada, pode escolher, pode optar, pode estilizar, pode revigorar utilidades esquecidas e arcaicas, pode intrometer na circulação o fruto mutuário que tira de outros idiomas, adaptando-os ou não ao molde vernáculo, pode, quando muito, inventar algum vocábulo... mas sempre se atendo às analogias da língua. Esta é que lhe fornece os elementos do dicendo, tanto mais aceitáveis e inteligíveis quanto mais correntes e vernáculos. Tais elementos são:

a) o molde frástico ou tópico, feito de lugares apropriados aos sintagmas, lugares que a tradição faz variar mais ou variar menos, conforme a abundância desinencial dos morfemas. É conhecido, no pós-românico, a necessidade do molde /213/, em frase como o rei ama o povo, enquanto o latim podia variar: pópulum amat rex /312/, amat rex populum /123/ etc;

b) o molde retórico ou prolatório, feito de um ritmo e melodia que importam responsabilidade semântica. Veja-se, por exemplo, qual a sucessão tonal da frase "você vai", se dita com intenção veicular de conteúdo assertivo ou interrogativo ou admirativo ou cominativo etc. Veja-se a sucessão rítmica da frase "ressuscitou. Não está aqui". Vieira a imaginou, dita por um herege, com a seguinte melo-rítmica: "ressuscitou?. Não. Está aqui.";

c) o molde sintágmico, feito de lugares apropriados a cada um dos elementos que o constituem: o vocábulo e os morfemas fabulares. Pela função que tenha é que tem seu molde cada sintagma. Veja-se, por contra-prova, na fala rústica, a feição do sintagma "os home" ou, na fala suburbana, a feição do sintagma verbal, na frase "falta poucos dias". Não se diz "da sala a por ta", em molde cotidiano, mas "a porta da sala". Embora a intenção poética possa fazer como fez Garrett, ao interpolar os sintagmas da frase "a porta do templo estava aberta em par", cujo molde vulgar, de três sintagmas, é /214/ "a porta do templo" "estava aberta" "em par". Mas o poeta escreveu, invertendo à latina, quebrando os moldes dos sintagmas vernáculos: aberta em par do templo estava a porta;

d) finalmente, a língua fornece a quem fala os elementos de que se faz o sintagma isto é, os vocábulos e os morfemas fabulares.

 

4.

Na medida em que a humanidade mediterrânea, através do indivíduo pensante, foi mentando melhor o seu mundo, racionalmente equacionável, também foram melhorando a hominidade da espécie e o poder fabular da língua indo-européia. Sensoriamente internado e reminiscentemente tratado, na usina vivencial do espírito, o estímulo espacial do proceder fenomênico se foi transfazendo do estímulo temporal da idéia, inter-individualmente sintonizável, mediante a fala de Primo a Secundo. A hominidade, amadurando, como fruto diacrônico, na gleba zoológica de uma espécie que se hominiza, é uma con densação temporal. Escondida no segredo da origem, não se desenvolveu por igual na superfície do globo. Agora e ainda, no espaço da terra, essa hominidade se exibe, diversamente temporal, exibindo, como num corte geológico, certas cotas diacrônicas da marcha: no lado inferior, os níveis infralógicos dos tribais in fra-aristotélicos. Imersos no aqui-agora da simbiose primeira, diluídos na mítica de um Sujeito vazio de tempo, espacialmente abafado pela presença de um Objeto a que não se opõe. Agora e ainda, no espaço da terra, exibe diversidade temporal a nossa hominidade. Exibe cotas diacrônicas de sua marcha, como num corte geológico. Em baixo, os níveis infralógicos do tribal infra- aristotélico, imerso no aqui - agora da simbiose primeira. Consta de um Sujeito que já era isso há mais de cem mil anos, uma espécie de Sujeito ainda futuro, ainda vazio de tempo, diluído na mítica da espacialidade circunstante, gravitando para um Objeto de que não sabe distinguir-se, por não saber opor-se, metido na confusão do eu e do não-eu. Acima, numa espécie de lógica não-aristotélica, mas para-aristotélica, a hominidade oriental, diversamente reflexiva, do homem que internou o Objeto na consciência, não para o reordenar e reger, como se faz no Ocidente, mas para o contemplar, em vasta mitologia, e com ele fundir-se, beatificamente. Mais acima afinal, ordenador do mundo, o homem aristotélico, mediterraneo, afeiçoador da tradição lógica, notário da sucessão, descobridor de receitas com que servilizar a natureza Objeto, adaptando a si o mundo, em vez de a ele se adaptar. Consta de um Sujeito que aprendeu a discriminar-se do Objeto e a ele se opor. É o homem realmente progressivo, nodatamente histórico e diacrônico.

 

5.

Cortemos agora uma digressão que não é sem motivo, por nela se motivarem algumas conclusões de vigência lingüística. Isto, para quem admita que a fala hominizou o homínida: socializando a existência do homem. Abrindo comércio mental entre sócio e sócio. inter-individualmente praticado, a expressão fabular instituiu a didática da espécie, permitindo que Primo, docente, comunicasse a experiência de viver a Secundo discente. Permitiu que se desenvolvesse, após a arte zoológica dos procederes naturais, a arte pós-natural do pensar. Permitiu que cada sócio, após fixar, no tempo reminiscente, a elaboração vivencial de uma idéia, cooperasse com outro, nela instruído, enriquecendo a tradição pré-existente, aumentando-lhe o cabedal da teoria. Não é a sociedade que faz o indivíduo. São os indivíduos que, modelando a socialidade, formam os outros indivíduos, dentro da sociedade. Isto, graças à lição dos procederes que têm, mas graças principalmente à lição das teorias que tenham, fabularmente veiculadas. Ficou para trás, no século XIX, o insuficiente naturalismo dos evolucionistas, que não souberam ver a hominidade do homem, a hominidade de um Sujeito a estilizar em leis pós-naturais, temporalmente equacionadas, as leis naturais do Objeto. Criada a ciência do Sujeito, que essa estilização permite rastrear, não mais se poderá confundir, na ciência do Objeto a ciência da hominidade antrópica. Tendo encontrado o pitecântropo, o evolucionismo teimou na recessão, esquecido do ântropo, que subira da necessidade zoológica para a sua autonomia de homem, Que estilizando a espacialidade gregária, terrestremente horizontal, entrara na verticalidade temporal da economia antrópica:

a) pelas cotas diacrônicas do homem progressivo, escaláveis em cada grupo vernáculo. O nível de sua hominidade corresponde ao nível de sua fabularidade, não como densidade em cada pessoa mas como possibilidade aberta a cada indivíduo. No comum do ambiente grupal há um ponto limite, uma cota de altura a que já pode chegar a hominidade vigente, traduzida nas falas da língua vigente. Aqui e ali, no comum do ambiente, pontos de melhor densidade e vigor, promessa de que nutrirão homens mais hominizados. A possibilidade comum ganhou densidade peculiar, sugerindo a mesma esperança que sugere, ante a planta futura, uma gleba fecunda. Entretanto, a densidade homínica de cada pessoa é uma virtude peculiar, fruto voluntário de opções planejadas, em conjunções previstas e imprevistas, de um destino enfrentado. Segundo essa densidade que varia, surgem sempre os homens destinados, em qualquer grupo vernáculo, de toda cota diacrônica, abaixo e acima da cota aristotélica. Todo povo tem poetas, e heróis, e santos, e videntes, empenhados na batalha da tradição ou na batalha da renovação. São eles que promovem, revitalizando, a hominidade e a língua de seu grupo;

b) podemos admitir que a hominização tem uma escala de passagens multimilenares. Começou no plano zoológico e evolutivo de um pitecântropo avoengo. Sob a lei natural da biologia, era, como outros pitecos, um ser vozeador, mas sem fala e um ser fabricador, mas sem consciência. Vivia na espacialidade aqui-agora da economia zoológica. Vivendo, como outros pitecos, sob a lei natural da biologia, era um ser vozeador mas sem fala (ens àlalum). Era também um ser fabricador, mas sem consciência (ens fabrum). Concentrava a existência, feita de um saber não aprendido mas instintivo, na espacialidade aqui-agora da economia zoológica. Um dia, no segredo longínquo das origens, dois homínidas, vozeando um para o outro, conseguiram veicular no vozeio, mais do que mera expansão, a expressão de uma idéia, inter-individualmente intencionada. Primo oferecia em tal vozeio, para a sintonia mental de Secundo, o incipiente conteúdo vivencial de uma experiência vital. Era o patamar da superação e a conquista do planalto: sobre o plano zoológico da vida, ia erguer-se o plano antrópico da existência, graças à invenção de um proceder especificamente humano, um proceder pós-natural e apozoológico, propiciado de uma receita mais eficaz que a mutação, na intercadência da marcha evolutiva. Com a invenção de tal proceder, descoberta de Primo e Secundo, o ens fabrum sed álalum da escala zoológica subiu a homo faber et loquens da escala antrópica. Abrindo-se o comércio mental entre dois companheiros, a sintonia espiritual pôde refinar os frutos da simpatia biológica. O estímulo da coisa, no agora vital de uma equação fenomênica, pôde ser transfeito, com o veículo do signo fabular, no estímulo vivencial de uma idéia. Na duração reminiscente do outrora. Sobre a espacialidade gregária do animal gregário. A cogitação pôde construir a temporidade com que o animal social vai regendo o mundo, reconfigurado no espírito. O ântropo superara o piteco;

c) pela concentração temporal de seu ideário é que a hominidade supera e converte a espacialidade zoológica. Do aqui agora e vive o bruto, numa espacialidade que rege também o homem zoológico. Mais a hominidade vive de outroras, nos alhures que a mente elabora, remodeláveis na experiência e reeditáveis nalgum futuro proceder. Na lição tradicional de Primo a Secundo, pode estar a contribuição de mudança, de cada indivíduo, na melhora do mundo. Contribuição que cada um pode achar, no segredo equacional dos procederes vitais, e somar à teoria de tal proceder, como fruto viveiicial da experiência

 

Entende-se bem o que é "vital" e "vivencial", nos dois procederes do indivíduo Secundo Primo. O proceder vital é o proceder de um fazer, etimologicamente natural, contido no aqui-agora do espaço, durante a equação indivíduo e coisa. Esta, como Objeto, fonte espacial de estímulos, emite contra o estimulado os estímulos que emite. Ele, o estimulado, responde com algum proceder vital. No proceder vital entra o proceder do estimulante e o proceder do estimulado. A coisa, procedendo ante nós, procede para nós. No que procede para si, embora praticamente acessível, etimologicamente é inacessível, inclusa no mistério da coisa-em-si, pois nossa imagem da coisa não é da coisa-em-si- mas da coisa-em-nós, vinda como um feixe de sensações e elaborada numa síntese de estímulos. É um proceder que, indiferente em si, toma sentido para a nossa vida e a nossa resposta. Vem daí a justeza da expressão "proceder vital". Dizemo-lo etimologicamente natural, semelhante ao dos outros animais, porque a hominidade o faz pós-natural, por derivação, até onde lhe troca as equações zoológicas por equações antropica mente reformuladas, na medida em que o homem rege o proceder da matéria e o próprio proceder.

O proceder vivencial é o proceder de um pensar, contido não no espaço mas no tempo, livre do aqui-agora coercitivo, metido no alhures inespacial da duração, na continuidade reflexiva da vida interior, chamada vivência.

O proceder vital, desenvolvido no espaço, nasce de uma equação indivíduo-coisa. O proceder vivencial, desenvolvido no tempo, nasce de uma equação reminiscente, uma equação de idéias ou lembranças, tomadas aos estímulos vitais. Dos estímulos vitais da coisa nasce um proceder. Úm fazer. Dos estímulos vivenciais das idéias nascem outras equações de idéias, nasce uma teoria do proceder.

Entretanto, o que fez frutificar a vivência, capitalizadora de hominidade. foi o poder fabular da espécie antrópica. Pela fala e que o homem se foi e vai fazendo homem. Através de uma superação pós-natural da fronteira zoológica. Úma superação que deu num concentrado de tempo, deu em hominidade, esta espécie de sobrado que a fala permitiu construir, depois do andar térreo, na gleba zoológica de que o animal homem participa. Na estrutura vital do corpo, a função vivencial do espírito, numa atividade que a vida alimenta.

Está sempre fechada, no mutismo zoológico, a vivência do bruto, ainda quando superior. É uma pobre vivência intransitiva, na franja das equações instintivas, biologicamente armadas pela evolução natural. É uma estreita lembrança de estímulos, espaciais aderida ao aqui-agora da coisa, de fraco rendimento criador, embora nos maravilhe a sabedoria de certos animais, principalmente insetos, capazes de operações equacionais de complexa e próvida previdência. Tal sabedoria contudo, como sabedoria não aprendida mas infusa, não é do indivíduo, mas da sua espécie, misteriosamente economizada pela sabedoria da vida. Espacializado e acrõnico, além de intransitivo, o indivíduo zoológico não temporiza nem capitaliza o saber. Não passa lição a discentes, nem diacroniza, através de gerações, o fruto tradicional da experiência. Úsa, sem consciência, de uma didática mecânica, rudimentar e prática, motivada no mimicismo zoológico. Na hora oportuna, o genitor inicia o filhote, com gestos lúdicos, na estrutura fundamental dos procederes patrimoniais da espécie. Fechado no intransitivo, o bruto move-se e vozeia, com procede res que o outro pode copiar, segundo empatias do simpático e do antipático, mas, por falta de veículo apropriado, não pode comerciar mentados, não pode suscitar no companheiro uma idéia que, aliás, não tem. Vive vivendo e sem pensar.

Um dia, entretanto, haverá quinhentos mil anos e mais, surgiu a via da superação, no proceder de certos indivíduos de uma predestinada família zoológica. Nesse dia, entre a contigüidade espacial do convívio, Primo conseguira manifestar a Secundo, na intenção de um gesto e de um vozeio, a luzinha semântica de um sentido, afeiçoando assim, num ato rudimentar de fala, o signo fabular. No espaço teatral em que os dois se encontravam, a presença da coisa estimulante, acessível à referência visual do gesto, bem como à referência auditiva do vozeio concomitante. Vista a utilidade do proceder, o mais foi questão de tempo, no esforço de estilizar vozeios intencionais que mesmo sem o gesto, mesmo na ausência da coisa, pudessem despertar nos dois a imagem da coisa, provocando assim uma sintonia de idéias ou lembranças: na emissão vozeada de Primo, a idéia da coisa em Primo. Na recepção auditiva de Secundo, a idéia da coisa em Secundo.

Era o início do proceder fabular, no patareú da superação, momento mutacional da hominidade, com sucessão, após um ritmo zoologicamente evolutivo, de um ritmo pós-natural e progressivo devia ter sido, no começo, um proceder travadamente infrafabular, cheio de contingência espacial, mais visivo que auditivo: soltos vozeios assintáticos, imersos na sintaxe do gesto e das presenças teatrais. Seria uma fala vito-vivencial e pragmática, mistura de um fazer e de um pensar, numa representação mental entremostrada. Mas a prática de partir da idéia e não da coisa, por estímulo mental de uma experiência vivida, foi permitindo entre os dois, no agora do ato, a revocação dos outroras, a extensão da lembrança e o vigor das ausências, cada vez mais possíveis de surgir, como representação, nas intenções de um vozeio bem estilizado e veicular. Na medida em que cresceu, no sintagma fabular, o poder auditivo, a fala se foi fazendo um contexto fabular, isto é, um contexto de vozeios, reforçáveis por adminículos visuais do contexto díctico e achegas visíveis do contexto teatral. Principalmente porém, fez-se vivência, integrada na função interna do pensar (fala coloquial) e na função interna de veicular até Secundo as vivências de Primo.

Melhorando-se, a hominidade melhora o mundo. Somando os frutos tradicionais da cooperação inter-individual. Mas há na marcha um grave desajuste, que retarda o progresso moral e deixa avançar o progresso técnico. Isso tem causas que não cabe relatar aqui mas a que se pode aludir:

 

c.a) a hominidade não se distribuiu por igual na espécie humana. É incerto o ritmo do homem progressivo, posto que definidamente superior ao ritmo evolutivo, escuramente vagaroso. Exibe-se na face da terra uma espécie de amostra geológica das várias idades temporais do homem. Dentro da diacronia geral, diferem no espaço as cotas particulares da diacronia grupal e as cotas individuais da diacronia intra-grupal. Há hominidades retidas na marca infra-aristotélica de há talvez cem mil anos. Medindo-se a diferença, compare-se o pensar ocidental com o pensar vernáculo de algum tibetano, ou um nativo tribal da Nova Zelândia, há muita humanidade sem tempo, adicta à mesquinha espacialidade iterativa de seus agoras. Integrada, aoristicamente, numa vaga fenomenologia espacial, vive a repetir, num hoje passivo, um ontem sem pretérito, isento às sugestões da renovação criadora. Incapaz de se projetar no depois, sujeita-se a um futuro sem porvir, do tipo sem novidade, como o que se noticia nesta frase: "o sol nascerá amanhã";

 

c.b) somente na linha da civilização mediterrânea foi que se cuidou do progresso, racionalmente equacionável, dinamicamente aristotélico. Depois do potente milênio romano, helenicamente aculturado, e do sumido milênio românico, espiritual mente refinado, veio o ritmo vivo seguinte, promovido a prestíssimo nos dois últimos séculos. Entretanto, mesmo no Ocidente e mesmo entre os sabedores, não foi grande o número de sábios. Além disto, quando algum deles, dominando a matéria, inventava uma utilidade mecânica, disposta para o bem, logo se via ela pervertida, para o mal, no ignorante e apressado egoísmo de muitos. Ainda não deixaram de pesar, nossa hominidade recente, esperteza ignorância e cobiça. Retém-se no homem novo o homem velho, chumbado a uma saudade animal de centimilênios. É uma tenacidade que vence a virtude antrópica, neutralizando-lhe o poder de sublimar a herança zoológica, levando um ser humano a transmudar, no vício e vileza de seus procederes, o que era um dom natural no proceder zoológico;

 

c.c) O século vinte, para cúmulo de males, trouxe duas agravantes anti-homínicas: a pletora demográfica do mundo e a velocidade mecânica de nossa pressa. São duas fontes de alteridade, dois empecilhos do ensimesmar-se, ativos na função de manter o Sujeito, constantemente, desde as janelas de si mes mo, a olhar para fora. Mal servindo para alguma instrução, o tempo não chega para se formar um educando em hominidade. Sob a avalanche da massa humana, seriamente produzida, a escola, sem tempo de formar o homem, apenas faz um técnico de um bárbaro, cada vez mais relegado à barbárie nativa, segundo tem crescido insaciedade técnica. De tal dificuldade nos alertara Ortega, em 1930, antes que se agravasse o problema da pressa, mecanicamente favorecida pela agilidade frenética de agora. A máquina alterou a paz rotineira de velhos hábitos milenares, introduzindo na vida uma solicitação espacial que a hominidade não suporta, visto viver de tempo e não de espaço. Com a pressa mecânica, sob a pressão de alteridades que saturam a capacidade vivencial, é obrigada a manter-se na superfície de si mesma, quase como na constante vigília zoológica de um animal na selva. O ritmo do tempo homínico está longe de estar sincronizado com o ritmo de nosso tempo mecânico;

 

c.d) registremos ainda, como alegação derradeira, uma causa de origem cultural: o atraso da Ciência do Sujeito, ante o grande progresso da Ciência do Objeto. O animal não tem um dentro em que olhar, no seu vazio de tempo e de idéias. A hominidade está nesse dentro, construída pelo Sujeito, na ba se do homem zoológico, a partir de procederes espaciais, cujos estímulos, sensoriamente internados no espírito, a vivência elabora, ao longo dos lazeres da duração reminiscente. Daí a atenção que o Objeto provoca, nos procederes que tem. Mas foi no olhar para dentro, com seu olhar de Sujeito, que o homem ordenou o mundo, num mundo representado, resposta temporal do mundo espacial. Ordenando o mundo no espírito, foi criando a Ciência do Objeto, ciência de uma espacialidade que repercute no Sujeito através da captação, naturalmente espacial, do homem zoológico, também espacial. Mas se o homem zoológico está no espaço, o homem antrópico está no tempo, tempo com que se tece a hominidade do Sujeito. O primeiro, animal entre animais, estuda-se na Ciência do Objeto. Mas o segundo, antrópico e específico, estuda-se na Ciência do Sujeito. Entre os enganos que nos atrasaram, na observação da hominidade, consta o zelo fisicista do século XIX, quando pelejou para explicar o homem naturalisticamente, ao se esquecer de regressar da incursão que fizera no reino dos pitecos. Dentro da evolução pode explicar-se o homem zoológico, ainda evolutivo, não porém o homem antrópico ou progressivo. A hominidade é uma criação pós-natural, cuja estrutura não cabe nas conclusões naturais da zoologia e da biologia, e nem tão pouco, bem se vê, nas conclusões zoológicas da psicologia e da sociologia. Como concentração de tempo, afeiçoada na diacronia de seus procederes tradicionais e progressivos, a hominidade identifica-se é na História. Através dos feitos do homem sobre a terra, mental mente formulados em teorias que o comércio mental foi melhorando, veiculado na expressão fabular que correu entre Primo e Secundo. No dia em que a didática fizer valer a diferença que vai da Ciência do Objeto à Ciência do Sujeito será possível então, com melhor conhecer, planejar melhor a correção de nossos desajustes.

 

d) Admitimos que é só uma, etimologicamente, a hominidade da espécie. Única mas não una, visto que oscila, na superfície da terra, entre a densidade eficaz do homem do Ocidente e a inatualizada rarez de mentes retardadas, na franja de há cem milênios passados. Primeiro foi a superação da cota zoológica, iniciada com a invenção fabular que, veículo de idéia, fomentou a indústria mental, cooperativamente desenvolvida e tradicionalmente capitalizada, desde os membros da primeira humanidade. Mas o homem, nos espaços do globo, teve de vegetar, por muitos centimilênios, com os parcos juros de sua ca pacidade criadora, até que vencesse outra grande barreira, quando superou, não faz três milênios, a cota infralógica. Foi o milagre mediterrâneo a instituir, sob a lição dos Aristóteles, a maioridade racional. Em lugar da razão folgada, entrava em serviço a razão ativa, entregue ao labor de ordenar o mundo, na tarefa de um Sujeito que aprendera a enfrentar o Objeto.

Sendo assim a diacronia geral, é possível que a lingüística possa encontrar, numa língua amplamente histórica, matéria bastante para suas conclusões. Pressupomos, bem se vê, a língua indo-européia, cujo patrimônio de expressão, nos momentos diacrônicos de sua existência, coincide, no pesquisável, com um resumo da marcha do homem progressivo. Isto, desde a idade mágica primeira, até a idade lógica de agora.

A língua indo-européia, na linha de sua melhor fecundidade, veiculando o milagre helênico da razão, veiculou também o fervor didático daquele proselitismo helenizante que, soprando em toda a concha mediterrânea, renovou o ritmo e o teor da hominidade. Com essa racionalidade, primeiro latinizada e depois batizada, Roma fomentou a hominidade ocidental. Mediante um latim helenicamente aculturado, num ritmo de inteligência que depois se repetiu, faz quinhentos anos, na reaculturação clássica dos dialetos da área românica e da área germânica. A história do latim românico, filologicamen te pesquisada, forneceu modelos à lingüística, no miúdo rastreio do cognatismo indo-europeu. Na via diacrônica dos dialetos de hoje, basta ir recedendo por estados anteriores para se chegar aos convincentes indícios de um estado visto como primeiro (dentro da possibilidade recessiva), posto como limite, não da diacronia mas da pesquisa. Chamou-lhe a convenção "indo-europeu", língua matriz do que veio depois. Foi onde a busca parou, incapaz de subir a fonte mais alta, imaginando para além os centimilênios restantes.

Apesar de saber que estados posteriores de uma língua não são "línguas" mas estados posteriores da língua, a rotina tem mantido o pluralício "línguas indo-européias", dentro de um critério não metódico mas nativista. Saussure, por exemplo, em vez de dizer que o francês é o indo-europeu num seu esta do de agora, diz que são indo-europeus quatro quintos do francês (CLG, 235).

Preferimos o rigor da idéia "língua", tecnicamente merecido pela expressão "língua indo-européia", historicamente identificável, desde um seu estado de agora, até um seu momento mais antigo, na raia de pelo menos 40 séculos. Sua diacronia, vista na linha mediterrânea, pode ser demarcada em quatro largas fases milenárias:

 

I. para trás do 5°. século pré-cristão, no ultra-milênio anterior ao latim, a fase pré-romana. Aabrange o período em que o indo-europeu primeiro evolveu para a língua de Cícero;

 

II. no milênio seguinte, a fase romana, durante cinco séculos pré-cristãos, seguidos de cinco séculos de cristianismo;

 

III. nos dez séculos imediatos, até a madurez neo-latina do século XV, a fase românica, precipitada pela aculturação alodialética dos germanos desde o V século e pela aculturação aloglótica dos árabes;

 

IV. finalmente, com cinco séculos vigentes, e ainda aberta à diacronia de sua marcha, a fase pós-românica.

 

 

6.

A fase pré-romana corresponde ao que a rotina chama "indo-europeu". O seu momento sub-histórico, no lento ritmo sub-homínico de então, fica para lá de 40 séculos, antes do hitita, dialeto indo-europeu que a cronologia situa a dois milênios antes de Cristo. É uma fase hipotética, de uma língua s em falas, de que não ficou documento, posssivelmente por anterior ao hábito da fala escrita, o hábito de visualizar com letras a expressão fabular. Seria língua, pois, de gente oral e agráfica. Por isso é que não se tornou gramaticalizável, apesar de Schleicher, faz um século, haver tentado, iludido com o a original, uma fabuleta de dez linhas, sobre a ovelha e o cavalo, avis akvasas ka, epígrafe que a lingüística seguinte, mesmo sem a coragem de repetir semelhante ousadia, teria corrigido para mais ou menos, ouis ekuos que. [cf Gray, Foundations, 440]. Não sem razão disse um entendido (parece-me, Vendryès) que o indo europeu é língua em que se pode saber como se diz cavalo ou como se diz correr, sem nos haver, porém, mostrado como se diz "o cavalo corre". Não passa de um patrimônio de raízes, metodicamente deduzido, por comparação de seus vários estados posteriores, principalmente nos dialetos grego, sânscrito e latim, lingüisticamente clássicos. Reduzindo morfias comparadas, à luz diacrônica das tendências fônicas, chegou-se a um elenco das raízes. Não se chegou porém à mesma segurança, relativa mente aos sintagmas da frase, ante a mobilidade dos endereços sintáticos. Apesar de identificados os oito casos do sânscrito, não se chegou a melhor certeza quanto aos morfemas fabulares desse primeiro indo-europeu; (relembramos que o sintagma, unidade atual da frase, consta de uma base ou vocábulo, devidamente endereçado por um morfema fabular).

Insistimos nessa notícia da fase pré-romana, pela importância que tem, na tese de que chega, para as conclusões de uma lingüística geral, o estudo da língua indo-européia. Funda-se isto na tese da hominidade única, diacronicamente concentrada, através dos milênios, como essência analógica de uma crescente mesmice.

Cumpre admitir que a hominidade é uma concentração de tempo, vivencialmente elaborada no espírito, ao longo de uma longa diacronia, segundo as atividades mentais do homem antrópico, a partir das experiências vitais do homem zoológico. (Esta explicação, bem se vê, não supera as fronteiras de uma observação endofísica, abaixo da explicação metafísica, perquiridora da etimologia primeira). Foi pensando assim que já identificamos o homem como sendo uma expressão espacial em busca de uma tradução temporal.

Hominizar-se é, pois, temporizar-se, mediante uma sutil concentração de condicionados reminiscentes, que a iteração vital sustenta, com seus estímulos espaciais, mas a tenacidade vivencial desespacializa, convertidos em mnemiatos idealmente elaboráveis, guardados na duração. Acontece que o exercício do tempo, segundo a diacronia indo-européia, é uma função de origem quase especificamente mediterrânea. Um coeficiente helênico da contemplação dinâmica, hoje ocidental, diversa, como dinâmica, da gratuidade oriental, bem como da vigilância, mais ou menos zoológica, da sub-hominidade tribal. É notícia corrente, entre os lingüistas, que o sintagma verbal do indo europeu primeiro saberia exprimir aspectos vários de um proceder, mas não tempo; quem vivia do agora, não precisava atender às débeis solicitações do antes e do depois. Ampliada a capacidade e o cuidado reminiscente do homem, a língua foi recebendo, no seu estado grego e latino, o poder de veicular a discriminação temporal, mediante morfemas verbais que distinguissem, no pro ceder noticiado, posições do passado e projeções do futuro. Que o futuro é incerto no tempo e não seguro na expressão, a mesma diacronia latina o foi mostrando: na fase romana, além de adaptar, ao novo serviço antigos morfemas de outro sentido, como no futuro do tipo legam leges, inventou o futuro itálico do tipo amabo amabis. Depois, na fase românica, trocou os dois tipos romanos pela formação perifrástica do tipo ama rei amarás.

Como prova de que o exercício do tempo foi uma função vivamente mediterrânea, levantemos de passagem uma informação de Meillet (Ling. hist. et ling. gén., pag 5) quando diz que o indianista é obrigado a pedir à Grécia e à China, para os textos sanscríticos, as datas que estes omitem. Trata-se, bem se vê, do texto e não da língua. Mas concorda bem com a índole do povo uma tal descarência do cronológico, afinada com o menos cabo da vida terrestre, nos seus limites temporais.

 

7.

Da fase romana em diante, a língua indo-européia, através do latim e do grego, esteve a serviço da hominidade aristotélica, desenvolvida num homem cada vez mais temporizado, o homem ocidental, de razão ativa, aprendiz de Sujeito que se opõe ao Objeto, fazendo-se ordenador do inundo, num mundo que foi internando no tempo da consciência, aí o submetendo a reformulações equacionais com que volta à espacialidade do Objeto, afim de lhe ditar procederes. Para trás, na fase pré-romana do primeiro indo-europeu, a língua do homem infra-aristotélico, provido de uma sub-hominidade variamente graduável, na lenta escala progressiva de seus muitos milênios. Não há com que realmente definir essa primeira hominidade indo-européia, com sua língua para nós sem falas. O melhor jeito de aconfigurar, hipoteticamente, está na sub-hominidade tribal dos nativos de hoje, existentes ainda na face da terra, estudados por curiosos, por sociológos e lingüistas. Não há jeito de se interpretar bem a mente do homem primitivo, na ucronia ou não tempo de sua existência, ainda vazio de Sujeito, com seu débil cabedal de vivência, abafado pelo Objeto, anterior ao progresso da ensimesmação, vigiando se das alteridades constantes, na luta do dia, e até no recolhimento da noite. Fica longe, a quinhentos milênios, quem sabe, esse tipo de homem arcaico. Mas há também a média hominidade, com uma feição de há cem milênios, mais ou menos presente, ao que parece, na feição de certas tribos de hoje. Ficaram demorando no passado, talvez até regredindo, sob um relógio diacrônico de outro fuso... é fato porém que essa arcaíce esconde, na sugestão do primitivo, centimilênios de uma tradição não bem aproveitada. Estudando essas tribos, na língua e na mente, o glotólogo pode fazer uma idéia do que seria o poder fabular do primeiro indo-europeu: entre o dia e a noite e as estações, a sucessão aorística do tempo, mais ou menos concentrado num agora sem antes nem depois. A fantasia mítica do mundo, cheio de seres maléficos e benéficos, submissos ao poder de um rito mágico. Ritos capazes de obter o que é bom, com seu poder endotrópico, ou de afastar o mal, com seu poder apotrópico. Ofícios de encantamento e coerção: coisas eficazes, gestos e fórmulas fabulares invencíveis. Simpatias e antipatias. Minuciosos códigos do fazer e do não fazer. Filiações totêmicas do clã. Ritos de guerra caça e pesca. Ritos da chefia, do sacerdócio, da integração social do adolescente, do casamento, da punição, da morte, da sepultura... uma infinita gama de obrigações ingenuidades e durezas, num todo que muito espanta o homem aristotélico...

Para se chegar à idéia de que essa mente infra-aristotélica, presente na sub-hominidade tribal de hoje em dia, era a mente também da fase pré-romana, basta examinar com paciência um dicionário da etimologia indo-européia, como, por exemplo, o Dicionário Latino de Ernout e Meillet. Ao longo de seus verbetes há uma suficiente série de informações que chegam para se ver a definida parecença. Em verdade, por sob a diferença adjetiva dos dialetos tribais, na clara distãncia estrutural do veículo chamado língua, corre, substantivamente, a mesmice homínica dos agrupados humanos, com um teor que ainda mais se parece, quando corre a hominidade dos dois pela mesma cota diacrônica: oito tipos de fala e frase.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

Informações e imagens podem ser copiadas para uso educacional,
sem finalidades comerciais, desde que citada a fonte. Para outros usos,
entre em contato:
joselourencooliveira@terra.com.br.