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Lingüística e Filosofia da Linguagem

LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA

 
 

Comunicação apresentada ao Simpósio de Filologia Românica pelo Professor J. Lourenço de Oliveira, da Universidade de Minas Gerais, 18.8.1958, e publicada em Anais do Primeiro Simpósio de Filologia Românica, Rio de Janeiro, Ministério de Educação e Cultura, 1970, p. 101-113.

 

O FATO E A TEORIA
Ex fabula lingua.

Inserido nas leis gerais da vida como unidade biológica, mas superando o plano biológico pelo plano do espírito, o homem criou sua própria estrutura do seu ser histórico. Se o animal é uma máquina de vida, o homem procura ser um mecânico da vida. E é uma expressão espacial em busca de tradução temporal.

Em presença da coisa, que tem preso um sentido, reage o animal. O homem porém, acumulando no tempo reações que interioriza e por que libera o sentido, aprendeu a reagir tanto ao sentido da presentação como ao sentido da re-presentação: ao sentido da coisa e ao sentido do signo. Em presença da coisa, dois irracionais podem sintonizar uma reação. Dois racionais, até na ausência dela são capazes de trocar inteligência, mediante os signos. Só o homem, sendo capaz de representação, é capaz de comunicação mental..

Exercendo, por meio de falas, o misterioso dom da linguagem, a humanidade forjou devagar um instrumento de expressão chamado língua. Os signos vocais, agarrados primeiro a um contexto presencial concreto, progressivamente depois se foram desprendendo. Deve ter sido uma lenta liberação do homo loquens, a enriquecer de replenação imaginosa o vocábulo, que ia melhorando de eficiência simbólica . Assim ergueu a linguagem comunicante acima da base geral, meramente expansiva, da linguagem animal. Ia enchendo de representação mental a sintonia fisiológica da reação presencial, unida a vozes que se fizeram veiculares, vozes intercambiais, valores fiduciários da comunicação.

Ato social, a fala socializou o homem, desenvolvendo o animal social, o zóon politikon, elevado acima da gregarice irracional. Das falas de Primo foi nascendo em Secundo um estado de língua, estado individual repercutido de efeitos sociais. A língua e um depósito pessoal, feito de reflexos sociais - como o próprio homem, ser crescido à imagem e semelhança do meio que o plasmou.


O MÉTODO

Como animal histórico, nutrido, de intussuscepção vivencial, o homem estendeu o seu mundo em projeções de presente, passado e futuro. Querendo ser homo sapiens fez-se homo etymologicus, voltado para as origens, teimosamente inclinado sobre a rampa do pretérito. Compreende-se por isto que a lingüística tem de ser histórica, pois estuda a expressão de um ser determinadamente histórico. Ela deve estender-se no espaço e mergulhar no tempo, não mediante operações desrelacionadas, mas olhando os fatos no quadro de suas coordenadas espacio-temporais.

Desde que, reduzindo dialetos, aprendeu a configurar o espectro da língua indo-européia, ela adquiriu essa obrigação bidimensional, exigida pela projeção do objeto estudado.

A língua que nasce filtrada em Secundo das falas de Primo, já nas ce e cresce dialetal, urgida de seu sentido metamórfico, e metassêmico, evolvendo com a marcha histórica do grupo, constrangida nos efeitos do solipsismo espacial e dos distanciamentos étnicos. Quem está perto me nos percebe. Só a perspectiva dos séculos o sabe mostrar, pelo confronto dos momentos, É como o ponteiro das horas, que parece imovel, junto à pressa trepidante do ponteiro dos segundos.

Um dialeto que evolve e um dialeto que envigora e fulge, no esplendor social, ou que mirra e senesce, na miséria das decadências. Ora segue e persiste, sob a misericórdia dos fados, ora cede à invasão e desaparece.

Embora as oposições étnicas lhe chamem línguas, todo estado posterior da língua indo-européia é um dialeto. Os dialetos são outros tantos estados posteriores. Só a língua e uma, embora não una, por estar sempre movida de energia evolutiva.

Ante nossa contemplação, ela é sempre anterior ao indivíduo, que a recebe feita, nas falas de seu clã. Entretanto, no dia em que, como Primo, começa a falar, aí começa uma contribuição de mudança, tingida nas oscilações do social, pois o homem afina o que diz nas repercussões que a vida lhe imprime na alma.


O ENGANO

O fato de a anterioridade observável ser a da língua gerou uma aparência de primazia que tem sido nociva à metódica. A pesquisa, em vez de estudar falas e delas extrair a língua, logo instalou a língua como coisa em si. Em vez de primeiro explicar a língua pela fala, primeiro quis explicar a fala pela língua. Em vez de enxergar na língua um recurso de expressão forjado pelo homem, quis descobrir nela, misteriosa, uma expressão da natureza, uma tradução do mundo, um valor sobreposto ao homem e seu poder.

Ora se a língua, lembrança na memória, e um recurso mental, então ela não é fora do indivíduo nem superior ao seu poder. Aquela intangibilidade asselada pelos neofisicistas proveio de não terem eles observado, socialmente, a capacidade mímica do homem. O mudar que tanto os preocupou há de alegar-se, não em termos de "poder", mas em termos de "querer'. E fica visto que o indivíduo, comumente, não quer mudar a língua. Está no j eito de sua economia vivencial ir repetindo o que o grupo repete. Entretanto, mesmo pensando que repete, talvez matiza a expressão de algum efeito pessoal, veiculado pela recepção inter-individual. Sem querer ou por querer, o indivíduo influi mudança, altera n do a retransmissão, já por ter ouvido mal, já por não ter sabido repetir bem, já por se haver levado de impulso pessoal.


AS LEIS

Do ponto de vista da prolação fabular, se há leis para a evolução da morfia fônica não são leis da língua e sim leis da vida, instaladas no plano biológico ou no plano psicológico.

Do plano biológico é por exemplo o limite imposto à capacidade do aparelho de fonação, instrumento dos talvegues fônicos, leitos de expressão do fonema roteados pela ação prolatória do exercício mímico. Por um confronto poliglótico, pode ver-se de quanta habilidade fônica o aparelho e capaz, embora a prática o reduza a fronteiras menores, na economia peculiar de cada dialeto, sempre limitado em fonemas. Educa-se neles um indivíduo que poderia ter sido educado na prolação de muitos outros, se fosse criado em muitas línguas.

Esta conceituação, diversa da conceituação neofisicista, olha a evolução da matéria vocabular como fruto de um deslizamento de talvegues, nascido de impulsos que a observação pode anotar, longe porém de os atribuir a regularidade mecânica. É um deslizamento que a consciência dirigida poderia impedir ou desviar, mediante exercício de adestração.

Catalogar valores fônicos de uma língua é trabalho que nos tem levado a excesso de "foneticismo". É serviço que tem vantagens e ajuda na educação. Entretanto, se o que visa a lingüística é interpretar o fenômeno língua, então deve recorrer ao plano psíquico e não ao plano fisiológico.

No plano espiritual estão dois grandes regedores da língua: o princípio de analogia, inspirador da nivelação a que tende a morfia estrutural, e o princípio de economia psíquica, regulador da energia prolatória, redutor de abundâncias mórficas, contrator de massas fônicas. Balanceado pelas reações do impulso de clareza e do impulso de ênfase, a economia psíquica influi economia mecânica.


OS CONTEXTOS

A unidade da fala é a frase.

A frase é um todo feito de sintaxe vocabular, mergulhado numa sintaxe de contextos não vocabulares. Um ato de fala consta:

(1) do contexto fabular, feito de "vozes";

(2) do contexto teatral, feito de um espaço ocupado pelas presenças de Primo, de Secundo, e das coisas;

(3) do contexto mímico, feito de atitudes, teor fisionômico, gestos dícticos e plásticos.

Observe-se bem que a língua não filtrou sua densidade e colorido só das palavras que hoje podem representar todo um conteúdo de mensagem. Tudo que alcançou, foi coando devagar, de uma infusão de contextos cooperativos: primeiro deve ter sido o gesto presencial, sublinhado pela voz; depois, no progresso, a voz sublinhada pelo gesto - adminículo espontâneo que a plenitude fabular foi reduzindo, mediante enriquecimento da fala da ausência e, sobretudo, da fala escrita que é uma fala de ausente.

A interpretação da fala pede exame a dois outros contextos, intimamente relacionados: o contexto pessoal de Primo, tingido de subjetivadades, e o contexto social - feito de meio humano espaço e tempo - conjunto de fatores que se modalizam no contexto pessoal.


OS MOLDES

Um ato de fala contém a comunicação de uma forma psíquica veiculada numa forma fônica, modelada na matéria da voz. Constitui o contexto fabular.

Do estudo de sua estrutura, feita de palavras, melodia e ritmo, surge a figura dos moldes,: o molde frástico, o molde melódico e o molde ritmico. O molde é uma configuração mental, abstraída das falas, instaladoras do uso. Deles e que Primo se lembra e vale, na hora da fala seguinte. A frase e da fala mas os moldes são da língua. São objeto de uma sintaxe da frase, frangida em sintaxe dos sintagmas, parcelamento que gera a figura do molde sintagmático.

Essa marcha que da fala vai à língua é uma operação racional. Espontaneamente não e assim, pois a língua chega ao indivíduo por instalação psicológica, na lenta ruminação de suas vivências banhadas em falas. Na hora de como Primo exprimir-se, então lhe serve a memória as convenientes lembranças: o molde da necessária forma vocabular, os distribuídos sintagmas em seus lugares, vestidos de sua melogia e do seu ritmo prolatório.

A frase de estado arcaico, nascida de mentalidade pré-aristotélica, oferece resistência ao logicismo do conceito oração. O seu contexto fabular, fortemente agarrado à sintaxe do contexto teatral e do contexto mímico, impede-se nos elementos "aqui e agora" - o que o deixa nocionalmente pobre, carecido de seus apoios na visualização da fala-de-corpo. Os dialetos indo-europeus estão cheios de persistências assim, estruturas truncas da expressão emotiva, que a análise interpreta parafrasticamente. Em ritmo com a eficiência discriminadora do espirito, foi corando-se na discriminação expressiva, a conveniência entre sujeito e predicado. A frase foi tomando dimensões que igualam ou superam as da oração.


FORMA FÔNICA

Com licença de Saussure, vamos especificar o sintagma como elemento funcional da oração. O sintagma e univocabular, constando de uma palavra, ou então plurivocabular.

Palavra e uma simbiose fabular do vocábulo e do termo, realizada pelos morfemas.

Morfema (sintático) e aquela sugestão de endereço, realizada na frase por alguma deflexão mórfica, posicional, melódica, rítmica,

O morfema sintático e um morfema frástico. Não é um morfema vocabular, pois o estado vocabular é exatamente o estado de nudez, fruto da análise desmorfemadora. O morfema não pertence ao vocábulo e sim à língua, da qual saem os dois, para o serviço da frase.

Realizando a simbiose fabular, do vocábulo e do termo, os morfemas frásticos endereçam a noção às categorias funcionais e situacionais da fala.

Ao morfema frástico, elemento relacionador, fica-lhe bem o nome de morfema sintático ou o de morfema categórico.

Além das categorias do nome e do verbo - assim mal nomeadas, pois a cataegoria é da lógica e não da servilidade vocabular - tem faltado à gramática dar seu cuidado às categorias do contrexto de situação, feito de espaço teatral, campo de exercício da díctica relacional e que a fala, mediante "vozes" de alusão, converte em espaço fabular, espaço de sucessão, transformado o díctico em anafórico.

O morfema de presença mórfica - diverso do posicional, do melódico, do rítmico - ou é morfema encadeado, como flexão, ou morfema livre, com aspecto vocabular e conteúdo relacional. É uma espécie de sub-vocábulo, pouco feito para a função de palavra.

Ao morfema sintático opõe-se o morfema semântico, morfema vocabular que, unido ao semantema, lhe altera as dimensões do conteúdo: pedra pedrada pedreira fazer refazer... É um morfema nocional que se estuda num sub-capítulo da semântica - a morfologia vocabular semântica, diversa da morfologia vocabular fônica.

Vocabulos e morfemas, elementos da língua, servem à fala, na apos simbiose da expressão. Com os vocábulos a, solitário, lua, estrada, banhar começou o poeta a construir uma paisagem: a lua banha a solitária estrada. Com cinco vocábulos armou três sintagmas: um nominativo, um verbo e um acusativo. E terminou com a mesma frase, depois de introduzir uma permuta no molde frástico: a lua a estrada solitária banha.

Desmontando sintagmas de falas é que um observador pode configurar a morfologia, esse jogo de sugestões funcionais, evidenciável na diferença entre morfemas e semantemas.

Ordenando a valia dos contrastes relacionais ou morfemáticos, obtém-se o capítulo da morfologia fabular ou morfologia da frase e que não e morfologia vocabular.

Desculpe-se o monótono, mas insistimos em que a morfologia vocabular de nossa tradição está enganada: atribui a vocábulos o que é da frase e da língua. É uma ignoratio elenchi em matéria importantíssima, substância da própria estrutura da língua. Chama-se tal morfologia de morfologia fabular, frástica ou sintagmática.

Para o vocábulo existe - ou morfologia vocabular fônica ou morfologia vocabular semântica. A primeira e fonética; a segunda relaciona sentidos cognações e origens.

A sedução vocabular, que fez antepor à sintagmática uma falseada morfologia, fez também que a metódica deixasse de começar pela fonética sintagmática, por onde entraria bem, entrando pela estrutura fônica da frase - melodia, ritmo. e efeitos fônicos fabulares. Da fônica da frase é que se passa à fônica do vocábulo, da silaba, do fonema. Das imagens presentes na fala e que se extrai, para valores de língua, a figura do molde vocabular, do molde silábico, do molde fonético.

É inteiramente outro o mundo que se revela aos olhos de um observador cuja análise partiu da fala. Aí se reduz o vocábulo à sua correta modéstia servil. Se a fala são frases e a frase são sintagmas e o sintagma um arranjo de vocábulos e morfemas, entao o vocábulo e um pormenor do pormenor. E a fonética, por isso mesmo, um pormenor do pormenor do pormenor. Tema substantivo para a fisiologia ou para a física, ela não passa, para a língua, de matéria tranqüilamente adjetiva - um expediente útil na adestração prolatória. A lingüística deve ter mais que fazer do que ficar zumbindo, vocabularmente, na colmeia sonora.


FORMA PSÍQUICA DA FRASE

Apesar da preeminência vivencial do vocábulo, a essência da fala não está na matéria fônica - matéria que a análise vocabular desmonta. Está sim na "intenção" de Primo, numa síntese espíritual que essa análise não revela.

O que arrastou a lingüística a desvarios e exageros como os do atual foneticismo, foi, além do velho efeito vivencial, o fervor cientificista do século XIX, ao tentar reduzir a limites irracionais e externos um produto da atividade criadora do espírito, uma crase de fantasia e estesia.

O estudo da forma fônica deve subordinar-se ao estudo da forma psíquica, juntando a morfologia da fala à semântica da fala.

Como faz a morfologia, também a semântica pode abranger a frase, o sintagma e o vocábulo.

A semântica da frase estuda-lhe aquele sentido feito de sentidos, marcados por endereços funcionais, isto é, por elementos de forma nesta f(ô)rma de dizer que são os moldes. Aí vai a semântica pesquisando influxos que podem emanar da posição dos sintagmas dentro do molde frástico; ou de morfemação dos sintagmas dentro do molde sintagmático; ou dos efeitos de acentuação, dentro do molde melódico, e de compasso, dentro do molde rítmico.

Em tais caracterizações é que se aninha, variamente, o sentido de uma frase que seja expansiva, interrogariva, injuntiva, deprecativa, desiderativa, enunciativa...

A semântica do sintagma plurivocabular estuda a localização do sentido sintagmatico, exibido na relação entre regente e regido, através do regime. É uma relação binominal que se acha em toda estrutura de f ala.

A gramática escolar tem o costume de ir da análise léxica à análise sintática, deixando de exercer o aprendiz na mais importante das análises que e a análise binomial de cada sintagma. O estudo da relação regente x regido, da relação a x b, vista em sua intimidade, exibe os melhores segredos da estrutura frástica. Uma boa análise, começando na fala com sua mensagem, passa á.fra se com seus moldes chega à oração com seus sintagmas e desce ao sintagma com seus elementos. Aí, no sintagna, é que se produz a evidência do vocábulo.

A semântica do sintagma univocabular recenseia os sentidos a que o vocábulo costuma servir, na imersão fabular. Tais sentidos se revelam em confrontos de toda fala e uso, no tempo e no espaço. Sentidos que se fio: costuma servir, na imersão fabular. Tais sentidos se revelam em confrontos de toda fala e uso, no tempo e no espaço. Sentidos que se vão trocando, por esquecimento do anterior, ou se vão acumulando, por coexistência. Faz-se um dicionário.

Na semântica do sintagma é que poderia caber algum capítulo sobre as partes do discurso, famoso destaque da metódica, nem certo nem tranqüilo, a começar pelo titulo, que varia: partes do discurso, categorias gramaticais, partes da oração, espécies gramaticais... Se a base da classificação o sentido, o caso então não é de morfologia fônica, e sim de semântica. O vocábulo e apenas um elemento da língua. Parte do discurso é o sintagma.

O capítulo poderia ter promessa metódica se houvesse na fala, e daí na língua um estabelecido modo entre o vocábulo e sua função, entre o veículo e a veicularidade, permitindo assim um juízo último, um critério categórico. A fala, infelizmente, é um caminho de engano e mudança. Cada língua amontoa, no tempo e no espaço como patrimônio, os efeitos pessoais da hipersemia, da hipossemia, da assemia, do deslizamento nocional e relacional, da energia analógica, do impacto inovador. Além disto, o contexto fabular, que é um dos contextos, vive sujeito aos influxos dos contextos teatral, mímico, pessoal, social.

O que importa primeiro na fala é a função de "signi-ficar" - função feita de alusões ao ser, ao processo, à qualidade, à relação espacio-temporal e conceitual. Depois é que se distribui, a este ou aquele tipo, uma função, que não esta presa necessariamente à espécie vocabular.

A função não nasceu de alguma categoria vocabular. Ao contrário, a categoria vocabular é que está sempre querendo instalar-se por si, tomando força da iteração funcional. Ligado não à morfologia mas à semântica, este seria um capítulo das categorias funcionais, ou então das espécies vocabulares.

Inibidos por uma torsão que o mito vocábulo conseguiu, os lingüistas alegaram imprecisões de fronteira, na fronteira, na fronteira vocabular. Por melhor exemplo, tomaram-se amostras de línguas em estado social pré-aristotélico. Ora, cumpre notar que a operação de exibir vocábulos é uma operação lógica, uma tarefa de análise apropriada pela tradição escrita. O molde vocabular, configurado na mente, é fruto de um hábito reflexivo, em conluio com efeitos "visuais" da imagem grafica. Não admira que possa haver escurezas, na língua e fala de gente não dada ao exercício da objetivação.

O ter querido ir do vocábulo à frase acabou produzindo uma incerta mistura de línguas e de fala. Quem vai da frase ao vocábulo, e dá primazia ao sentido, encontra jeito e método. Por mais que coincida com o vocábulo, o sintagma dele difere. Ante a plurivalência do vocábulo, o sintagma tem univalência. E tem endereços sintáticos, ante a nudez funcional do vocábulo. E toma sintomas na luz dos outros contextos, enquanto o vocábulo se escurece na indecisão penumbra e limbo, do seu estado de língua.


REVISÕES

A língua está na fala, a fala está na frase, a frase está nos sintagmas: o sintagma está num arranjo entre vocábulos e morfemas.

Com tanto assunto maior, é um pecado ficar girando no vocábulismo. A lingüística e a filologia devem unir-se, tornando-se mais fabulares, empenhadas no exame de toda fala e de toda a fala, revendo alguns conceitos da ortodoxia reinante.

I - Parece que está superada a idéia saussuriana de antinomia entre língua e fala; parece também que a fala teve sua cotação melhorada, erguendo-se da inferioridade em que a deixara o mestre genebrino, para quem lingüística, propriamente, era só a da lingua. Falta porém caminhar mais e inverter a primazia, pois a língua é um produto da fala.

O enunciado "língua e fala" tem sentido do ponto de vista regenerativo, pois o indivíduo, para nossa observação, vem sempre depois da língua. Teoricamente, porém, vale o ponto de vista genético, e deve o enunciado inverter-se em "fala e língua". Na fala e que se vê a língua e pela fala vê a língua quem a quer classificar, embora o procedimento comum, tomado de reminiscência normativa, esteja sempre mostrando que na língua se vê a fala. Coloque-se o observador na posição de ouvinte, para melhor comprender: verá que a fala é de Primo e a língua é de Secundo. Verá que este desmonta falas e ajunta língua, a partir das falas. Portanto, da fala deve partir o estudo. Só por falaz inversão é que se fez lingüística da língua pela língua, empavesando-se a esta em altura domínica, vestida de intangibilidade ante o poder do indivíduo, dotada de externidade social, de autogênese, de autonomia, de sibi-sistência, ante a submistião da fala, ancilar e doméstica.

II - Já é tempo de firmar por boa latitude o conceito da fala, de vencer aquele preconceito de desigualdade entre lingüística é filologia, entre a "ciência" dos envaidecidos botânicos da fala cotidiana e o mero divertimento estético dos jardineiros da fala trabalhada.

A fala coloquial é uma fala a Secundo "presente". A fala escrita, a Secundo "ausente". Numa, o contexto fabular se faz pobre ou econômico, mediante subvenções do contexto teatral, do contexto mímico e do contexto pessoal, rico de subendendidos e inteligências ocasionais. Na outra, o contexto fabular pôde obrigar-se a riqueza e dispêndio, construindo com 'vozes" ausências da ausência dos outros contextos. Não há diferença de substância, porém só de qualidade e de função social. Projetando no tempo mediterrâneo a virtude do milagre helênico, a fala escrita fez do latim um veículo da grande hominização do homem ocidental. Faltasse a fala escrita e a Europa teria ficado a vegetar na sibi-mesmice tribal da rasteirice pre - aristotélica. E não teriamos Lingüística.

Encadeando a evolução e acumulando-se no tempo, a fala escrita ensejou confrontos como os que podem ir de Rui a Cícero, através dos planos sincrônicos por que se endereça uma perspectiva diacrônica. Pesquisando sinais, balizando áreas, evidenciando sucessões, abrangendo ex tensões, estendendo a continuidade, a metódica pôde configurar a grande língua indo-européia, dentro nos seus quarenta séculos de comprovação ou indícios.

Se a fala escrita era obrigação da filologia e agora se vê que também o é da lingüística, então não há diferença de objeto, cabendo razão à preguiça de mudar que têm os ingleses, quando chamaram de "filologia" aquilo que os franceses dividem em "filologia" e "lingüística".

Ante o mesmo objeto, poderá continuar a diferença dos objetivos, ocupada a filologia em ordenar a matéria no campo dos contextos (fabular, pessoal e social) enquanto a lingüística se entregue ao trabalho de reduzir, de abranger, em busca da essência, em busca do lastro persistente da expressão, na expressão do próprio ser do homem.

Se há quem pode contar vantagens é a filologia, depois que adotou o bidimensionismo histórico. Para interpretar bem uma fala, espelho da língua, cumpre seja o contexto fabular mergulhado no contexto pessoal de Primo - e ambos, no contexto social de seu tempo e espaço. Para isso valeu o formidável acervo da filologia clássica.

Que a lingüística instale princípios, arrimada em provas de filologia, fazendo-se lingüística geral. Que ela seja a filosofia da filologia.

III - Recuar as balizas, na história de uma língua, é aumentar-lhe a idade, na ampliada notícia de sua existência. Isto fez a imersão bidimensional do comparatismo, ao calcular a área temporal do indo-europeu. Viu-se que a multiplicidade atual é sucessão, por via cissípara, de uma antiga unidade, no início da vasta e misteriosa diáspora, fluxo de tribos medido em ondas de séculos. Por via de recessão, a pesquisa criou o esquema da redutibilidade: planos históricos sotopostos.

Se a crença na morfia vocabular engendrou o comparatismo da primeira instalação, o comparatismo dos grandes lanços, foi no entanto graça da filologia românica influir-lhe verossimilhança, à fôrça de continuidade testimonial da fala escrita. Na rota bimilenar, seguramente demarcada, foi possível rastrear, pela fieira, aquela metamorfia fônica endereçada, que tanto deslumbrou o mecanicismo de Schleicher e dos neofisicistas da Escola de Leipzig.

IV - Das premissas do comparatismo e do enunciado genético, a metodica do indo-europeu deve extrair um conceito singulativo de língua: não existem línguas, existe a língua - patrimonio do "homo loquens". Caminha com ale e, enquanto caminha, vai modalizando-se em dialetos. Nos longes nevoentos em que foi vislumbrado o indo-europeu, como aviso de fronteira,, esta um "nec plus ultra". Mas assim como estados posteriores são estados dialetais dele, também o indo-europeu deve ser dialeto de um outro estado anterior. Chamá-lo de língua indo-européia não é opô-lo a outras línguas, mas apenas erguê-lo, como extrema recessão, no fim de linha de sua linha dialetal.

A linguagem é o dom, a fala o exercício e a língua o produto do exercício. É um produto vivencialmente filtrado no espirito. Não de uma vez, em vocábulos que a análise confina, mas progressivamente, sob forma de magmas fabulares, uma ganga sintagmada, que a evolução mental vai modelando em f(ô)rmas de melhor autonomia. Percebe-se isso no mimo de marcha do indo-europeu, feita do sintético para o analítico.

V - Todo estado continuado é um mesmo dialeto e todo estado posterior é outro dialeto. A lingüística pode assinar ao latim quatro posições dialetais: o estado pré-romano, o estado romano, o estado românico e o estado pós-românico.

Anulando certas incongruências em voga, a filologia deve aprofundar metodicamente a perspectiva dos três últimos, sob noção de uma só língua. Latim, romance e português, não são três línguas e sim três estados da mesma língua. Que o leigo leve espanto, não porém o entendido, ao se dizer que "o latim não é língua morta" mas apenas estado anterior da mesma língua de que o português é um estado posterior.

VI - Todo estado de língua é uma persistência geral, tachada de resíduos velhos e ameaçada de mudanças novas. Entre as forças contribuintes da mudança, cumpre arrolar os efeitos da aculturação, gerada nos contactos dialetais, e geradora de empréstimos.

Ao lado das imperantes leis fonéticas, feito pobres parceiros, já os neofisicistas haviam enumerado a analogia e o empréstimo. Conforme seu trânsito e distância, ele pode ser classificado como: endodialéctico - na area espacial ou temporal do mesmo idioma; homodialéctico, se feito entre dialetos próximos, como os neolatinos; alodialéctico, quando distantes, como português e alemão; aloglótico, para dialetos não filiados a comunidade anterior.

Os efeitos de aculturação produzem-se por sincronia social ou por diacronia histórica. Tanto a grande helenização do latim romano, como a pequena helenização cristianizante do românico, são frutos de uma sincronia social. Ao passo que é repristinação histórica ou diacronia, o pequeno renascimento carolíngio, no fim do românico, e o grande renascimento europeu, nos começos da plenitude pós-românica.

Como fenômeno de oscilação nacional, a repristinação diacrônica se manisfesta em ufanias vernáculas, gerando preocupações como a de Rui, tão empenhado no gosto de repor em circulação peculiaridades esquecidas, de nossa língua.

A helenização de Roma ensinou, em latim, como se faz, do grego, uma transvocabulação. Fixado tradicionalmente, o processo tornou-se fonte de riqueza técnica: resultado de uma latinização plurissecular, usado como recurso internacional, um empréstimo do grego ou do latim pode chamar-se de patrimonial.

 

O Professor Diego Catalán faz, na quinta sessão ordinária, no dia 25 da agosto, seu relatório sôbre a comunicação acima, ressaltando o caráter teórico e geral da mesma, que encerra, a rigor, uma ordenação e interpretação dos fatos, teóricos do fenômeno lingüístico, do ponto de vista social, psicológico e da comunicação mesma. Reconhece que unidos obstáculos, para consonância com a matéria da comunicação é a terminologia especial de que se serve, mas reconhece a valia dos conceitos. Acha, porém, que por sua feição conspectiva o trabalho apresentado perde um pouco em objetividade, dificultando, destarte, a discussão.

0 Professor Sílvio Elia tece considerações sobre a parte di prioridade da "langue" sobre a "parole" ou desta sobre aquela.

O Professor Lourenço de Oliveira esclarece certos aspectos de sua comunicação e sublinha as diferenças apontadas entre a lingüística vocabular e a língüistiea fabular.

O Professor Ernesto faria encerra os debates, dando por aprovada a comunicação.

 

 

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