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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

INTERVALO [*]

 

1•  A função fabular

O ato de fala é um recurso de entendimento entre seres humanos. Falando, a humanidade melhorou sua hominidade. Foi subindo lentamente, da gregariedade animal para a socialidade cooperativa. Estilizando o regime da troca mental, capitalizou no espírito a moeda de câmbio chamada língua, instalada em Secundo, como disponibilidade patrimonial, a partir das falas de Primo. Ex fabula lingua [da fala (nasce) a língua].

A fala é um exercício de sintonia, um encontro de duas representações mentais, veiculadas na mesma alusão. É muito, dizer que a fala é uma troca de idéias, pois é apenas manifestação da idéia um, de Primo, e suscitação da idéia dois, em Secundo. Nas duas idéias, os respectivos matizes, pessoais e talvez inefáveis ou difíceis de traduzir. Se Caio diz "sairei agora", veiculando um sentido Caio, Lúcio o compreenderá, fabularmente, com um sentido Lúcio. A diferença de conteúdo, que possa haver, será entendida vivencialmente. Não vem na fala de Caio e sim nos hábitos dele, em sinais anteriores de seu procedimento. Lúcio já sabe, quando o outro fala, não pelo que diz mas pelo que costuma ser.

É muito, pois, dizer que a fala é uma troca de idéias, visto que seu poder consiste em manifestar a idéia de quem fala e suscitar a idéia de quem ouve. A vida é que permite a Secundo, vendo o procedimento de Primo, supor qual idéia a sua fala traduz. É verdade que existe a idéia comum, a idéia geral, uma idéia socialmente condicionada em cada indivíduo do grupo, mediante uma teimosa fixação da mesmice, na paciente iteração tradicional. Tais idéias constituem o lento lastro sedimentício de nossa humanidade. Veiculadas na fala, é difícil de lhes ver cor de idéia um e idéia dois. É difícil de ver uma idéia Lúcio e uma idéia Caio, na declaração "dois e dois quatro". O matiz da diferença, escondido na área do inefável, não nos impede lembrar, uma vez e outra vez, que a fala é uma expressão do homem e não uma expressão da coisa. A fala, veículo o real mentado, é apenas uma alusão ao Real, à coisa em si.

 

2•  Etimologia

A fala nasceu de uma coordenação de procedimentos, quando Primo, ante Secundo, aprendeu a sincronizar um som e um gesto: um procedimento vocal e um procedimento corporal. Quanto menos homínico for o nível de Primo, tanto menos vocal e tanto mais corporal será a sua fala, profusamente teatral.

O sentido da fala está na sua intenção de veicular um conteúdo mental, um certo modo de entender que a humanidade vai configurando, vida em fora, na medida em que reage a repercussões do procedimento das coisas e a repercussões do procedimento dos homens. Cada indivíduo, ao nascer, imerso na circunstância física da vida e na circunstância humana da sociedade, vai recebendo a sua informação de Secundo, antes de chegar à madureza de Primo. Cresce-lhe esta madurez entre as repercussões da vida, no cotidiano existir, e a notícia da vida, cotidianamente veiculada na tradição dos maiores. Depende, pois, do nível histórico do meio, o grau de hominidade possível a cada indivíduo, fruto econômico de uma capitalização social realizada.

A humanidade, e não os homens, é que tem conseguido classificar o mundo, reduzindo a representações racionalmente tratadas, no internato da consciência. Na troca da experiência comunicável, a fala foi o grande veículo: fez circular a nutrição do espírito e foi aumentando o patrimônio da língua, ensejo de progresso do espírito. Entre dois seres, enquanto um fala, sempre acontece o outro aprender. Sempre acontece, vindo de Caio, chegar a Lúcio um recurso novo, que ele incorpora, na sua língua, para serviço de sua fala.

Mediante elaboração mental, a humanidade tem classificado o mundo fenomênico, impondo-lhe alguma ordem lógica, dificilmente avançada.

Se o homem fosse lógico, sua fala seria lógica. Mas o homem tem sido um ser passional, falível, muito cegado, pelo seu pendor instintivo. Dizendo Vieira que Deus julga com o entendimento e o homem julga com a vontade, logo ajuntou que o entendimento acha o que há e a vontade acha o que quer. Podemos dizer, continuando Vieira: juízo que acha o que quer não está garantido de achar o que é lógico. Por isso a fala, imagem da alma, vive tão cheia de emoção e de engano. O homem é vital no proceder e vivencial no pensar. É vivencial, portanto, a sua fala e a sua língua. Isso quer dizer que a língua deve ser estudada por interpretação, por história, por psicologia, em ciência aplicada ao espírito, que não é área da coisa. O que a lógica ordena, observante e metódica, no campo da coisa, faz a ciência do Objeto. Mas o que busca a língua, recurso mental e campo do espírito, faz parte da ciência do Sujeito.

 

3• O ato fabular

Todo ato fabular é cena de drama. É um procedimento de quem fala, representado perante quem ouve. É um feito de vozes e movimentos corporais.

Um ato de fala implica os seguintes contextos: o contexto teatral, o contexto mímico e o contexto fabular.

O contexto teatral é um espaço ocupado. Nele estão as duas pessoas do discurso (Primo e Secundo) e nele estão as coisas que podem servir às alusões do assunto.

(Constitui uma impropriedade da nossa gramática o falar em três pessoas do discurso. Existe quem fala, eu. Quem ouve, tu. E o assunto, ele, que não é pessoa).

O contexto mímico feito de gestos e movimentos, ajuda Primo a falar. E pode ajudar tão bem que talvez pode ficar dispensada a expressão verbal.

O contexto fabular feito de frases, é o contexto da fala propriamente dita.

 

4• Os contextos

Se dos atos de fala nascem os fatos da língua, devem interessar à lingüística os contextos do ato fabular. De atos de fala como "saio agora" é que Secundo vai aprendendo a associar, na lembrança, a idéia agora com a respectiva morfia vocabular, instalando-se-lhe, no espírito, essa disponibilidade, como fato de sua língua.

(Relembremos, de passagem, que é vagarosa a conquista, no assunto tempo. É um condicionamento subtil, menos accessível a meninos e bugres. Até certa idade, a criança é capaz de dizer "eu saí amanhã" ou "eu saio ontem").

A disponibilidade mental entre a idéia agora e o vocábulo agora é um fato de língua, nascido de atos de fala, no constante comércio mental entre Primo docente e Secundo discente. Dos atos de fala estão sempre nascendo fatos de língua e a língua está sempre mudando. Portanto, só do exame dos atos pode nascer bom conhecimento dos fatos. Entretanto a lingüística, tomando a língua como coisa feita, e pior ainda naturalmente feita, em vez de partir da frase (unidade da fala) logo se pôs, com eliminações e subentendidos, a examinar vocábulo e sua natureza.

Se ao menos partisse da frase... Mas acontece que a frase, matéria do contexto fabular, é tão somente uma parte do ato de fala. Tem de ser imergida no clima dos outros contextos, o teatral e o mímico, visto que tem cada um a sua veicularidade.

Ninguém negará que só o rastreio do contexto teatral nos permite compreender como foi que o românico plicare, inicialmente veículo do sentido "dobrar, foi tomando os sentidos que hoje trazem as formas chegar e pregar. Análogo do nosso chegar é o francês arriver, estado posterior do românico arripare, veículo inicial do sentido "dirigir-se para a riba". A forma portuguesa que hoje tem, arribar, tanto significa o "chegar" da embarcação, como também "partir".

Prende-se ao contexto mímico a pesquisa etimológica dos vocábulos dícticos, ligados ao gesto de apontar, como sejam os demonstrativos e os pronomes pessoais. À função díctica, própria da fala pragmática, está presa a função anafórica, própria da fala teórica, trocado o apontar no espaço teatral (função díctica) pelo apontar no espaço fabular (função anafórica).

 

5• O contexto fabular

Dedicando-se ao vocábulo, a metódica tradicional se tem dedicado a um elemento quaternário, que a fala não exibe em estado puro. Seu engano está em supor que uma frase é feita de vocábulos arranjados, embora a verdade seja o contrário: os vocábulos é que são feitos de frases desarranjadas.

Quem quer ordenar os valores da língua começa na fala, no ato de fala, especialmente no contexto fabular, isto é, na frase.

Na fala do homem anterior, devia ser de menos importância o contexto fabular, imerso ainda no vigor do contexto teatral e do contexto mímico. Deviam ser vozes de pouca sintaxe e muita melodia (contexto fabular: molde frástico e molde prolatório), emitidas em presença das coisas (contexto teatral), em sincronia com atitudes e gestos de um fazer (contexto mímico).

Era isso no tempo de um homem pouco hominizado, homem de pouca teoria e pouco dizer, um homem que usava da fala como adminículo imediato da ação, como parte do procedimento vital. Era uma fala pragmática, expansiva, imperativa, interrogativa, indicativa.

Só no tempo multimilenar, ao longo de lento lazer e muita reflexão, internando imagens do mundo, pôde a humanidade enriquecer o exercício da fala reminiscente, e quando o homem aprendeu a alternar a fala do fazer com a fala do recordar, a fala pragmática e a fala teórica.

A fala pragmática, adaptada às condições de sua origem, imerge seu contexto fabular, dominado, na economia dos outros contextos, dominantes. É uma fala de estrutura facilmente infra-fabular [sic] [i]: não carece de vir ordenada naquele molde universal de conveniência entre um sujeito e um predicado, aquele jogo entre o nome de um ser e o nome de um processo, combinados como Nominativo e Verbo, /NV/. No fato de ainda ser anterior a esse molde uma estrutura infrafabular, não quer dizer que ela tenha desaparecido. A estrutura do ser homínico, estratificação diacrônica de milênios, sempre revela, no mais recente, a mais antiga residuação. A cada hora o homem velho se manifesta no homem novo, quer nos procedimentos vitais, quer nas expressões de sua alma. Veja-se a estrutura de uma fala expansiva como "socorro!" ou de uma fala executiva como "silêncio!".

 

6• A estrutura fabular

A fala teórica melhorou a capacidade veicular da frase. Combinado o nome de um ser com o nome de um processo, foi possível exprimir a conveniência entre um sujeito e um predicado, um Nominativo e um Verbo, no molde geral da frase indeuropéia.

Com o progresso realizado, a frase indeuropéia, antes menor que uma oração, pôde ser igual a ela e até maior que ela: é menor que uma oração, na estrutura infra-fabular; é igual, no período simples; é maior que a oração no período composto:

1- silêncio!

2- Além, confuso e brando, o som longínquo vem-se aproximando, do galopar de estranha cavalgada. [Raimundo Correia]

3- O bosque estala, move-se, estremece.

Realizado o binômio sujeito-predicado, o verbo se foi tornando centro da estrutura fabular, motivando-se isto na importância maior que tem o processo, confrontado com o ser. Essa preeminência psíquica, vivencialmente condicionada na inteligência mediterrânea, deu ao nome do processo (verbo) o valor que o sobrepõe ao nome do ser (substantivo). O que repercute em Secundo vivencial são os procedimentos do ser. Através deles é que julgamos o ser e até o nomeamos. Por isso é que em torno do verbo se vão agrupar as explicações fabulares, definindo e situando o processo. A frase costuma apresentar mais elementos adverbais que elementos adnominais. Os aspectos do ser continuam sobre si mesmos. Os aspectos do processo variam com a circunstância. Daí a comum replenação do predicado junto à rápida expressão do sujeito.

Imaginemos, para dizer "Caio viajou" explicadamente, a seguinte frase, inventarialmente sugestiva, embora estilisticamente pesada: "Ontem, pela manhã, às sete horas, inesperadamente Caio seguiu, de automóvel, para Minas, em companhia de Lúcio".

Junto ao dois sintagmas fundamentais (Caio seguiu) estão outros sete sintagmas, todos circunstanciais, todos no campo do verbo ou campo do predicado.

 

1Definição do sintagma

Sintagma é cada elemento funcional da oração. Na frase "Caio chegou" / "Caius venit" temos um Nominativo (sujeito) e um Verbo (predicado). Ela está vazada no molde comum da frase verbal indeuropéia: /NV/.

O N(onimativo) e o V(erbo) são os os dois sintagmas fundamentais de tal molde, conformando o campo do sujeito e o campo do predicado. O primeiro traduz o nome de um ser a que se atribui algum procedimento. O segundo traduz o nome de tal procedimento, inserido no tempo.

Na frase "Caio comprou casa" / "Caius emit domum", temos um terceiro sintagma também fundamental, o Acusativo de paciência "casa". Traduz o nome da coisa sobre que se "projeta" o procedimento significado no verbo.

Assim, pois, ao binômio do tipo "Caio chegou", /NV/, foi ajuntado o trinômio do tipo "Caio comprou casa", /NVA/, molde geral de uma frase com três sintagmas fundamentais, que indicam o agente (Nominativo), o processo (Verbo) e o paciente (Acusativo de paciência).

O molde /NVA/ representa um progresso fabular que é sintoma de um progresso mental da humanidade, quando se fez capaz de ver, fenomenicamente, a relação de causa e efeito.

Do trinômio agente-processo-paciente, Caio comprou casa, vai sair o trinômio paciente-processo-agente, a casa foi comprada por Caio. O molde /NVA/, dentro de certa equivalência semântica, vai alternar com o molde Nominativo paciente - Verbo passivo - ablativo agente. A voz passiva, pois, não passa de uma diátese de reversão, quando inverte o trinômio agente-processo-paciente.

É no campo do predicado que se aglutinam os sintagmas não fundamentais, cujo ofício fabular consiste na tarefa de situar o processo, isto é, o procedimento de um ser. Ora é um situar no espaço, Caio veio da cidade. Ora um situar no tempo, Caio veio ontem. Ora um situar de relação mental, Caio veio depressa.

Para esses sintagmas adverbais de situação, a língua indeuropéia, a partir do estado romano (latim), apresenta morfemação de dois casos principais, reforçados ou não com preposições: o ablativo e o acusativo espacio-temporais. (O acusativo espacio-temporal não é de se confundir com o Acusativo de paciência).

Um sintagma adverbal fossilizado é o que se chama advérbio. A pesquisa histórica revela, do advérbio, que era ele algum nome em ablativo ou acusativo ou locativo.

Na contemplação vivencial do fenomênico, sendo o ser um aspecto estático e o processo um aspecto dinâmico, inserido no tempo, é natural que a fala humana se interesse nas circunstâncias de um procedimento que é fugaz e que é móvel. Para o ser, costuma bastar a alusão do nome. Vimos, no exemplo final do título 6, junto a "Caio seguiu", sete sintagmas adverbais, todos eles situando e minuciando aspectos de um procedimento, aspectos daquele seguir praticado por Caio.

 

2O molde frástico

Se oração é uma conveniência entre sujeito e predicado, podemos dizer que é uma conveniência entre sintagmas de dois campos. Começa no binômio /NV/, continua no trinômio /NVA/, ampliáveis, ambos, com sintagmas adverbais. (Trataremos, depois, da frase nominal).

A partir da idéia de oração, podemos estudar o molde frástico, tomada a frase como unidade da fala. É uma unidade igual a uma oração, maior que uma oração ou menor que uma oração.

 

3A estrutura infra-fabular 

Se a frase é menor que uma oração ela tem estrutura infra-fabular, contemporânea de uma idade arcaica, na diacronia evolutiva da fala. Era um tempo de humanidade pobre no discriminar de suas representações e nos recursos da sua expressão. Para o comércio mental entre Primo e Secundo, era pequena a quota de veicularidade de contexto fabular, imerso no vigor das presenças teatrais e dos procedimentos corporais. A fala era um serviço de manifestação expansiva ou de manifestação pragmática. Faltava à língua o seu enriquecimento relacional, um fruto que somente amadura ao calor da fala teórica.

A essa estrutura pobre, fica-lhe bem o nome de infra-fabular. Era uma fala impedida, recendendo a reflexos vitais, incapaz de reflexividade vivencial, anterior à fixação daquel molde comum, feito de sujeito e predicado.

Embora nascida em hora velha, a infra-fabularidade persiste, até hoje, na linguagem afetiva do homem adiantado, vencedor da barreira infra-lógica. Persiste, por exemplo, na interjeição. Pré-fabular, a interjeição é uma frase de estrutura fônica vincadamente melódica. Ora é um grito monossilábico de surpresa emotiva - oh! ah! - ora uma expressão estilizada e plurivocabular - Virgem Nossa Senhora! -; e até mesmo uma frase-oração como "Deus me livre", cujos esvaziados sintagmas, em vez de significar Deus-me-livre, passam a significar Deusmelivre.

A interjeição é uma frase expansiva, puramente vital na sua origem, anterior ao regime da intenção vivencial, essa intenção fabular já presente em certas frases que, sendo da mesma área estrutural, mostram no entanto veicularidade expressiva. São frases de vontade e sentimento, variamente marcadas na escala emotiva. São vozes de apelo, como "socorro!" - ou vozes de mando, como "silêncio!" - ou vozes de alarme, como "fogo!". São frases-sintagmas que pedem, no lugar de análise classificatória, análise interpretativa. Uma frase como "silêncio!" faz pensar no Acusativo do molde "façam silêncio". Cumpre lembrar, porém, que são dois moldes diversos e coexistentes. Não se trata de elipse.

Na área da estrutura já perfeitamente fabular, existe um caso de aparência infra-fabular que merece observado. Imaginemos Caio perguntando a Lúcio "você vai à cidade?" e este respondendo "sim". Alimentada nos recursos da economia dialogal, essa resposta é um sintagma-frase, com seu molde fabular perfeito. É um sintagma adverbal, nutrido na pergunta mais que bastante para o entendimento entre Primo e Secundo. Não é um caso de verbo oculto, pois o verbo está expresso na pergunta e faz presença mental, na dieta do diálogo. O sintagma-frase não é uma oração mas é uma frase: tem seu molde acabado e perfeita a sua veicularidade.

(Um sintagma-frase, como "sim" vazado em molde fabular, difere da frase-sintagma, de molde infra-fabular, como "silêncio!". Aquele tem seu lugar num momento posterior, um momento resposta, e pede imersão nutriente no mais contexto fabular. Esta, a frase-sintagma, nasce com seu momento original e autônomo - imerge no teatral).

Outro caso de molde que não é infra-fabular, mas foge ao molde do binômio NV, está no padrão da frase em sujeito, a frase do tipo "chove". O homem viu um procedimento, fenomenicamente observado, mas não soube a quem atribuí-lo. Trata-se, não de uma carência fabular, mas de uma carência de representação mental. Não achado o sujeito, a fala traduz o procedimento, expresso no predicto, expresso no verbo chove.

Outro caso ainda vem no molde da frase imperativa. Não é infra-fabular, mas falta-lhe a presença vocabular do sujeito. Uma frase do tipo "dize" ou "dizei" consta só do Verbo. Já nasceu assim, com dispensa do Nominativo, indicado, no contexto teatral, pela inter-presença de Primo e de Secundo.

No molde da frase imperativa, a referência ao sujeito traz a forma de vocativo: "Lúcio, vem!" (É verdade que o vocativo, quando sob forma pronominal e pospositiva, tende hoje a ser compreendido como Nominativo: "dize tu que tens", "beba você primeiro". Repare-se, na melodia prolatória, a falta de entonação vocativa. Além dos efeitos da deslocação tratamental - forma de terceira "você" em função de segunda - pode ser que o molde tenha recebido semantização influída pela rotina escolar, segundo o hábito gramatical de se conjugar o imperativo: dize tu, dizei vós).

 

4A frase nominal

O molde comum da frase verbal tem a forma do binômio /NV/ ou do trinômio /NVA/. Ao lado, sob forma especial, mas inteiramente fabular, o molde da frase imperativa, /V/, e o molde da frase sem sujeito, /'V/.

A língua indeuropéia, além da frase verbal, tem a frase nominal, cujo molde nativo mostra sintoma de infra-fabularidade no fato de se apresentar sem presença do verbo. Tal pureza persiste, até hoje, em frase afetiva do tipo "vida boa, a do Caio" ou em frase gnômica do tipo "casa de ferreiro, espeto de pau", "sua alma, sua palma". Tal persistência era mais viva no estado romano da língua, mais fácil em construir frases do tipo "ars longa, vita brevis" [a arte é longa, a vida é breve]. Entretanto, a moda filosófica, de projeção helenística, foi abrindo lugar, no espírito mediterrâneo, à importância do verbo esse [ser, estar], instalado como ponte ou liame do predicado. Cresceu a hegemonia do verbo substantivo. E o espírito cotidiano é capaz de supor que a frase "vita brevis" foi construída mediante elipse do verbo, quando o fato se deu pelo contrário, ao ser acrescentado o verbo, no molde da frase "vita est brevis".

Temos, pois, historicamente: 1

1 - a fôrma pura de "vita brevis", constituída de Nominativo sujeito e nominativo predicativo, /Nn/;

2 - a mesma fôrma infestada com a presença do verbo ligativo: "vita est brevis". Nominativo sujeito, verbo ligativo, nominativo predicativo: /Nvn/.

O que caracteriza a frase é o fato de o predicado não estar centrado no verbo e sim no predicativo. O predicativo descreve, classifica, identifica um sujeito: "Caio é bom", "Caio é professor", Caio é este".

(Simbolizando por /Nvn/ os três sintagmas do trinômio, fica visto, no caráter minúsculo, o caráter não verbal da frase nominal).

Comparemos "Caio é bom" e "Caio comprou casa": /Nvn/ e /NVA/.

A força da diferença vem no predicado, cujo centro nominal está em "bom" e cujo central verbal está em "comprou".

"Comprou" exibe, na sua veicularidade, três aspectos notáveis:

1 - traduz um procedimento, inserido no tempo (verbo);

2 - tem uma energia dinâmica que o faz centro do predicado;

3 - revela necessidade semântica de um complemento, de um paciente em que se "projeta" o efeito do procedimento.

Na frase nominal, pelo contrário, o verbo "é":

1 - não traduz um procedimento do sujeito. Só tem, do verbo, a imersão temporal;

2 - não traduzindo procedimento, não é centro do predicado;

3 - revela também necessidade semântica do complemento "bom". Mas este, em vez de ser Acusativo de paciência, é um nominativo predicativo, um centro da função declaratória.

No trinômio da frase "Caio comprou casa", um sujeito agente realiza um procedimento que se projeta num paciente.

No trinômio da frase "Caio é bom", um sujeito sem procedimento recebe uma inserção temporal da sua capacidade de proceder, declarada num predicativo.

(Afim de ilustrar o simbolismo das siglas aqui empregadas, vamos reproduzir em latim as duas frases: Caius emit domum (Nominativo Verbo Acusativo, /NVA/); Caius est bônus (Nominativo sujeito, verbo ligativo, nominativo predicativo, /Nvn/). [ii]

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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