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Lingüística e Filosofia da Linguagem

A FUNÇÃO FABULAR E A SOCIOLOGIA

 

Não me envaidece a notícia de que a lingüística representa, na Sociologia, um setor adiantado. Trata-se de uma ciência que ficou mal criada, (apesar de bem nascida) quando entrou no desvio do positivismo finissecular. E continua sem os benefícios que lhe renderia a metódica, se a metódica já houvesse conseguido discriminar bem, na ciência, entre a Ciência do Sujeito e a Ciência do Objeto.

Os antigos eram vocabulistas porque ligavam o nome à coisa. Apenas discutiam se ele emanava da coisa, por imposição natural (fisicismo) ou se havia sido posto à coisa por convenção (nomicismo).

Ligando o nome não mais à coisa mas à idéia da coisa, a lingüística melhorou a perspectiva, mas não soube desprender-se do vocabulismo em que está. Continua tomando a palavra como centro de sua metódica, admitindo que com ela se faz a frase, embora a realidade o não admita.

A partir de Saussure, esse vocabulismo, ordenado em sistemismo e opositismo, vai acabar no fonicismo, que passa pelo fonologismo de Praga e chega ao estruturismo de Copenhaga bem como ao fonemicismo de Norte-América.

O vocabulismo faz prova elementar de que deve estar errado ao não saber definir os elementos de seu objeto, pois não tem conseguido dizer bem o que seja vocábulo, sintaxe, frase, fala, língua , linguagem.

Isso, porque não soube transpor-se das fronteiras espaciais do procedimento vi tal para as regiões inespaciais do procedimento vivencial, onde se gera o fenômeno fabular.

O doutrinador já não diz que o nome nomeia a coisa, mas o fantasma da coisa ainda o persegue: veja-se a. mistura binomial do signo saussuriano ou então o modelo orgânico de K. Bühler, centrado por um signo a que rodeiam Primo, Secundo e a coisa - num tetranômio que devia ser fabular mas que ficou vocabularmente descarnado.

A lingüística ainda não viu bem que o ato fabular, social e socializante, é um proceder reminiscente, conector de uma sintonia mental oferecida por Primo a Secundo. Exige, nos interlocutores, posse da representação veiculada e posse do re curso veicular empregado. Exige pois uma vivência já experimentada e um valor de língua já adquirido, sob pena de a situação ter de s e transformar em situação docente-discente, aquele ensejo aquisitivo em que Secundo, sob a repercussão da coisa, no contacto vital com o fenomênico, recebe a noticia dela, pela boca de Primo, no contacto fabular. Na linha da tradição docente-discente, gentílica e diacrônica, está a linha transtemporal da evolução homínica, desenhada numa promessa de melhoria, garantida pela capitalização espiritual.

O ato fabular maduro é todo vivencial, todo reminiscente, constituído em riqueza da fala teórica, própria de outro-lugar-e-hora, procedimento de hominidade superior. Junto à raiz etimológica, na hominidade inferior, o ato fabular devia ser apenas uma concomitância, um vozeio sub-vivencial a concorrer, como parcela, no todo do procedimento vital aqui-e-agora. Então era só pragmática ou executiva uma fala que hoje pode ter dois níveis.

A fala tem sua marca na intenção inter-individual, tem sua vida na continuidade traditiva e tem seu aumento na experiência homínica. Vai filtrando de si, para o grupo, um recurso ou patrimônio chamado língua; é um patrimônio que cresce ao acaso da existência grupal, entre as contingências do exercício conscientizante, desde o ritmo infra-lógico da mera analogia até o surgir e ser do plano lógico, na cota aristotélica.

Vista como acervação emergente, na sedimentação espontânea de seu formar, a língua é anterior e alheia à ideia de sistema. Como um fruto diacrônico, ela foi crescendo de vagar, havendo começado num indivíduo de fraco Sujeito, a que um for te Objeto atraia. Nessa primeira tensão entre os dois, o Objeto, em vez de ser internado, desinternava o Sujeito. Para vê-lo, basta pesquisar a densidade homínica do nível infra-aristotélico, sensível nas falas tribais ainda subsistentes. Para lhe sentir a curva de ascensão, basta seguir a da língua indo-européia, com sua diacronia de 40 séculos, históricamente documentados ou sub-históricamente indiciados.

A lingüística tem de remodelar toda a sua teoria, tomando luz de certos princípios básicos. Eis alguns por exemplo:

 

1. A fala, geratriz da língua, tem por unidade a frase, vazada num molde cuja unidade é o sintagma, feito de um centro ou vocábulo morficamente endereçado.

Imerso no contexto teatral e no contexto mímico, o ato fabular pode conter mais do que a frase e a frase pode conter mais do que o exibido no molde e nos sintagmas, vista a incorporável energia semântica das situações inter-individuais. Dentro de tal complexo, na série "fala frase prolação sintagma vocábulo", o vocábulo fica sendo um sub-valor de quinta grandeza. Um valor que nem aparece na frase, pois o que nela aparece é o sintagma. Este sim, desmontado, revela o vocábulo, entidade pós-fabular, vivencialmente exibida numa análise mental. Da frase fica na língua o molde frástico. Do sintagma, além do molde, fica o vocábulo mais os morfemas.

Vê-se daí, como verdade, que a frase não é feita de vocábulos, como admite Saussure, mas feita de sintagmas, devidamente vazados nos seus moldes e devidamente localizados no molde frástico.

Vê-se também que é grave engano metódico o de partir, não da frase, mas do vocábulo, tomado como unidade central da ordenação lingüística, persistindo esta no vocabulismo, em vez de se fazer fabular, como deve.

 

2. A língua não é um produto natural nem esta isenta ao poder do indivíduo. Natural e o que se atém ao vital, como o guincho de um símio a reagir ante a coisa. A fala porém, reação de idéias, desenvolveu-se por criação homínica, num procedimento que estilizou em veiculo e dotou de intenção a vocalidade animal. Desenvolvido assim o plano do Espírito, ficou superado o plano zoológico.

 

3. A fala, como procedimento homínico e função geradora, mostra que a língua é um produto e não um sistema. A idéia de sistema lembra o estático de uma estrutura, um plano estabelecido. mas a idéia de língua faz pensar em instabilidade emergente, em contingência dinâmica, em variação inter-individual, em hominidade e espírito criador da espécie. Não se diz que a hominidade seja um sistema. A idéia de sistema, que requer uma constante espacial e objetiva, não tem campo de via no que é inespacial e subjetivo, diacronico e vivencial. Sistemar os fatos da língua é produzir uma redução gnosiológica mas não é exibir um sistema da língua. O que se pode fazer é tentar reduzir uma língua a sistema, como faz o estruturismo avançado, mas isso não é explicar o existente, não sendo pois lingüística, e sim uma tarefa criadora, como a do esperantista.

 

4. Se a fala requer um procedimento vivencial, uma sintonia do espírito, e não aquele procedimento vital que a coisa requer, está visto que a língua se prende não à área da coisa mas à de nossa hominidade, cuja expressão dela se vale. Tomada como objeto de ciência, tem de ser objeto da mesma ciência que tenha por objeto a nossa hominidade, longe pois daquela autonomia proclamada pelos positivistas.

 

5. Se a lingüística é um capitulo das ciências do Sujeito, ser diacrônico por excelência, então a língua tem de ser estudada na diacronia. A perspectiva sincrônica, momentânea, desmotivada e espacial, mostra uma posse empírica, elementar e habitual, que não chega para a tomada de consciência ou posse motivada. Esta re quer imersão histórica, perquirição recessiva, que vá em busca da unidade existencial, que repita, na continuidade traditiva da língua, o sentido e variação de seu poder e cabedal.

Ficará visto, por exemplo, nessa repetição recessiva, que os atuais dialetos ocidentais, chamados línguas, não passam de estados posteriores, diacrônicamente abertos á regressão redutiva, que o português, o romanço e o latim são apenas sucessivos estados de uma única língua. Tal perspectiva, realmente metódica e fundada na história da hominidade européia, manda eliminar o plural "línguas", na ordenação da língua indo-européia e seus dialetos.

 

6. O imergir histórico, avançando em recessão, obriga o diacronista a pensar nas origens, contratiando aquele estranho preconceito de Saussure, quando disse que tal questão nem merecia ser posta.

 

7. A pesquisa diacrônica revela muitos sintomas dignos de nota, de que apenas daremos exemplos:

- o primeiro é o caso de, na diáspora. tribal, a segregação influir na persistência de um estado da língua, pois este em tempo se dialetiza, remorfizado pelo uso grupal. A quantidade, no discretismo da mudança, mantém relação com o nível homínico vigente. O grande número de falares gentílicos, entre nossos ameríndios, deixa imaginar que devia ser grande, a variação dialetal, na primeira existência da hominidade indo-européia, infra-aristotélica e infra-histórica;

- o segundo caso e o da variação transtemporal, no ritmo evolutivo, da resistência permansiva: com a dinamia remorfizante do indo-europeu contrasta sensivelmente a resistência do semítico: o árabe de agora é mui semelhante ao do tempo de Maomé, se comparada a diferença com a que vai entre o português do século xx e o estado que tinha no século viii, ainda sob o nome de latim;

- repare-se finalmente como a energia veicular do indo-europeu tomou vigor no espírito mediterrâneo: começando nos contactos orientais da Grécia, ele criou, na cota aristotélica, a superação da barreira infra-lógica. Depois, fecundando o latim, semeou a raeionalidade européia e veio reestofar, nos tempos modernos, os modernos dialetos pós-românicos e pós-germânicos.

Explorando a continuidade histórica e a base documentária, no desenho da dialetação indo-européia, a lingüística aprendeu a merecer rotulo científico. Mas, infelizmente, começou e cair nos enganos de um século cuja tendência, perante um homem ja bastante naturalizado, era a de o "desalmar" e animalizar. O velho cosmo teocêntrico, já trocado em antropocêntrico, foi passando a cosmo zoocêntrico. A psicologia sem alma, querendo ser biológica, foi fazendo-se zoológica. A metódica, não sabendo dividir entre o plano do Espírito e o plano da matéria, não aprendeu a dividir-se entre a Ciência do Sujeito e a Ciência do Objeto.

::Dizemos Objeto o que está na circunstância vital e o mundo de fora, fenomênico e repercussivo, que nutre, com seus procedimentos, a construção vivencial do Sujeito, no internato do Espírito. Objeto é o que pode ser racionalmente ordenado, inclusive a base física do Sujeito, o animal biológico do homem. Dizemos Sujeito o Espírito ordenador. Ele classifica o Objeto segundo cotas vivenciais, dentro de uma experiência tradicional e aditiva. Existindo num internato indevassável, êle se classifica a si mesmo por anamnese e por analogira. Por anamnese, exercita-se no "conhece-te a ti mesmo". Por simpatia analógica, mira-se no proceder vital de seus semelhantes, conferido com a manifestação vivencial deles, que lhes vem na fala, nem sempre merecedora, por carecer do aval da veracidade. A essência racional do Sujeito habita o neo-encéfalo, num pavimento vivencial que falta ao bruto ou nele mal funciona, deixando-o reduzido, por carência de _ comércio mental, à pobre economia nereditária dos procedimentos vitais.::

Com a teoria da evolução, a beatice empirista gerou a romantismo do macaco e o dogmatismo da matéria. Procedendo como Sujeito, o pensador desponderou o Sujeito, menoscabando a substância homínica do hiato zoológico, para ficar admirando, junto ao galho de que descera, o suposto pitecantropo. Vendo o ex-símio entre os símios, ficou satisfeito com a perspectiva naturista, embora nossa hominidade seja fruto não da natureza mas de uma criação posterior, desde que Primo e Secundo começaram a trocar idéias fabularmente veiculadas, iniciando o trabalho de internar o mundo na consciência, de diluir equações vitais em teorias vivenciais, de submeter a natureza a novas atitudes. O animal biológico e uma criação da natureza, mas nossa hominidade é uma criação do Espírito, acumulada em juros de progresso.

Ante o Objeto, flor do Espaço, está o Sujeito, flor do Tempo, flor de uma essência toda inespacial e diacrônica. O espacial entra pelos sentidos, à hora dos procedimentos vitais, e excita no estimulado um patrimonio biológico, mas o temporal, desenvolvido na vivência, é uma representação pós-fenomênica, inter-individualmente modelada e transtemporalmente melhorada, ao longo da acervação capitalizante do patrimônio homínico.

O espacial, fenomênico e dimensível, entra na Ciência do Objeto.

O temporal, diacrônico e avaliável, entra na Ciência do Sujeito.

Entretanto, o materialismo evolucionistia procurou afogar o Sujeito no Objeto, dissolvendo o Espírito no zoológico. Por meio dessa mistura, veio a influir na lingüística, insinuando-lhe a presunção de que a língua era um produto natural, isento à vontade, regido de leis suas, capaz de estar por si como objeto de ciência, autonoma. Se o pensamento era uma segregação cerebral, entao a fala havia de ser uma segregação sonora, estranha à hominidade da espécie.

O século xx, em vez de superar tal posição naturalista, ainda continua a confirmá-la, saussurianamente.

O século xix, fervoroso e fecundo, pode ser visto como um século humanamente admirável, embora hominicamente enganado. Seu naturalismo desenvolveu a teoria da matéria, experimentalmente esquadrinhada. Sua curiosidade multiversa devassou a totalidade espacial abrangida, demarcando-lhe a matéria com fronteiras de locação ponderação e função; imergindo no tempo cósmico, afeiçoou largas hipóteses do mundo, calculando nas sucessões da natureza e da vida, ordenando as precedências da. especificação animal, encadeadamente, a ponto de poder dependurar nosso primeiro avô num dos galhos da macacolândia; para se guiar no tempo cósmico, achou cotas objetivas. achou-lhe aquilo que o reduz a um antes e um depois, na via dos procedimentos necessários; entretanto o materialismo, sendo materialismo, não soube lidar com o tempo homínico, não lhe sabendo correlacionar os fatores. O tempo homínico é rebelde à cotização necessaria. Avalia-se, não se mede. Substanciado em livre duração, consta de um fluir vivencial e espontâneo, reiterativo e criador. Por ele, não só o rio não é o mesmo, pois também não o é quem se volta a banhar; mesmo não sabendo discriminar o homínico, mesmo assim porém, o racionalismo, embora requerendo paciência com o incognoscível, enquadrou no mito a explicação religiosa e cortou nossas amarras teleológicas, dessagrando uma existência entes con-sagrada, avivando a lembrança de uma animalidade antropicamente superada, ele acordou na espécie a saudade biológica, num sentimento humano pouco homínico; incitando ao romantismo irracional, fez que Marx desenxergasse a energia do Espírito, a energia de nossa transcendênciaa e, firmando-se em instintos meramente zoológicos, buscasse diluir, na sua barrela gregarizante, o vigor socializante da marcha homínica;

::Comte foi mais sociológico, ao admitir o homem como superação, regedor da matéria e não regido, e ao propor, na lacuna da erradicação metafisica, ingenuamente, um culto da humanidade.::

concluindo a sua tarefa de desmotivar o homem, o século xix o deixou dispo nível, solto no tempo. Então ele, dependurado em nada, procura agarrar-se às tentações da primeira filosofia que passa, mesmo irracional, e sobretudo irracional.

 

A partir da linguagem, dom natural, a. hipótese da fala, criadora da língua., toma base na teoria do condicionamento de Pavlov, quando discrimina dois procedimentos estimulares: o da reação ante a coisa, que chamaremos de procedimento vital, e o de reação ante um signo que lembre a coisa, procedimento vivencial. É o caso do cão ante o alimento e, depois, ante o som que o lembra.

A espécie humana fez do signo fabular um signo de superação, qurndo o libertou da contingência espacial de signo aderido à coisa, para o imergir na contingência temporal de lembrador da imagem da coisa.

Iniciado como vozeio, na sincronia dos procedimentos vitais, o signo fabular foi sendo paulatinamente condicionado no Espírito, vivencialmente associável a idéia da coisa, mesmo na diacronia de outra hora e lugar. Transfeito em veículo, ele foi capaz de, emitido por Primo, suscitar, na mente análoga, de Secundo, a sintonia das idéias análogas.

Pelo constante exercício inter-individual, entre-semeado no permanente da continuidade vivencial, a fala foi carregando-se de intenção veicular, de conteúdo significado, de facilidade traditiva, de energia docente e tenacidnde capitalizante. Enriquecendo-se por convívio e enriquecendo o convívio, ela foi socializando onda vez mais a grei gentilícia, promessa dos grupamentos tribais, germe das unidades nacionais. Foi o grande viático do progresso, na progressiva hominidade.

A experiéncin deixa ver que o homem é um animal condicionável. Ciente disto, certa técnica moderna, cheia de eficiência, começou a armar o indivíduo para a mais perigosa oe todas as invasões, a invasão mental. Sua técnica, metodicamente aplicada, num regime de compressão socialista, rende juros terríveis à tarefa de criar a servidão eficaz. Ela abusa do vocábulo "social" cujo conteúdo histórico esvazia. Em vez da possível socialidade, inspirada e ativa, instala no grupo a massificação gregarizante, incerta e pávida,

Após muitimilênios de espiritualidade criadora, cheia de sonho hominizante, é triste verificar, no homem de agora, que ele sabe distinguir-se na técnica de destruir e na técnica de servilizar. Na mudança de tensão entre o Sujeito e o Objeto, muitos séculos recentes foram gastos, através de uma progressiva construção do real, no internato da consciência. Para remodelar a dieta biológica da simbiose primeira, ciência contribuiu maravilhosamente, forçando a natureza a, frutos de serviço. Entretanto, mesmo antes de melhor firmar sua liberdade ante o Objeto, o homem descobre a receita forte da servidão mental, imposta por um sujeito a outro Sujeito.

Era menos cruel e servidão corporal, onde o explorador só requer o trabalho do explorado. A servidão mental cativa o corpo e a alma. De certo que e melhor a servidao de Deus - a servidão de um deus que não reage fisicamente, que não tem polícia com metralhadoras, nem farmácia de compulsores fisiológicos.

A inteligência tem direito ao metafísico: a teoria da superação fabular é apenas uma hipótese, na lacuna do hiato zoológico. Para trás dela, como desafio, ergue-se a transcendência dos dons animais, imersa no silêncio e mistério da vida.

 

18.6.62

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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