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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Conceitos de Lingüística Fabular
Vida: 1957

A FALA E A LÍNGUA

 
 

O texto abaixo é uma contribuição para a Semana Saussuriana, promovida pela Faculdade de Filosofia da UMG, através do Instituto Arduíno Bolivar, comemorando o primeiro centenário do nascimento de Ferdinand de Saussure, passado a 26 de novembro de 1957.

 

Desde os tempos anteriores a Platão que o problema da fala humana tem alimentado mais de um engano e querela entre os pesquisadores. Refiro-me, é claro, à busca racional, à inquirição do homem aristotélico, velho caçador de objetivações, teimoso criador de objetos, que está sempre hominizando-se, mediante participação na divina centelha do "logos", centelha de luz e de inquietações. Uma inquietação por vezes tão aguda que nos provoca saudades do homem pré-aristotélico, o homem simbiótico, imerso na forte ilusão de seu estado mágico, homem que maneja o "nome" como quem maneja a "coisa", pois coisa e nome se fundem, se equivalem, por forca de poderosa simpatia. Na religião védica, o poder vocabular é da essência do próprio vocábulo. Quem o emprega ritualmente é senhor dos seres, dos deuses e dos homens. Na origem do vocábulo humano preside Vac, imortal e divina, celeste e eterna.

A visão mítica e mágica não desapareceu da área mediterrânea. Pervivendo, ela conviveu com a visão aristotélica. E m Roma, por exemplo, a epigrafia fornece matéria de curioso estudo nas tão populares tabellae defixionis - que são fórmulas de encantamento, fórmulas de "despachos" vocabulares. Mas não está no plano deste estudo rastrear o valor do nome na visão mítica do homem anterior. Interessa-nos agora a visão lógica do homem aristotélico, do homem que achou boa chave de "hominização", no dia em que a filosofia helênica instalou normas para o mundo, de sorte que ele, na expressão de Cassírer, em vez de continuar a ser um brinquedo de poderes demônicos a governarem com capricho e fantasia, então se sujeitou a uma lei universal que lhe rege a realidade e lhe assina os limites de uma intransferível medida. "O Sol não transgredirá seus termos, pois do contrário seria perseguido pelas Fúrias, ministras da Justiça", di Heraclito. Cf. Phil. of symbolic forms, 119.

Quem nos dera que houvesse um acordo entre filósofos e lingüistas e gramáticos e estilistas!

Vinquemos três largos enganos de lingüistas filósofos e estilistas, e vejamos se no fim desta exposição ficam eles sensivelmente configurados.

O engano dos lingüistas está no começarem o estudo de sua matéria pelo "vocábulo" em vez de o começarem pela "fala". É um notável engano de objeto, agravado pelo fato de ser engano doméstico, metido na eira mesma das atividades profissionais. Explica-se ele como um legado milenar: ao vocábulo mágico do homem pré-aristotélico não lhe foi difícil conservar a posição focal da visão mítica, através da incipiente racionalidade da visão aristotélica. Faltou objetivação mais definida e subtil para que se notasse bem a precedência hierárquica do significado sobre o significante, na dicotomia "semainómenon sémainon", entrevista pelos estóicos na ordem inversa "sémainon semainómenon". Dicotomia e ordem que Saussure reinstalou na metódica, sob a distinção que fez entre "significante" e "significado". Esse mesmo Saussure que nos daria a mais fecunda de suas distinções na distinção "língua e fala". Foi pena que lhe faltasse, como antigamente aos estóicos, o sentido da hierarquia, uma visão que lhe inspirasse a ordem "fala língua", em consonância com uma realidade melhor examinada.

Se não fossem tais enganos, a Lingüística já teria empregado melhores energias no significado e na fala, em vez de se ter exaurido, com tanto dispêndio, na preocupação vocabular que a tem dominado.

O comparatismo boppiano, pelo simples fato de mergulhar na história, armou a equação indeuropéia, configurando uma unidade plurimilenar. Endereçou rotas de pesquisa, tingidas embora de miticismo romântico - aquele organicismo herderiano que culminou em Schleicher. Entretanto, com o mesmo Schleicher terá começo a reação naturalista - o neofisicismo da escola de Brugmann - ao submeter a evolução vocabular a uma linha de leis necessárias. Entretida no vocábulo, a gramática comparada não definiu a forma idiomática, demorando-se em insistir na fonação vocabular, cuja evolução prolatória buscou descrever.

Enquanto o idealismo olha na língua o significado, visto como criação do espírito, o positivismo fica olhando o produto fônico, visto como produto natural, sujeito a evolução mecânica. Esse positivismo do século XIX continuou em Saussure, condiscípulo da Escola de Leipzig, mas Saussure abriu as grande portas da Lingüística, ao montar as célebres dicotomias que ele apresentara, enganadamente, como antinomias: "língua e fala" "sincronia e diacronia" "significante e significado".

Na Escola de Saussure ou Escola de Genebra ou Escola Francesa, pontificou o grande panoramista que tem por nome Antoine Meillet, agudamente socializado pelas doutrinas da Escola de Durkheim. O genial professor do Colégio de França ia ensanchando horizontes, abrangendo perspectivas, avivando e retificando linhas indeuropéias, relacionando língua-homem-sociedade, traçando esquemas de generalização, restabelecendo visões da tradição histórica. Mas, enquanto isto, a lição de Saussure ia estreitar-se nos corolários foneticistas do Círculo de Praga e no estruturalismo cabalístico do Círculo de Copenhague. A lingüística descia de lingüística "vocabular" a lingüística "fonal".

Não fossem tais enganos de perspectiva, nós já teríamos a "lingüística da fala", positivisticamente tachada, por Saussure, de lingüística menor, lingüística menos lingüística. (A vontade era de nem relembrar essa restrição, em homenagem ao mestre que catalogou a lingüística da fala. Deu-lhe posição menor mas foi quem a criou.) Fora outra a objetivação e já teríamos uma lingüística da fala, uma lingüística fabular, uma lingüística frástica. Talvez mesmo que se desconsagrasse o nome "lingüística", por enganado, vigorando em seu lugar algum outro nome em que se vincasse o escopo científico de uma disciplina que parte da "fala" e do "significado" para a "língua" e para o "significante". Sob a ação de catálise do sentido, o metodista, orientado pelo conteúdo vocabular, desmontaria as "falas" do homem, catalogando moldes frásticos, moldes melódicos, moldes sintagmáticos, moldes vocabulares, pois tais são os valores "atualizados" na fala que, abstraídos e acondicionados no espírito, aí se fazem valores "potenciais" de uma língua.

O engano dos filósofos, relativamente à língua, está na insatisfação e menoscabo com que a tratam, por não lhes servir bem à expressão racional. É como se a língua já tivesse tal obrigação. É como se a língua, feita e nutrida na expressão do homem com "seu" mundo, tivesse de exprimir "o" mundo, tivesse de exprimir aquilo para que não foi armada.

Quanto ao engano dos estilistas, está na velha tradição escolar que divide a fala, formalmente, em "prosa" e "poesia", guiada a diferença apenas pelo ritmo frástico, ritmo que "era" sinal entre prosa e verso, não entre prosa e poesia.

Dos dois enganos se dará imagem, numa explanação que há de servir ao filósofo e há de servir ao estilista, quando se apresentar diferença entre fala humana e fala transumana: a fala humana como fala espontânea social subjetiva homínica. A fala transumana, como fala metódica técnica: uma, expressão do homem. A outra, simbolização da coisa.


1. A FALA DE PRIMO

Chamando de "Primo" a quem fala e chamando de "Secundo" a quem ouve, imaginemos Primo dizendo a Secundo: "meu cavalo corre depois". Nessa fala, cada um dos quatro elementos aparece em seu estado nominal, estado de frase, estado de fala. Cada vocábulo, devidamente endereçado, está exercendo, de fato, a função de veicular a mensagem que vai de quem fala a quem ouve. Analisemos os moldes desse ato de fala:

1. molde melódico: ouvindo, poderíamos analisar sem imaginar. Mas a frase está apenas visualizada, na fala escrita. Conduzidos por experiência anterior, podemos imaginar o molde, pois os moldes melódicos pertencem ao patrimônio expressivo de uma língua. Essa frase, de mera informação, exibe duas características melódicas comuns: a cadência final do tom assertivo e seu ritmo único de frase curta, montada segundo estrutura cotidiana;

2. molde frástico: faremos idéia do molde frástico se imaginarmos duas outras construções - "corre depois meu cavalo" "depois corre meu cavalo". No caso presente - "meu cavalo corre depois" - os três sintagmas frásticos sucedem-se numa ordem mais apropriada à fixação pós-românica, feita de sujeito verbo e advérbio;

3. molde sintagmático: o molde sintagmático exibe as conveniências sintáticas, levando Primo a escolher os moldes vocabulares pedidos pela concordância: "meu cavalo" -- "corre" - "depois". Primo fugiria ao uso dizendo "minha cavalo correm";

4. molde vocabular: a frase tem três sintagmas e quatro palavras, isto é, quatro vocábulos "atualizados", quer dizer, marcados de seu "endereço funcional". O molde da atualização contém um "espaço mental" onde cabe o vocábulo com seu, morfema, seu indício relacional. O molde vocabular tem um jeito que se fixa na consciência da língua. O nome na frase é palavra e na língua é vocábulo. Reduzida a palavra a estado vocabular, que é seu estado de língua, então surge aquela aparência de estado léxico, visível no dicionário: um vocábulo desflexionado, seguido de seus termos possíveis. Se a palavra na fala é um vocábulo atualizado, o vocábulo na língua é uma palavra potencial. A palavra na fala é univalente, mas o vocábulo, na língua, é plurivalente.

Chamando de sintagma cada valor funcional da oração (meu cavalo/corre/depois) diremos que falar é "dizer" alguma coisa, acomodando sintagmas em moldes frásticos e melódicos.

Elemento importante na inteligência de uma fala é o contexto. Há um contexto "teatral" um contexto "fabular" e um contexto "pessoal".

Do contexto dependem limites sêmicos, densidades e matizes da fala. Uma frase como "ele toca piano", a fim de ser entendida, tem de estar imersa no contexto. Extraída de seu clima, ela é ambígua. Se imaginarmos que seu verbo está no modo indicativo (modo do real atual), então ela quer dizer que ele "está tocando" piano. Se porém imaginarmos que seu verbo está no modo gnômico (modo do real potencial), então ela está dizendo que ele "é capaz" de tocar piano, mas não está tocando piano.

1. Contexto teatral: o contexto teatral forma-se do meio ambiente, o meio espacial, tomado pelas presenças de Primo, de Secundo e das coisas. A vantagem do contexto teatral é favorecer a economia frástica, compensada a dieta vocabular pela "fala de corpo" e pelos "subentendidos" da convivência. A força do contexto teatral é que permite a frase univocabular, a frase de contexto fabular quase zero.

2. Contexto fabular: o contexto fabular consta da estrutura frástica, da melodia e dos sintagmas. Para armar tal contexto, armando a fala, Primo vale-se do seu patrimônio expressivo, isto é, da sua língua - repositório de moldes frásticos moldes melódicos moldes sintagmáticos e moldes vocabulares.

3. Contexto pessoal: o contexto pessoal é o contexto de Primo e o contexto de Secundo, nutrido em ambos pela formação e informação social. É um contexto filtrado em vivências, um contexto variável no tempo e no espaço. É um contexto latente na fala de Primo e na compreensão de Secundo. Imagine-se o valor do contexto pessoal imaginando o valor do nome "cavalo" para vários tipos de pessoas: um criador um veterinário um negociante um cigano um sertanejo um apostador... um inglês. Dizem que para os outros povos cavalo é cavalo, ao passo que para o inglês é cavalo e mais um plus que só inglês sente. O caso é parecido com o do cão, animal que para nós é "amigo do homem" e que para o norte-americano é um "animal de que o homem é amigo". O contexto pessoal é um problema de economia individual: é uma vantagem da capacidade de cada um, da educação, do meio social, da cultura - tudo valores da patrimonialização em que se cria um estado de língua, uma acervação de possibilidades expressivas, enquanto vai cada um recebendo seu mundo traduzido em palavras. Disse Wittgenstein: os limites de minha língua são os limites de meu mundo.


2. A LÍNGUA DE SECUNDO

Analisando um ato de comunicação entre Primo e Secundo, Ferdinand de Saussure escalou os cinco momentos do "circuito da fala" (anuiredacionalmente interpretados):

1.

um conceito no cérebro de Primo

momento psíquico

2.

a emissão fônica em Primo

" fisiológico

3.

o trânsito fônico entre Primo e Secundo

" físico

4.

a audição em Secundo

" fisiológico

5.

a compreensao em Secundo

" psíquico

Induzido por preconceitos de então, Saussure viu na fala de Primo a fase ativa da comunicação e assinalou como passiva a recepção de Secundo. Entretanto, compreender é indubitavelmente uma atividade: Primo cria falando e Secundo recria entendendo.

Buscando situar o momento "língua" na seriação do circuito, o mestre genebrino, excluindo as demais, foi colocá-lo na fase de n.° 5 - a associação que faz o ouvinte entre a imagem acústica e o conceito. No prefácio à tradução do Curso, diz Amado Alonso que o mestre se olvidou de si mesmo, influído pela neogramática de Hermann Paul e pelo associacionismo herbartiano . E conclui: se a residência da língua é o momento de n.° 5, então a língua não existe autônoma e o eixo da ciência da linguagem está na fala, não está na língua.

Vemos assim que o arguto lingüista espanhol inverteu a ordem de Saussure esteado em premissa do mesmo Saussure, fazendo girar todo o seu sistema, positivista, para enquadrá lo na orientação espiritualista. (O reparo sobre tal mudança ainda é de Amado Alonso.)

A escala de Saussure evidenciou um pormenor digno de consideração: a língua cria-se em Secundo mediante falas de Primo. A fala é de Primo e a língua é de Secundo.

Quem fala sintetiza a mensagem, configurada na massa da frase. Quem ouve sintetiza a compreensão, na sintonia dialogal. Passada a sintonia e entrado nas horas vivenciais de sua elaboração interior, Secundo desmonta falas que se resolvem em lingua, em seu estado-de-língua: moldes melodias sintagmas vocábulos. Quem desmonta falas de um grupo social é capaz de sistemar uma língua, pois dos atos da fala nascem os fatos da língua.

Uma conclusão fecha este exame: está faltando um momento de n.° 6 no circuito saussuriano - o momento da língua - que buscava: após a compreensão, n.° 5, vem a absorção mental, a vivência espontânea da ruminação espiritual, estendida no tempo interior de Secundo. Então ele desmancha as falas de Primo em elementos que patrimonializa, acervando recursos que lhe servirão quando ele, feito Primo, também tiver de falar. - Resumindo o circuito em duas fases, transmissão e recepção, teremos de lhe acrescentar, como da língua, um terceiro momento, situado em Secundo: o momento da análise interior, simultâneo e sobre tudo posterior à sintonia dialogal. É uma análise que não carece de ser reflexão nem inquirição lógica. Basta ser uma decantação fluente, uma filtragem vivencial, que sedimenta no espírito em estado de língua, reduzindo a solutos os elementos que Primo transmitira sintagmados, na fala.

O estado de língua está sempre em formação: Secundo aprende todo o dia no comércio de Primo e da vida. Mas a função de Secundo se desempenha sobretudo na infância, quando o menino vai recebendo, nas falas do clã, nos primeiros convívios, os primeiros moldes da sua língua. Se tal Secundo é predestinado, se tem vocação de compreender estrelas e dialogar com o infinito, o mais será questão de progresso interior, no criar de seu mundo, recolhendo o universo embrulhado em vocábulos. Um patrimônio ajuntado nas experiências do meio pode ser como um bom capital que rende juros. Secundo não e só um eco de Primo. Também reage à vida, vendo o que não tinham visto, criando o que antes não era. A análise interior está longe daquela passiva recepção imaginada por Saussure: ela redispõe, remodela, reductiliza valores do patrimônio. Quando Secundo, como Primo, tiver de falar, irá enriquecer de outras imagens outros Secundos.

A língua forma-se por imitação, por habituação, por saturação, por analogia, durante o comércio da vida, segundo a mesmice iterativa do cotidiano.

O infante recebe-a devagar, repetindo, progressivo, o que a tribo lhe ensina.


3. A FALA E A LINGUA

O legado que o século XIX entregou a Saussure continha um erro de preconceito, uma presunção de método e um estorvo de clima: - o preconceito era o do positivismo naturalista, enriquecido de êxitos surpreendentes na quantiação da matéria. Ora, a expressão do homem não se mede por quantia, avalia-se por qualidades. Indo estudar a Leipzig em 1876, Saussure fora banhar-se no foco da neogramática, exatamente na hora da sua declaustração, incubada por Brugmann e Osthoff. A presunção de método foi o neofisicismo, querendo enquadrar a língua em sistema exato e necessário, análogo ao das ciências quantitativas. Desentranharam-na do homem, que deixaram de fora, visto o fruto pelo fruto, sem a árvore. O influxo de clima era o da velha concepção vocabular, referindo a língua não ao mundo interior e sim ao mundo externo. Às coisas e não ao homem.

Saussure afirma a precedência histórica da fala: "historiquement, le fait de la parole precede toujours". Mas a lingüística para ele, a lingüística propriamente dita, era a lingüística da língua. Afirma também que a língua é um acervo de moldes acumulados no cérebro: "une somme d'empreintes déposées dans chaque cerveau". Mas define a língua como um sistema extra-individual, social, de expressões convencionais. Fazia da língua um sistema autônomo, de evolução inconsciente, fora do alcance do indivíduo. Era uma espécie de divindade autogenética, movendo-se em leis suas, e de que a fala era uma ancila.

Não é fácil endereçar um engano milenar.

Em vez de ter olhado a fala como expressão do homem, a lingüística viu a língua como expressão da realidade e tomou-a como realidade, coisa em si, objeto externo, produto de estranha decantação social, inatingível a cada um, invulnerável á o procedimento do indivíduo.

De ter repetido algumas "verdades" do século não nos admira em Saussure. O que nos admira é que tenha podido ver bem o que viu bem, entre a densidade da caligem: não concluiu melhor porque não teve tempo. Não nos esqueça aliás que sua cadeira era de sânscrito e gramática comparada, e não de lingüística geral.

Se a fala é uma expressão do homem, o homem tem de estar no centro e não fora da explicação. Mas o naturalismo era forte e o século XIX ia acabando sob a fascinação do normalismo científico, instalador de "relações necessárias". Hoje o naturalismo está abalado, mas não tanto quanto convinha. A corrente espiritual - Vico, Herder, Humboldt, reassumida em Croce, Vossler, Cassirer - ou representa um momento anterior à disciplina lingüística, esquecido por esta, ou uma efusão marginal, pouco divulgada ou menos aceita.

O binômio saussuriano, invertido em "fala língua", permite algumas discriminações que não permitia a ambigüidade anterior do nome "língua". É uma revolução apoiada em Saussure. Assim, por exemplo, a língua não é uma realidade mas uma abstração, uma possibilidade. Não é do mundo exterior, é do mudo interior. Realidade é a fala, cousa externada é a fala - momento sensível em que os elementos da língua se manifestam. Como expressão do homem, a fala é uma projeção do mundo interior - área em que se fecha a língua, inacessível à experiência alheia. Ninguém pode ficar sabendo a riqueza de língua de um homem calado.

A língua não é um serviço, é uma serventia. É um material de construção, não e uma construção: é um estado de análise, não é uma síntese. Não é expressão, é uma possibilidade. É intra-individual, não é extra-individual. A fala, sim, é que é um serviço, uma construção, uma síntese, uma ex pressão, uma atividade inter-individual, uma atividade social.

No conceito monístico anterior à discriminação, cabia à língua o adjetivo "social". No dualismo saussuriano, porém, a noção de "social" tem de passar à fala, momento inter individual da comunicação, oposto ao momento individual da língua.

O conceito metafísico de língua como entidade auto suficiente, formadora do indivíduo e não formada pelo indivíduo, inspirou a Saussure outras observações eivadas de engano. Diz ele à pág. 30 do Curso que a língua, incompleta em cada indivíduo, só na massa existe perfeita. E que sentiria o liame social que faz a língua quem abrangesse a totalidade das imagens verbais armazenadas em cada indivíduo.

Na verdade, a língua não está completa em ninguém. É uma declaração evidente. Também o homem não está completo em nenhum homem. Todo dia que vive se está completando, se está acabando, sempre recebendo a vida e o mundo, sempre reelaborando falas que lhe rendera reais elementos de língua. Mas se a língua não está completa no indivíduo, é claro que também não pode estar completa na massa, feita de indivíduos. Se há mais língua em Primo que em Secundo, fica visto que há mais língua em um dos indivíduos. Caso alguém recenceasse o total de língua do total de indivíduos, esse alguém, e não a massa, é que havia de alcançar aquele estado perfeito, aqui suposto.

Diziam os positivistas que o indivíduo não pode mudar a língua. Vejamos o que acontece: o homem é um ser instável, sujeito a mudanças no seu mundo interior. Mudado esse, vê-se, que mudou, através da sua expressão, que é a fala. Mudada a fala, muda a língua. - Outro argumento: a comunidade da fala pede três requisites - semelhança entre Primo e Secundo, mundo comum, reciprocidade espiritual. Acontece que a semelhança geral admite diferença particular, que o mundo comum não coincide em tudo e que a reciprocidade pode falhar. Diferença, desencontros, não reciprocidade, são ocorrências cotidianas e que se refletem na comunicação entre indivíduo e indivíduo. Se dessa comunicação resulta um fato de língua, aí nasceu mudança proveniente da acão do indivíduo. - Outro caso: Primo, espírito criador, propõe, na fala, uma novidade que toma curso e estado, aceita por Secundo. Ação do indivíduo.

Concluamos: se o indivíduo oscila e muda, na sucessão dos tempos, também muda sua fala e sua língua. Diga-se que a evolução parece espontânea, que não a percebe quem está de dentro, que o indivíduo costuma não ter intenção de mudar e até pensa que está apenas repetindo. Diga-se finalmente que o efeito individual é infiscalizável. Na verdade porém quem muda a língua é o indivíduo.

Não tendo explorado a força e conseqüência de seu binômio, Saussure continuou a insistir no caráter social da língua, opondo-o ao caráter individual da fala. É uma afirmação que sua premissa manda inverter: a fala é que é social e a língua é que é individual. Social é o homem, com seu ato de comunicação, ato de fala, que gera o fato da língua, uma sedimentação no espírito de Secundo, criando um estado intra-individual. O conceito de intra-individualidade nega o de socialidade. Isso não implica negar que a língua seja um produto social, pois nasce de um ato social e é uma recoleção de valores sociais.

Dizer que a língua é um produto social lembra a inquirição de Humboldt sobre se a língua era um ergon ou uma enérgeia. Situemos o caso, redefinindo linguagem, fala e língua: linguagem é a capacidade fônica de exprimir-se, que Primo tem, como um dom. F ala é a expressão de Primo, uma função da linguagem. E língua é o patrimônio expressivo, uma sedimentação filtrada em Secundo a partir das falas de Primo. No sentido comum, temos ainda as "línguas" - modalizações da língua no indivíduo (língua de Primo) ou no grupo étnico (língua de um povo). A linguagem cria a fala, que gera a língua, que serve à fala. Em termos de Aristóteles, a linguagem é a "dinamia", a fala é a "enérgeia" e a língua é o "ergon". Em termos de física, energia "potencial", energia "atual" e "produto". A fala é uma energia e síntese em Primo e é uma análise e produto em Secundo. A fala é pois uma enérgeia e a língua um érgon.

O estado de língua em Secundo é um estado intra-indivídual, mas Secundo, que ouve, também é Primo quando fala. Sua consciência da língua abrange um valor de efeito extra individual, porquanto ele "sabe" que existe em quem ouve um estado de língua semelhante, um outro pólo de sintonia, na sintonia inter-individual da comunicação. Primo sabe que Secundo e ele foram modelados na matriz da hominice comum, além de afeiçoados nos moldes peculiares do grupo a que pertencem. O estado de língua é uma energia estática pronta a se fazer em luz, no circuito da fala, à hora dinâmica dos intercâmbios.

A fala é um circuito de luz que depende da reciprocidade "expressão compreensão". Sua importância não está no re curso instrumental da "fonação" de Primo e também não está no recurso instrumental da "audição" de Secundo. Está no sentido. A fonação, de si, ficaria reduzida a um mero expandir-se, como o do papagaio - animal que "fala' mas não "diz". A fonação comunicativa tem de ser "veicular". A audição, de si, ficará reduzida a inútil passividade, se não ocorre a compreensão: o nome que se fez "palavra" na boca de Primo não passou de "vocábulo" nos ouvidos de Secundo.

Sua importância está no sentido e o sentido tem um sentido bem mais profundo, quando visto na sua germinação original, na sua estrutura de procedimento que ordena o mundo de em torno, no seu rito de intimidade situado lá nos recessos da alma de Primo. Aí o ato de fala é um circuito de luz interior. Todo ato de fala é ação vivencial, quer seja vivência viva, tomada ainda em seu calor e energia elaborativa, quer seja vivência antiga, já incluída em fórmula que se repete. A importância maior do ato de fala não está na comunicação com Secundo, pois está nessa atitude vivencial de elaboração do mundo. Veremos isto na fala soliloquial.

A fala cria a língua e a língua fornece meios veiculares à circulação, no reino dos sentidos. Se o homem é um produto do meio e a fala uma expressão do homem, então ela é feita de imagens do meio, de ressonâncias do mundo, captadas em vivências expressivamente filtradas. A riqueza comunicável de Primo está condicionada à riqueza de câmbio do meio. Daí a importância do contexto "pessoal", no bom trânsito comunicatório.

A comunicação é um trânsito espiritual entre Primo e Secundo. Nisto difere da arte, pois arte é expansão pessoal. Diz-se que o artista se comunica a sua obra. Mas não se comunica com Secundo. A obra de arte não pede comunicação e sim comunhão. É uma empatia do esteta. que admite simpatia, do contemplador. A arte é comunhão e a fala é comunicação.

Quando Primo disse "meu cavalo corre depois", valendo se de moldes que a língua ministra, ele criou uma fala que tem função e poder. Mas a função não é igual ao poder, porque este depende do contexto pessoal de Secundo. N a fala de Primo viaja a imagem de Primo. Entretanto, não é a imagem Primo que entra na mente de Secundo. O poder é menor que a função. O que a fala faz é suscitar, pela imagem de Primo, a imagem de Secundo. O poder de fala é um poder de sintonizar imagens. Ao dizer "meu cavalo corre depois" Primo associou idéias e vocábulos. Secundo, recebendo os vocábulos não lhes recebe a imagem. Recebe os vocábulos e ajunta-lhes as imagens que lembram, não imagens de Primo e sim imagens de Secundo, cheias daquele sentido que as palavras têm para ele, coradas de vivência pessoal. O que costuma acontecer é a imagem Secundo ser muito parecida com a imagem Primo, segundo perfeições de convivência, de simpatias e mesmices. Afinal, do ponto de vista cotidiano, os dois se encontram no objeto comum que é o cavalo, objeto único, a refletir duas representações vivenciais, uma em Primo e outra em Secundo.

Se falta a Secundo experiência mental sobre algum elemento da fala de Primo, então falha o ato, como na história da criança que foi atender à porta da rua a visita de pêsames. Falou a visita: "diga a seu pai que vim trazer-lhe as minhas condolências". Respondeu, prestativa, a criança: "pode me dar que entrego a papai".

Repitamos que a fala tem uma função em Primo e um poder sobre Secundo: a função de veicular a imagem Primo e o poder de acordar a imagem Secundo. O poder da fala termina à porta do ouvido, onde o termo, lá de dentro, vem encontrar-se com o vocábulo de fora.


4. FALA COLOQUIAL E FALA SOLILOQUIAL
 

Entre os preci.os, os corolários da discriminação "fala língua" está uma sub-discriminação dos dois notáveis usos da fala, usos por que a chamaremos de fala coloquial e fala soliloquial. A fala coloquial é a fala de Primo com Secundo, a fala da sintonia dialogal. A fala soliloquial é a fala de Primo consigo mesmo, a sua fala hominizante.

A fala tem uma função individual muito na5,s constante que sua função social - a do permanente exercício humano do solilóquio, da meditarão, da fala interior. Pensamos por meio da fala e por ela clareamos um objeto, mentalmente. O homem vive redigindo a vida, criando os mundos do seu mundo, enquanto vai descrevendo as coisas e compreendendo a alma, como queria Dilthey. Os filósofos repetem Condillac dizendo que a ciência é uma fala bem feita.

O homem fala consigo mesmo e fala às coisas, projetando ações, rememorando ações, contemplando a vida e comungando com ela. Ama especialmente o cismar, quando o espírito divaga à toa de suas imaginações, em horas menos que de meditação, pois são horas de pensar esmático, horas em que não pensa, mas alguma coisa pensa dentro dele.

A fala é muito mais um solilóquio e muito menos um colóquio, pois o homem fala muito mais consigo que com outrem. O falar a Secundo são momentos rápidos, no estendido contínuo da fala interior. Venham a depoimento o sábio o filósofo o monge o compônio.

Nas horas de fala soliloquial é que o homem se estrutura se constrói se configura se assimila à imagem de si mesmo. Por isso, quando se transmite, num ato de comunicação, ele se exprime se retrata se mostra. Pelo que diz é julgado. E declarou Publílio Siro que a fala é um retrato da alma, sermo imago ánimi, repetido quase igualmente por Dionísio Hali carnássio: a fala é imagem da alma de cada um, eikonas eïnai tès hekastou psyches toas lógous. Repetido, afinal por Buffon, "le style c'est 1'homme même".

A mente do homem é um recinto fecundo de ininterrompida fala soliloquial, no eterno diálogo da vida. Do trabalho interior costumam surgir formas de contribuição que Primo funde e emite, na hora convivial. Se a forma ressoa e entoa, por efeito de sintonias transindividuais, então ela se recebe e tem promessas de incorporação patrimonial.

O mundo interior das vivências é um permanente fluxo de imagens lembranças visões, que o espírito repassa e contempla, ao longo de uma "fala continuada", mais ou menos sonambular e esmática, mais ou coesos vigilar e dirigida.

Quem reflete no que é a fala soliloquial conclui que a reação comunicatória está longe daquela metódica nacionalidade mecânica do circuito saussuriano. O que surge no cérebro não é um conceito e sua imagem acústica, mas um elaborado frástico, em resposta a alguma excitação. Caso uma porta aberta incomode, a reação de a mandar fechar vem numa síntese "feche a porta". Não vem atomizada em prestações da parcela "fechar" mais a parcela "porta". Não vem como um faciendo, já vem como um feito. Um feito que vivências anteriores já haviam instalado na emoção e no espírito e que outras reações vivenciais podem ter des montado em língua, através de atos de compreender e assimilar. Mas que se reapresenta refeito, na hora da comunicação. Ante a coisa que não provoca, Primo olha sem reagir, sem pensar nem ter que dizer. Sentado à mesa de trabalho, ve ante si uma tesoura. Ali está diante mas o espírito, inerte, apenas a identifica vocabularrnente - "tesoura". Entretanto, se dela carece e não a vê, logo reagirá numa proposição que nasce feita: "onde está a tesoura"?. Isso, ainda que fale sozinho, ainda que fale só mentalmente. O que dispara a reação de fala é sempre alguma provocação, algum estimulo, seja vivencial ou reminiscente, pois flui na alma, constantemente, o rio das vivências reminiscentes, traduzidas em falas. Até durante o sono, em sonhos. Flui segundo um ritmo de tempo interior, marcado de uma presteza e de um colorido que se gradua entre as fronteiras do estado vigilar e do estado sonambular. O espírito está sempre falando, mesmo quando Primo resolveu calar. Por isso é que às vezes, após estéril diligência da reação cognoscitiva, de repente, cessado o esforço, vemos surgir a solução, talvez na manhã seguinte a sono bem dormido. Não espanta que Arquimedes, tomando banho, saísse de lá excitado e exclamativo: se buscava um banho e não buscava uma solução, era de admirar que achasse o que não buscava.

E é assim que o homem se hominiza, ultrapassando o plano do animal, transformando estímulos em representações. No animal, o sentido da coisa provoca uma resposta instintiva. Na gazela, um cheiro de leão libera automaticamente as energias drômicas do correr. O animal reage a forças certas de duas linhas certas - pervivência do indivíduo e sobrevivência da espécie. Ele nada sabe e nem carece de aprender, porque a vida sabe por ele. A vida da espécie é uma. equação virtual. Chegada a hora, equação realizada, ela fornece a linha do procedimento. O homem, porém, quanto mais hominizado - isto é desanimalizado - mais se exerceu na sabedoria de sublimar os instintos, de transformar as coisas em seres, criando e selecionando relações. O animal é cervo da percepção direta e da reação mecânica. É um veículo orgânico em que a vida faz seu tempo e jornada, segundo o roteiro fatal da dieta biológica. O homem, aprendendo a acumular as energias da reação, interiorizadas em consciência, aprendeu a recriar o mundo exterior à imagem daquele mundo interior que vem forjando, faz alguns milênios, em conversa com a vida e com a realidade, através de suas lentas e nutrientes falas soli.loquiais. Um dia seu pensamento achou meio de vencer o espaço o tempo e a morte. Foi no dia em que o homem descobriu um jeito de embarcá-lo na simbólica da representação escrita.


5. FALA ESCRITA E FALA ORAL

Outra boa conseqüência da dicotomia saussuriana está na fácil distinção da fala em fala escrita e fala oral. Acabou o direito metódico de se falar em língua escrita e língua falada, expressões completamente falsas. Vendryes chega a incluir a fala escrita no campo da linguagem visual: "Lamimique est un langage visuel. Mais 1'écriture aussi en est un, de même qu'en general tout système de signaux. Cf. Le langage, 9.

De fato, a mímica e a semáfora constroem mensagens vi suais. E há uma escrita que não é fonográfica mas ideográfica. Por ela começou a humanidade e nela está o chinês. A que nos serve, porém, é fonográfica. A fala escrita ocidental é uma fala apenas visualizada e que não deixou de ser auditiva. Perante ela, a função dos olhos não é traduzir a mensagem, como na mímica, e sim transferi-la aos ouvidos, convertendo o elemento visual em vocabular-auditivo.

A nossa fala escrita (auditiva) é ciumentamente nacional. Ora, a linguagem visual não está presa a nenhum dialeto. É uma fala ideográfica, de valência internacional. T em o poder de anular o óbice babélico, entendendo todos e cada um a semáfora no seu particular idioma. A "fala" visual usa uma espécie de língua de Pentecostes: "audiebat unus quisque língua sua". Cf Act. Apost. 2.6.

A fala oral é uma fala auditiva complementada por adminículos visuais: a presença em cena dos interlocutores e das cosas bem como o gesto a atitude o teor fisionômico.

A fala escrita é uma representação visual da fala auditiva. A fala escrita de um autor é um tipo de mensagem teleguiada, uma fala dialogai potenciada: exarada no papel, ali espera algum Secundo venturo. Um bom exercício na função de leitor é adaptar-se o leitor à posição psicológica de tal realidade. Machado, Rui, Vieira, Camões, Homero, cada um é Primo falando ante o leitor Secundo. No ato de ler, é verdade que a rotisa apaga a emoção de conversa, emoção equivalente à de estar ouvindo alguém. A fala impressa exibe aspectos de indiferenca, pelo fato de não se conhecer "pessoalmente" o autor. Entretanto o ato de ler implica uma teatralidade pitoresca: o leitor, sendo Secundo ouvinte, também faz de Primo transmitente. Quem lê uma página de pessoa muito conhecida, muito caracterizada, sente que a, figura de tal nessca lastreia a página com sua presença gesto e voz. É até capaz de provocar imitação teatral em Secundo.

Exatamente a falta de umas tantas presenças é que cria dificuldades à arte da fala escrita. A fala coloquial é uma fala encenada, onde o contexto fabular apóia o efeito semântico numa série de valores do contexto teatral e do contexto pessoal: no contexto teatral, as presenças que facilitam a alusão. No contexto pessoal, os "insubstituíveis" efeitos do padrão teatral de Primo - a voz a melodia o ritmo a mímica a díctica o teor fisionômico.

Na arte de escrever, ausentes tais valores, Primo vale-se de dois recursos: (1) sofrer a carência do incompensável; (2) cobrir com palavras e expedientes visualizantes o que era presença fácil na situação coloquial. Ajudam-no sinais dia críticos, palavras dícticas anafóricas alusivas descritivas. Tem de ampliar a capacidade continente do contexto fabular.

A fala coloquial permite-se economia fabular, apoiada no contexto presencial. A fala escrita obriga-se ao dispêndio fabular, para cobrir uma parte da falência presencial.

Na fala coloquial, Primo fala e Secundo sintoniza. Na fala escrita, Secundo repete a fala de Primo e sintoniza. Para isso tem de saber ler. Ora, para ensinar a ler bem, tem feito falta, nos manuais de vernáculo, alguma exposição metódica sobre os moldes da língua: o molde frástico o molde melódico o molde sintagmático o molde vocabular.

Com tão boa premissa como a de sua divisão "língua fala" Saussure não incluiu na fala a fala escrita. Não pôde sair da tradição, da linha populista do século XIX, com o romantismo ocupado na espontaneidade da inspiração na cional e o lingüista rastreando sinais de genuidade. A fala escrita, sob o nome de "língua escrita", era vista como coisa artificial. Fala era só a coloquial, a fala espontânea do povo. Era um tempo em que os lingüistas se diziam botânicos ou classificadores metódicos da língua natural, tachando os filólcgcs de jardineiros ou cultivadores da planta literária. Era como se a planta do mato fosse planta e planta de jardim não fosse planta.

A falácia do preconceito naturalista levou Saussure à incongruência de afirmar que uma língua pode ser estudada sem a fala: "Ia langue, distincte de Ia parole, est un objet qu'on peut étudier séparémcnt. Ncus ne parlons plus les langues mortes, mais ncus pouvons fort bien nous assimiler leur organisme linguistique". Cf. pág. 31.

No contexto social do tempo do mestre, essa declaração podia receber interpretação aceitável. Hoje, temos de ser mais saussuriancs que Saussure, pois este desavaliava a força de suas premissas. A declaração acima transcrita contém dois enganos:

(1) não é possível estudar uma língua sem suas falas. Querer ver uma língua sem falas é o mesmo que desejar ver uma coisa sem manifestação nem accessibilidade exterior, murada como se acha a língua no interior do estado intra-individual. Repitamos uma afirmação parodial feita alhures: no princípio era o verbo e o verbo se fez fala e só pela fala se vai ao verbo.

(2) não é verdade que sem a fala possa alguém identificar a estrutura de uma língua morta. Nem mediante falas escritas se adivinha um língua morta. O sonho e chave dos especialistas é o texto bilingue, com um dos lados conhecido. Em mais de um caso, é por não o haverem encontrado que os institutos de arqueologia estão cheios de inscrições indecifradas, silenciosas falas mortas, à espera de algum dia de ressurreição.

Estamos conceituando "língua morta'' no legítimo sentido de língua extinta, desaparecida com o povo ou trocada por outra. Saussure, de certo que estava pensando no latim ou no grego, valendo-se de um sentido corrente, falso e não lingüístico. O latim não é língua morta. São línguas mortas, por exemplo, a osca a umbra a etrusca as ibéricas e as céltiticas, um dia eliminadas pelo latim. Uma coisa é língua morta e outra coisa é língua transformada: o português que hoje se fala em Lisboa tem o mesmo nome que atribuímos à língua do tempo de D. Dinis, apesar de que passou por várias transformações. Não se fala hoje um latim ciceroniano ou hieronimiano justamente porque o latim se mudou, ao longo dos séculos. Falamos uma língua instalada na Ibéria faz dois mil anos e nunca ali trocada por outra. Falamos um latim dialetado. E, como o latim é indeuropeu dialetado, temos de concluir que falamos indeuropeu. Como se v., a lógica dos fatos é fácil de tratar abstratamente.

Admitindo, falsamente, que o latim seja língua morta, declara Saussure que lhe podemos sem a fala, identificar a estrutura, assimiler son organismo. Se identificamos o latim do tempo de Cícero através dos documentos escritos de tal tempo, então isto se faz através da fala, pois tais documentos são "falas escritas" do tempo.

A grande vantagem das falas escritas é permitir a escalação dos vários estados de língua de uma língua ao longo do tempo. Este o mais belo efeito da discriminação "sincronia diacronia". Preconceitos de escola impediram que o mestre lhe desse o alcance e flexibilidade que tem. Hoje, expungida de sua antinomia, essa discriminação ajuda o lingüista a compor claros esquemas de estados sucessivos. Cada estado de língua, espacialmente roteado, é uma visada sincrônica. Estados de língua sucessivos criam a perspectiva diacrônica. Quem conjuga sincronia e diacronia alcança uma visão integral. Suponhamos sotopostos, em visão recessiva, os vários estados sucessivos de nossa língua, entre os séculos xx e xv xv e x, x e v, v p. C., v a. C e xx a. C., batizadas tais fatias plurisseculares, teríamos quatro estados dialetais de língua indeuropéia, que chamaremos (em marcha progressiva) de:

I - momento pré-romano

II - momento romano

III - momento românico

IV - momento pós-românico.

Não é possível continuar o preconceito de que não são falas as falas escritas de um Cicero um Virgílio um Agostinho. Um estado anterior de língua só pode ser configurado me diante as falas escritas que ficaram. Fora da fala, escrita ou não, uma língua, estado interior de cada indivíduo, é absolutamentemente inobservável.

Desenganada a primogenitura da língua, é tempo de reconhecer a primazia da fala. Deixem de esbulhá-la os metodistas, como quando alguém exibe as belezas da fala de Rui ou de Vieira e diz que está exibindo "belezas da língua". Quem quiser exibir a língua desmonte as falas, esvazie as estruturas, desmanche sintagmas, empilhe vocábulos, colecione morfemas. Faça anatomia, apesar de que anatomia, pressupondo o cadáver, não pressupõe a beleza.

Os lingüistas do século XIX deixariam Rui e Vieira para os filólogos, metidos no engano de que língua é a língua do povo. É como se a massa patrimonial que serviu à fala de Rui não fosse língua. Ou como se na fala serviçal do cotidiano houvesse alguma possibilidade e vantagem, superando a fala do letrado. Nenhuma fala ultrapassa as dimensões do indivíduo. Os limites da fala de Primo são os limites de seu mundo. Eliminar Rui e cotar um praceiro havia de ser classificar a rudeza e descartar a erudição. E ninguém me dirá que a rudeza é mais propícia à ductilidade da fala, à genuinidade da língua. É tacha da rudeza o viver em menos experiência comunicada, em menor sociabilidade, em menor lucro. Está mais vizinha da indistinção primeira, da comunhão animal, toda pobre em nutrições de vivência. É natural que haja mais riqueza de língua em Cícero do que num campônio latino: Cícero viu mais mundos e mais homens, teve mais coisas que dizer e mais língua com que as dizer.


6. A FALA NASCENTE 

Disse Goethe que se Deus algum dia oferecesse a Lessing a Verdade, este a recusaria, pelo mero prazer de a buscar por meios seus. Aliás, o da pesquisa é um micróbio muito germânico, segundo pode ver-se em outro depoimento, que é de Keyserling. Conta ele: se o alemão visse duas portas, cada uma com seu letreiro - "entrada do céu" e "entrada para uma conferência sobre o céu" - aí o alemão entraria pela porta da conferência.

Lembramos Lessing porque nos parece nem todo mundo havia de imitá-lo, se a História nos oferecesse um registro de nascimento da fala. Desgraçadamente, porém, a nossa notícia do passado abrange apenas uns quatro mil anos de rastreio indiciado, num total de uns seis mil anos de humanidade mais ou menos histórica. Para trás, ficam centenas de milhares de anos cheios de uma presença humana adivinhada, uma presença humana sem história. Ninguém sabe quando o bípede racional lineano começou a "hominizar-se", prolongando a mão no utensílio que fez, homo faber, e ampliando o alcance da sua dinamia na fala que emitiu, homo loquens.

Para nós, o homem nasce depois da língua. Temos de adivinhar que a língua nasceu da fala, ignorando como e quando. Imaginamos que isso começou na madrugada da espécie, mediante o recurso de um vozeio espontâneo e expansivo, num impulso vivencial cheio de ímpeto emotivo, numa cópia melodiosa da alma do mundo entrando pela alma do homem. Deve ter sido poética e simpática, demorada e lenta no configurar da referência mental. E tudo se foi coando na emoção, paulatinamente, através de teimosas iterações balbucientes.

Assim nasceu o estado de língua, gerado na fala pela capacidade expressiva chamada linguagem. Poderia ter começado numa progressiva estilização de gestos e vozeios. Um vozeio ora emotivo ora fonossêmico e impressionista, entre as excitações procedimentais de um mundo inquieto e incerto. Na medida em que o "vocábulo" se foi animando em "palavra" semântica, a estrutura do processo foi revelando, no seu caminho de analogias, o grande roteiro do impulso nomeador. E a colaboração da imaginativa ajudou a plástica vocal no modelar de novas formas.

O estado social era o de um homem anterior, nem abstrativo nem aristotélico nem causal, mas concreto simpático e pânico, reagindo sob aquela impulsividade que a mesmice iterativa ia fixando. O signo, espontâneo, de espontâneo se ia fazendo tradicional e institucional. Está fora dele qualquer jeito que se pareça a convenção e arbítrio, pois a língua é um valor submissamente recebido, uma infusão cotidiana e habitual, quase feito o ar que se respira. Por isso também é uma predicacão infeliz, a que chama de arbitrário um sinal que esqueceu os laços de sua motivação, desligado o nome, através do tempo, do impulso criador que o associara a imagem da coisa.

Assim nasceu a língua, um patrimônio filtrado em Secundo, das falas de Primo. É um conceito de valor notavelmente singularício, que está a pedir reconvenção dos técnicos, ante a facilidade com que se promove a "línguas" os vários dialetos da língua indeuropéia.

Como é o homem, substantivamente uno e adjetivamente vário, assim é a língua, decantação da fala. Da fala que é imagem do homem e espelho da alma. Variando o estado de alma com as gerações, e mudando com elas, o reflexo da variação amostra-se na fala e sedimenta na língua. Língua una e mudável, una e evolutiva. Una e evolutiva como a espécie. Tomemos o legionário que um dia entrou na Ibéria, levando de Roma sua língua. Teve hierarquia e prestígio bastante para, sem a trocar pelas da terra, fazer que aos poucos toda a Ibéria falasse latim. Da Ibéria sairão para Roma grandes nomes romanos, por exemplo os dois Sênecas, Lucano, Marcial, Quintiliano e Trajano. Plantado e nascido na terra, o latim nunca mais foi desenraizado nem trocado. Superou e sobreviveu, nos encontros bilíngües da invasão germânica e da ocupação islâmica, absorvendo o gótico e convivendo com o árabe. Português e latim não são duas línguas, mas o estado latino e o estado português de uma língua, estados que se enquadram na escala de quatro estados da língua indeuropéia (pré-romano romano românico e pós românico). Pobre ainda de pesquisas, a Lingüística só conseguiu rotear mais amplamente a carta indeuropéia. E é evidente que o indeuropeu é também um "estado posterior", ignorando a metódica os anteriores. Fala-se ainda em "línguas sintéticas" e "línguas analíticas". Entretanto, o que existe é sucessão de estados - o estado mais fortemente sintético pré-romano (oito casos no indeuropeu), o estado sintético (menos de seis no latim), o estado quase não sintético da dialetação românica e o estado analítico pós-românico. Historicamente, indeuropeu latim e português são três nomes adjetivos, de três estados adjetivos, de uma só língua substantiva.

Se a História nos ministrasse documentos de mais estados anteriores, poderíamos então assinalar conexões com dialetos semíticos asiáticos africanos americanos ... Poderíamos recuar para a madrugada, lobrigando talvez a fala nascente. Mas onde falha o documento entra a hipótese do analógico. O problema da unicidade da língua investiga-se em termos de sua gênese, interpretada na psicologia étnica.

O segredo da linguagem humana está na capacidade de "representação mental", vantagem que põe distância e hiato intransposto entre o homem e o macaco. Diz Max Scheler que, para além da "notificação" animal, só o homem é capaz de "representação". Rothacker informa-nos que falta ao macaco, no cérebro, a zona motora da fala.

Quando o homem começou a ser capaz de dizer alguma coisa, através de uma fonação veicular, de certo que tinha já repleta de visões a alma curiosa e pávida. Segundo se pensa, o animal não sofre nem frui da intussuscepção do mundo. O instinto não carece de perceber "objetos", diz Bergson. Distinguir propriedades é bastante. (A pedra não é pedra mas o caminho do escaravelho). É próprio da inteligência quebrar a matéria em fragmentos coexistentes e distintos, estendendo o que de si é implicação e compenetração. Enquanto o procedimento animal é uma reação não aprendida, uma reação ao estímulo "coisa" - o homem, diluído o instinto na interiorização conscientizante, aprendeu a reagir ao estímulo "ser". Para o animal, o sentido da coisa está no estímulo que provoca. Para o homem, filtrador de estímulos e vivências, a coisa é transformada em "ser" e o sentido viaja em "nomes" que são veículos da comunicação. O sentido da coisa é um sentido primário, aderido, influindo por presença aqui e agora, hic et nunc. O hic-nunc-ismo do procedimento animal não tem o alcance do álibi et olim, alhures e em outra hora, dentro de cujas dimensões o homem criou o seu mundo, cheio daquela duração interior em que ele "estende" os seres, entes vivenciais e até de razão. Entes cujo sentido, abstraído e analisável, ficou associado ao signo vocabular, na simbiose do "significado" com o "significante": o que era impressão indefinida, diz Cassirer, logo se clareia na expressão de um nome. No nome está o valor de ser, da coisa. Para o animal, existe a propriedade da coisa. Para o homem, a coisa e a representação da coisa. O animal é um ser rodeado de estímulos. O homem, um ser rodeado de re presentações. O animal apreende mas não compreende nem representa. Para todo ser animado, o mundo tem um "sentido menor", feito de estímulo a procedimentos. Para o ser racional, tem ainda o "sentido maior" um sentido compreensível, interpretável, traduzido na relação signo e eoisa. O sentido menor é aderido, pré-idiomático. O sentido maior é móvel, idiomático. O sentido menor pode manifestar-se em signos "funcionais" - uma voz animal, um olor. O sentido maior, sentido idiomático, tem signos "intencionais" para ele criados. O "silvo" é um signo funcional mas o nome "locomotiva" é um signo intencional.

Na fala univocabular da criança infante, o contexto fabular é quase zero. A mensagem tem de ser adivinhada pela família, apoiando-se no contexto teatral e na atitude. O exame de falas do homem pré-aristotélico tem revelado contextos fabulares vizinhos do estado infantil - um contexto insuficiente, cuja arcaíce revela demora na ascensão hominizante. U m contexto dominado pelo valor essencial da sintaxe dos gestos e das presenças. Há notícia de tribos que não se entenderiam no escuro, tão débil semanticamente seu contexto fabular.

Um tal estado de fala revela infância da língua no seu jeito pré-gramatical. paraidiomático, paratáctico, amorfemado, vencido pelo "visual", pela mímica díctica e plástica.

Eis um exemplo de fala para-idiomática, imaginado por George Willis, ap. Urban 68: "Deus fazer céu terra, terra toda escura. Deus dizer vir luz. Deus ver luz, dizer luz boa. Deus pôr luz ali trevas ali."

É uma fase de concretice densa, de particularismo, de peculiarismo, de inabstração.

Observa Cassirer, PSF 190, que o início da fonação fabular parece estar embebido na esfera da representação mímica. O vozeio busca reproduzir a impressão sensória. A designação não lhe basta e ele tenta vincar, no matiz fonético, o matiz fenomênico.

Agraciam-nos os tratadistas com informações de muito saber, quando nos comprovam essa particularice concretista do homem arcaico. Cassirer relembra que o javanês tem dez vocábulos diferentes para dez modos diferentes de "stare" (ficar de pé) e vinte vocábulos diferentes para vinte modos diferentes de "sedêre" (estar assentado). Relembra também que a língua "ewe", para o verbo "andar" tem 33 imagens fônicas diversas, conforme o andar seja forte ou leve, lento ou lépido, firme ou incerto, arrastado ou alto, etc.: é uma riqueza expressiva de fazer inveja a Homero. Homero e seu gosto e uso do peculiar, tão notável nos seus epítetos corados, vivos, visualizantes.

Vê-se que esse homem está agarrado a efeitos do "sentido menor", à inerência sentido-coisa. Ele não diz "a neve" por que sua experiência curta fica repartida entre "esta neve" "aquela neve" "outra neve". E tem um nome diverso para tais "unidades".

Louis H. Gray, Foundations of language 22, cita exemplo de como um kuakiutl nos iria dizer "o homem está doente". Estando o homem presente, a frase é uma e é outra, se fala de homem ausente: "aquele homem invisível perto de mim fui informado jaz doente deitado de costas no chão da casa ausente longe de você." Parodiando o Riobaldo de João Guimarães Rosa, era o caso de dizer que "falar é muito difícil". Se a referência fosse ao homem visível, a frase teria outros adminículos dessa crosta díctica, essa minúcia relacional, toda pegada ainda aos vocábulos nocionais.

Pode ver-se que esse estado mental é anterior ao do indo-europeu, que é cheio também de exibição concretizante. Notaram os lingüistas que o latim era incapaz de dizer "lobo": cada forma do nome, antes da abstração pós-românica, vem marcada pelo endereço casual - lupus lupi lupum lupo etc. Isto é sinal e efeito de inabstração, preso o nome à ganga funcional que lhe impede o atingir estado vocabular mais puro.


7. FALA HUMANA

Primo intuisente julga exprime-se. A fala em que se exprime reflete não o real em si mas o real nele.

Acontece que Primo, quando maior e admitido no grupo, então é Primo. Enquanto crescia, porém, era Secundo e recebia o mundo e a língua, no juízo e na fala de seu clã. Mesmo depois de grande, continua na convivência e lição do seu grupo. Está sempre enchendo-se da sabedoria alheia. S eu mundo, mais que seu, é dos seus. Não o olha para "ver" mas para " verificar. " No meio social pré-aristotélico, a tradição é miúda e o passado governa o presente com um, força ritual constante. Se alguém pensa em mudar, em abrir seu caminho, está sujeito aos possíveis castigos de sua infidelidade. Ser diferente é um pecado que ofende os antepassados. (Isso não admira muito a quem vê que tal tradição, vigorosa, é uma trava forte entre gente tão individuísta e sociabilizada como a gente inglesa.) O mundo é o que se vê e muito mais o que não se vê: o chefe é um intermediário dos poderes ocultos que regem os eventos. Sabe fazer e "falar" coisas capazes de mudar acontecimentos. A palavra é uma alma do ser, um equivalente da coisa. A fórmula ritual é uma arma de conjuração, um recurso vinculador. Produz ou anula o optante e o vitando, pois tem energias simpáticas fatais, endotrópicas e apotrópicas. Para nós a palavra é semântica e designa uma coisa. Para eles, é mágica e evoca uma força.

Com o progresso hominizante da sibi-liberação, Primo viu esmaecer e perder-se o fulgor ritual do nome. O conteúdo vocabular reduziu-se a imagens naturais. Nunca porém à imagem do objeto. U m conteúdo vocabular não é objetivo. Mas, pela sintonia dialogal, Primo e Secundo se encontram no objeto, embora a tríplice fenomenologia do objeto - em si, em Primo, em Secundo: o objeto em si é um potencial de sentidos. O objeto em Primo tomou o sentido Primo. O objeto em Secundo, o sentido Secundo. O impulso da fala em que se representa o objeto Primo é um estímulo da reação em que se representa o objeto Secundo.

O homem aristotélico, buscando ordenar o mundo, tem posto sua peleja na tarefa de obter símbolos que sejam capazes de significar o objeto "objetivamente". Nunca os pode achar, porém, no vocabulário desta nossa fala aristotélica de sujeito e predicado, tornada para mais inviável, depois que a lógica pás-aristotélica, postergadora do substancial e do causal, tem trocado os cuidados da conveniência "a é b" no gosto da diferença correlacional "a maior que b". A língua não serve bem à isenção da ciência porque não foi feita para traduzir o mundo a Primo e sim para traduzir o mundo de Primo. Não traduz o mundo e sim um mundo. Algures diz Cassirer, em Philosophy of symbolic forms: "Vi vemos num mundo de imagens mas não são imagens de um mundo sibi-sistente, pois são imagens criadas pelo espírito. Através delas vemos a chamada "realidade". Entretanto, a verdade mais altamente objetiva que o espírito alcança é afinal uma criação da atividade espiritual." (Grifos não do autor.) Diz ele ainda que no princípio o signo lingüístico tem jeito de mera repetição, mas que, progredindo a forma cultural, sua energia deixa ver, para além da aparente re produção, um ato de consciência original e autônomo. Que cada reprodução de conteúdo admite novo nível de reflexão. Q ue assim cresce o mundo de representações brotado do eu, cheio de sua original atividade formadora, clareando-se as fronteiras do subjetivo e do objetivo. Que a área do eu e do não-eu varia com o nível de cognição.

Essa tomada esparsa de afirmações de Cassirer era um convite a descermos ao roteiro hominizante da fala humana, embora, de momento, não o possamos ir medindo compassadamente.

O nome é uma alusão a algum aspecto físico da realidade. Algum dia haveremos de desenvolver uma hipótese genética das espécies gramaticais, discutindo o verbo o adjetivo e o substantivo. Se é verdade que a mente humana apreende fácil a imagem do estático e tem por subtil a deveniência, também é verdade que mais nos impressiona o movimento da coisa do que a coisa parada. Na fala paraidiomática de Primo, na lenta manhã da primeira estrutura, quando começou a semantizar veicularmente os gritos emotivos que ia estilizando, impressionado com o movimento das coisas, é possível que, entre mímicas e dícticas favorecidas pelas presenças, as vozes semantizadas de que primeiro careceu e primeiro modelou tenham sido vozes significadoras do procedimento, nomes de verbo. Na verdade o substantivo tem todo o jeito de um adjetivo liberado. A distinção hoje vincada entre substantivo e adjetivo não era dos antigos que diziam "nome substantivo" "nome adjetivo". No fundo de nomes como "terra" "luna" "horse" (três exemplos) lateja, para o etimólogo, o "aspecto" físico da alusão, aspecto adjetivo: terra quer dizer "a seca", lona quer dizer "a luminosa" e horse, cognato indeuropeu do latim "cúrrere", quer dizer "o corredor". As coisas não começaram individuando-se ante os olhos de Primo como entidades "substanciais" mas impressionando-o pelo "aspecto", pela "qualidade".

Mas deixemos a hipótese e insistamos na dedução: o nome alude ao aspecto físico. Até as palavras de relação eram antes palavras espaciais. O que caracteriza uma palavra de relação é a subtil abstrateza da função - um menor vigor de sua presença frástica, facilitando a predisposição fossilizante de sua morfologia. Predisposição cancerosa também sensível no advérbio. Aliás, a fronteira advérbio-preposição tem linha menos clara na perspectiva indeuropéia. Ambos servem para situar no espaço e no tempo, duas noções correlatas. Diz Bergson que a noção de tempo é uma cópia da noção de espaço e que nosso pensamento é espacial. Na progressiva criação de seu mundo, é de imaginar-se que o homem foi melhorando intimidades - primeiro com a coisa procedendo, depois com a intuição da não coisa, o espaço visual, e, finalmente, com a intuição do tempo, espaço não visual. Com o alcance mental progrediu a alusão idiomática, em marcha que vai do físico ao analógico e do analógico ao simbólico. Podemos dizer, interpretando Cassirer, que o homem tem sido um animal mímico analógico e simbólico.

O nome representa uma reação de assenhoramento da coisa, uma tomada de posse do mundo, através de um procedimento visual táctil auditivo gustativo olfativo. A densidade e alcance da capacidade representativa cresceu com o homem, ao longo da marcha hominizante.

Disse Anatole France que a fala é um grito do habitante da selva complicado pelo mono antropóide. Ora, podemos imaginar como se deu a complicação:

I. a fala mímica, a fala de corpo, descrevendo um fazer, convidando a um fazer. Cf. a dança guerreira ou a dança de caça do homem tribal.

persiste no homem, bem à flor da manifestação ingênua, um forte resíduo mímico, pronto a funcionar quando a ex pressão nos supreende sem palavras imediatas. Uma de minhas filhas, ginasiana, contou que tendo perguntado a várias pessoas o que é "massa compacta", cada uma de tais pessoas, antes de achar palavras com que dizer o que buscava, logo movia a mão em gesto plástico;

II. a fala pragmática, a fala dramática do homem antigo, quando começou a condicionar vozes coordenadas com o procedimento, vozes costurando a ação. Era uma fala de contexto fabular incipiente, toda sintagmada de presenças teatrais, toda banhada na sintaxe do teor fisionômico, do gesto díctico e plástico. Uma fala cheia de simultaneidades e concomitâncias;

a fala pragmática, imersa no contexto teatral, é de si econômica, mais capaz de imperativos, vocativos e expansões. Confronte-se, na frase "feche a porta", a melodia A da fala injuntiva com a melodia B da fala deprecativa, a melodia C da fala cominativa, etc.;

na fala pragmática, o contexto teatral e o contexto pessoal dispensam as possíveis riquezas do contexto fabular;

III. a fala teórica ou fala reminiscente, uma fala que reconstitui o vivido, caracterizada por seu teatro de ausências, pcr uma economia de presenças que lhe exige progresso da referência alusiva, do gesto plástico, da condensação vocabular;

se a fala dramática é uma fala vivencial, sob a força, in praesentia, do aqui e agora, hic et nunc, a fala reminiscente é revivencial. É uma re-presentação do acontecido em outro lugar e hora, in absentia, álibi et olim;

na fala reminiscente, levado pela saturação revivencial e imaginosa, melhor se obriga Primo ao esforço de modelar vozes e sinais. Nela é que se enriquece o contexto fabular, em marcha para aquela densidade colorida e plástica de um "epos" de Homero. Seu contexto teatral pode ficar reduzido à interpresença de Primo e Secundo. Se a fala é fala escrita, fica então reduzido a zero, incumbido o contexto fabular de suprir com vozes tudo que pode;

a fala reminiscente ou teórica representa a vitória do poder expressivo. É retrospectiva e prospectiva. É natural mente expositiva e enunciativa. É o veículo da tradição grupal, da contribuição individual, da riqueza humana.

Na fala teórica, principalmente na que se elabora na continuidade interior da fala soliloquial, está a fonte maior de enriquecimento espiritual do homem e da língua. Dominado pela preocupação das oposições metódicas, Saussure viu antinomia entre a língua e a fala. Mas, em vez de antinomia, o que existe é uma sucessão cooperativa, uma produção aberta de constante regeneração. O estado de língua, soluto mental, é um estado pró-simbiótico em relação à fala ventura. A fala vinda é uma redução apossimbiótica do que era pró-simbiose no estado de língua. A fala cria a língua e a língua nutre a fala. A língua impõe o uso e a fala muda o uso. Evolvem ambas, juntamente com a estrutura do conteúdo social: no jurídico, no ético, no religioso, no econômico, etc. Recebem ambas o influxo do indivíduo, das transformações do meio, das relações intragrupais e intergrupais domínio material, domínio espiritual, oscilações de alma, de talvegues fônicos, de efeitos aloglóticos. Cumpre referir ainda os efeitos da estratificação vertical: o nobre o eqüestre o plebeu. O senhor e o servo. O intelectual e o artesão. O urbano e o rústico. O cidadão e o peregrino. Cada um tem sua alma, cada alma sua expressão, cada expressão um sedimento, cada sedimento algum valor de língua.

Nos recursos da língua indeuropéia, vista na sua perspectiva quadrimilenar, há recursos para todo tipo de fala humana: a fala estética, literária e afinada. A fala urbana, mediania coloquial do cotidiano. A fala rústica, necessidade de pobre. Dentro da fala urbana, a fala "curial" ou administrativa, a fala "civil" ou polida e a fala "praceira" ou vulgar. Em cada uma, o vinco profissional ou classista, o efeito da gíria e das migrações intergrupais.

Através dos milênios, sob o céu mediterrâneo, projetam se no tempo as cotas viárias da ascensão hominizante e reflexiva, desde a fala verde, vocabular e hipossêmica da idade mágica, até a expressão macia e leve de um Bergson, numerosa e hipersêmica, librando-se na luz difusa e tépida de um sol que não se vê.


8. FALA HUMANA E FALA TRANSUMANA

Lidamos com o nome como sendo uma relação entre significante e significado, entre vocábulo e termo. O nome na fala é palavra, isto é, veiculação do significado pelo significante, apossimbiose do vocábulo e do termo. O nome está longe de ter aquela autonomia tradicional que lhe atribuímos, pois imerso na fala é que vive e, imerso na fala, respira efeitos da fala. O nome só vale na frase e a frase afinal é que vale. Primo fala por frases, não fala por nomes. (Uma frase elementar do tipo "o carneiro desapareceu" estámos trando que o nome pede seu clima, que é o clima da fala. Fora do contexto, não sabemos se esse "carneiro" é lanígero ou hidráulico).

Esquecida disso, a Lingüística se pôs a vincar a importância da língua - esse valor secundário e instrumental, essa abstração reflexiva (pois a língua é uma abstração) - e não quis dar importância à fala - esta sim, valor primeiro, valor do procedimento de Primo, momento dinâmico da comunicação. Vê-se qual devia ser a hierarquia metódica da ciência.

O nome na língua é nome, durante a prossimbiose vocábulo e termo, durante alguma preocupação reflexiva de Primo. Sobretudo porém, o nome na língua é vocábulo - isto é, um veículo desmontado, um significante aposentado, um instrumento à espera da convocação funcional da fala. Nem no estado de língua tem o nome individuação mui segura, visto que na hora funcional a convocação fabular não é do nome e sim dos moldes todos - o frástico o melódico e o sintagmático. Parece que a autonomia do nome é uma pura criação lógica, é a que vemos configurada no léxico, onde ele vem, saliente, com aquele jeito de pegureiro a tanger u n rebanho de sentidos possíveis.

De sorte que o nome é palavra, o nome é nome e o nome é vocábulo.

O nome é um signo, um símbolo: contém uma relação vocábulo-termo, juntamente com uma referência ao objeto. É feito de um molde vocabular mais um molde ideal. O molde vocabular é acústico em Secundo e articulatório em Primo; o molde ideal não é só a imagem do objeto, imagem fruto de um dado visual passivo: contém uma elaboração intelectual da imagem, da percepção e da experiência. Por isso o nome é um símbolo: imagem sensível carregando um sentido

Quando dizemos que o nome evoca não a coisa mas a imagem da coisa, cumpre também lembrar que da mesma coisa nasce a imagem Primo e a imagem Secundo, duas idéias. Um nome não é um vocábulo que "transmite" uma idéia. Somente "veicula" e "suscita": veicula a idéia de Primo e suscita a idéia de Secundo.

Definindo o signo como liame entre conceito e imagem acústica, Saussure, deixando o vocábulo (em Primo), só considerou a "imagem do vocábulo" (em Secundo). Não o definiu em função da fala, só o definindo em função da língua. Isso representa mais um efeito enganado de perspectiva, seduzida a lingüística "vocabular" pela relação di reta, quando insinua relação direta entre o nome e a coisa. Ora, a relação direta não é entre o nome e a coisa e sim entre dois mundos que se comunicam - o mundo de Primo e o mundo de Secundo - mediante alusões ao mundo das coisas. Relação "direta" com a coisa existe é na vivência de Primo ou Secundo. Mas é uma relação subjetiva, inefável, intransferível. Se Primo infunde em nomes um conteúdo vivencial, esta infundição, além de ser imperfeita, não tornou transferível o conteúdo. Secundo, sob a empatia de uma vivência objetivamente semelhante à de Primo, então poderá perceber e entender a mensagem, não porque ela esteja na fala de Primo e sim porque já estava, análoga, na vivência de Secundo. Comunicação não é transmissão. Comunicação é "sintonia" que pede dois pólos de vivências análogas. Imaginemos que Primo, infundindo na fala o conteúdo vivencial de uma observação feita, dissesse: "a psilose é um fenômeno característico do eólio pré-histórico" e isso fosse dito perante um Secundo leigo no assunto, um Secundo ainda em estado anterior às vivências que tal comunicado pressupõe. Essa frase lhe ressoaria inútil nos ouvidos, não passando de frase oca, não passando de mera psilologia.

A definição lingüística do nome tem importância "funcional" para a fala. É bom que o signo lingüístico venha caracterizado como um portador de sintonia que, veiculando a idéia de Primo, suscita a idéia de Secundo. O mestre genebrense melhorou a opinião tradicional de que o nome exprimia a coisa, ao vincar que exprime não a coisa mas a idéia da coisa. Agora é tempo de eliminar, como resquício de fisicismo, toda fluidez que ainda permita insinuar que seja o nome um instrumento de relação "direta" com a realidade, pois a fala forjou os nomes como instrumentos de relação entre Primo e Secundo. A relação de Primo com a realidade é uma vivência, uma "comunhão". A relação de Primo com Secundo é uma "comunicação" da vivência. Comunicação em que medeia a fala, feita de nomes que aludem a idéias, feitas de aspectos que aludem à realidade.

O mundo interior de Primo, elaborado em vivências e repercussões do exterior, também se enriquece tradicionalmente, na milenar participação da experiência social. Mas é um mundo insanavelmente subjetivo, mundo de Primo, seu mundo. A permanente consulta social da marcha humana vai filtrando, das coisas, uma imagem passavehnente comum, possível de ser tomada como "objetiva". A objetividade, em fim de contas, é uma síntese residual do subjetividades. No esforço de captar a imagem objetiva, o homem aristotélico filosofou, coando a fala humana como pôde. Mas pouco fez, pois o real é inefável. Nossa língua foi feita para exprimir não o real mas o homem e suas relações com o real. Tudo que ela veicula vai tingido de participação humana. P ara uma fala "objetiva" a ciência precisa criar outra língua; já está cheia de símbolos seus. Entretanto o que ela consegue, ante o objeto, é desimplicá-lo em propriedades que manipula, é desintegrá-lo em procedimentos de aue se evola, desprendi da e subtil, a energia liberada. Feito câmara de ar que furou.

Disse Charles Nicolles em La nature: " Vers l'imbécilité d'une société mécanique 1'évolution de notre civilisation nous entraîne". Einstein sobrepunha humanamente, à teoria da relatividade, uma sinfonia de Beethoven. Infelizmente, porém, não só da palavra de Deus vive o homem e é legítimo o reclamo das ciências físicas por uma língua sua, visto não lhes servir mais a precisão minudente, o palavreado macrossemântico da língua humana. É tamanha a distância entre a laxidão macrossêmica da fala comum e a subtileza microssêmica de uma codificação metódica ideal, que se criou, no sentimento moderno, uma nova oposição referencial. Antes, para estetas e estilistas, a grande extremação caracterizadora era entre prosa e poesia. O formalismo chegava a confundir a poesia com o verso, agravando um contraste apenas fundado em qualidades sensórias da expressão. Na medida_ em que a arte foi "libertariando" a fala, de certos ritmos tradicionais, e esmaecendo a diferença formal, o esteta, a fim de graduar poesia e não-poesia, foi buscar um medidor de dosagens para o quantum de participação. A gora, tanta isenção requer a ciência para uma fala objetiva (sem participação) e tanto se criticou nossa fala por não ser capaz de se exprimir objetivamente, que a grande oposição não é mais entre prosa e poesia e sim entre fala natural e fala científica. A fala humana, macrocósmica, aristotélica, vivencial mas capaz de lógica, e a fala transumana, microcósmica, simbolística, logística.

A fala humana é natural racional espontânea fantasiosa sintética ética estética patética. Nasceu em simpatia e simbiose, visto o mundo como espetáculo e função da alma, na palpitante geometria de suas formas gratuitas, na vida múltipla de sua criação, na estesia intuitiva de sua oferenda, na irracionalidade harmoniosa de sua presença, na permanente inquietação de suas deveniências. Em tal mundo se afundou o espírito de Primo, unido em comunhão de vida, em participação elaborada, em ordenações vivenciais que a linguagem configurou em vocábulos sempre capazes de replenação, em imagens sempre remodeláveis, ao longo da marcha hominizante da espécie, sob o influxo de perspectivas novas da ascensão estética ou do amadurecimento racional. Com essas imagens foi criando o seu mundo, distribuído em idéias que a mente guardou, representado em nomes que a língua fixou. Primeiro foi a visão mágica do homem arcaico, fundido num orbe sem claras fronteiras de eu e não-eu, buscando, através da energia conjuradora da fala vocabular e sibi-sistente, a sua quota de participação nos eventos. Depois foi a visão plástica de Homero, imageiro de homens e deuses, na palpitante e sonorosa oficina de suas falas atléticas, esculpindo um mundo igualmente repartido entre homens e deuses. Finalmente, na centelha do logos helênico, a ordenação do mundo em figura de cosmos, um cosmos que se libra em harmonia se rege em lei e se entende em razão. Com ele surgiu o homem aristotélico, em quem o cristianismo, depois, imitiu alma imortal.

Apesar de ser homo sapiens, Primo é um animal que ignora. Exprimindo-se pela fala, acumulou na língua, através de acertos e enganos, um vasto acervo de enganos e acertos. Medindo e pesando o mundo, o homem tradicional deu preeminência à qualidade, avaliando-a com esmero. Mas a ciência moderna, porque qualidade não se pesa nem mede, tachou de metafísica o axiológico e entrou, concentrando no físico as atenções da metódica, entrou na intimidade da matéria. F oi aí que se viu sem palavras para dizer o que lhe era "indicado" pela abstração. Dizemos "indicado" porque a ciência não "vê" essa última intimidade equacionada. Quem avança no rumo do simbólico, observa Cassirer, está afastando-se das fontes da intuição. O conhecimento simbólico é uma cognitio caeca, na frase de Leibniz.

A fala científica é uma fala que pretende ser mecânica racionalizada isenta equacional exata analítica ascética as séptica simbolística objetiva. A inspiração logística está - con vencida de que a fala humana contamina a expressão fundamental da natureza (Whitehead). De que ela já não serve à nova realidade, feita de deveniência e duração, porquanto só consegue rotular o que é estático (Bergson). D e que o livro da natureza foi escrito em cifras que só o matemático sabe ler (Galileu). A fala científica é uma sistemação do procedimento da matéria, pesada medida e contada. Elimina de si toda e qualquer participação humana, qualquer resquício de simbiose, de miticismo, de misticismo - tudo que seja a milenar residuação de que está cheia a fala humana, esta imagem do mundo em nós. A fala científica é transumana: embora não o contenha, quer apontar somente ao objeto, à coisa em si.

A fala humana é intuitiva, estética. A fala científica é logicizante, conceptiva. A fala humana exprime o homem cotidiano. A fala científica ordena a matéria.

A fala humana é subjetiva expressiva simbiótica participada. A fala científica é desintegrante, denota.tiva, conceituai, manipulatória.

A fala científica busca uma relação "nomenres", mas o nome, diz Bergson, é um véu que está posto entre o espírito e a realidade. Ou temos a ordem "res Primus nomen", estado de expressão em quem fala, ou a ordem "nomen Secundus res", estado de recepção em quem ouve. Entre "res" e "nomen" está "Primus", entre "res" e "Secundus" está "nomen".

Na fala humana, o fato de dizer já traduz uma interpretação que tinge de subjetivo a coisa objetivada. Na fala científica a notação busca ser isenta. Ela não diz, manipula. O mundo exterior do físico é um mundo de símbolos, que, em vez de água, contém H2O.

Vendo que o axiológico não deixa resíduos nem gráficos, então alguns técnicos da fala científica aperfeiçoaram a teoria nominalista: negando o nominalismo os universais, o neonominalismo passou a negar os individuais, diluídos num fluxo de sensações: nomear é criar ficções. O sentimento de fluidez do substancial raleou o prestígio do nome e da língua, vista como incapaz de veicular a nova imagem da realidade. De fato a língua se fez na cotidiana imaginação macrocésmica do fenomênico, do sensível, do aspectivo, na conseqüência de velhas reações que Primo captou do mundo e não na leitura de misteriosas inscrições que a realidade gravou em aparelhos. A função da fala não é modelar o mundo de fora, que está no cosmos, e sim o mundo de dentro, que está em Primo. É natural o apela e empenho da ciência, na medida em que avultou a crença galileana (o livro da natureza escrito em cifras que só o matemático sabe ler). Descartes, escrevendo a Mersenne em 1629, pedia uma língua universalis para a mathésis universalis. Natural também o cuidado de insistir na inutilidade da fala comum. Era cuidado de bom servir e bom avisar, porquanto os lingüistas são tarefeiros de outra seara, a des fatos da língua em si. Mal lhes chegava o esforço para ajuntar provas, coordenar princípios e armar alguma teoria. Do que "diz" o nome, coavam historicamente alguma interpretação tradicional helênica. Amarrados ao engano de estudar a língua pela língua - apesar de que a língua se estuda é pela fala - também ficaram amarrados à lingüística vocabular, uma lingüística presa à individuação nome-coisa, confundida em premissas que podiam levar a fórmula "Primus (nomen) res", como se o nome significasse o que está na coisa. Ora, a fórmula tem de ser "Primus nomen (res) ", pois o nome alude ao que está em Primo e não ao que está na coisa.

Antes de Saussure, ninguém vincara a distinção "língua fala". Haver tomado essa discriminação como base metódica foi até hoje o melhor mérito do mestre e de toda a Linguistica. Faltou-lhe ver porém, impedido no seu tempo, que a língua se estuda pela fala. Hoje, amadurecida a discriminação saussuriana, e vendo o lingüista que a língua é um recurso interior extraído da fala, também pode ele vincar uma conclusão que deve servir de aviso aos cientistas: a fala exprime o homem e não o mundo.

Se a fala exprime o homem e não o mundo, se a fala exprime Primo com seu mundo, então se resolve em problema individual o problema do mundo de Primo conter mais, ou menos, formas e imagens da realidade. Na medida em que cada Primo se fizer um Einstein, a língua criará (se todo mundo é Einstein) a língua criará meios de dizer o que a simbolística anda ainda "apalpando", ao abrir intuição à cognitio caeca dos manipuladores da realidade. Contra o perigo de algum excesso de esperanças, valha uma premonitória bergsoniana, quando nos diz que o absoluto não é de nosso inventário: l'essence des choses nous échappe et nous échappera toujours. Nous mouvons parmi des relations, l'absolu n'est pas de notre ressort, arrêtons-nous devant 1'In connaissable. [ Évol. introd., iii].

É da lingüística examinar a genuinidade da expressão. Mas isso de ver se traduz o real ou não traduz o real, isso é questão de epistemologia, uma questão de conhecimento e tomada de posição ante a realidade. A razão ordena o mundo. P ara isso, não é a língua que impede o cientista e sim a ignorância humana, um entrave social que pede tempo. O recurso expressivo, moeda fiduciária da intercomunicação, é um bem comum que sedimenta devagar. Se é bem comum não é bem de privilegiados, que mergulharam fundo na razão do mundo. Não admira que a ciência tenha de lutar com seu dialeto cabalístico. A expressão nasce lenta, paciente, decoada em vivências incertamente tradicionais. Só há o real ante os olhos do homem que o olha. Mais do que do homem, é um real intuído pela humanidade, o grande filtro da ascensão hominizante, em marcha que se tem nutrido na permanente preocupação do axiológico. Não deixa de ser suspeito o apressado metodicismo neonominalista, ao excluir do sentido o que não oferece paciência à verificabilidade. A verificabilidade fica bera ao mundo físico, mas há também o mundo não físico, o mundo espiritual, muito mais mundo que o mundo. Se o reino do sentido empírico, o reino do físico, é o reino do verificável, o reino do sentido espiritual é o reino do autenticável. Na lógica pós-aristotélica, chamam de pseudoproposição, de frase aparente, simulação do real, a frases como "Deus é justo" "a alma é imortal" "o homem é um caniço pensante". Na lógica aristotélica, elas têm sentido idiomático e sentido vivencial. Reclamando sua língua, faz bem a ciência. M as não faz bem ao menoscabar, por não lhe servir - e como se fora criada para tal obrigação - a língua que o homem fez para si e não para o real. Destino de fim muito mais nobre, lidando em mundo muito mais alto que o da matéria, pois além do físico verificável também abrange o metafísico, autenticável.

No fundo da proveta de análise do neonominalismo, tão metódico e tão físico, está contemplando um procedimento da matéria o homo ludicus, um soluto final da moderna redução racionalista, ao coar do "homo sapiens" o "honro immortalis", convertidas em nada a ética a estética e a religião o Bem a Arte e a Divindade. Será um homem condicionado mecanicamente o novo homem lúdico, homo ludicus mechanicus. O derradeiro tipo natural de homem lúdico foi o "guerreiro" alemão, resto de um instinto de poder da tradição indeuropéia, que a técnica ocidental fez desaparecer. P ara ele, a guerra era um "brinquedo" homérico. Excluída, na guerra, a forca do homem pela força da máquina, a batalha virou destruição mecânica. Sonegado o homem espiritual, desmontado e reduzido o mundo a "mundo", teremos frente a frente o mundo e o homem condicionado para com ele brincar: teremos a matéria do mundo, traduzida em fórmulas de estruturas diferenciais, e o homem brincando com ela: ludens in orbe terrarum.

Nisso e disso vai entendendo bem o homem ocidental, visto aqui "ocidental" como espaço contemporâneo, estendido de cá e de lá desse novo meridiano de Greenwich denominado "Cortina de Ferro". A Rússia é um fruto prático e violento da teoria racionalista européia. A diferença, nos dois lados, é talvez um caso de gradação de sinceridade: lá, confriada, crua e dura, a nova afirmação. Cá, declarações líricas dos antigos princípios humanos, entre a burguesice de uma atitude social sem convicções. O que o homem atual está que rendo é apenas brincar com a matéria do mundo: como a terra já é pequena, ele busca emoções lúdicas nos seus planos de projecão interplanetária.


9. HOMENAGEM

Alguém achará que é paradoxo homenagear Saussure contrariando Saussure. A explicação está em que nossos pontos de vista são conclusões de premissas dele. Partimos do fundamental, do substantivo. A discordância não é com ele mas com o fisicismo que o enleou. Saussure não teve a sorte de ter por mestre a um Saussure. Seus enganos são enganos de seu meio.

Parece-nos que a lingüística lhe está devendo a obrigação de explorar a dicotomia "língua fala", depois de hierarquizada em "fala língua". Em 50 anos o "Curso" envelheceu. Em sua escola, Meillet trilhou os bons caminhos da abrangência, mas o foneticismo de Praga está encantoado no restrito: a intencionalidade, a alma da fala, embora refletindo-se nele, não está no fisiológico da prolação. O foneticismo está no seu método e no seu direito. Mas acontece que inundou demais a área do interesse lingüístico. Pior ainda é o estruturalismo nórdico e "port-royaliste" do Círculo de Copenhague.

A semente germinou e os frutos estão continuando. O mais sugestivo deles é o que nos abre aos olhos a perspectiva diacrônica da "língua indeuropéia", perspectiva de uma só língua, deixando sentir a Primo que está falando a mesma língua em que Camões dizia "pai", em que Vergílio dizia "pater", em que Homero dizia "patér". A mesma língua em que, por outro dialeto, faz 50 anos, Saussure nos transmitia a luminosa lição de sua genialidade.

 

NOTA DO AUTOR: Cabe aqui um destaque bibliográfico das seguintes obras, fontes de mais de uma referência:

1 - WILBURN MARSHALL URBAN. Lenguaje y realidad. Mexico, Fonda de Cultura, 1952;
2 - CASSIRER, ERNST. The Philosophy of symbolic forms. New Haven, Yale University Press, 1955;
3 - BERGSON, HENRY. L'evolution créatrice. Paris, Librairie Felix Alcan, 1930.

 

 

 

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