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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

ETIMOLOGIA DO PODER FABULAR [*]

 

O MODO ZOOLÓGICO

Para os procederes que terá, cada indivíduo animal recebe, na progênie, o seu legado específico, a sua dose formulária de energia biológica, pronta para reagir, oportunamente, às injunções de simbiose com o meio espacial. Esse patrimônio de saber infuso, na vida miúda, é um poder que nos maravilha, subtil e complexo. Cada estímulo provoca, no indivíduo da espécie, a exata resposta. Na vida graúda, a fórmula pode ampliar-se adjetiva em modalizações, que a memória conserva, que o indivíduo introduz e a memória da espécie incorpora, fomentando a evolução. Na franja da herança, parece que a vida reserva, contra determinações contingentes, uma espécie de adaptação oportuna que, sob a coerção estimulada, estiliza a resposta: voar, por exemplo, deve ter sido uma possibilidade germinal que a dosagem do meio exigiu e o conato individual aperfeiçoou. Teria sido esse, talvez, o modo de a iteração inscrever, no testamento da herança, novas habilidades específicas.

Nos hábitos zoóicos, é difícil discriminar, sobre tal pormenor, se é um bem do patrimônio específico ou um bem particular do indivíduo, fruto peculiar de conquista. Não se decifra o informe do bruto no iterado vital do proceder, visto ser fechado, sem contatos mentais, na sua opacidade intransitiva, sem Sujeito. Sabemos de sua inteligência de ensaios, capaz de descobrir um recurso emergente, sob a pressão de um fazer, mas, porque trabalha calado, fica difícil de identificar, na sua faixa de habilidades, entre uma proveniência genética e uma adveniência experimental. Vemos, nos seus fazeres, como reagem ao estímulo. podemos adestrá-los, afeiçoando condicionamentos fundados em habilidades da espécie, mas não podemos ver-lhes consciência, patrimônio que não têm.

Nota 1: O som do gonzo, fazendo parte do estímulo, na hora de pressentir, não faz parte entretanto da comida - é um signo livre, concomitante: n vezes repetido, foi capaz do efeito ensalivar.

Nota 2: O vozeio zoológico do primata, concomitando o agora de um fazer de parceiros, era também apenas livre. Entretanto se fez signo liberado quando se fez capaz de sugerir um outrora comum da lembrança, no agora espacial de um fazer.

Nota 3: Ante a idéia sensível da coisa presente, gestos e vozeios exibidos, capaz de representar uma idéia de outrora, vinda de um passado fazer.

Nota 4: Era um início de convívio para o co-viver gregário, espacial. Era o vestíbulo da idéia temporal intelectiva, que o signo liberado e fabular veiculava na lembrança dos parceiros. Centomilênios de paciência progressiva deram perfeição pós-natural ao exercício cogitante assim habilitado.


CONDICIONAMENTO

O animal é um ser condicionável. Melhor visto no seu teatro natural, sob o ritmo espontâneo do viver. O dirigismo doméstico parece mais uma lição de educar do que um exercício de medir. Entretanto, foi numa experiência dirigida que se formulou a teoria do condicionamento fisiológico, título de celebridade para Ivã Pavlov, 1849-1936.

Condicionar é inserir num hábito vital o pormenor de um procededor. A vida está cheia de situações condicionantes, situações que muito cedo o homem descobriu desde sua antiga hominidade, explorou-as na arte de adestrar. Segundo indícios arqueológicos, já conhecia a docilidade do cão faz mais de duzentos milênios. Como prova comum de um condicionamento espontâneo ou tecnicamente não programado, podemos citar, entre bichos domésticos, o exemplo do boi que vem de longe, para o trato, a um chamado de buzina. Ou o exemplo de um cão vadio, que foge ganindo, sob a ameaça de um gesto de pedrada. Ou também um cavalo militar, que se move em sua baia, ao ouvir o toque de ração, entre os vários toques do quartel.

Ante o fato de o cão ensalivar, ao perceber a comida, Ivã Pavlov resolvera implicar, na apresentação do alimento, um estímulo auditivo. Após o conveniente número de vezes, notou que o animal ensalivava, só de ouvir o som. Conseguira pois, metodicamente, determinar uma resultante metafórica: derivara para o equacionado som e cão a resposta ensalivar, própria do equacionado comida e cão. Incluíra a eficácia de um estímulo primeiro no poder de um estímulo implicado, concomitante.

A experiência de Pavlov, laureado Nobel de 1904, acontecera no fim do século passado [século xix ], tempo da glotologia neo-gramática [ sic ] e da lição de Saussure em Genebra, após haver deixado em Paris a semente da Escola Francesa. Trescalava no ar o sociologismo durkheimiano. Vedava-se discutir as origens do poder fabular, no intuito de se garantir, contra fantasias inverificáveis, a objetividade da ciência glotológica. Esta, picada pela mosca-experiência, queria desertar os arraiais da história, trocados por um quartel do natural e, fechando-se em especulações da própria fantasia, orgulhava-se de estar construindo uma ciência autônoma, com matéria prima de um dom especificamente humano. Estava longe de se poder interessar pela experiência animal de Pavlov. Faltando-lhe oportuna madurez, deixou de ver a ponte natural que o fisiologista russo identificara. Ponte e ponto de passagem, no patamar de uma superação que mudou um piteco em antropo. a experiência de Pavlov, com o princípio do condicionamento, mostrou a chave da glotologia.

 
O TERCEIRO SISTEMA

Foi o mesmo Pavlov que chamou a linguagem de segundo sistema vendo como primeiro sistema o sistema em que o estimulado reage direto ao estímulo da coisa, isto é, a um signo aderido. No segundo sistema, o estimulado reage, não ao signo aderido, mas a um signo livre, inserto na equação de um fazer.

Louva-se a discriminação de P avlov, mas podemos dizer que ela ainda não chega, visto não haver atingido a essência do poder fabular. Detendo-se na imanência espacial, deixou de vincar, no signo estimulário, a transcendência temporal que se operou. Tanto no primeiro como no segundo sistema, o estimulado reage a uma coisa, seja como signo aderido ou inerente, seja como signo livre ou não aderido. O segundo sistema, de poder metafórico, transfere extensivamente a eficácia da equação original (indivíduo e coisa ic) para uma equação derivada (ic'), onde a função do novo signo (implicado) assume normalidade de signo aderido. A mesma resposta ensalivar, tanto para cão / comida como para cão / som provém do estímulo de uma coisa. O signo contingente ou implicado, sendo livre, não é, porém, um signo liberado, como acontece na equação fabular, que não é espacial, mas temporal, nem tão pouco uma fatoração indivíduo e coisa, mas uma sinergia mental sócio e sócio. mediante u m proceder que, transcendendo a espacialidade do agora vital, imerge no outrora vivencial da duração reminiscente, reino de idéias revocáveis e de vozeios revocantes, prontos ou liberados, no seu potencial estado de língua, para as iterações atualizantes da fala.

Cumpre então admitir três sistemas de proceder: dois deles são espaciais, próprios da economia zoológica, na sua ordem natural, e movem equações de um fazer. O terceiro é temporal, próprio da economia antrópica, de especificação pós-natural, e move equações de um pensar :

(a) no primeiro, o estimulado reage ao excitante original da equação indivíduo e coisa. movendo-se num proceder vital, o cão reage à presença do alimento;

(b) no segundo, vale a eficácia de um signo implicado, mas dentro da equação indivíduo e coisa. Movendo-se em proceder vital, o cão reage à presença do som;

(c) no terceiro, embora seja o vozeio uma coisa espacial e sensória, a intenção fabular (secundarizando a equação ic, promotora de procederes vitais) inventou a equação vivencial sócio e sócio, estimulando um proceder que se move no tempo (que é o tempo de um cogitar) e não no espaço de um fazer. O sócio Primo, reagindo à lembrança de um signo fabular, abre oferta de sintonia mental ao sócio Secundo, capaz de também reagir, analogicamente, à lembrança do signo. Um parceiro, tendo pensado, é capaz de fazer o parceiro pensar. Como na fala pragmática, só depois do proceder intelectivo passa o outro a fazer receitado (momento vivencial) o momento vital. [i]

Nossa hipótese, pois, faz começar, a etimologia do poder fabular, no segundo sistema de Pavlov. Começou entre Primo e Secundo, ao longo de atividades comuns, integrados em fazeres de parceragem [ sic ]. Sob a eficácia de iterações condicionantes, vozeios naturais e zoológicos, implicados no proceder de resposta, animados de uma intenção, entre gestos e presenças teatrais, tornaram-se capazes de representar, no agora espacial do momento, uma idéia presente na lembrança, fruto de iterações conviviais, guardado, vivenciado, no celeiro dos outroras.

Foi este o grande achado hominizante: inventar um meio de levar consigo, para o outrora, a significação [ sic ] de seus agoras. Um meio de temporizar a espacialidade na lembrança. Um meio de suprir a passividade reflexa do fazer animal, transfeito em matéria prima da atividade cogitante, capaz de reformular uma resposta, mas vivencialmente tratada, e com ela voltar aos recontros vitais.

Implicado nos fazeres espaciais, o vozeio concomitante absorveu lentamente conteúdos semânticos, essenciados em lenta diacronia, lentamente se estilizando, como signo fabular, cooperativamente afeiçoado, em lenta diligência, na lenta diligência dos parceiros. E o ato de fala, promoção pós-natural, foi deixando para trás, no seu ponto de origem, a naturalidade zoológica primeira: conseguir transformar-se em veículo temporal de sintonias mentais, embora houvesse começado com poderes espaciais, próprios da economia animal, como o poder da empatia, da mimese e do vozeio.

É fato comum entre os animais implicar, em certos procederes de resposta, certos vozeios e certas atitudes gesticulares. Portanto, a criação da fala, estilizando gestos e vozeios, não fez mais que estilizar recursos já existentes, em lenta sublimação. A diligência inter-individual banhando os agoras em praias de outroras, tingiu seus gestos e vozeios com o poder de lembrar, transfeitos em gestos semânticos e vozeios semânticos. Ampliou em gesto e vozeio de um pensar o que era gesto e vozeio de um fazer. No espaço teatral, entre presenças e moveres, influiu-se um conteúdo semântico, veiculado na feição visual da plástica gesticular e na feição auditiva da voz emitida. Pouco a pouco, entretanto, por melhor disponibilidade temporal, o vozeio foi assumindo a responsabilidade maior, tanto na fala interior (função intra-individual do cogitar) como na fala exterior (função inter-individual das sintonias mentais). Tanto no solilóquio, ordenador de idéias e invenções com que progride a hominidade, como no colóquio, momento bipolar de lembranças comuns, na memória comum de passados fazeres, mas sobretudo momento docente, que distribui hominidade entre os membros do grupo, no teor das idéias semeadas.

Instituída a fala, exercício inter-individual hominizante, seu hábito foi distribuindo a cada sócio um patrimônio intra-individual chamado língua. Fabularmente provocado, o sócio Secundo foi capaz de entender a expressão do sócio Primo, hábeis ambos, sob o estímulo reminiscente do signo, para a função de se reportarem, num agora espacial de presenças, à presença de outroras temporais.

Foi assim que o vozeio atingiu a eficácia de um ato de fala, tingindo-se em qualidades assim de um proceder teatral. Conseguindo veicularidade semântica, mobilizou intenções de sintonia mental, facultando uma conferência de idéias que o bruto não tem. A sinalização auditiva, apoiada na subvenção visual, tornou-se capaz de, num só proceder, manifestar a idéia de Primo e suscitar a idéia de Secundo.

Saussure (1857-1913), influenciado pelo mito sociológico de seu coetâneo Durkheim (1858-1917), insistiu na teoria da língua, fato social, oposta à fala, ato individual. Viu na língua, sibi-sistente e autônoma, independente dos indivíduos, qualidades que Durkheim atribuíra à sociedade, vista como um real dinâmico e sibi-dirigido, independente dos indivíduos que a compõem. A meta sociológica, era estudar os grupos sociais em massa e considerar os fatos sociais como coisas. A meta glotológica, para Saussure, era estudar os fatos lingüísticos na massa, vendo na fala, expressão individual, uma simples conseqüência do uso, isto é, uma consequência da língua, esta sim, objeto vero da lingüística.

Faltou aos dois mestres o sentido do tempo. No calor dos achados que estavam achando, faltou-lhes a distância da boa perspectiva. Hoje, depois deles, é mais fácil dizer o que dizemos. Lastreados de positivismo e naturalismo, adequáveis à ciência espacial do Objeto, não viram que a ciência pós-natural do Sujeito, feita de proporções axiológicas, só tem, como dimensão, a do tempo diacrônico. A Ciência do Sujeito, abrangendo Glotologia, História, Sociologia, Psicologia, é a ciência que estuda a hominidade do indivíduo, a estrutura temporal do homem antrópico. É a ciência do homem progressivo.

O século XIX, ao batizar a história, batizou-a na pia do Romantismo, com águas lustrais da filosofia germânica. Estava sucedendo, à lúcida razão cartesiana, a fulgurante razão hegeliana, movida de intuições que não dependem da experiência. A idéia de povo em vez de família multiplicada, fusão convivial de pessoas, começou a definir-se como unidade espiritual cheia de gênio nacional ou alma coletiva que Hegel viu, sobreposta ao indivíduo, encarnada no Estado supremo, qual se mostra na História, esta mais alta forma do conhecer, que rastreia, no tempo, a sibi-realização do Espírito absoluto.

Seguiu-se daí, na Ciência do Sujeito, o vezo de resumir a hominidade da espécie na figura de um homem abstrato, uma acabada e estática figura, passivamente sujeita a determinações sociais da alma coletiva. a sociologia, marxista ou não, deixava-se embalar por um sonoro chuá de ondas míticas, germanicamente suscitadas. Depois de Hegel, anti-transformista absoluto, veio Darwin cujo evolucionismo então, em vez de ajudar, agravou o problema da Ciência do Sujeito. Uns envergonhavam-se da sua procedência animal, exibindo as potências do Espírito. Outros, nela se compraziam, partidários da hominidade sem alma, tranqüilizados, na saudade zoológica, pela decretação de nossa animalidade.

Mas depois da Primeira Guerra deste século [século XX], amainado o fervor inicial, foram surgindo condições de uma teoria melhor, promessa de três premissas:

• a necessidade metódica de o conhecimento repartir o campo entre a Ciência do Objeto, coisa externa, espacial, e a Ciência do Sujeito, poder interno, temporal;

• a prudência distintiva de não confundir a gregariedade zoológica e a socialidade antrópica. Uma é contigüidade espacial, empática e mimética, adicta à economia natural, enquanto a socialidade é uma condensação temporal, intelectiva e estética, fruto pós-natural de uma conquista. Evite-se diminuir o conteúdo nobre do nome sociologia, renegando expressão como sociologia animal, e que seja a psicologia um tratado da alma, em vez de se degradar em psicologia zoológica . Ordene-se a gradação recessiva, a descida ao pavimento zoológico, onde estão as origens (uma cota natural de paciência, instinto e servidão), não para aí se deter, na fase etimológica, mas para desde aí palmilhar, diacronicamente, na rampa ascensória, a via pós-natural da hominidade progressiva, roteiro de um animal que se fez motivado, capaz de iniciativa, inteligência e liberdade.

c) como consequência de tais distinções, trocar a figura do “homem estático” ou sincrônico, fruto sociológico de uma superada visão oitocentista, pela figura do “homem progressivo” ou diacrônico, entrevisto em Teilhard de Chardin, com perspectiva dinâmica.

Hoje em dia, fundando-se no princípio da evolução, e no princípio do condicionamento fisiológico, a ciência pode definir a hominidade como sendo um poder de temporizar a espacialidade, sensoriamente recebida no corpo, intelectivamente elaborável no espírito, e diacronicamente capitalizável no indivíduo, graças à atividade cooperativa da tradição inter-individual.

FALA - TEMPO - SOCIALIDADE - HOMINIDADE

No limite da cota zoológica, a animalidade é uma economia de virtudes infusas. É um saber fundamental, diretamente atualizável em procederes de resposta, no momento espacial do estímulo da coisa. Mas o homem, por instinto animal anterior, partindo de tal saber, começou a criar uma economia de virtudes vivenciais, quando começou a estilizar o passivo saber da cota zoológica, resumindo-o no ativo saber do saber aprendido. Tendo descoberto, na ante-manhã da espécie, o viático do proceder fabular, encontrou nele a receita de se prorrogar em duração, começando a fazer desde então maravilhas, em achados individuais que a recepção inter-individual consagrava. Na pertinácia convivial da parceragem, tomavam-se juros, dos agoras vitais iterados. Juros que a tradição paterna ia legando aos filhos. Na medida em que ia forjando o seu poder fabular, veículo inter-individual de conferências mentais, o homem foi também criando o tempo, a socialidade e a hominidade :

a) com a invenção do signo fabular, entre Primo e Secundo, criou-se o poder fabular, inter-individualmente atualizável nos atos-de- fala e intra-individualmente potenciável, como estado pós-fabular, em estados-de- língua. Fora achado o veículo da idéia, uma persistência reminiscente que a cogitação vivencial começou a formar, tratando mnemiatos sensórios da experiência vital. O mesmo signo fabular que a tornara intra-individualmente possível, como representação, também a tornara inter-individualmente viável, como transmissão, promovendo o gosto da parceria, mais o seu fruto concomitante, amadurado por sintonias mentais entre o sócio ouvinte e o sócio dicente. A fala vivencial do solilóquio, no exercício de pensar, rendia idéias individuais, que a fala social do colóquio possibilitava inter-individualizar, enriquecendo a tradição do saber aprendido;

b) veiculando pelo nome a idéia inteligível, no exercício cogitante, o indivíduo elabora a vivência, por diligência da memória ativa, no outrora do viver. A imagem mental de sua indústria é feita de repercussões da colheita vital, toda de imagens externas, mnemiatos da idéia sensível que a coisa emite sobre o corpo zoológico. E a humanidade, exercitando-se nisso, foi aprendendo a criar o tempo, contenção inespacial do espacial circunstante. Sendo um comensor de mnemiatos (lembranças instaladas na memória), o tempo é um comensor de não-coisas, pois é um comensor de lembranças. A lembrança por sua vez é o agora mental de uma ausência, um agora do outrora, tanto na ausência da coisa, antes presente e depois reduzida à não-coisa da idéia (presença apenas mental), como na ausência da não-coisa chamada espaço, o espaço da coisa. É essa idéia da não-coisa espaço que rodeia os outroras da idéia da coisa: ao ver prédios, mentalmente, vemos também suas distâncias espaciais, vindas como agoras temporais, no outrora da vivência recolhidos.

A idéia de espaço (não coisa da não coisa) funde-se com a idéia do mover. É por isso uma idéia dinâmica, diversa da idéia da coisa, quando vista em repouso, na estática da aparência.

Das idéias espaço - movimento - repouso foi procedendo, por criação do homem, a idéia de tempo, condicionada na lembrança, como contraste, pelo vário proceder das várias coisas, na sua vária eficácia durativa.

Enquanto a humanidade foi criando o tempo, flor vivencial de lembranças vitais, o mesmo tempo, como tempo diacrônico, foi criando a hominidade, flor racional, crescida no chão superior, acima do chato chão da espacialidade zoológica. Aí, na sede do espírito, a cogitação da vivência, tratando mnemiatos do vital, lavra idéias da coisa, num ritmo quântico e elástico, se é na temporidade estética, ou então numericamente quantiável, na temporidade prática.

Enquanto o homem se estrutura em tempo, digerindo, no cosmo intelectivo, os reflexos do cosmo espacial, entretanto, lá fora, passa a passividade biológica do bruto, adicto ao ritmo espacial e sem tempo, de procederes que a natureza equacionou.

c) Enquanto diz a sociologia que a sociedade cria o indivíduo, repete-se, na glotologia saussuriana, que a sociedade cria a língua. São dizeres admissíveis, se tomados por um modo de dizer, se referidos a um momento conseqüente, porquanto língua e sociedade, para nós, são feitios preexistentes: nascemos depois, socializados pela sociedade e fabularizados pela fala. Mas deixam de ser admissíveis, metodicamente, se referidos ao momento etimológico, momento fundamental numa razão científica. O que se poderia dizer é que o indivíduo se cria, que o indivíduo cresce, em sociedade, e nela se fabulariza, tomando posse da língua. Convém relembrar ainda, no nome sociedade, aquele enganado sentido mítico de alma coletiva, que Saussure atribuiu também, sinonimicamente, ao vocábulo massa.

O que se admite, em nosso postulado, é que a fala criou a socialidade, condicionada em cada indivíduo pela atualidade inter-individual das sintonias mentais, em cuja eficácia pós-natural se foi gerando o mútuo entender, tingido de seu (entre sócio e sócio) teor social. Esta vantagem intelectiva, movida na fala, criou o hábito da sociedade, na cooperação inter-individual do viver. Entre o negócio e o ócio, momentos espaciais do fazer e prazos temporais do pensar, cada indivíduo foi capitalizando consigo, diacronicamente favorecido, os juros da experiência recíproca. Foi vindo a cada um, de tais vivências pessoais, o seu estado intra-individual da “socialidade”. Isto é, sua qualidade de sócio, condicionada nele pelo exercício da “socialidade” feita com outro sócio. (Vincamos a dobrez do nome “sociedade”, parecida com a do nome “humanidade”, primeiro significando o estado de humano (“procedeu com humanidade”) para depois se alargar no sentido coletivo que tomou. “Sociedade como exercício de sócios (ou habilidade para tal exercício, “socialidade ”) foi tomando depois o sentido coletivo que tem, de indivíduos em vida comum. Apesar de feita de indivíduos e pelos indivíduos, a sociologia, em vez de compor, achou que devia opor, entre “sociedade” e “indivíduo”).

Para haver sociedade chegam dois. Chegaram para tanto Adão e Eva. Chegam para tanto o sócio Primo e o sócio Secundo, nossos dois functores do ato fabular, desde a fase em que os dois, começando a aprender, começaram a infundir, na sonoridade veicular do vozeio, a intenção inter-individual de um sentido mentado. No mesmo passo fabular, pacientemente iterativo, começou também a geração da socialidade, mais a patrimonialização do cabedal chamado língua - o patrimônio fabular de cada indivíduo.

d) Pelo exercício ss (sócio e sócio), o indivíduo aprendeu a ser inter-individual, cooperando nos fazeres vitais, ante a coisa, bem como nos pensares vivenciais, ante a idéia da coisa, fabularmente sinalizada. Devem ter vindo primeiro os ensaios iniciais da fala estética, traduzindo um sentir ante a coisa e da fala pragmática, inserida nas operações de um fazer. Do ponto de vista auditivo, seriam falas mui débeis ainda, no seu esquema espacial de presenças e gestos. Nessa fase infra-homínica, era pouca a superação e fraco o Sujeito. Começavam apenas, entre agoras vitais, os outroras vivenciais da liberação temporizante. Mas veio, na diacronia, o poder abstrativo da fala teórica, retemperada no lazer dos outroras mentais, livre da coerção dos agoras, cobrindo, com sua autonomia de vôo, os campos da duração interior, transportando a vivência, nas suas idéias e doutrinas.

Garantida pela fala, a inter-individualidade ss garantiu a socialidade, no progressivo enriquecimento pessoal de cada sócio, movido, no comércio intelectivo, por sintonias mentais bipolarmente conectáveis. Dentro da tradição docente-discente, a oferta de Primo suscitou, analogicamente, o entender de Secundo. Apesar de serem apenas análogas, as idéias individuais, fabularmente conferíveis, assumiam a competência e harmonia de unidades sociais, nutridas na ipsidade fundamental da hominidade comum, cujo ponto de identidade do outro para nós, está mais nos fazeres do que nos pensares.

Entretanto, na fala, como eficácia hominizante, melhor que seu poder de vantagem, na fala inter-individual do colóquio, está o da fala intra-individual do solilóquio, no reino do pensar. Por falta de melhor observação, não vendo que o pensamento é uma ordenação fabular, há pensadores que pensam poder admitir-se um pensar sem palavras. Por sua vez a lingüística, sob a fascinação infantil da oralidade prolatória, além de não se ter ainda importado com a fala soliloquial, reduz a plano secundário a fala escrita, vagamente chamada “linguagem escrita”. A verdade é que a fala intra-individual do solilóquio move as cogitações do pensar, tanto no pensar policiado, dirigido por uma atenção racional, como no pensar não policiado ou sibi-dirigido. O exercício de meditar, identificando reflexos da alteridade espacial, é um exercício de ensimesmar-se, um exercício de hominizar-se, embora individualmente sujeito, no seu tempo vivencial, aos limites sociais do tempo diacrônico, o tempo geral da humanidade. Não há promessa, por exemplo, de hominidade aristotélica, num meio temporal cuja hominidade se retardou na fase infra-aristotélica.

Dizer que a fala hominizou o hominida é dizer que a fala o temporizou, visto que hominizar-se é temporizar-se. Começou a tarefa naquele passo de mutação que, superando a cota zoológica, influiu-lhe no velho ritmo evolutivo, a dinâmica do ritmo progressivo. Juntamente com o signo fabular, então iniciado, achara-se a possibilidade sinérgica da equação sócio-e-sócio, capaz de praticar sintonias mentais, em conferência inter-individual de idéias intra-individualmente elaboradas. Capaz de, promovendo a circulação dos mentados, ajudar o homem diacrônico a reduzir a endocosmo intelectivo o cosmo externo, vital que o corpo interna na lembrança e a vivência elabora no tempo.

A criação do signo fabular não foi ato que partisse do nada. O que puderam fazer, os dois parceiros iniciais, foi apenas estilizar, já pré-existentes, gestos e vozeios naturais. Na etimologia da estilização, a contiguidade espacial das presenças teatrais e, dentro da economia gregária, velhos impulsos zoológicos de empatia e mimese. Transitivou-se então, sublimada no tempo, a imanência espacial da intransitividade primeira. O miraculoso futuro da mudança, nem ao menos se podia imaginar. Só muito mais tarde, no fim da lenta faixa milemilenar, é que pôde ver como a fala, criando o tempo e a socialidade, foi criando também a hominidade da espécie.


RESUMO

a) o primeiro sistema

Na equação original ic, o indivíduo, diretamente estimulado, reage com um proceder vital de que não tem consciência mas posse (economia zoológica da espécie). Tal proceder, substantivamente não aprendido, mostra-se adjetivamente estilizável, na experiência individual, e gregariamente vulgarizável, através de empatia e mimese, apenas pragmaticamente, sem nenhuma lição intelectiva. Vendo o outro fazer, o imitador estiliza o próprio fazer.

b) o segundo sistema

Na equação derivada ic', o estimulado inicia o proceder vital conveniente, mesmo sem o signo direto da coisa, mas sob o estímulo de um signo concomitante, implicado no todo original. Vimos, como exemplo, a eficácia do signo auditivo, implicado no estímulo do alimento. O som do gongo, a buzina do boiadeiro, o toque de ração para o cavalo militar. Sabemos também como um outro animal reage, empaticamente, a gestos e vozeios de um primeiro animal. Li que uma cidadezinha americana, infestada de pardais, em vez de exterminá-los como praga, fez que todos fugissem para longe. Prendendo um, gravou-lhe a voz angustiosa, aquela voz de pavor da hora da captura, repetindo-a depois, quantas vezes conveio, por altos falantes, através da cidade.

c) o terceiro sistema

Admira-se muito que o homínida pudesse chegar a um signo condicionante tão poderoso como o signo fabular, dinamizando uma nova equação que então se inventava, a equação temporal ss, capaz de definir, por superação do piteco, a figura do antropo. Com seu efeito transformou em condição pós-natural a condição natural de um indivíduo que era igual aos outros do seu nível, antes do privilégio. Pode-se entretanto explicar o milagre, meditando-se no fato de que a instituição do signo fabular aproveitou habilidades zoológicas preexistentes, tratadas de um modo que deu em mudança fundamental, em superação da cota zoológica. Pela fala, a economia vital dos fazeres foi sendo traduzida na economia vivencial do pensar. A espacialidade do mundo, convertida em representação temporal, foi sendo condensada em endocosmo, intra-individualmente cogitável e inter-individualmente manifestável, fecundado na experiência, ensinado na tradição e capitalizado na diacronia. Na marcha das contribuições, entrou um ritmo progressivo, sucedendo ao paciente ritmo evolutivo anterior. Entre a verticalidade ambulatória, a bimanização do homo faber e a fabularização do homo cógitans, alguns poucos milhões de anos foram bastantes para que Adão se distanciasse, vista e vistosamente, da mesmice tenaz dos antropóides.

Mobilizando a presença reminiscente, no outrora de um tempo que ia sendo criado, o signo fabular mobilizou, na experiência vivencial dos pensares, a economia vital de fazeres que o ritmo iterativo do viver permitiu reformular, para uso venturo, a lição da experiência passada. Através de uma diacronia vagarosamente enriquecida, feita de tempo reminiscente, concentrava-se lenta a hominidade da espécie. Reminiscência intemporal da memória passiva, que a iteração da coisa atualiza temporidade reminiscente da memória ativa, que mesmo sem a coisa o nome atualiza. [ii]

d) [a fabularidade]

Na criação da fala foi aproveitada, entre os dons animais, a empatia e a mimese, atualizáveis no espaço da equação ic, durante o agora dos fazeres. Mediante iterações condicionantes, aí se descobriu, por dois parceiros conviviais, o modo de sinalizar uma lembrança do outrora, veiculada, entre gestos de ensaio, por estilizados vozeios, paulatinamente liberados de sua concomitância espacial e progressivamente transformados em vozeios semânticos, apoiados por gestos também semânticos. Gastou-se nisso boa quantia de centomilênios. Enquanto a fala se enriquecia de signos veiculares e se fazia capaz de, manifestando a idéia de Primo, também suscitar a idéia de Secundo. Na conexão bipolar de dois centros mentais, ia melhorando a vivência, que se enriquece, nos juros temporais do pensar com os juros espaciais dos fazeres. Cresce dentro da pessoa o seu sujeito, morador do novo pavimento, em cima do térreo ou zoológico. Aí se pôs a tratar, com seu fazer pós-natural, intelectivo, a colheita dos fazeres naturais. Com o saber aprendido, remodelou o passivo saber da herança animal, reformulou a espacialidade dos limites zoológicos, reduzida a transumptos temporais ideativamente reestruturáveis. Desde sua mansão, o Sujeito, criando a teoria do viver, mostrou seu contraste com a mera paciência do bruto, sem Sujeito nem tempo, vera máquina viva, geneticamente pré-fabricada. Ao sistema uniequacional da economia zoológica, simplicidade espacial do fatorado ic, sucedeu um binônio diversificado, um regime de duas equações, onde a primazia da temporal ss, diacronicamente aproveitada, trata variamente da mesmice sensível, a freqüência que o fatorado ic lhe reministra.

e) os binômios

Durante o proceder externo, desenhado no espaço, a função vital dinamiza o binômio ic, motivado na pervivência do indivíduo, ou o binômio ii, igual a ic, na sobrevivência da espécie. O binômio ii, para garantir a espécie continuando, prorroga-se em binômio de gregariedade, fechada na imanência espacial de sua contiguidade intransitiva, permeável entretanto a empatias e mimeses, que foram o ponto de abertura, para superação, vindo através do passo fabular. Foi então que começou a somar-se à função vital, sotoposta, a função vivencial, nova e primaz. A passividade zoológica foi cedendo à atividade antrópica. A imanência espacial da vitalidade foi sendo destilada, pela vivência, em transcendência temporal. A equação espacial dos fazeres tratou-se nas equações temporais do pensar. O binômio gregário ii, sublimado no binômio ss, habilitou a firma Prima e Secundo, comerciante de idéias. Mentados intra-individuais, veiculados na fala, nutriram a divulgação inter-individual. Na matéria da docência inter-individual, iam os juros vitais do trato ic e os juros vivenciais da sintonia ss. O Sujeito S, internando a experiência e a notícia, no recinto temporal da vivência v, armava o binômio Sv, na duração interior de cada um, dotada de energia cogitante, a destilar a idéia inteligível, feita de mnemiatos ou lembranças da idéia sensível, colhida pelo corpo nas coisas do cosmo.

f) intra / inter

Insistir na economia, valor intra-individual, de propagação inter-individual, é mostrar o engano social quer da sociologia quer da glotologia. A hominidade é um patrimônio intra-individualmente prosperável mas inter-individualmente vulgarizável. Didaticamente transmissível, chega a Secundo discente nos fazeres e falas de Primo docente. A fala, como exercício de dois sócios, desenvolve a socialidade que criara, e semeia a teoria do viver, nela distribuindo hominidade. Nesse exercício de dois sócios já está constituída a sociedade, um poder atual que se vai capitalizando, em cada um, como socialidade, o poder virtual. Etimologicamente pois, a fala criou a sociedade, como também criou a língua, patrimônio intra-individual de cada um dos parceiros. A sociedade é uma feição do fazer, um proceder a dois, seja no atual do fato, seja no virtual da disposição. É um modo de ser que foi criado e que se faz criador, com sentido derivado, no sentido cooperativo de um sócio aceitar a iniciativa do outro, pois a criação vem do poder intra-individual, não de um poder social. Não passa de empatia zoológica, miticamente residual, o sentimento que vê na sociedade alma coletiva. Ele concretiza, no externo, certas forças de coerção do meio espacial, mais ou menos passivamente recebidas por nós, conforme o teor antrópico de nossa hominidade. Infelizmente, na linha temporal e diacrônica do aculturamento social, o homem não se homoniza igualmente. Há uma gradação progressiva, desde a mão inicial do primas faber [primata artesão], colhendo para si o mundo espacial e desde a fala inicial do homo cogitans [homem pensante], a recolher consigo o mundo temporal, na inteligência do endocosmo.

Fabularidade, socialidade, hominidade são conceitos que sinonimizam. Indivíduo que fosse, infante, subtraído à eficácia inter-individual da docência antrópica, aí não se hominizaria. Cresceria zoológico, privado de fabularidade, privado de socialidade, privado de hominidade.

g) perseverança de prorrogação de enganos

Primeiro foi a glotologia sincronista a copiar enganos da sociologia. Depois, imitando enganos da glotologia, certa sociologia estruturista, na linha de uma sociologia socializante, que pretende ter seu tema no presente, deixando à história o passado. Compreende-se que D urkheim ou S aussure tivessem visto menos, por falta de melhor tempo em seu estudo. Mas o fato de o engano se agravar, nos herdeiros, revela, entre sintomas de riqueza, na inteligência moderna, a forte indigestão de alteridade. Junto ao excesso dessa alteridade, os traumatismos sociais do século, abrindo hiatos na tradição humana, entre as muitas solicitações de um viver cuja velocidade espacial já superou de muito a velocidade temporal da dieta hominizante. Para se consolidar, na hominidade, seu conteúdo semântico, pede-se a diacronia do tempo vivencial, não a curso numérico do tempo mecânico, trefegamente ludicista, humanamente tão insípido que a ciência o pôde desclassificar, ao absorvê-lo na dobradinha espaço-tempo. Do ponto de vista inventarial, o bem antrópico pode repartir-se em passado e presente, mas, do ponto de vista interpretativo, o passado, como presença reminiscente, está sempre motivando o presente. Está sempre presente, dentro da hominidade, cedendo o juro de capitalizações conseguidas ao esforço de nossas capitalizações conseqüendas.


EFICÁCIA DO PODER FABULAR

O passo fabular, vindo com o terceiro sistema de proceder, e vindo como privilégio especificante, definiu a possibilidade do ritmo progressivo inserido, como interferência pós-natural, na economia natural do ritmo evolutivo. Transformando a coequação [iii] ss em equação temporal, abasteceu a superação da economia zoológica, fechada nas equações espaciais do primeiro e do segundo sistema, isto é, sistemas ic, ativados por um estímulo original (cão / comida, do primeiro sistema) ou então por um estímulo implicado (som / comida, do segundo sistema).

Foi no agora espacial de uma equação (indivíduo mais indivíduo) coisa que o vozeio intencional da fala, subvencionada por gestos semânticos, implicou a coequação temporal sócio-e-sócio, interessada em reapresentar, no momento vital de um fazer, o outrora vivencial de um pensar.

Primeiro foi essa fala pragmática, bloqueada no agora dos fazeres, que afogava no visual o auditivo, ao exibir, no infra-fabular da morfia, a ganga de sua expressão corporizada. Mal servia, como fazer concomitante, ao fazer principal. Mas era já uma tradução temporal de vivências, implicada no momento espacial de um fazer. Condicionada nos indivíduos, pela presença espacial da coisa, passara a condicionar, entre dois indivíduos, a presença temporal da idéia inteligível.

Veio depois, no temporizante exercício reflexivo, desenvolvido no outrora, a fala teórica. Promovida desde sua posição concomitante, ao posto subseqüente de proceder principal. Deixada a meia valência teatral, o signo fabular foi conquistando o seu poder de signo em si, o seu poder de funcionar, reminiscente, como estímulo interno. Libertando-se do espaço e imergindo no tempo, fez-se instrumento da hominidade, na expressão do Sujeito. Possibilitada a equação vivencial ss, mesmo sem a presença vital ic, a fala foi melhorando o teor da “sociedade inter-individual e desenvolvendo, nos dois pólos, a “socialidade” com que socializa os agrupados humanos.

Segundo o exposto, fica evidente o engano de quem inclui a coisa na conceituação do signo fabular. O lugar da coisa é na equação vital ic, momento sensório, distribuído no espaço. O lugar do signo fabular é na equação vivencial Sv (Sujeito e vivência), momento intelectivo, distribuído no tempo. Da presença espacial da coisa, o corpo colhe a imagem espacial dos estímulos sensórios. Recolhidos na memória, como presença temporal, sob a forma de mnemiatos que a vivência do Sujeito vai reduzindo a idéias, sinalizadas pelo signo fabular. A idéia inteligível é uma imagem temporal extraída de imagens espaciais, elaboradas na usina do espírito, graças ao signo fabular, veículo da figuração intelectiva bem como da mobilidade reflexiva. Alternam entre si a idéia e a fala, como estímulos internos.


HIC-NUNC-ISMO ZOOLÓGICO

O animal, se falasse antropicamente, seria capaz de noticiar aquisições com que estilizasse o legado natural de seu saber infuso. O animal fabular que conhecemos trocou o saber infuso por um saber adquirido, recobrindo os instintos que tem. O difícil para ele, ni ange ni bête, [nem anjo, nem besta] é temperar o seu código de ética, movendo-se entre pendores de sua ignorância e perversão. Os outros, que não são fabulares, só nos falam zoologicamente, sem contatos mentais. Deixam ver o que fazem, não mostrando o que pensam. Bem que desconfiamos às vezes, levados por empatia zoológica. Imaginamos um bruto envolvido em lembranças, mergulhado numa espécie de tempo, entre efeitos mnêmicos de uma passada experiência. O que vemos de fato entretanto, vemo-lo no seu agora de fazeres ou nos seus intervalos de não-fazer. Nas receitas vitais de seus procederes, mecanicamente aviáveis na hora, parece não haver formulário optativo, possível de a vontade escolher. Vale a decisória fisiológica de um prontuário espontâneo, legado de uma posse que não se pode fazer consciência. O viver que hominicamente se constrói é um viver que para ele apenas se sofre. Buscar o bem e refugar o mal está no pressuposto de uma função necessária, franjada de apetite e repulsa. No estilo de um fazer, divide-se-lhe o grau entre a forma da herança biológica e o tipo de coerção da circunstância vital. Ninguém adapta o mundo ao próprio gosto, mesmo quando se sabe engenharia, motivando-se a arte não na inteligência do indivíduo, mas na inteligência da espécie, ocupada em garantir, mais que a pervivência do indivíduo, a sobrevivência da raça. Resume-se tal arte na engenharia do abrigo, engenharia nidificante, instalada como habilidade no saber do indivíduo, mas sem a habilidade do progresso individual.


POSSE E CONSCIÊNCIA

Define-se pela idéia de posse menos consciência o alcance da cota zoológica, vencida pelo homem que, construindo a consciência da posse, interferiu na evolução natural, fazendo-se pós-naturalmente progressivo. A consciência é uma notícia reflexiva da posse vital, meramente reflexa. A posse é uma condição natural, geneticamente transitiva e biologicamente evolutiva. A consciência é uma aquisição pós-natural, socialmente cooperativa, mentalmente transitiva e hominicamente progressiva.

A posse lembra a espacialidade gregária, o mimicismo espontâneo, a ipsidade iterativa da economia biológica. Antropicamente sublimada, ordenou-se em consciência. E a consciência lembra a temporidade do social, da criação analógica, num todo de sincronia que emerge, como crista de onda, desde o fundo diacrônico das ondas antrópicas.

O que é zoológico lembra o espaço, lembrando o tempo o que é antrópico. O corpo do homem, lembrando o espaço, nele se move e a ele se opõe, como coisa que opõe à não-coisa. Mas a hominidade, lembrando o tempo, em vez de a ele se opor, nele se funde e se adensa. Com sua qualidade, numenicamente progerada, a hominidade qualifica um ser cuja estrutura espacial, chamada corpo, alimenta uma estrutura temporal chamada alma.

A hominidade é um tempo concentrado. Mas acontece também de o tempo ser uma projeção da hominidade. Se a hominidade é uma sensação de tempo, o tempo é uma sensibilidade reminiscente, uma dimensão mnêmica, adensada no espírito. O espírito é fisiologicamente nutrido pelo corpo e o corpo é nutrido, fisicamente, pela circunstância vital.

Sendo espírito no tempo e corpo no espaço, o homem é uma síntese de Sujeito e Objeto. É capaz de se reconhecer no espaço como Objeto e de se reconhecer no tempo como Sujeito.


VITO-VIVENCIAL

Definindo como vivencial e proceder de um pensar e como vital o proceder de um fazer, próprio da simbiose com o meio, diremos que na cota zoológica só aparece o vital e na cota antrópica vital e vivencial se entremeiam. A cria zoológica vive adicta ao saber infuso, mais alguma adjetiva aquisição da mimese. Mas a cria homínica, desde a infância, vai recebendo lição de viver, segundo o competente viver do seu grupo. É a tradição docente-discente, fabularmente engendrada e garantida. Socialmente, logo se integra um discente, na cota infra-aristotélica. Mas isso é bem mais tarde que na cota zoológica e bem mais cedo que na aristotélica, sujeita ao preparo de um lento regime escolar.

Enquanto entre os animais a mimese copia um fazer imitável, o aprender homínico soma, à lição da mimese, a lição vivencial da doutrina. Ao especial do proceder, soma o temporal do pensar, incluindo no agora fenomênico imagens de outroras mentais. Assim foi sendo filtrada por invenções da vivência, a teoria humana do viver, programado como exercício de vontade e liberdade, acima da passividade animal, onde a lição da vida, para os filhotes, não supera, lúdica e mímica, o modesto convite aos fazeres.

Primo e Secundo, fundindo cada um suas idéias, fabularmente sinalizadas, foram aprendendo a aproveitá-las mutuamente, não trocando-as, coisa impossível, mas conferindo-as, mediante a sintonia da fala. Aprendendo a reagir ante a coisa, aprenderam também a reagir consigo mesmos, ante a idéia da coisa, ou seja, ante a coisa reduzida a presença temporal, que é diversa da presença espacial. O tempo, garantidor da vivência, garantiu, entre iterações do vital, que se aproveitasse, na melhora do momento seguinte, a lição do momento passado, levando-se para a duração mental do fazer teórico a estrutura espacial do fazer prático. Foi assim que o espírito, explorando a eficácia da idéia, ensinou o corpo a viver de seu espaço, enquanto aprendia a viver de seu tempo.

Nota: O nome sistema, no caso do terceiro, além de só batizar um modo de proceder, entrou por filiação etimológica, em seguida ao segundo e ao primeiro. Iniciada a conversão temporal, onde foi tomando figura, o signo fabular não conseguiu aquela proporção sistemática, própria das coisas espaciais e do regime natural. Como atualizador da sintonia ss, bem como da sintonia Sv, e como produto pós-natural de uma dieta criadora, diacronicamente variável, o signo fabular não é sistemático e nem tão pouco [sic] a língua é um sistema, como pretendia Saussure. Chame-se de sistema o terceiro modo de proceder (sob o estímulo reminiscente da idéia) não porém seu produto ou patrimônio, que é o recurso da língua.

 

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