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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

ETIMOLOGIA DO FABULAR E DO HOMÍNICO [*]

 

DIACRONIA DA VIDA

A ciência tem procurado supor, na diacronia do mundo, a idade de seus aspectos, iniciados, faz 5 bilhões de anos, pela explosão do átomo primordial de Lemaître [1]. Decorrida meia data de tal prazo, foram surgindo as primeiras células vivas, com sua velhice de já 2,5 bilhões, renovada pelo aparecimento da vida multicelular, nos últimos 600 milhões. Depois, sendo apenas 200 o número de tais milhões, veio a idade imperial dos dinossauros, reinando na superfície do globo durante mais de 100 milhões de anos. Finalmente, no milhão derradeiro, vestígios, geologicamente sinalizados, lembram a possível presença do animal antrópico, mamífero bípede, bímano, senhor de uma energia mental que já lhe permitia extrair, da espacialidade do mundo, refletida na mente, aquelas equações temporais que a vivência elabora e que a experiência confirma, exploradas no paciente labor de adaptar a terra, tanto melhor remodelável no espaço quanto melhor remodelada no espírito, recheado de duração vivencial. No decurso desse milhão, recoberto, em metade, pelo silêncio de largos hiatos, a antropologia rastreia seus fósseis, interpretando exemplares cujo número tem aumentado, buscando iniciais de uma hominidade que Teilhard de Chardin [2] imagina haver começado na África. A 500 milênios, [3] diminuída já a suspeita, mostra a pesquisa o homem de Heidelberg [4]. A 300, o de Steinheim [5]. Há 100 milênios, entre sintomas positivos, o homem de Neanderthal [6] e o de Crô-Magnon [7], entre restos animais de bisonte, mamute, elefante, cavalo selvagem, urso, leão, hiena, rinoceronte...

 
O SABER ESPACIAL

Empenhada na equação indivíduo e coisa, ic, a vida alimenta-se de respostas que a simbiose [8] fornece. O estimulado, sob o estímulo da coisa, oferece um proceder que já tinha consigo, antes da experiência, na feição potencial de seu compêndio biológico. Legado pelos progenitores ao filho, sob feição germinal, esse compêndio então se desenvolve, fisiologicamente, numa estrutura e ritmo de energias que na hora se atualizam. Entretanto, no seu prontuário específico, resumo substantivo de procederes não aprendidos, o estilo individual pode inserir modulações adjetivas, motivadas sob coerções do meio trófico [9], ou meio espacial ora de abundância ora de carestia.

Para o exercício de tais fazeres, o viver de cada um se mobiliza, armado de dois fitos biológicos: manter a pervivência do indivíduo, e garantir a sobrevivência da espécie. Para isso é que a vida concentra, num germe generativamente transitivo, seu germe potencial de receitas a tempo, cronicamente graduadas. Esse benefício, que é peculiar ou específico, sujeita cada indivíduo a seu ritmo zoológico, na hipérbole vital de seu existir, afinado com os três moveres fundamentais da economia natural: fugir o nocivo, buscar o bem individual, contribuir sodaliciciamente [10] no bem da raça. Podemos representar o sentido da tríplice economia na semântica latina das preposições ab, in e ad : no sentido aversivo de ab, a fuga preservadora, garantia da pervivência individual. No sentido agressivo de in, o ato de catar e captar a nutrição, garantia também da pervivência individual. No sentido congressivo de ad, a sodalidade 10 racial, o convívio procriador e criador, garantia da espécie na busca por perpétuo sobreviver. Entre tais moveres, de fuga, ataque e companhia, corre o não fazer dos procederes de espera, enfiados em vazia paciência, a lenta paciência de uma vida sem tempo interior, no raso espacial de sua estrutura. Uma vida ciclicamente durativa, na sua hipérbole rotineira, movendo forças de uma economia que não é do indivíduo mas da espécie.


O SABER TEMPORAL [11]

O signo fabular, veiculando a cogitação, possibilitou fundir o saber espacial, da cota zoológica, no saber temporal da cota antrópica. No fim talvez do terciário [12], foi o começo da escalada, no pataréu da superação que trocou o ritmo natural, evolutivo, por um ritmo pós-natural, progressivo. O código do saber infuso iria estilizar-se num receituário de saber aprendido, pacientemente filtrado, em lentos centomilênios [13] de uma experiência vital que aliviava, lentamente, a gravidade primeira do centro zoológico. A reação reflexa do bruto, no agora espacial, foi cedendo a formulações reflexivas, estruturadas no outrora reminiscente da vivência. Da estreita ipsidade [14] zoológica, teimosamente iterativa, obtinha lições a eficácia mental, ensaiando lucros de um proceder passado nas vantagens de um futuro proceder.

A resposta zoológica, apesar de meramente reflexa, admite estilizações adjetivas. Dá-lhes provimento a reserva biológica de cada indivíduo, sob urgências espaciais do meio vital, grande promotor da evolução quando altera ou sonega, ao viver costumeiro, a costumeira subvenção. A hominidade porém, temporizando na mente equações espaciais internadas, aprendeu a analisar-lhes os fatores vitais, aplicando depois, na resposta seguinte, juros vivenciais de passadas respostas. Antes de repetir a espacialidade vital de um fazer, aprendeu a tratá-la, temporalmente, no proceder vivencial do pensar.

Foi assim que o destilador de analogias fenomênicas, o taxador de juros da experiência, aprendeu a superar, com o saber temporal, a espacialidade zoológica do viver.


A VIA PROGRESSIVA

Com o poder da sintonia [15] mental, fabularmente veiculável, a conferência entre dois pólos cogitantes, no agora interindividual dos fazeres, cheios de frutos didaticamente mutuáveis, foi enriquecendo os outroras intra-individuais do pensar, cheios de frutos que a vivência, temporizando o viver, vai inventando. Com essa fórmula de superação, definitivamente antrópica, a hominidade iniciou a via do seu crescer, diacronicamente capitalizado. Com esse crescer temporal interferindo no ritmo espacial do existir, precipitou-se a mudança: a marcha natural, zoologicamente evolutiva e quantiada, modalizou-se em marcha pós natural, antropicamente progressiva e quântica.


A RAMPA

Posto entre o corpo e a alma, o século XIX, motivado na evolução, insistiu no animal, cedendo mesmo à saudade zoológica. Procurou ansiosamente o elo perdido, a cobertura do hiato, no patamar da superação. Atingido de romantismo zoológico, o século XIX animalizou o homem quanto pôde. Teimando na espacialidade horizontal, não viu a rampa temporal da ascensão. Diluiu na saudade zoológica a antiga reverência ao rei da criação. Se olhasse para a frente não lhe sonegaria a majestade. O observador que chega ao piteco, aí não se deve deter e contentar, como em ponto final. Cumpre continuar, na rampa evolutiva, como por exemplo fez Teilhard de Chardin. Mais importante que admitir que o homem já foi macaco é ver como deixou de ser. Para entender essa promoção, para entender melhor a hominidade, cumpre distinguir entre homem zoológico e homem antrópico, entre o elemento animal e o elemento espiritual. Entre a função vital da máquina fisiológica, e a função vivencial da máquina cogitante. Entre a espacialidade vital e a temporidade vivencial. Entre a matéria cognoscível, existente também no homem zoológico, e o poder cognoscente do espírito, regalia do homem antrópico. Entre a Ciência do Objeto ordenável, naturalmente verificável, e a Ciência do Sujeito ordenador, pós-naturalmente identificável.


A VIVÊNCIA

Vivencializar o viver é tratar o viver no pensamento. Aí se elaboram mentados, na continuidade temporal da reminiscência. É reduzir, na figura temporal das idéias, os mnemiatos sensórios da colheita espacial. Como atividade, a vivência está sempre acontecendo, mesmo para quem dorme, pois entremeia de sonhos o sono do corpo. Sua função espontânea, existencialmente reflexiva, dotada de uma imaginação analógica facilmente fantástica, tem base bem mais antiga, na diacronia, do que o seu recente poder de ordenação racional, um poder vistamente moderno. Analisante e aristotélico, sintomaticamente progressivo, [o poder da vivência] alimentava a hominidade ocidental, discretamente, até agora, antes que a velocidade técnica lhe permitisse o disseminar-se a esmo por aí, entre massas humanas que se retardam ainda, nas sombras inferiores da cota infra-aristotélica.

A matéria prima da vivência, convivencialmente temperável, encontra-se nos fornecimentos do viver. Um todo fenomênico, recebido nos contatos vitais, sensoriamente internado por Secundo discente, fabularmente se lhe noticia, por Primo docente, na concomitância dos contatos conviviais.

Dizia Fernão de Oliveira, no quarto capítulo de sua Gramática da Linguagem Portuguesa, 1536: “os homens fazem a língua e não a língua os homens”. Podemos dizer também que o homem faz a sociedade e não a sociedade o homem. Sem convívio didático, sem Primo docente ensinando a Secundo discente, fenece no indivíduo o germe de sua hominidade.

É tempo de rever a sociologia mitizante, desde Comte [16] ou Marx [17] ou Durkheim [18], juntamente com a psicologia gregarizante, mais a glotologia saussurizante.

 
A SUPERAÇÃO

Sem ter vencido a cota zoológica, o homem seria feito um mono gregário, lentamente sujeito à paciência natural. Teria seu formulário natural de procederes, sua dose individual de poder mímico, sua possibilidade peculiar de experiência, tudo nos reduzidos limites da cota infra-homínica. Desse estado anterior, a imagem superior mais próxima está no tipo dos chipanzés observados pelo Dr. Kortland, segundo reportou ao último congresso internacional de Estocolmo. Observou diariamente uma família de 15 a 20 membros, entre o lugar da morada e o lugar do alimento. Mecanizou um leopardo empalhado, capaz de surgir no caminho dos símios, enquanto máquinas escondidas filmavam. Após o primeiro susto do encontro, adultos apanhando paus, fazendo semicírculo, exibindo atitudes ameaçadoras. Em seguida, o primeiro corajoso, avançando contra o inimigo, ferindo-o na cabeça com o pau e voltando ao semicírculo, enquanto os outros, um por um, faziam o mesmo. Caso notável foi o fato de os outros festejarem e cumprimentarem, com aperto de mão, quando ele voltara, o primeiro chimpa [sic] que atacara o inimigo. Mas aqueles eram chimpas de planície. Os da floresta, sendo aliás a maior parte, já não faziam tanto. Armavam-se de paus e de longe batiam no chão ou no rumo do inimigo. Depois, largando as armas, desenhavam no ar uma espécie de coice. Os da planície eram mais adiantados, conforme se revelou na pesquisa, várias vezes repetida com ambos os tipos de grupo.

Esse impressionante saber, tão no limiar do saber aprendido, é entretanto um saber infra-homínico e estéril, apenas mimicamente acessível, adicto à sucessão espacial de reflexos não amoedados em idéias nem capitalizáveis na vivência, próprio de um indivíduo intransitivo e adiacrônico, um indivíduo que não tem, por falta de fala, nem tempo, nem indústria mental, nem Sujeito. O que teve, no pecúlio substantivo da herança, foi o legado fisiológico dos saberes infusos, rodeado por uma ductilidade adjetiva, uma franja de adaptações condicionáveis, na lição vestibular de alguns aprenderes espaciais. Na orla de uma bruteza nativa sem nem Eu ou Sujeito, ou nem internato mental temporizável, apenas, ante opacas ofertas de cada emergência, a possibilidade individual de alguma leve estilização contingente, entre os foscos ensejos do mimicismo gregário.

Na hominidade porém, vencido o nível do piteco, chegou a rampa do antropo. Mesmo sem provas da passagem, podemos aceitar a boa hipótese, motivada no poder fabular, nos indícios da antropologia bem como na lição analógica da história.

A antropologia mostra quatro sintomas evolutivos, binariamente correlatos: bimanização e verticalidade, encefalação e fabularidade. Ao descarregar nos pés o movimento ambulatório, premissa do hábito vertical, a bimanização favoreceu a ductilidade plástica do tato, na lenta paciência de moldear [19] como idéia, a idéia mórfica sensível da matéria. A verticalização, meridianizando [20] o perfil animal, redispôs, além da capacidade craniana, também os horizontes do olhar, cujo alcance, prolongando a mão, tateia longe a coisa. No redispor do continente craniano, a linha axial da gravidade facilitou basear, no arquipálio [21], a reencefalação do neopálio [21], desenvolvida pelo exercício mental, fabularmente promovido. Hoje, em diferença com o do piteco, há no cérebro do antropo quatro vezes mais neurônios. É coisa de 4 bilhões em um e 15 bilhões no outro. Arrematando o poder do bímano intuidor e fabro, na eficácia antrópica da conquista, veio a definitiva energia do poder fabular, servindo como veículo da idéia, na epifania homínica do espírito. Sem a fala, o bímano vertical estaria sem meios de progredir. Teria falhado a hominidade, ficando a vegetar, no limite antropóide da subida, certa família antepassada. O homem fez a fala e a fala fez a hominidade, ao desenvolver um exercício mental, nutrindo uma socialidade que o bruto gregário desconhece.

 
A ETIMOLOGIA

O caso da hominidade não é caso de gênese mas caso de etimologia. A hominidade não é uma equacional substantiva da economia biológica, enfiando procederes que acabassem na figura do antropo, mas uma equacional adjetiva de procederes que recondicionaram, em lentas prestações, a economia biológica, substantivados em hominidade. Sob o limite evolutivo de sua eficácia, a economia biológica só chegou ao piteco, espacialmente estruturado. Para a flor da hominidade, na gleba zoológica do piteco, foi necessário o passo pós-natural de uma nova dimensão, a dimensão da temporidade, apropriada a uma flor que é flor de tempo e não de espaço. Está visto que tal passo coube na economia biológica, mas o que estamos vincando é o seu fato pós-natural, cuja dieta peculiar se limitou, como um privilégio aristocrático, fora de se estender ao regime zoológico. Pelo fato pós-natural, veio o proceder antrópico, um proceder que impôs novo sentido, ao sentido natural da economia, em vez de simplesmente obedecer. Em vez de se deter na paciência animal, espacializada e sem tempo, submeteu essa paciência ao poder criador de um Sujeito que, estruturado no tempo, se fez inteligência e vontade, capaz de receitar procederes ao mundo em que se move, como num reino de sua liberdade. Por isso é que falamos em caso não de gênese mas de etimologia. A hominidade é um assunto não da história natural mas de uma história pós-natural. Como poderia ter dito Ortega, a vida humana é tema não de biologia mas de biografia. Adjetivamente, para as funções do corpo, que é animal, vale a biologia e a genética. Substantivamente porém, pertence para [22] a Ciência do Sujeito, ordenador do Objeto, não para a Ciência do Objeto, com que não se coordena.


A HOMINIDADE

Ter hominidade é fazer-se homem, fazer-se homem é hominizar-se e hominizar-se é temporizar-se, no exercício da cogitação intelectiva. Isso aconteceu devagar, durante vários milemilênios [23], em prestações que foram conquistando a verticalidade, a bimanuidade e a fabularidade. Nessa conquista azoocrática nem mesmo puderam entrar os demais antropóides, vestibularmente déditos, no teor infra-homínico de seu limite semi-vertical e semi-bímano, lalicamente [24] intransitivo, no oco sem Sujeito de seu existir.

Imaginando a criação do homem, costumamos supô-la em ato repentino, levados por miticismos residuais de nossas crenças. Basta porém pensar na capitalização progressiva, historicamente rastreável, para logo se admitir a hipótese da dieta incoativa, distribuída em milemilênios de um lento noviciado ingressivo, lenta e modestamente sazonado, para o exercício normal do refletir. Mas com o poder de cogitar, de fato vindo, foram vindo também, numa vera flor de mutação, duas mudanças radicais:

1. à simples paciência vital da economia zoológica, naturalmente proporcionada, somou-se a atividade vivencial da economia antrópica, pós-naturalmente dosada.

2. no ritmo evolutivo do viver, fechado na contingência espacial, começou a influir sua modulação criadora, em ritmo progressivo, o crescente exercício de entender, inventor temporal de contingências.

O início de tal mudança deve ter sido, queremos crer, difuso e débil. Primeiro foi a conquista do porte vertical, promotor de promissoras inovações vestibulares.

a) pela reestruturação anatômica do corpo, o ensejo da redisposição craniana facilitou, como centro mental, a arquitetura do neopálio, hoje com quatro vezes mais neurônios, uns 15 bilhões, do que no cérebro de um símio.

b) com o desimpedir dos membros anteriores, que bimanizou o quadrúmano, promovido a andador de planícies, motivou-se a perseverança táctil do homo faber, ante a minúcia plástica do mundo.

c) ampliado o horizonte cotidiano, pelo alto olhar circunspiciente, melhorou a colheita sensória, confirmando-se, pelo tacteio visual, a iteração da coisa distante, entre iterações que iam confirmando, no fracamente povoado internato mental, a feição das imagens colhidas.

Entretanto, para um teor e têmpera de superação, não era ainda suficiente essa verticalidade bimanizante. Oferecera contudo seus lucros: facilitara a diligência ambulatória; redefinira a circunspecção vigilante; aumentando a confiança na planície, ampliara o andejo pervagar do novo bípede, munido de armas que por arte inventava, à medida em que ia calando, na mão curiosa, a morfia sensória da coisa e a sugestão utilitária do proveito.

Mas mesmo assim iniciado, na sua arte de homo faber, não passava ainda de bímano vertical, não merecendo ainda o nome “homo”, dentro da horizontalidade gregária que o fechava. Atingira verticalidade no espaço mas carecia de verticalidade no tempo. Faltava-lhe um terceiro poder, o que lhe veio com o signo fabular. Faltando esse conector de dois pólos socializáveis, esse veículo inter-individual das sintonias mentais, faltava-lhe trocar a contigüidade da gregarice do conviver, fechada no espaço, pela fecundidade intelectiva da socialidade, aberta no tempo, vivencialmente ocupada em conferir, na fatoração ss, os efeitos vitais da fatoração ic.

Pelo passo fabular, passo definitório, a humanidade iria conseguir:

1 - Pelo exercício reminiscente, criar o tempo, dimensão em que arma o endocosmo da idéia, reflexo inespacial do cosmo espacial.

2 - Pelo exercício inter-individual, criar a sociedade, e pelo exercício da sociedade desenvolver a socialidade, isto é, o poder individual de ser sócio, o poder individual de sociedade.

3 - Pela cogitação intra-individual, criar a riqueza do saber aprendido, didaticamente distribuível entre os sócios, como lucro que passa a ser da gente, sem deixar de pertencer à diacronia pessoal do distribuidor.

4 - Pela perseverança tradicional entre as gerações, do docente à discente, criar a diacronia progressiva da hominidade, capitalizando juros de duas superações: primeiro, a da cota zoológica, longamente infra-aristotélica. Depois, a da cota intra-lógica, no recente bimilênio aristotélico. A primeira, geral, de toda a humanidade presente. A segunda, restrita, ocidental, mal contínua, sujeita agora, no momento que passa, aos avatares de uma disseminação espacial desregrada, nas asas técnicas da velocidade, entre enganos difíceis de acertar, visto que já desafinou, faz bem tempo, com o ritmo do tempo mecânico, o ritmo do tempo antrópico.


O MILEMILÊNIO

Não fora o passo fabular, o homem teria ficado a meio caminho. Estaria ainda por aí, semi-vertical [sic] e semi-bímano [sic], como seus primos antropóides, cujo modo de ser revela, ante o nosso, tantos sintomas de parentesco. Mas veio o passo da primeira superação.

A data de tal passo é data incerta. Não se pode dizer quando foi que transpôs seu Rubicone [25] aquele primeiro hirsuto César. Sabemos que é incerta, mas sabemos também, por indícios, que é muito antiga. É notável, na audácia dos prazos, a pesquisa do século XX. Foi-se o tempo em que se contava o tempo da criação em 6 milênios. Ou o tempo em que Buffon, 1707-1788 [26], dava à Terra setenta mil anos e à existência da vida quarenta mil, após ter calculado, pelo resfrio de uma incandescente esfera metálica, o tempo que teria sido, se ela tivera o tamanho do globo terrestre. Foi depois de 1830, início dos Princípios de Geologia, de Lyell, 1797-1875 [27], a época em que se começou a multiplicar, por cem e por mil, o modesto milênio, até então admitido como unidade, na escala da Terra e da vida. Quanto à etimologia do poder fabular, situa-se ela, vagamente, na hipótese moderna, entre 5 e 10 centomilenios. 13


O INTERESSE

A contagem do antropólogo é de importância fundamental para o glotólogo, na hipótese da etimologia. Mas a lingüística tem preferido fechar a porta das origens. Como se fora melhor ciência pouca, prefere manter orelhas moucas. Prefere dar a língua por nascida e crescida, na esperança de poder bem explicá-la sem etimologia. Prefere, imitando o físico, tratar a língua como um corpo e anatomizar cadáveres vocabulares, para ver se identifica, em tais ou tais partículas sonoras, o veículo de tais ou tais frações da alma semântica. É uma lingüística sem história, ciosa de certos mitos fisicistas, mas humildemente incapaz de definir os conceitos fundamentais de língua frase vocábulo. Não está preparada para a idéia de que a glotologia tem por objeto o poder de expressão da hominidade, um poder fabular que, sendo histórico, historicamente se identifica, no homem histórico, e analog icam ente se rastreia, por indícios diacrônicos, na fase do homem histórico mas sem história. A expressão homem histórico sem história é para insistir na definição do portador de hominidade como ser histórico, portador de uma vigência temporal que se vai condensando, enquanto progride, na rampa inespacial das eras humanas.


INDÍCIOS

Admitido que a língua, como patrimônio de meios, é para a expressão da hominidade, fica admissível também a hipótese de uma coincidência etimológica entre a origem do poder fabular e a origem da hominidade. Viajou numa expressão fabular a primeira hominidade que Primo exibiu e Secundo entendeu. Dessa mútua provocação do entender, quanto existiria já, naquele bímano vertical que se ia fazendo fabro, na arte dos seus primeiros instrumentos. Ser artista já era ser homem, senhor do poder ativo de criar, diverso da natural paciência zoológica. Diverso também, cumpre lembrar, de certa arte animal e fisiológica, posta a serviço da nidificação, entre aves, abelhas, térmitas, castores, etc. É uma indústria hereditária de espécies, não da iniciativa do indivíduo. A arte humana vem no saber aprendido, didaticamente cultivável. A arte animal, posse de um saber infuso, vem no legado patrimonial da herança.

Admitido que o temor do fogo é um reflexo comum da animalidade, temos de admitir, como aval da presença homínica, a presença do uso do fogo. Há pesquisadores que atribuem mais de um milhão de anos a indícios de tal presença, já no final do terciário, em camadas geológicas do plioceno, ou fase menos recente, anterior ao plistoceno, ou mais recente, que recobre 6 ce ntomilên ios de cultura lítica, antes do holoceno, ou todo recente, na última faixa decimal do último centomilênio, marcada pela cultura metálica.

Na época inicial do homem fabro, dotado de pouca lalice, antes que sazonasse o estilizar dos bons vozeios, a expressão da hominidade seria mais por fazeres que por falares. Devia ser como ainda hoje acontece, por exemplo, numa dança guerreira de nativos tribais. Durante ela, tecida com procederes de ensaio, passa, de quem faz a quem olha, a intenção do sentido guerreiro, veiculada no teor visual dos moveres, bem como nas sugestões teatrais dos vozeios concomitantes. Convém insistir na eficácia mutuária de tais manifestações, na oferta transindividual de suas empatias, diversa da imanência individual do proceder, se apenas visto no procededor. Estamos vincando, não no procededor mas no observador do proceder, a transcendência do sentido que lhe chega, por eficácia de uma repercussão analógica. A dança guerreira, com sua lição de um fazer não real mas fingido, banha-se na transcendência de duas habilidades zoológicas, mui próprias da fase discente: o poder lúdico de fingir procederes que a vida um dia pedirá, e o poder mímico de copiar procederes alheios.


OS CONTEXTOS

Basta recompor a etimologia do ato fabular para entender como Primo podia falar fazendo, num tempo em que menos podia falar falando. Para se tecer como veículo, o ato de fala foi tomando, nos contextos de que dispunha, os recursos veiculares que pôde achar. Foram dois contextos visuais e um contexto auditivo. Os dois visuais, o teatral e o mímico, traziam consigo, da economia zoológica, maior força de compromisso espacial, visto ser espacial a presença das coisas “teatrais”, e também a presença dos moveres, sendo a mímica uma presença de moveres. Por isso a intenção temporal, veiculando uma idéia temporal, externada por um signo sensível, explorou a facilidade maior do vozeio, ponto de concentração do poder fabular, graças ao menor compromisso espacial do vigor auditivo. No auditivo do contexto fabular, tecido com vozeios estilizados, a expressão encontrou o seu vero veículo, na via semântica da temporidade homínica. No exercício da fala, o homem adotou o serviço do ouvido, não por acaso, como pretendia Whitney, Curso 26 [28], mas por caso favorável. Saussure, que nos dá a notícia, não deixou de observar que o outro exagerava.

Além dos três contextos do ato de fala, o teatral, o mímico e o fabular, existe um outro, mais importante ainda economicamente: é o contexto pessoal, feito daquela riqueza que a experiência inter-individual vai acumulando em cada indivíduo, promovido a senhor mais ou menos potente, conforme o disponível fabular conseguido por ele. Conforme pois o recurso intra-individual da sua língua.

1. Contexto teatral. O contexto teatral é um cenário de presenças: a) presenças pessoais de Primo e Secundo; b) presença real de coisas aproveitáveis na conversa.

Nota 1. entre as impropriedades da rotina, existe o caso de a gramática elevar a 3 o número das pessoas do discurso, chegando mesmo até 6, emparelhando-as com o número das formas gramaticais da conjugação. A frase verbal noticia o proceder de quem fala (1º procededor) ou o proceder de quem ouve (2 º procededor) bem como o proceder de um 3 o procededor, que entra no discurso não como pessoa mas como assunto.

Para a fala, conferência de mentados temporais, o contexto teatral é um contexto adjetivo. Fornece ao ato a condição espacial de sua possibilidade. Entretanto, para a diacronia da hominidade, ele tem importância aquisitiva, com seus momentos naturais de economia zoológica, própria do homem-corpo. No encontro coloquial, a presença estimulária das coisas pode repetir seus efeitos empáticos, na vivência em comum dos interlocutores.

2. Contexto mímico. No cenário teatral, Primo representa, aos olhos de Secundo. É a sua fala de corpo, exibida em gestos, atitudes e teor fisionômico. Move-se em fazeres que não são de um fazer mas de um pensar: que não são vitais mas vivenciais, motivados, não na coisa espacial, mas na idéia temporal.

A fala gesticular já é de si uma fala. Tão suficiente porventura, que às vezes dispensa os vozeios. Se a presença teatral faz pensar nos estímulos da fatoração ic, o movimento gesticular faz pensar na resposta. Dois indivíduos antrópicos, sócios cotidianos do viver, podiam analogar-se mutuamente, sob a mesmice iterativa dos impactos vitais. Na lenta diacronia da espécie, lentamente infra-lógica, o ato de fala tem perdurado como um ato gesticular apoiado em vozeios. A fraqueza dessa fala visual revela, como persistência, a fraqueza diacrônica da capitalização, na hipocronia de uma antropidade sem tempo, que oscila nas adjacências do agora, entre a névoa mítica de seus outroras. Só depois, melhorando o teor racional, o ato de fala amadura em vozeios apoiados por gestos.

3. Contexto fabular [29]. No cenário teatral, Primo dirige a Secundo um vozeio semântico. Nesse vozeio, dosado na melodia e no ritmo, está o contexto fabular. É uma estrutura sonora, toda auditiva. Como vozeio, com seu poder de secundarizar o espacial, mostrou-se capaz de seguir, juntamente com Secundo Primo, dos agoras vitais cheios de coisas, para outroras vivenciais cheios de idéias. Consolidando-se como veículo, tomou o centro do poder fabular, reduzindo a função adjetiva e até dispensável, a antiga importância da fala gesticular.

À medida que o homem foi enriquecendo sua temporidade, seu disponível fabular foi amadurando a capacidade semântica dos vozeios, com progressiva desnecessidade das ajudas visuais. Junto à fala pragmática, receitadora de fazeres, e presa, de si, a situações de cenário, foi crescendo o exercício da fala teórica, noticiadora de vivências, em cogitações intelectivas próprias do outrora, lugar reminiscente das prorrogações pós-contactuais, lazer de redigir a doutrina do viver.

Teórica ou pragmática, a fala teve de primeiro se contentar, antes da simbolização visualizante, com a sua única via coloquial, ora encenada no teatro dos fazeres (fala pragmática), ora num teatro de lembranças (fala teórica), sujeita à presença dos interlocutores. A essas falas presenciais cumpre somar a fala soliloquial, a fala de Primo consigo mesmo, a vera fala hominizante, nos lentos ócios do pensar, quer sob a vigilância da cogitação racional (pensar dirigido) quer à toa de soltas imaginações reminiscentes (pensar sibi-dirigido).

Recentemente, faz uns cinco milênios, o homem mediterrâneo começou a descobrir um jeito de visualizar, por meio de símbolos, a imagem auditiva do signo fabular. Em termos de idade do homem sobre a Terra, cinco milênios é muito pouco, mesmo que só tomássemos, para confronto, o décimo e derradeiro centomilênio. A transcrição visualizante, do signo fabular, multiplicou de modo imprevisível a possibilidade do comércio mental. Aumentou o poder da fala teórica e preparou o passo do milagre helênico, vindo na superação da cota infra-lógica ou segunda superação, a dez centomilênios da primeira, que foi superação da cota zoológica.

Com a nova simbolização, começou o regime da fala escrita, capaz de condicionar agora, no silêncio dos traços, um dizer que se ouve mil anos depois, na voz do leitor. Capaz de potenciar agora um diálogo aberto, com um número aberto de Secundos, distribuídos no espaço e no tempo, de modo que pudessem, por dois milênios, Homero, Platão ou Vergílio, estar sempre conversando com os pósteros.

Nota: A fala não escrita, mais visual ou mais auditiva, mais gesticular ou mais vozeada, é sempre uma fala presencial, distribuída nos três contextos, num teatro de gestos e vozeios, de quem fala a quem ouve. De sua debilidade primeira, sob a hegemonia do visual, entre nativos de hominidade retardada, há notícia de tribos em cujo idioma é difícil de se entenderem no escuro. E há também o caso daquele missionário que, pensando que falava bem a língua gentia, entretanto não se fazia bem entender. Querendo o motivo, disseram-lhe que era pela falta dos gestos que não fazia, pois seu contexto fabular estava bom.

A fala escrita teve de se fazer puramente auditiva, mas dentro de um modo indireto, visto que potencia o vozeio, no silêncio visual de seus traços, cabendo ao leitor o ofício da prolação. Não tem contextos visuais. Falta-lhe, do contexto teatral, a presença de Secundo e a possível vantagem fabular da presença das coisas. Falta-lhe o contexto mímico, faltando-lhe pois a eloqüência gesticular da fala de corpo. e até o contexto fabular, em que se resume, desnaturado pela convenção visualizante, tem de correr os riscos do mau leitor.

Melhorando na arte, a fala escrita tratou de compensar a despresença dos contextos visuais, com explicações identificadoras e com o recurso anafórico, isto é, o recurso de apontar, na sucessão fabular, o que um gesto apontaria, na díctica espacial. Para o caso da prolação dos vozeios, dosados na melodia e no ritmo, foi inventando, sobretudo modernamente, um bastante apurado sistema de sinais diacríticos.

Nota: A fala e o preconceito glotológico. A glotologia tem mantido, contra a fala escrita um rotineiro preconceito que o século XIX não corrigiu e que a doutrina saussuriana fez passar ao século XX. Depois que tomou corpo ocidental a ciência de Bopp [30], a moda foi desconfiar da fala escrita dos letrados, conceituando-se como língua a da fala não escrita, na oralidade cotidiana do povo. Ciosa de seus méritos metódicos, suspeitou da filologia a nova ciência, louvando-se numa discriminação feita por Schleicher [31], ao estabelecer que o glotólogo era como o naturalista, cuidoso de toda planta, enquanto o filólogo era apenas um jardineiro, ocupado com flores. Era a ciência do classificador da língua, produto natural, contra a técnica do artesão, manipulador do artifício literário. Vindo Saussure, padrinho da língua e padrasto da fala, por isso agravou o engano, não por aumentá-lo mas por metodicamente repeti-lo, corando-o de robustez, numa falsa robustez de antinomia. Além de inimizar a língua e a fala, desclassifica a língua literária como artificial, ao apresentar a língua vulgar como natural. Tanto lhe desocorre a idéia de fala escrita que cai no inverossímil de admitir que, mesmo não mais falando uma língua morta, “podemos assimilar seu organismo lingüístico” [32]. Depois dirá Vendryes [33], que a mímica é uma linguagem visual mas que a escritura também o é. Até hoje se repete a expressão língua escrita, junto à expressão língua oral, quando já era tempo, - e tempo aliás saussuriano, fundado na dicotomia língua e fala - de a metódica se corrigir, pelo fato de a língua ser um só patrimônio, a serviço dos dois tipos que são a fala oral e a fala escrita .

É tempo de a glotologia, vendo na fala uma expressão da hominidade, estudar a fala como expressão da hominidade. Cumpre deixar, como ilusão da infância, a mítica do vocabulismo, e como recaída infantil os ouropéis do estruturismo. A língua, poder reminiscente, é uma feição de vozeios encenados que Secundo recebe, discente, nas falas de Primo docente. A fala não é uma coisa, mas um proceder de quem fala. Na fala aparece a língua de cada um, pois a fala atualiza a língua e a língua potencializa falas. A ciência, além de desenhar o sistema espacial de uma coisa física, também lhe identifica, por equações de energia, a relação sistemática dos procederes que tenha. Mas o sistema está na coisa, não no proceder. Se a fala é um proceder atual e a língua um proceder potenciado, cumpre buscar o sistema não nelas mas no procededor, isto é, na coisa “homem”. Ora, acontece que o homem zoológico participa da sistemação natural mas o homem antrópico não. E a fala, atual ou potenciada, é do homem antrópico, isto é, do seu poder criador, inespacial e diacrônico, poder do espírito e não do corpo. O vozeio, que entra na fala, é produto mecânico de um sistema fonador, natural e zoológico. Mas a qualidade da fala não está no sensível do vozeio e sim na qualidade semântica, no poder reminiscente que tem, pois suscita, no agora presente, o outrora temporal de uma idéia. Vozeio de papagaio, ainda que inteligível como fala (para nós) não é fala para o papagaio. Tem nele a qualidade mecânica, mas não tem a qualidade semântica.

Tendo instalado a diferença língua e fala, Saussure poderia ter instalado a metódica da diferença entre estado-de-língua e estado-de-fala, se houvesse deixado a rotina vocabulista em que fora informado, rotina que dominava a ciência da linguagem, desde Platão. Meditar no vocábulo é o primeiro passo, inicial e espontâneo, de quem, meditando no poder de falar, primeiro reduz a soluto mental as expressões que examina. Primeiro virtualiza a atualidade da frase, pondo-a naquele estado de fala potenciada, seu estado de vozeios possíveis e sentidos possíveis. Depois, saltando enganado barreiras sutis, passa ao problema palavras e coisas, armado em perspectiva direta, como se a economia fabular fosse uma produção espacial da economia vital ic e não um fruto temporal da economia vivencial ss. Uma coisa é o nosso viver zoológico, desenvolvido no espaço, dentro da lei natural, entre repercussões estimulares da coisa vital, e outra o viver homínico, diacronicamente desenvolvido no tempo, com modulações pós-naturais da lei natural, entre repercussões estimulares da idéia vivencial. Na equação vital, a presença da coisa e a resposta de um fazer. Na equação vivencial, a presença da idéia, fabularmente sinalizada, e a resposta de pensar. Tais modos de ser, misturados na prática da vida, não se devem misturar na teoria do viver. Na ciência do Objeto, a prática da coisa reduzindo-se a idéias experimentalmente verificáveis. Na ciência do Sujeito, toda de anamnese e analogia, a teoria da idéia identificável. Tudo que é idéia, juntamente com seu vozeio veicular, é figura do mundo mental, desenhada no tempo reminiscente, depois de abstraída do espaço da coisa, pronta para a cogitação liberadora da vivência. /a.b, a b, a(b) /

Com seus binômios (língua e fala, sincronia e diacronia), abrira Saussure uma boa porta metódica, mas logo a fechando à boa conseqüência metódica, obturada por preconceitos antinômicos. Subordinou à lingüística essencial da língua a lingüística secundária da fala [34]. Ante a sincronia, com seu estado-de-língua, e portanto seu sistema, desconsiderou a diacronia, mera fase de evolução, e que, como deveniência, foge ao sistema. Mesmo admitindo, [sic]que a fala precede sempre e que um discente aprende a língua é ouvindo falas, conclui entretanto pela tese de que são duas coisas absolutamente distintas.

Se a fala precede e a língua consegue [35], bastava coordenar a precedência fala e a conseqüência língua, reconhecendo vera primazia onde vira uma primeiridade inofensiva. A hierarquia da usurpação (língua e fala) teria cedido à hierarquia da conseqüência (fala e língua). Nivelados os dois termos, antes do estado-de-língua, que tanto exaltou, o mestre teria cuidado do estado-de-fala, em que não pensou. Com estados-de-fala de agora e de outrora (num mesmo idioma) definiria estados-de-língua de agora e de outrora, armando uma conseqüência de estados ou planos sincrônicos que, sucessivos, definiriam a diacronia, vista não como fase evolutiva [36], mas como resultado evolutivo. Como necessidade de todo existir, a deveniência move a língua também. Esta não pára de mudar e mesmo agora está mudando, sob a eficácia metassêmica e metamórfica de sua energia evolutiva. Confronte o observador de mais idade, com o agora da língua vernácula, o seu outrora de cinqüenta anos passados. Mas acontece que a deveniência tem um fluir difícil de acompanhar. A inteligência dá-se bem, como pensava Bergson, é com a solidez estática da aparência. No relativo à língua, é praticamente impossível medir uma fase de evolução, principalmente no passado, cuja presença, feita de falas escritas, o silêncio prolatório envolveu. Entretanto, se não podemos medir fases, podemos medir resultados, confrontando momentos sincrônicos, variamente distanciados e probantes, segundo o fornecimento de sua riqueza documentária. Cada um de tais momentos sincrônicos é um estado-de-língua da língua. O confronto mostra, como resultado, a diferença evolutiva. Pela sucessão de tais estados-de-língua ou estados sincrônicos fica definida a diacronia e a lingüística diacrônica.

Com seus binômios, Saussure poderia ter revolucionado a lingüística, não fora o vocabulismo que o prendia. Meditando na língua, pensava lexicamente, fundando conclusões num momento sincrônico, rotineiramente reduzido, como estado-de-língua, àquele estado de soluto mental que um dicionário registra, quando alinha, como um catálogo de verbetes, junto aos vozeios disponíveis, os seus possíveis sentidos. Costuma também recitar, mostrando o uso, exemplos de falas em que o verbete apareça, não mais como disponível, mas em forma de sintagma, ocupado no ofício atual de veicular um conteúdo semântico: achando porém, dialeticamente, que isso era fala e que a fala já é outra história, voltava ao soluto mental, onde, pegando o vozeio, tentava classificá-lo na língua. Não a língua que vem da fala, este proceder individual que, por virtude trans-individual, se faz inter-individual, mantido de geração em geração. Não a língua, este patrimônio virtual de falas, esta posse intra-individual de meios que Primo docente, já possuidor, transmite a Secundo discente, iniciado numa posse em que poderá ver, entre os mais elementos veiculares, a figura pós - fabular do vocábulo... Mas uma língua em que o vocábulo foi posto, pelo mestre, como centro do mecanismo e centro das operações. le mot, quelque chose de central dans le mécanisme de la langue [o vocábulo, alguma coisa de central no mecanismo da língua. - S aussure 1960, p.157 / 1969, p. 128] - nous opérerons sur les mots [37]. Uma língua sem procedência individual, isenta, como produto social, do poder particular do indivíduo, senhor apenas do uso fabular.

Sem lingüística da fala, ensejo de ponderar um estado-de-fala, Saussure não discriminou, de um estado virtual de vocábulo, um estado atual de sintagma. Não viu como, sendo na língua um vocábulo, um mesmo vozeio é na fala um sintagma. Não viu que o sintagma, atualizado por morfemas fabulares, é uma unidade de fala, uma estrutura de vozeios a veicular uma unidade de sentido. A fala efetua, no sintagma, a operação vocábulo e sentido (fatoração vs), operação que na língua, soluto mental de falas potenciais, mostra a forma equacional v mais s, própria de um vocábulo e um sentido possíveis. Na tábua de recursos da fala, catalogados como recursos da língua, o vocábulo começa por não ser uma unidade e sim um elemento, capaz de receber o endereço que lhe dá um outro elemento, o morfema fabular. Atualizada a base vocabular, por seu morfema funcional, então se atualiza, com tais dois elementos, a unidade fabular chamada sintagma, desde o sintagma verbal, sintagma dinâmico, centro semântico da frase, até os sintagmas nominais, sintagmas estáticos, genericamente redutíveis a três tipos, capazes de noticiar o procededor (do proceder noticiado no verbo), o paciente do proceder e a situação do proceder.

Saussure entreviu a figura do sintagma, embora o conceituasse muito mal, cegado pela mistura que fez entre estado-de-fala e estado-de-língua. Foi assim no conceito de signo. [S aussure, 1960, p. 99 / 1969, p. 80]. Idéia fisicista em que funde, numa combinação de unidade, o significante e o significado, o veículo e o veiculado. Chega a rejeitar o parecer dos que achavam que o signo era apenas o vozeio. Atribuiu ao signo uma atualidade que cabe ao sintagma,, não vendo a diferença entre o combinável, próprio da língua, e o combinado, próprio da fala. Tem razão o uso corrente: a idéia de signo resolve-se na idéia de veículo, sem mistura da idéia de veiculado. A idéia de vocábulo, igual ao signo de Saussure, representa-se na equação v menos s, vocábulo menos sentido.

O conceito que fez, de sintagma, revela a mesma confusão. A suspeita começa no título [38] (relações sintágmicas e relações associativas) onde coordenou duas quantidades não aditivas, uma do exercício de falar, outra da arte de pensar. Depois, dizendo que o sintagma é um composto de unidades consecutivas, apresenta como exemplos: Um vocábulo não sintagma: relire ; dois sintagmas nominais: contre tous, la vie humaine, uma frase nominal de três sintagmas, /202'/: Dieu est bon. Um período de duas orações com hipotaxe adverbal, na ordem /b.A/], de molde /x 1 3. 2 1/: s'il fait beau temps nous sortirons.

Onde tudo é sintagma, desde o vocábulo até o período composto, então nada é sintagma.

Nota 1: Saussure, vocabulista, molecular. Praga, fonicista, atômica. Copenhagen, ... os gramáticos de agora, em vez de cortar largas águas de falas, em mares diacrônicos, ficam-se na praia, distraídos, juntando conchinhas de parecenças e diferenças, catando frutinhas com que fazer rosários de biribiri. Enfiam cordões-de-contas, contentes feito meninos, quando a fieira cresce: ato bato cato chato dato fato gato jato mato nato pato rato tato trato. Acontece porém que enquanto o menino sente que brinca, pensa que está fazendo ciência o glotólogo. Sonha mesmo talvez que está ordenando uma tabela periódica à la Mendeleiev, onde até lacunas como sato e vato algum dia se venham a preencher.

Nota 2: Llorach: 23 27 29 37 39 45 46 50 54 66 70 77 83

Nota 3: Leroy: 77 81 82 88 90 92 94 97 110:: prefácio de Bröndal

Nota 4: casa caça cassa cassa
1 empréstimo antigo, românicamente feliz
2 ab captiare. Hoc ab captare. Hoc ab capere
3 ab tardio cassare. Hoc ab cassus ‘vazio'
4 cassa (tecido) ab malaio.


A VIGÊNCIA

Tem sido um engano maior da lingüística vigente, atendo-se demais ao contexto de vozeios, postergar os mais contextos. E mesmo no contexto a que se apega, o pior é que segue tomando a nuvem por Juno [39]. Desconsiderando a primazia temporal da função expressiva, foge à metódico [sic] do como, por não olhar como foi que no passado se determinou, pelo exercício do dizer, a socialidade mental entre um todo semântico motivador e um todo fabular motivado. Por outras palavras, como foi que a dinamia intencional de um conteúdo semântico (temporal) achou modo de se representar pelo vozeio espacial de um sintagma. Revelando seu pendor fisicista, o método ora vigente pôs-se a caçar porquês espaciais, nos miúdos vocabulares da anatomia prolatória. Agarrou-se a uma franja adjetiva, pensando estar na via substantiva. Tenta sistemações bizantinas, ludicamente iterativas, boas talvez para um esforço didático, no esforço de infundir num discente a posse de um patrimônio fabular. Seja tal esforço, mas não com o nome de lingüística. A posse não passa de ser um momento anterior, na economia da cognição racional. Fica no vestíbulo daquela tomada de consciência que toda ciência pretende, inclusive a ciência da linguagem.

O engano de Saussure, pai geral do estruturismo, foi uma ignoratio elenchi [40], uma falha lógica na sua tábua de conceitos: deu por existentes, na conseqüência racional, idéias que não estavam nas premissas. Onde se pode ver a constância analógica de certas morfemações adotadas - criações individuais de um hábito fabular diacronicamente reafeiçoável - o mestre viu um sistema positivo de signos - sujeitos a leis suas, naturais, e insujeitos ao poder do indivíduo. No fundo concessionário, como criador do sistema, o poder coletivo da sociedade, mito pluricorpóreo e unicápite, senhor da coerção, ditando língua aos membros.

A culpa não foi dele mas de seu tempo. Louvara-se na mitologia durkheimiana, 18 inventora da mente coletiva, alma supra-individual de outro ser coletivo, a sociedade conceituada em termos de massa ou multidão. Veja-se no Curso como a idéia de língua está condicionada pela idéia de massa. Veja-se, na página 19, [S aussure, 1960, p. 19) / 1969, p. 12] a expressão categórica de que a língua é um produto do espírito coletivo, un produit de l'esprit collectif. Entretanto, bastava dizer que a língua é um produto coletivo do espírito.

Faltou ver, nessa sociologia, o que é sociedade. E sociedade é apenas isto: um entendimento inter-individual, multiplicado por um grupo humano. Faltou ver também o que é o poder social de coerção: no bom sentido, um poder inter-individual de consenso, distribuído entre muitos. No pior sentido, um poder individual de expansão, um poder de vontade que se impõe. A experiência conhecia a coerção dos fazeres, mas não a coerção do pensar, no recinto inatingível do eu. Um senhor podia escravizar o corpo do servo, não a alma. Agora porém, ai de nós, depois que se inventou a lavagem do cérebro, nem mesmo a alma pode escapar à coerção. Mediante a bruteza técnica da rinçagem mental, um interessado, na fria aparência de um processo comedido, é capaz de trocar, por uma outra pré-moldada, a alma autêntica de uma pessoa.

Mas voltemos à história. Também a língua, filtrada na fala (veículo do pensar) não se há de afirmar que seja matéria de determinação social, fora do poder do indivíduo, visto ser matéria de aquisição espontânea, passada, pela geração docente, à receptividade adesiva da discente. Falar como os outros falam não é coerção mas conveniência, na conveniência do mútuo entender. Mesmo a coerção do ridículo, no ridículo de um falar agramático, é mais coação do pudor pessoal do que coerção social.

Além de querer ver sistema no que era contingência estrutural da fala, Saussure quis ver também oposição de signos no que era conveniência veicular da estrutura. Numa equação do impulso fabular entram dois elementos componentes: a) um quadro vivencial de idéias veiculáveis. b) um respectivo quadro de signos fabulares veiculantes. É difícil de admitir que se possa apresentar como fenômeno fabular cientificamente ordenável, sob a etiqueta de opositismo sistemático, diferenças discriminantes, próprias da economia fabular, motivadas na morfia vivencial do dicendo, na qualidade semântica do veiculado, presa a intenção de quem fala ao cuidado de achar, para tal veiculado, o conveniente veículo. A hora reminiscente da fala é a hora da conveniência entre o veiculado e o veículo, sem nenhuma urgência da relação signo e signo, a não ser numa concorrência da riqueza de meios, quando Primo, estilista, confrontando propriedades veiculares, escolhe a que melhor lhe pareça.

Quem fala compõe, não opõe. Compõe a frase não por exame de alguma rivalidade opositiva dos signos, mas atento à sua conveniência com o sentido veiculado. E, note-se bem, não se dê a compor aquele sentido de atividade completa, sempre em função, rotineiramente admitida pelos vocabulistas, por admitirem que a frase é feita de vocábulos. Une combinaison de mots [41]. Ainda não se lembraram de pensar no fato de que o vocábulo é uma entidade recente, uma figura pós-fabular, criada pela gramática. Se a fala tem pelo menos cem milênios, o vocábulo não tem nem três. A frase fez o vocábulo e o vocábulo não faz a frase. No cotidiano da vida, as falas são repetições memorizadas. A língua que Primo docente influi na retentiva de Secundo discente, é uma posse patrimonial de moldes e elementos, sem contar a subvenção visual dos gestos e presenças, que o convívio teatral subministra. A língua é bem mais que um cabedal de moedas vocabulares que, nem por mui numerosas, não lhe podem determinar a feição. Com mais de 70% de empréstimos não germânicos, o inglês, rico de suas muitas palavras, não perdeu a fisionomia vernácula. É que a língua, em primeiro lugar, está no modo de ser da sua frase, do seu contexto fabular. Contrariamente a Saussure, para quem não era da língua a fala nem a frase, temos de afirmar que são da língua: no primeiro plano, como unidade da fala, o molde fabular, que tem dois aspectos incluíveis no molde frástico ou topomorfêmico (lugar dos sintagmas na frase) e no molde prolatório ou tonomorfêmico (distribuição melo-rítmica da frase). No segundo plano, os elementos do sintagma, que são a base vocabular ou vocábulo e o morfema fabular, atualizador do sintagma. Vê-se pois que o vocábulo não é uma unidade, mas apenas um elemento virtual, uma figura léxica plurivalente, parcela que devidamente atualizada por seu morfema fabular então constitui a unidade chamada sintagma, determinada e univalente: unidade que por si é capaz de ser frase monossintágmica, e capaz de compor, quando multiplicada, a unidade maior chamada frase polissintágmica.

Quem fala compõe, não opõe. Sendo que compor não é uma atividade original de entretecer vocábulos, folga que a língua delimita, mas uma atividade reminiscente, uma tarefa de compor sintagmas, pela sintaxe dos elementos (vocábulos e morfemas fabulares) bem como de os acondicionar nos devidos lugares do molde frástico, e de acordo com o molde prolatório. Cumpre admitir pois, no estado-de-língua de uma língua, além do seu léxico de vocábulos (virtuais), a gramática de seus moldes fabulares, também virtuais.

Não se pode deduzir opositismo sistemático, pela colheita casual de diferenças vistas depois. Diferenças variamente instaladas, no vário curso da diacronia, e no vário decurso de aculturações inter-idiomáticas e também intra-idiomáticas. É fácil de ver, entre fôrma e forma, a intenção fonológica da diferença prolatória, mas não é difícil de ver que isso foi um aproveitamento ocasional, bem longe de qualquer necessidade sistemática. A fôrma, idéia de uma coisa, é o molde da forma. A forma, idéia de uma abstração, primeiro foi a figura saída da fôrma, alargando-se daí para destinos subtis, na área de idéias como aparência tipo morfia, feição etc.. Em latim a forma única forma veiculava os dois sentidos: em português, a via popular conhecia “fôrma”, bastante para a concretice vulgar, até que o letrado, para sentido mais leve, achou bom retomar o latim forma. A prova da contingência está no fato de que a forma nominal forma não tem dificuldades com a forma verbal forma. Veja-se ainda o caso de casa e cassa : um velho empréstimo, já em latim, que destronou domus, e uma voz malaia que, com certo tecido, entrou na língua. Não se pode supor intenção de contraste, num caso de pura coincidência. Numa série como casa / cassa / caça, escolhidamente pescada no mar dos vocábulos, aparece logo, morficamente, uma provocação que o docente pode focalizar, em lições de prosódia e grafia. Passar daí é ultrapassar. Não fica bem um curioso enfiar uma série como caça cada cala calha cama cana capa cara casa cassa cata cava, enquanto vai também mostrando os contrastes, talvez com riqueza de sinais algébricos e logísticos, e dizer que isso é lingüística, pois está exibindo o sistema da língua. Não, não é. Isso não passa de brinquedo. Quem faz ciência da linguagem não pode espoliar o sintagma, de seu poder veicular, aclimado pelo poder veicular de sua frase, para o atribuir a particulares fônicos de um vocábulo, vozeio virtual e plurivalente, mero candidato possível, como elemento da língua, à função fabular do sintagma, depois de a fala o endereçar morfemicamente, e semanticamente o responsabilizar, univalente, por um dos costumeiros sentidos.

Quem fala, não opondo mas compondo, costuma ter dois cuidados: fidelidade estrutural do todo veiculante ao todo veiculado, temperada pela fidelidade ao suficiente, no hábito comum de só gastar o necessário. Clareza e menor esforço prolatório, no regime do dizer, são duas leis genéricas da língua. São duas economias concurrentes [sic]: se falha a suficiência veicular, a clareza reclama. Se o veículo bastou, Primo não vê razão de mais despesa. A lei do menor esforço é uma lei geral da economia humana, capaz de uma dosagem que a iteração vai regrando, com seu efeito condicionante. É um agente eficaz na evolução da língua. Desgastando morfias, a longo prazo, é capaz de reduzir vossa mercê a (resto popular de você) e de resumir augustus em /u/, forma auditiva da forma escrita août, francesa. Colabora muito, na sua dispersa eficácia, complexa e imprevisível, o fato de a economia prolatória estar sujeita à variada condição pessoal de cada indivíduo que fala. A língua de um povo não é a língua do povo, supra-individual e coletiva, no pensar de Saussure, mas a língua de cada indivíduo do povo, transindividual e distributiva, contingentemente nivelada, em cada um, como riqueza adquirida. Embora cada indivíduo busque falar como falam os outros, talvez escolhendo padrões, mas repetindo o correntio vernáculo, a verdade também é que cada um fala como pode, ao nível de suas experiências e enganos.

Poderá dizer um defensor: o estruturismo é um corolário coerente, motivado em Saussure, com sua doutrina do sistema opositivo, da estática sincrônica, e do vocábulo central. Obrigado, metodicamente, à sincronia, obriga-se a ordenar os valores da língua na linha do simultâneo, sem recorrer à diacronia, que está fora do plano, como fase revoluta e assistemática.

A resposta é que a coerência não transforma o engano em verdade. Ela estaria certa, se também o mestre o estivesse, num corpo de doutrina que tivesse captado o sentido do fenômeno fabular, sentido de um proceder de privilégio, pós-natural e hominizante, fautor diacrônico de uma transposição temporal que se rastreia na História, cronicário não de fatos físicos mas de feitos humanos, para assunto da Ciência do Sujeito. A etimologia comum do poder homínico e do poder fabular, e a diacronia do poder fabular, bem como da hominidade progressiva, tudo se identifica é pelo chamado fato histórico, feito individual e biográfico, transindividuado no fazer coletivo, arquivado no tombo das eras humanas, para indício de como tem sido o viver de um animal um dia que, revertendo em atividade a paciência do cosmo, então começou a adaptar para si a casa do mundo.

Sem nenhuma intenção de menosprezo, mas por mais preço da verdade, move-nos a coragem de afirmar que a doutrina atual, como tanto vigor e prestígio, não passa de poetagem glotológica. Ela está contra os fatos. Segundo se conta, informado de que sua teoria contrariava certos fatos recentes, o anti-evolucionista Hegel respondeu “tanto pior para os fatos”. Tem sabor o dizer, na boca pontifícia do magno mestre da Germânia de então. Em verdade porém, segundo velha parêmia, contra o fato não existe argumento que valha, nem mesmo de um professor de Berlim, gênio catedrático e bronquítico.


ESTADOS

Ao tentar definir o signo, que é da língua, Saussure definiu o sintagma, que é da fala. Mas ficou sem o ver e sem se converter. Ao propor o discrime língua e fala, não teve tempo de colher os corolários de tão metódica premissa. Não vincou a diferença entre o virtual do estado-de-língua e o atual do estado-de-fala. Revela essa indiferença o decurso do Curso. Ao dizer que o signo une ou que o signo é uma combinação [42], com intuito de identificar uma figura virtual da língua, apresenta a imagem do sintagma, signo atual da fala. Visto no seu estado-de-fala o signo é um vozeio efetivo, ocupado, como veículo, na função de veicular um veiculado. Realiza a fatoração /a.b/, atualizando sociedade entre o significante e o significado. No seu estado-de-língua, o signo é um vozeio virtual (a imagem acústica de que fala o mestre, mas também a prolatória, de que não fala). Seu estado, no soluto mental da língua, não é de sociedade mas de socialidade. É capaz de carrear, mas, sendo virtual, não está carreando. Reduzido a imagem reminiscente, espera que a fala o venha tomar e empregar no sintagma, atualizado por seu morfema fabular. Não está unindo nem é combinação. Etimologicamente, podemos dizer que é uma descombinação, visto que o signo virtual, figura pós-fabular, fruto vivencial de uma análise, não passa de ser um sintagma desmontado, provindo de uma fala anterior, e pronto para o serviço de uma fala ventura. Não é a fatoração / a. b /, mas a disponibilidade / a mais b/, como costuma vir no dicionário: um vozeio seguido de possíveis sentidos.

A metódica não deve deixar na meia-luz um aspecto assim tão decisório como o contraste entre a atualidade da fala e a virtualidade da língua. Um estado-de-fala e um estado-de-língua. E deve preferir, em vez da saussuriana, a ordem fala e língua, ditada por uma precedência que o mestre reconhecia, embora não explorasse, na hierarquia etimológica, o fato de que a língua procede da fala. Ex fábula lingua.

Se a língua veio da fala, na fala temos de ver a língua e não alhures. Nas falas individuais, sim, e não naquela alma coletiva da massa, alma do outro mundo, que tanto tem assombrado a lingüística. Nas falas dos indivíduos, um por um, como na epifania múltipla da alma vernácula do povo. Nela aparece a língua, pecúlio pessoal, distributivo, patrimônio comum, feito pessoal de contribuições que a diacronia gentilícia vai imitando.

Se a língua veio da fala, basta ver como veio para se ver que foi o que veio. Primeiro recensear seus tipos de unidade fabular - frases monossintágmicas e polissintágmicas. Depois, fracionando o sintagma, as suas partes elementares - o vocábulo e o morfema fabular.

Além disso, por ser a fala um proceder encenado, avaliar, como ajuda, o seu contexto teatral, (contribuição das presenças), e a contribuição gesticular do contexto mímico. É um fato que arrolar, na capacidade da língua, patrimônio de expressão da hominidade progressiva, o fato de essa expressão, cada vez mais auditiva, tender a resumir-se no contexto fabular, dotado de suficiência semântica, liberando o teatral, como reserva de abundância, para tempero da expressividade. É que a fala, melhorando de teor, como veículo de temporidades, acaba dispensando as muletas espaciais da presença e do gesto. Para tanto, condicionando-se por demarcações topo- e tonomorfêmicas, replena o poder semântico do vozeio.


MAIS COISAS

No mundo da fala, convém insistir, existem mais coisas que as vistas até agora pela filosofia da lingüística. Haverá cinco mil anos (Egito, Índia) o homem começou a ser capaz de meditar no problema de sua expressão. Após meio decurso de tal prazo, começou a tentar alguma via metódica, opondo-se como Sujeito ao Objeto. Enquanto floria, acima da comum vegetação infra-aristotélica da humanidade, a cogitação para-aristotélica (do oriental) ocupada em destilar um Sujeito contemplativo, Sujeito casulário que de si mesmo se tece, como endocosmo, a humanidade mediterrânea, tomando a via aristotélica, educando um Sujeito ativo, entregou-se à conquista do Objeto, sem muito prazo de se conhecer a si mesma, indócil à receita socrática, reeditada embora pelo cristianismo.

O ideal era que o homem, progredindo no domínio do Objeto, progredisse igualmente no domínio de si mesmo. Agora, crescendo o desajuste dos dois ritmos, endureceram os longos males e temos de aplicar tardia medicina: Longa invaluère mala. Sero medicina paratur [Longos males fortaleceram. Tarde prepara-se o remédio]. Cumpre informar a vontade do homem técnico na motivação do homem ético. É tempo de o homem intensificar seu cuidado, no cuidado de se identificar como Sujeito. Para tanto, a ciência moderna, menos enfatuada e mais humana, tem de reconsiderar, na tradição hominizante, valores que desdenhava como sendo mito e poesia, visto que entram, por diacronia do tempero, na estrutura substantiva da hominidade.

Com o problema da identificação do Sujeito, identifica-se o problema da identificação de sua língua. Trata-se de uma análise mui fina, que sonda, em mares analógicos, o teor temporal e diacrônico da hominidade. A hominidade é uma feição, no semetipso de cada eu, vinda na feição vivencial de seus procederes vitais, capaz de sublimar um fato biológico em feito biográfico. Vinda sobretudo, por juntar ao fazer o dizer, na epifania do pensar, fabularmente veiculado. Embora não seja de bom aval o fato de o homem ser um animal mentiroso, a fala é sempre uma revelação, motivando por isso o costume de também se julgar o homem pelo que diz: ex ore tuo te iúdico [por tua boca te julgo].

Funda-se, a identificação do Sujeito, na ipsidade temporal da estrutura homínica. É uma ipsidade que progride, enquanto a humanidade a vai distribuindo aos indivíduos, condicionada em cada um. Para condicioná-la, existe a eficácia mímica dos procederes vitais observados, e a eficácia intelectiva das sintonias fabulares, promotoras do pensar. Nesse ver que é um verificar, e nesse falar que é uma especialidade, funciona um exercício pós-natural, isto é, posterior à etimologia natural dos procederes vitais. Foi por ele que a energia mental criadora reformulou a estrutura espacial dos procederes vitais, na estrutura temporal dos procederes vivenciais. Estes, desenvolvidos no tempo criador de cada indivíduo, propagaram-se daí, didaticamente, no tempo intelectivo de cada outro indivíduo. Por isso é que a hominidade do Sujeito, capitalização tradicional de feitos humanos, tem de ser pesquisada no tempo, para cá da dimensão espacial dos fatos fisiológicos, naturalmente anteriores. Na equação ic, ao nível da cota zoológica, o fato espacial da coisa estimulante e da resposta do indivíduo. Na equação ss, início do poder antrópico e do poder fabular, o feito temporal do sócio Primo e do sócio Secundo, tornados capazes de revocar, no agora da fala, o outrora de uma idéia, de transmitir um saber aprendido, de instituir, para o comércio dos mentados, a firma Primo e Secundo. Tornados capazes de, deixando os encontros, cada um regressar experientemente mais rico, dono de mais idéias em que pensar. Na diacronia da hominidade, tão importante com a equação inter-individual ss é a equação intra-individual Sv, do Sujeito com sua vivência, prorrogada na duração pessoal do indivíduo, cheia de fala consigo mesmo, pronta para a cogitação inventiva, própria para reformulações com que o Sujeito retorna, sabedor e didático, à presença do outro, no cotidiano da equação ss.


ANAMNESE

Dizia S. Agostinho [43] que, para existir o tempo, cumpre existir a criatura, cujo mover faz o tempo: ubi enim nulla creatura est, cuius mutabilibus motibus tempora peraguntur, tempora omnino esse non possunt. (De civ 12.15.2). Dissera também que o espírito se move no tempo e não no espaço: per tempus, non per locum. Pela subtileza de tal mover, em tão arguta dimensão, a ipsidade do eu do eu antrópico ficou difícil de rastrear, visto ficar fora do espaço, lugar da rotina sensória. Daí dizer Paul Valéry [44], 286: on sait bien qu'on est le même, mais on serait fort en peine d'expliquer et de démontrer cette petite proposition [sabe-se bem que se é o mesmo, mas ter-se-ia dificuldade de explicar essa pequena proposição]. Nem a fala dá roteiro seguro, apesar de ser havida por imagem da alma. Chamam-lhe ato de comunicação mas isso é por boa vontade, pois a fala, como poder, não ultrapassa a dieta de uma sintonia mental, um esforço intelectivo, uma conferência da idéia de Primo com a idéia de Secundo. Conferência que frustra, no outro pólo, se não estava no outro pólo vivência anterior suficiente. A fala pode ajudar a comunicação, de que a sintonia mental pode ser um começo, pois tanto Primo como Secundo, e juntos os dois, podem passar, do conteúdo intelectivo, próprio da vivência ideativa, ao todo estético da vivência, cujo pólo não está no parceiro fabular mas na etimologia vital.

Nota: A comunicação, é um ato mais profundo, maior que a sintonia fabular (que a fala atualiza, entre dois pólos temporais, intelectivos). Estimulando o entender do ouvinte, a fala-colóquio serve à comunicação que ela não é, pois fica na sintonia mental, comunhão (com a coisa ou com outrem) vito-vivencial. Raiz antiga no corpo natural, com seu legado biológico (simbiose empatia simpatia) a fala-solilóquio, ensejo da expressão poética à comunhão.

A comunicação, mais que sintonia fabular, é comunhão, faz-se com a coisa, vinda pelas raízes animais da simbiose, da simpatia e da empatia. Daí o fato de a autenticidade do próximo nos parecer mais garantida no que faz do que no que diz. Dois parceiros fabulares podem entender-se, até muito bem, quando, como parceiros conviviais, já estão avezados à comunicação. Observe-se ao contrário, dentro da mesma língua, a possível hesitação e reticência de dois parceiros fabulares que não sejam também conviviais.

A verdade é que não é fácil moldar a imagem do Sujeito, nem o próprio nem o alheio. O próprio, matéria do nosce te ipsum, [conhece-te a ti mesmo!] porque um vário motivo passional nos leva a preferir, ao monótono da própria companhia, o gosto da alteridade, no sensível das coisas. A obediência do ensimesmar-se é uma ascese difícil. Fica na teoria, como receita, a notícia de que no silêncio e na quietação a alma se aproveita: in silentio et quiete próficit anima devota. Imitação. Em lugar de uma vera imagem do eu, o narcisismo prefere uma falsa imagem romântica.

A Ciência do Sujeito, se fora mais fácil, não estaria tão atrasada e nem tão desproporcionada com a Ciência do Objeto. Isso porque o jeito é mal seguro, no duplo expediente possível: anamnese e analogia. Cada Sujeito, desde o recinto impenetrável do Eu, pode ver fora mas não pode ser visto de fora. O jeito é se conhecer por anamnese, lembrança pessoal, exame de consciência. Tem de se conhecer a si por si e conhecer o outro por analogia, tomando-se como ponto de referência. De motivar-se na ipsidade comum do ser humano. Sob um mesmo troquel de hominidade, projeta cada um sobre seu próximo, os velhos valores do nosce te ipsum. Com toda razão e com todos os contingentes enganos, diz uma velha sabedoria que o bom julgador por si julga. Vieira, mostrando o perigo do juízo humano, confronta-o com o de Deus: este nos julga a nós por nós, enquanto nós julgamos outrem não por ele mas por nós.

Ante a impenetrável consciência do outro, quem bem se conhece pode conseguir boas aproximações ao julgar fazeres e dizeres alheios. A humanidade é uma sucessão de Secundos análogos, informados por Primos análogos, condicionados por coisas análogas, de fontes vitais analogamente vivenciadas no espírito e analogamente sinalizadas na fala [45].


O HIATO

Diz S. Agostinho, muito arguto: o tempo dos anjos, no seu movimento, vai do futuro ao passado: eorum motus ex futuro in praeteritum transeunt. (Id.ibid .). Eis o movimento que a identificação do poder fabular está pedindo. Para tanto, basta colocar o presente na sua perspectiva de coisa ventura e ver como veio vindo, em passo de recessão, até o fim possível do passado. Não há outro jeito de encontrar o sentido da língua, senão por rastreio diacrônico. Patrimônio deveniente e transeunte, a tática de imobilizá-lo sincronicamente, embora sendo um recurso didático, próprio da gramática normativa, não é expediente científico. Imaginar densidades fônicas, opositismo, sistemas, como quem faz ciência causal, é apenas falsificar identificações, por disfarce da inveja, na inveja das ciências do Objeto.

Apesar de certos enganos, justificáveis em seu tempo, o século XIX mostrou sua notável diligência diacrônica, na diligência com que nos carteou o mapa da língua indeuropéia, historicamente perlustrada. Podemos identificar, por exemplo melhor, na linha latina, quatro estados da língua indeuropéia, três deles sendo históricos. Desde o pós-românico atual, através do românico e através do romano, até o vago pré-romano, imerso em névoas sub-históricas.

Na primeira metade do século XX, continuou-se ainda o bom certame, pela Escola Francesa, principalmente em Meillet, o seareiro incansável, respigador de todo um reino. Discípulo de Saussure, mas só como aprendiz da boa lição, evitou como pôde a cizânia de então. A verdade é que se nutrira e mantinha, numa prorrogação que morria, a reserva ecumênica do Ocidente, fruto de uma inteligência internacional que começava a fracionar-se, desde 14, martelada por impactos de guerras, de subversões sociais e nacionalismos. Durante a primeira guerra mundial, ao trocar a universidade pela trincheira, a mocidade européia, em vez de noviciado de hominidade, entrou no tirocínio da bruteza. Trocara o ócio racional de Sócrates pelo negócio irracional de Caim. Outrora, finda a guerra, podia o guerreiro voltar e absorver-se outra vez pela vida vernácula. Agora porém, depois de 14, um novo tipo de ódio ia surgir, capaz de azedar a rotina civil. Mais do que o ódio nacional de um grupo contra outro, de explosão intermitente, ia funcionar o ódio técnico de uma classe nacional contra outra, metodicamente propagado. Depois de fermentar o trigo da Rússia, começara a minar a inteligência de uma burguesia que o século anterior já desmotivara. Essa, depositária de um legado que transmitir, estando sem pureza de mãos, tinha que enfrentar, para agravo de males, uma juventude revel. Contra o hiato fracionador da unidade vernácula, insipidamente corrosivo, a violência fermentou o hiato compulsor dos nacionalismos. Estreitou-se o horizonte ideal da humanidade, num horizonte espacial de campanário. Então se começou a ver que a luta de 14 [1914] não passara de ser uma batalha, nesta guerra do século, recomeçada em 39 [1939].

A Europa transformou-se em caserna, mais ou menos gaiata e lúdica, sob a coerção de uma incoercível distensão fisiológica, e sob a eficácia mecênica de uma velocidade espacial que abrira hiato entre o tempo do homem e o tempo da coisa, ao desproporcionar a razão entre o tempo de fazer e o tempo de pensar. Quem fora senhor de suas horas flexíveis, acertando o relógio pela altura do sol, passara a carecer de exatidão cronométrica. Teve de aprender a contar o minuto, quem antes via passar as horas, se via. Quem sabia, ao fechar a porta, fechar o mundo lá fora, acabou sem refúgio pessoal, quase sem lugar de estar consigo, nem prazo de ensimesmar-se, fora do sítio das alteridades. Em lugar da paz beneditina da ciência, a pressa pragmática da indústria. Em vez do motivar-se no viver, a indigestão e náusea do existir [46]. Em vez do esforço de harmonia do segundo pavimento, veio a queda-de-nível e a saturação nervosa da rotina, o insensato regresso aos porões do zoológico, ao pânico difuso do instinto: por toda parte o hiato.


CINQÜENTA ANOS DEPOIS

O século XX instaurou, para nossa hominidade, uma negociosa dieta desumanizante. Move um ser, despreparado para a liberdade, impaciente com o não sensível, por sedução da concretice espacial e fuga à subtileza temporal. 50 anos depois do Curso, é prova de não progresso a forte atualidade das teses centrais: sincronia - sistema - oposição - vocabulismo. A pressão dos hiatos sociais, dificultando a pressão da teoria, acomodou a lingüística no desvio do mestre. Suas teses soavam bem às nossas ouças lógicas, por imitarem certo tipo de rigor metódico, admitido na ciência do espacial, verificável, apesar de aplicado a uma ciência do temporal, identificável. Convinham também com o momento de agora, cheio de pressa pragmática e de urgência didática, pois davam disfarce lógico ao empirismo, no empirismo da “lingüística aplicada”, capaz de incutir posse da língua ao discente, mas incapaz de motivar-lhe a consciência.

O Curso atribuído a Saussure é um curso de reificação. Um curso que espacializa, destemporizando. Aluno de Leipzig, aí fizera, meritamente louvado, aquele estudo sobre o vocalismo indeuropeu: Mémoire sur le système ..., 1878. Professor diplomado, primeiro em Paris e depois em Genebra, armou da língua outras perspectivas, fora do historicismo que formam, sob a recente luz francesa da sociologia. Firmou conceituação tão afinada que recebeu visita de paga, da sociologia estrutural, decênios depois. Entretanto, embora sendo cortesia, isso não foi melhor para a Ciência do Sujeito, ciência a que servem, cooperativamente, a glotologia e a sociologia, pesquisadoras de feitos humanos e não de fatos físicos.

A ciência do homem, estando no homem, é uma ciência do homem como pertença. Versa dois termos oferecidos, de si, numa ordem etimológica e diacrônica: o mundo fenomênico, extenso no espaço, e o mundo numênico [47], internado no eu.

No primeiro, feito de coisas mais ou menos discretas, o exibir de procederes estimulantes, sensoriamente captados pelo paciente. Vistos em si, fenomenicamente, são procederes da coisa. Merecem o nome de procederes vitais porque somente através de suas repercussões no ser vivo tomam aquele sentido que o homem define. Procederes que o homem não sente são procederes não vitais. Vemos a coisa em nós e não a coisa em si. É assim nos limites do mundo endofísico, por nós observável, cabendo à metafísica o metafísico.

Nota [feita pelo autor à margem do texto original]: não vitais ou não diretamente estimulantes: a energia íntima da matéria, como na física do átomo e da massa; a energia íntima da vida como no crescer e sazonar de plantas e animais, fenômenos que, para ver e ordenar, o homem teve de criar sensores mecânicos e razões matemáticas .

No segundo, forma-se a consciência do indivíduo, concentração de tempo que a diacronia capitaliza. Desde a situação inicial da posse infra-lógica, vivencialmente implantada na epiderme do tempo, até às determinações racionais da posse lógica, imersa na duração, amadurada no tempo, como vera consciência do Sujeito. Das repercussões vitais do cosmo espacial, tratadas pela vivência intelectiva, diacronicamente prosperável, a humanidade foi filtrando o cosmo temporal de cada um, numa lenta imaginação de idéias fabularmente veiculadas e inter-individualmente propagadas. Veio assim crescendo lentamente, por tradição capitalizante, a hominidade progressiva.

A ciência do homem, não divina mas humana, é a ciência que tem do proceder da coisa (Ciência do Objeto) ou a ciência que tem do próprio proceder, análogo ao proceder de outros homens (Ciência do Sujeito). Na Ciência do Objeto, ordenada pelo homem, o Sujeito ordenador ordena o fato físico, tabelado por sua norma natural. Na Ciência do Sujeito, ordena o próprio poder cognoscente, o próprio modo vivencial de proceder, exibido em feitos que são estilizações pós-naturais de fatos naturais [48].


VOCABULISMO

A lingüística tem persistido no hábito de se ater aos vozeios e postergar os mais contextos da fala. E mesmo no contexto a que se apega, fica tomando a nuvem por Juno, ao não olhar como deve, na função expressiva, a primazia do temporal. Foge de melhor determinar como se determinaram, mutuamente, no passado exercício da fala, um todo semântico motivador e um todo fabular motivado.

Existe uma fala expansiva, capaz de vegetar nas camadas intra-individuais da emoção. Gira num circuito pessoal, fora do comércio dos mentados. Pela sua estrutura, facilmente infra-fabular, e fraca no teor transitivo, mostra que não cuidava de ser inter-individual. É a fala poética, sem fatorado ss (ou sócio-e-sócio), própria de uma atividade Sv, no íntimo de um eu que devaneia e se compraz na comunhão SO, em se fundir o Sujeito no Objeto, na mítica fruição do estimulado, ante um proceder que contempla. Então, mesmo não sendo endereçada, mas, nessa temperatura estética, pelo fato de ser fala, repercute eficaz nos ouvintes, com seus efeitos de empatia, os seus enlevos de simbiose.

Entretanto, a fala comum, na prática de um fazer ou na teoria de um pensar, é a fala expressiva, inter-individualmente propositada, sintoma relacional por que difere da fala estética, para além da tríplice diferença constitucional entre fala estética, fala volitiva e fala intelectiva.

No modo de a fala expressiva relacionar um veiculado e um veiculante, cumpre investigar, na diacronia, como foi que a intenção temporal de um conteúdo semântico pôde encontrar seu veículo, no vozeio espacial de um sintagma. A glotologia vigente, arrastada no seu pendor fisicista, infelizmente se pôs a caçar porquês espaciais, miudamente inspeccionando, qual harúspice [49], as entranhas vocabulares de um cadáver prolatório. Instalando-se numa franja lingüisticamente adjetiva, tenta sistemações bizantinas, ludicamente iterativas, boas talvez, num esforço didático, para infundir posse de língua no discente. Mas isso, que não explica o patrimônio, é ficar no vestíbulo, sem a tomada de consciência, necessária, como em toda ciência, à ciência da linguagem.

No mestre das conclusões atuais que foi Saussure, pai geral do estruturismo, funcionou uma ignoratio elenchi, uma falha na tábua dos conceitos, ao dar por existentes, na conseqüência racional, idéias que não estavam nas premissas. Em vez de conceituar a sociedade pelo que é - fruto da inteligência temporal sócio e sócio - admitiu o mito espacial da massa, atribuindo a um poder supra-individual o que tem sido contributo pessoal de genialidade contingente, capitalizado pelo grupo, diacrônicamente, no lento progredir da hominidade. Sendo a língua um produto social, mas no sentido ss, veículo mutuário entre dois, viu nela uma produção da alma coletiva, isenta ao poder do indivíduo.

Nota [à margem do texto, fólio B1.6]: a produção: singular; plural, depois, vem a propagação.

Onde havia a constância analógica do uso, diacronicamente reafeiçoável, no hábito fabular dos indivíduos, imaginou um sistema de signos, dentro de sua lei natural, sujeitos a eficácias da ação coletiva e insujeitos ao poder de quem fala. No fundo concessionário da teoria, vige, regendo e fazendo, a sociedade, mito pluricorpóreo e unicápite, ditando a língua para todos.

A culpa não era dele mas de seu tempo. Louvara-se em Durkheim, partidário da mente coletiva, alma de outra entidade também coletiva - a sociedade, vista em termos de massa ou de multidão. Faltou-lhe ver que a sociedade é apenas uma inteligência inter-individual, multiplicável entre os indivíduos e que o poder social de coerção, quando no seu efeito positivo, é um poder inter-individual de consenso, convivialmente repartido, ou, quando no pior efeito, um poder individual de expansão, um poder da vontade que se impõe. Mas tal poder de coerção, admitido nos fazeres, não se admite nos pensares, no recinto do Eu, que os tem como tesouro pessoal.

Não se há de dizer que a língua é matéria de coerção social, isenta ao indivíduo, visto ser uma aquisição espontânea, didaticamente infundida, pelas falas da geração docente, na adesiva anuência da discente. Falar como os outros falam não é coerção. Falar como os outros falam é costume aprendido, na convivência mútua do entender. Mesmo a coerção do ridículo, no ridículo do falar agramático, mais que coerção social, é a coação do pudor pessoal, é vergonha particular do ignorante.

Além de ter visto sistema, na contingência estrutural, viu também oposição, no uso compositivo. Há dois elementos numa equação do impulso fabular:

a) um quadro vivencial de idéias veiculáveis.
e
b) um respectivo quadro fabular de signos veiculantes.

Numa época de respeito à exação racional, é estranho que a lingüística infiltrasse, de contrabando, como princípio geral, na economia do fenômeno fabular, essa etiqueta de opositismo sistemático. Bastou-lhe uma colheita casual de diferenças vistas depois, variamente instaladas na língua, no seu vário curso diacrônico mais um vário decurso de aculturações, internas e externas. Ela não cora de seu arbítrio infantil, quando distribui fonemas a vocábulos (presentes num sintagma) não o faz por arbítrio fracionário mas por intenção do todo fabular num intuito semântico solidário, próprio do todo frástico. Não alinha soldadinhos de chumbo. Não vê razão ou motivo, previamente regulamentado, em achados pós-fabulares como na série bato cato dato fato gato etc.

Chegou a isso, na conseqüência, a poetagem glotológica pós-saussuriana, glosada e avalizada por larga geração de afilhados, crentes paladinos de uma nova ciência que microtomiza a massa de um vozeio, sonhando, em arremedo, fórmulas algébricas, em que conter supostas leis da estrutura.


MESTIÇAGEM

Revela o Curso, no decurso de passos fundamentais, uma desconsiderada mestiçagem metódica. Diz por exemplo que o signo é arbitrário. Não existe liame natural entre o significante e o significado. Comenta expressamente que arbitrário quer dizer desmotivado [50].

1 - Não pode falar em arbitrário do signo uma glotologia que se veda discutir o problema da origem: trata-se de uma questão etimológica, aberta a seu rastreio histórico da origem. Dão-se ao caso do arbítrio os casos de esquecimento, de ignorância. Faz-se arbítrio da língua uma injunção em que se encontra o portador. Um signo pode ser desmotivado para Lúcio, mero dono da posse, e motivado para Caio, posseiro consciente. É ignorância e não arbítrio, a ignorância do motivo semântico na relação veiculado e veículo.

2 - É gratuito, sem pesquisa etimológica, dizer que não existe liame natural. além disto, é mero engano fisicista supor definição natural para uma invenção pós - natural. Existe uma quantia natural própria do vozeio zoológico, na etimologia do vozeio fabular, vozeio que se fez pós-natural, estilizado pela intenção veicular. Não é natural mas sim vivencial o motivo que se busca - e se tem de buscar historicamente - entre um significante e um significado.

Imaginando uma teoria linear ociosa, diz o Curso [ Saussure, 1960, p.103 / 1969, p. 84]: o significante toma ao tempo uma extensão prolatória cuja medida só uma linha pode demarcar: em vez de, liberado, se librar no tempo, meio dimensional da fala, peleja por reduzir o tempo a espaço, trazendo-o para o espaço, não para um símile mais compreensível, mas para uma definição em que ressuma, concretizante, a reificação que imaginara.

Para provar que a teoria linear é fundamental, no mecanismo da língua, remete à p. 170 [ Saussure, 1960, p. 170 / 1969, p. 142]. Valendo-se outra vez da mestiçagem, junge, numa parelha heterogênea, duas operações mentais heterocrônicas: a lembrança fabular das relações sintágmicas (syntagmatiques) e a lembrança vocabular das relações associativas. Mistura identificações tomadas a um estado-de-fala, isto é, a momentos da língua atualizada em sintagmas, com identificações tomadas a um estado-de-língua, estado virtual reminiscente, extraído de falas ditas e disposto para falas dicendas. Não há razão de se misturar a teoria do sintagma, diretamente glotológica no seu tema - a estrutura da frase - com lições de um exercício associativo, no balanço pessoal de uma riqueza, balanço que é bom indício, em testes ou amostras do “como pensar”. Podemos até atribuir nomes gregos aos pares associativos da p. 175 [51], chamando-lhes associações isotemáticas (enseignement enseigner) isossêmicas (enseigment éducation) isomorfêmicas (changement armement) isofônicas (clément justement). Entretanto, isso não faz da associação vocabular um exercício fundamental do mecanismo fabular. O que há de glotológico no assunto não é a matéria da associação mas a da pesquisa etimológica, empenhada em rastreios diacrônicos, tanto no cognatismo semântico, da isossemia, como no cognatismo etimológico, isotemática ou isomorfêmica, bem como das lições da isofonia.

Diferença fundamental:

morfema vocabular

enseignement, changement e mesmo justement

Morfemas fabulares

l'homm­e- pense-; les hommes pensent


SENSO E RAZÃO

A doutrina de Saussure não soube tratar sensatamente os sensatos binômios que instalara: faltou-lhe sazão, na sua hora precoce, prevenida de preconceitos velhos e novos. Foi firme nas razões, mas enganado por premissas enganosas.

•  não vendo que da fala vem a língua, não soube concentrar-se na frase, perseverando no vício vocabulista. Gravitou em torno do vocábulo, visto no plano equívoco do signo, e posto no centro, como centro. (Chamo nome ou vocábulo o que chama de mot).

•  adicto ao fisicismo renascente, atribuiu à língua uma dignidade espacial de sistema, não vendo que é um patrimônio temporal, um acervo tradicional de estruturas ou moldes, recheáveis por elementos contingentes, que a desmontagem pós-fabular identifica e situa, enquanto lhe persegue, metódica, ao longo da perseverança diacrônica, a sua linha evolutiva, metamórfica e metassêmica, movida entre eficácias de constâncias e mudanças, preservações e esquecimentos, inovações e renovações.

•  mas sobretudo encontrou, no que chamou de sistema, a nota principal daquele opositismo que foi como um visgo, entre os passarinhos glotológicos. Não sei se foi fruto especial de sua visão de tabuleiro, visão espacial de enxadrista, ou fruto geral de sua visão antinômica, visão tese-antítese mostrada nos binômios língua-e-fala sincronia-e-diacronia. O fato é que semeou guerra entre os fatos da língua.

•  a obsessão vocabulista impediu que visse a diferença entre um estado-de-fala e um estado-de-língua. Erigir o vocábulo em posição primaz é não refletir na cor vistamente pós-fabular da sua etimologia. É não perceber que primeiro fora recebido num sintagma, atualizado por um morfema fabular, efetivo e univalente, na função, para descer depois, no reino reminiscente da língua, a seu plurivalente, virtual estado de vocábulo. É tempo de se vincar definitivamente a diferença entre a função monossêmica do sintagma (na fala) e a disponibilidade polissêmica do vocábulo (na língua). Entre a responsabilidade atual do sintagma e a vária capacidade virtual que um léxico registra iluminando-a com exemplos fabulares.

e) enganado por sociólogos, em lugar de ver na criação fabular uma criação individual socializada, inverteu mitologicamente, apresentou na língua um produto social e na fala um mero uso do indivíduo. Apesar de terem sido os indivíduos os criadores da sociedade e da língua, fundou-se na meia verdade, metodicamente falsa, de que a sociedade cria a língua e o indivíduo. Não viu que cada homem fala, discente, como fala cada homem docente. Que recebe, nas frases ouvidas, a lição de suas frases dicendas. Por isso, admitindo outra meia verdade, não metódica, repetiu rotineiro que as frases são feitas de vocábulos. Por isso também, sem ver que da fala vem a língua, preferiu seu binômio na ordem língua-e-fala, em vez de o recitar da ordem etimológica fala-e-língua.

f) fechando-se na língua e na sincronia, e no conceito de sistema sub-classificou a fala e a diacronia, e também se fechou ao problema das origens, impedido de meditar no progresso histórico do poder fabular, ficando fora de supor como surgiu, desde a primeira superação, e como foi subindo, desde a primeira posse habitual, até se começar a fazer consciência intelectiva a tempo da segunda superação, a que venceu a cota infra-aristotélica.


CONSCIÊNCIA

Tomar consciência da língua é descobrir que a língua é um filtrado de falas, na vivência de cada aprendiz. A língua é um patrimônio de meios, um patrimônio peculiar, que o grupo distribui aos indivíduos. É um farnel de provisões que Primo abastecido, e sem se desprover, vai fornecendo a seu parceiro, que é Secundo. É como uma candeia em que, sem apagar, uma outra se acende. É um pecúlio individual - melhor dizendo - é até intra-individual, e virtual, guardado na memória, pronto para ensejos venturos:

a) o momento intra-individual do cogitar Sv (fala solilóquio).
e
b) o momento inter-individual dos sintagmas ss (fala coloquial) momento em que a língua se mostra não em si, mas no atual dos sintagmas.

Vendo na fala uma ação inter-individual, e pois social, e vendo na língua uma potenciação intra-individual, mais que individual, estamos encontrando Saussure frontalmente, quando viu na fala não mais do que um uso pessoal e na língua um produto social. Travado e metódico, se acaso o bom senso o tomava distraído, logo se corrigia pelo demônio sociológico. Foi assim na página do Curso, onde apresenta a língua como um tesouro... Vamos grifar o texto traduzido:

É um tesouro depositado pela prática da fala nos indivíduos de uma comunidade. Um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro, ou melhor, nos cérebros de um conjunto de indivíduos, porque a língua, não completa em ninguém, só existe perfeita na massa. (S aussure, 1960, p. 30 / 1969, p. 21]

(Viu que a fala passa a língua aos indivíduos, mas logo se retificou). Logo acima de tal notícia, preocupado em peneirar o produto social, desprendendo-o do resto, supõe como indivíduo que pudesse tocar o liame social da língua (essa língua perfeita na massa e incompleta em cada um) o indivíduo que pudesse abranger as imagens verbais existentes em todos os indivíduos. Trata-se de uma receita inertemente ideal, mas também redondamente imprópria. A expressão estado-de-língua, infiel e grosseira, pode aceitar-se laxamente, no sentido de média geral sincrônica de um grupo, prevenido o observador sobre o fato de que a fixação sincrônica é um mero artifício, uma operação de estancar a continuidade diacrônica, detendo uma deveniência que não pára. Move-se como um rio que flui a diacronia individual da pessoa, dentro da diacronia do seu grupo, ambas dentro da diacronia geral da hominidade. Enfim, terminando uma objeção que já está produzindo arrependimento, como a língua se mostra nas falas e não em si, pelas falas dos indivíduos é que um observador pode recensear uma língua. Ora, quem pudesse recensear o patrimônio fabular de cada indivíduo do grupo, não estaria chegando àquela língua perfeita na massa. Estaria apenas apossando-se de um patrimônio peculiarizado por um indivíduo, e rico bastante para se parecer com o total dos patrimônios individuais de todo o grupo.

Repita-se pois: a língua é um patrimônio intra-individual, que a fala docente influi no discente, e neste amadura, enquanto este cresce e amadura, armando-o com o poder de exprimir-se, na vez inter-individual de sua fala.

Nota [manuscrita, fólio B1.7]: O rústico experimenta. Pergunta feita: - que árvore é aquela? - é angico . O inexperiente: -é um pé-de-pau . O interesse remoto neutraliza a diligência: um diálogo (em Max Muller). - Que rio é este? - pergunta o viajor. E o campônio responde: é o rio. (A dimensão dos graus da posse, em cada indivíduo).


SIGNO FABULAR

Na economia da relação entre o significante e o significado existe uma diferença igual à que vai de veículo a veiculado. Veículo e viajor não se confundem. Não se inclui o passageiro na definição do veículo. Mas diz o Curso : “o signo lingüístico une um conceito e uma imagem acústica”. [Saussure, 1960, p. 98 / 1969, p. 80].

1 - refere-se ao vozeio virtual, a uma fôrma psíquica (une empreinte psychique) não ao som material, na ação prolatória, pois isso é da fala, não da língua. Vê-se pelo mais que tal signo sinonimiza com o vocábulo (le mot) visto não passar de signo vocabular o signo lingüístico da doutrina. Diz que une um significado e um significante, nomes por que trocou os de conceito e imagem acústica [52].

2 - portanto, de acordo com o vezo, confunde os estados, de língua e de fala, ao atribuir a um signo virtual, polissêmico ou léxico, a função veicular própria do sintagma, atual e monossêmico. Ora, o sintagma, unidade da frase, carreador de sentidos, iguala-se com a idéia de signo que, sendo da fala, merece o nome de signo fabular.

Quando a vivência intelectiva, instruindo a consciência da língua, dilui as frases do uso, discrimina bem mais do que simples vocábulos. Não há bom senso que possa destruir a observação de que a fala abastece a língua e de que se patrimonializa, como língua de alguém, todo o cabedal que das falas receba. São da língua, em forma de “fôrmas psíquicas” (expressão de Saussure):

a) o molde frástico, marcado de topomorfemas, constituído por uma estrutura de lugares virtuais, lugares que os sintagmas ocupam, na hora da fala;

b) o molde prolatório, marcado de tonomorfemas, lembrança costumeira da melodia e do ritmo da frase proferenda;

c) o molde sintágmico, marcado de morfemas fabulares, temperado por seu jeito vernáculo, mais fácil de reconhecer que de explicar.

Disfarçar na de vocábulo a idéia de signo é esquecer no patrimônio a morfemação fabular, o discreto arsenal de sinais distintivos, no permanente serviço de atualizar o sintagma, endereçando a função como entra na frase. Embora desvirtuada pelo vocabulismo de agora, existe boa vantagem de identificação no discrime, de Vendryes, entre semantema e morfema. Tem faltado, além disso, por vezo da lingüística da língua, evidenciar a importância do morfema fabular, inteiramente diverso do morfema vocabular . Este, formador de vocábulos, ampliador de cognatícios (“pedra pedrada pedreiro pedraria...”), objeto direto da etimologia léxica. Aquele, atualizador da função fabular, interessa à estrutura da fala que o uso conserva na lembrança da língua. Podemos acompanhar, na diacronia indeuropéia, a marcha do morfema fabular, da poliptose pré-romana à monoptose pós-românica, à medida em que o apomorfema (desinência) foi cedendo a função do promorfema (preposição), juntamente com as fixações do topomorfema (posição do sintagma na estrutura) e do tonomorfema (divisor rítmico da prolação).

A figura mental do signo fabular sinonimiza com a de um sintagma virtual, desmontado em seus elementos, reduzido a estado-de-língua. Consta de sua base vocabular, endereçada por seu morfema fabular. Representando pela fatoração / a. b / a atualidade do sintagma na fala, a potencialidade, na língua, do signo fabular, pode representar-se pela aditividade / a mais b / (i. é: base vocabular e possível morfema atualizador).

Se a língua é por definição um poder, um estado virtual, não faz parte, da figura do signo, o sentido que ele é capaz de veicular. Sendo a o signo e b o sentido, podemos simbolizar as seguintes operações:

i) fatoração / a. b /: sintagma, efetivo, carreando um sentido.)

ii) adição [ a mais b ]: estado léxico da relação signo e sentido, o primeiro capaz de carrear o segundo)

iii) subtração [ a menos b ]: destaque do signo, identificado como um vozeio virtual, capaz de carrear um sentido.

No léxico, vendo maçã vejo um nome vernáculo, seguido da explicação “fruto da macieira”. Só o nome é da língua, tendo como possível o sentido. É o estado da língua / a + b ]. Na fala que ouço comeu a maçã /13/, /3/ é um sintagma, um atual / a .b /, não o possível ou virtual / a + b /.


O SINTAGMA

Se houvesse partido da fala, como devia, e não do vocábulo, Saussure teria achado a definição de “sintagma”, figura que felizmente propôs mas que tratou infelizmente. E ante um vero conceito de língua, teria ponto seguro, podendo definir conceitos que a glotologia não tem sabido definir: fala - frase - sintagma - língua - vocábulo - morfema.

Em vez disso porém, misturou conotações, insensível à diferença entre estado-de-fala e estado-de-língua. Depois de relembrar a idéia inerte e imprópria do linear da língua, marca o sintagma como sendo um composto de duas ou várias unidades consecutivas, perdendo, heterogêneo e confuso, a oportunidade de ver que o sintagma é a unidade da língua. Sozinho ou multiplicado, faz a frase.

Até a idéia de unidade vagamente se expande, visto que seu primeiro exemplo [53] de sintagma é o vocábulo relire, visualizado sob a forma re-lire, com demonstração das unidades consecutivas. Depois de dois exemplos aceitáveis - contre tous, la vie humaine [contra todos, a vida humana] - apresenta ainda como sintagmas, a frase nominal Dieu est bon [Deus é bom] e o período s'il fait beau temps nous sortirons [se fizer bom tempo, sairemos].

Não fora o vezo vocabulista, o mestre teria isolado tecnicamente o conceito de sintagma, visto como unidade funcional morficamente realizada na síntese de uma base vocabular com seu morfema atualizador. É sintomática a inquietação que o turbara, Curso, p. 172 [54], onde repele, mas sem vigor, a objeção de que o sintagma é da fala e não da língua. Bastaria que houvesse descido, mas sem antolhos, ao terreiro da frase verbal indeuropéia, para que admitisse, no ofício de veicular conteúdos semânticos, quatro tipos de sintagma, entre si entrosados, estando por fora da intimidade estrutural um quinto tipo, o vocativo, parecido, na antigüidade e na autonomia, com o sintagma verbal do imperativo, capazes ambos de cada um estar por si, descarecidos de morfemação fabular positiva, i. e. de apomorfema (desinência) ou promorfema (preposição), suficientemente encenados pelo vigor semântico dos contextos teatral, mímico e melo-rítmico.

Evitando de levantar por agora hipóteses difíceis de bem informar, sobre antigos momentos, supostamente infra-fabulares (anteriores à normalidade da conveniência) /12/ (sujeito e predicado), tomemos a língua indeuropéia na sua fase romana, onde já se mostram exibidos os quatro tipos de sintagma: aqui se recitam eles, em ordem de vocação, mas levemente:

I

O sintagma verbal, centro semântico da frase. Sozinho faz frase verbal, sobretudo se noticia o proceder de quem fala (Primo) ou o de quem ouve (Secundo): ibo, ibis. (irei, irás). A presença de um Nominativo em tais casos revelava uma intenção de ênfase e contraste: ibo ego non tu [irei eu, não tu]. Para quem pense na conveniência /NV/ (sujeito e predicado) como estrutura de dois sintagmas explícitos, lembramos o caso do imperativo, tão oracional e tão síngulo que até um idioma como o francês, onde o romano dizia veni / venite, diz ainda viens / venez. O símbolo do sintagma verbal é /1/ ou /V/.

II

O sintagma nominal 2 ou N (nominativo): noticia o procededor, entrando em convênio com o Verbo, que noticia o proceder: canis currit / o cão corre. O homem, com o progresso mental, foi sendo capaz de noticiar um acontecido alhures e outrora, mediante uma fala teórica, pura fala de um pensar, diversa da fala pragmática, inserta no aqui e agora de um fazer. Ao ter de aludir a um procededor que, se presente, poderia apontar, foi carecendo do sintagma nominal 2, o chamado Nominativo. No caso de um procededor que, por desconhecido, não pôde ser apontado, a fala contentou-se em noticiar o proceder, usando de verbos sem sujeito: pluit, tonat / chove, troveja.

III

O segundo sintagma nominal, 3 ou A (Acusativo), igualmente em convênio com o Verbo, noticia o paciente do proceder : canis momordit lupum / o cão mordeu o lobo. Entretanto, na ordem de chamada, o segundo lugar é o número 3, para o Acusativo de paciência, representa uma usurpação, justificada por sua intimidade com o sintagma verbal, mais a conseqüente importância veicular que lhe coube. No progresso dicrônico, o segundo sintagma nominal, depois do Nominativo, é o sintagma situador.

IV

O sintagma nominal 4, paulatinamente reduzido a ac/abl (acusativo e ablativo), também em convênio com o Verbo, noticia uma situação do proceder, necessariamente situável no espaço, no tempo e, analogicamente, numa relação mental (que não é diretamente nem espaço nem tempo). Tomemos uma frase propositadamente acumulada. Primeiro em português, depois em latim: ontem, em casa, com alguns amigos, longa conversa teve Lúcio, sobre a situação política. Está vazada no molde /4443124/ onde os três sintagmas fundamentais /312/ estão rodeados de quatro sintagmas /4/, situadores: heri, domi, paucis cum amicis, longum sermonem habuit Lucius, de republica.

Nota 1: Aparecem no exemplo os quatro tipos de sintagma, num total de sete sintagmas, devido à possibilidade iterativa do situador, diversa da possibilidade síngula dos três outros. Ficando de fora da diligência exatista, nas gramáticas que procuram categorizar a função de cada caso gramatical, reduzimos a três tipos (distribuindo duas vezes o “acusativo”) o tipo da função sintática dos oito casos indeuropeus, diacronicamente reduzidos a nenhum (ponto de vista mórfico) nos idiomas pós-romanicos. Entretanto, tendo os sintagmas perdido a desinência mas não a função, reservamos a esta antigos nomes de casos. Além do Nominativo /2/ e do Acusativo /3/, o sintagma situador /4/ podia estar em nada menos de seis casos: acusativo (diverso do Acusativo) ablativo, locativo, instrumental, dativo, e genitivo adverbal . Tem o nº 5 o Vocativo, não por ser derradeiro, pois deve ter sido o primeiro, mas por ser um sintagma desentrosado, alheio à intimidade adverbal dos outros sintagmas nominais.

Nota 2 : Sem contar o situador 4, sempre possível em cada tipo de frase, e sem descer a aspectos peculiares (estrutura infra-fabular na fala estética, aparência infra-fabular na economia dialogal), eis o moldes normais da frase indeuropéia:
a) o monômio impessoal, do tipo chove / 1 / ou / ‘V / .
b) o monômio imperativo, do tipo vai / 1' / ou / V' /.
c) o binômio do tipo Caio veio / 21 / ou / NV /.
d) o trinômio do tipo Caio fez casa / 213 / ou / NVA /.

Para lembrar a abertura, de todo molde, para a presença 4, eis exemplos de dois tipos: ontem choveu aqui / 4 1 4/. Caio procura hoje o amigo na cidade /21434/

Nota 3: A especialidade semântica da função /2/, ante a /3/, está no fato de ela acompanhar todo verbo capaz de sujeito, perfazendo a conveniência (chamada oração) entre um predicado e um sujeito. Exprime-se, como binômio semântico, ora um monômio fabular (seja do tipo imperativo vem, seja do tipo econômico veio, ora num binômio fabular, como no exemplo Caio veio . Em diferença com a função /2/, assim presente, a função /3/ (Acusativo de paciência) semanticamente condicionada e seletiva, depende de ser o verbo transitivo: Caio fez casa /213/. cf Caio veio ontem /214/, cujo molde é do tipo binômio, não trinômio.

Nota 4: Caio veio ontem / 214/ - /4/ não necessário à Caio veio. Caio mora aqui /214/ - /4/ necessário mental à ao dizer Caio mora /21/ cumpre também situar o proceder: mora aqui (14) - mora bem (14) - mora com a família /14/ - mora so (zinho) /12'/ - /2 ' /: adnominal aspectivo do procededor /2/ = Caio.

 

Caio mora aqui

/214/

/4/ é adverbal, sintagma que situa o proceder

Caio mora só

/212'/

/2'/ é adnominal de /2/ à noticia aspecto do procededor.

 

No uso do molde /212'/, /1/ semantiza /2'/ com matiz de adverbal (tendência /4/). Cf Caio vive só / vivit solus /212'/ parece que 2' noticia não Caius solus mas vivit solum.

Latim:

vivit solus in domo sua
vivit solum in domo sua

/12'4/ /144/


<- “isoladamente”

Português:

vive so(zinho) na casa Lúcia vive so(zinha) na casa

/12'4/ /212'4/

 

 

Na forma do molde /12'4/, 2' recebeu efeito do verbo (semantização), vigor topomorfêmico. 2' é adnominal pela forma, e deverbal na função. /2'/ > /4/.

A especialidade semântica da função /4/ (situador do proceder) está na possibilidade plural da sua presença: no ano passado, Caio fez casa, na cidade, com pouca despesa /421344/. Enquanto aparece como singular a presença do sintagma verbal /1/ e a dos sintagmas nominais /2/ e /3/, é tripla a presença do sintagma nominal /4/, ocupada (no caso do exemplo) em situar o proceder:

a) no espaço -> fez na cidade
b) no tempo -> fez no ano passado
c) numa relação mental -> fez com pouca despesa.

Nota 5: Admira o fato de a gramática não haver metodizado até hoje, pelo regime da análise binomial, seu regime de análise da frase. é fato que se começou a impedir, faz dois milênios, na teia lógica da lógica aristotélica. Mas também é fato, bem admitido, que uma gramática não é um compêndio de lógica, razão por que uma análise fabular não se há de fazer por categorias mas por interpretação que relacione, com a presença do conteúdo semântico, a presença do corpo fabular. Que, ante um veículo e um veiculado, identifique e distribua, nas partes da estrutura veiculária, as partes da estrutura veiculada.

A análise binomial se motiva em dois fatos:

a) no fato vivencial de que o sintagma verbal é o centro semântico da frase.

b) no fato estrutural de que os sintagmas nominais entram em convênio com tal centro, sendo franja semântica do núcleo.
Pela sua qualidade adverbal é que se define a função de cada um dos três sintagmas nominais, e a idéia de sintagma define-se pelo seu valor de unidade fabular no todo semântico da frase. A função adverbal, é que define a unidade. A função adnominal é uma função fracionária, função endossintágmica, diversa da função diassintágmica, isto é a função junto ao sintagma verbal, dos três tipos de sintagma nominal.

Nota: É tempo de definir a oração, constituída de predicado e sujeito, como sendo uma conveniência de dois termos semânticos. Conveniência do monômio /1/, do binômio /21/ e do trinômio /213/. Faltando o centro verbal, existe frase mas não existe oração. Frase com mais de um centro é frase com mais de uma oração. Existe pois a frase-oração, a frase-período e a frase-sintagma (sem centro verbal) própria da economia dialogal (vai? - sim) bem como da fala estética (que beleza!), cuja estrutura infra-fabular está mostrando, pelo tipo, a antigüidade do sintagma.

Se o sintagma verbal está no centro, se a oração é uma conveniência /21/, é tempo de subverter a ordem da rotina, de dar ao Verbo a primazia, e de corrigir, o uso de dizer que o Verbo concorda com o Sujeito. Sujeito e Verbo se arranjam, por convênio semântico e estrutural. No caso de se vincar preponderância, não será primeira a do sujeito, e sim a do verbo. Sujeito e verbo convêm entre si.


FRASE NOMINAL

Supõe-se posterior ao da frase verbal o desenvolvimento da frase nominal, segundo a conseqüência vivencial que vai do fato ao juízo. A frase verbal noticia o proceder de um procededor - “o cão corre”. Está mais perto da colheita sensória, na vária alteridade da circunstância vital, podendo o homem, sob a dinâmica do espacial, contentar-se com a posse empírica dos procederes, detido no vestíbulo do tempo. A frase nominal porém, noticia um juízo sobre o procededor - “o cão é veloz”. Isso pressupõe momento posterior a uma constância de procederes observados [no procededor], melhor concentração temporal na lembrança da posse, melhor vigor intelectivo da cogitação, início da tomada de consciência. A frase verbal é dinâmica, centrada no proceder. A frase nominal é estática, centrada no procededor, visto em si, estático no aspecto teórico, outrora, abstraído à dinâmica de seus procederes, momento da predicação nominal e não da verbal.

Na frase verbal o cão, veloz, venceu a corrida /22'13/ o centro do predicado está em /1/, sintagma verbal. Na frase nominal o cão é veloz /202'/ o centro do predicado está no sintagma adnominal /2'/. Seu caso é o mesmo do procededor /2/ - o mesmo do sujeito. Na frase verbal, “cão veloz” /22'/ é um sintagma. Entretanto, na nominal, /2/ e /2'/ são dois sintagmas. Contado o conector (= /0/), mero imersor temporal, temos o molde /202'/. É o trinômio da frase nominal temporalizada, diverso da frase nominal pura cão veloz! - de molde /22'/. (Cf. cão veloz! /22'/ e cão veloz aquele! /2'2”2/, onde /2'/ é o centro do predicado, 2” é o adnominal de 2' e /2/, o sujeito). O trinômio /202'/ tem molde que lembra /213/, molde da frase verbal de verbo transitivo (Caio fez casa).

O verbo “é”, (na frase nominal o cão é veloz /202'/) conector entre /2/ e /2'/, está simbolizado por zero /0/, visto não mais noticiar nenhum proceder e ter perdido assim a posição de centro do predicado. conserva, como resto verbal, a função de imersor temporal: “era veloz” - “é veloz” - “será veloz”.

Nota 1: Em confronto com o trinômio NVA, sinônimo de /213/, adotamos também, como sinônimo de /202'/, o trinômio /Nvn/, onde o tamanho do /v/ lembra o destronamento, e o tamanho do segundo /n/ lembra ao mesmo tempo a função adnominal do predicativo.

Nota 2: É sabido que a frase nominal indeuropéia começou pura, na simples justaposição /22'/: vita brevis. A inserção conectora, no trinômio /202'/, representa um fato posterior, uma ênfase aristotélica da intenção racional: vita est brevis. A ênfase foi tão firme e insistente que a escola acabou promovendo a verbo substantivo exatamente um verbo que, assemiado, deixara de ser verbo.

Conserva-se ainda, nos idiomas atuais da língua indeuropéia, a estrutura /22'/, da frase nominal pura. Admira que pudesse negar tal presença atual, logo na Escola Francesa, um glotólogo tal como Benveniste. Talvez porque a estrutura /202'/, apossando-se da fala intelectiva, restringiu o campo de perseverança da estrutura /22'/, limitada a frases nominais da fala estética e da fala gnômica, uma cheia de participação e a outra, de sabedoria comum. Imersas no devido contexto teatral, e endereçadas por sua morfemação prolatória, são de frases nominais, estrutura /22'/, exemplos como que bela manhã - boa casa - ótima idéia - vida breve a nossa. Reduzidas à temperatura intelectiva, cada uma está dizendo, sem a conotação afetiva: a manhã é bela - a casa é boa, etc [55].

Nota: a freqüência do verbo ser como conectivo, no reino pós-românico e pós-germânico, saturando a visão dos tratadistas, cegou a interpretação de frases que conservaram a função verbal do verbo ser. Atrapalham-se com estruturas de exemplos como: é noite /12/ - eram duas horas /12/ - era por uma noite de inverno /14/ é dele esse costume /142/ - era de manhã /14/ etc.

Por outro lado, através de uma semantização pós-românica, a estrutura /202'/ influiu na transverbalização do elemento /2'/, no trinômio típico /212'/, num caso em que a fixação topomorfêmica também concorreu. / Caio chegou atrasado /212'/ Caio está trêmulo / 212'/ (entre /0/ e /1 /).

O verbo esse não deixou de ser verbo verbal [56]. Noticiando um proceder mais de entender que de sentir, prestou-se fácil a uma dupla ancilaridade: na fala comum, auxiliar da chamada voz passiva: filius est amatus / o filho foi amado. Na fala metódica, movido de intenção classificatória, reduziu-se a uma função conectiva: homo est mortalis. Em ambos os casos aconteceram dois casos:

1 - o caso da identidade, na estrutura etimológica, pois o molde /212'/ é o que aparece em filius est amatus e em homo est mortalis ;

2 - o caso da diversidade, na estrutura semântica, responsável pela degradação do verbo est, reduzido a fração auxiliar da unidade amatus est e esvaziado de sua dinamia verbal em est mortalis. Com as mudanças funcionais, o molde etimológico /212'/ virou molde 21 em filius amatus est e molde /202'/ em homo est mortalis [57].

Essa dupla especialização, convém insistir, não exonerou esse de seu comum serviço verbal. Pulsava-lhe no teor do sentido, embora subtil, a consabida intenção da língua indeuropéia, como veículo fabular de inquietas tribos belicosas, mais diligentes no fazer que no contemplar. Estava aberta, como língua dinâmica, para aquelas demarcações temporais que a diacronia foi definindo, evitando-lhe a parálise ou inércia de certas línguas nominalizadas (como o chinês), que vogam leves na epiderme do tempo, junto às praias do agora, praias aorísticas [58].

O normal de esse era constituir frases verbais, como nos seguintes exemplos, de molde /12/: erat nox, erat luna plena, est anima immortalis. Quem o entenda com o sentido de “existir”, verá que o sintagma /1/ está noticiando o proceder do procededor /2/: era noite - era lua cheia - é uma alma imortal ”. É noite. A noite é / existe.

No pós-românico, em frases do tipo é noite, os tratadistas atrapalham-se, propondo soluções indevidas. A perplexidade motiva-se, além da subtileza da estrutura, na falta de respeito ao diacrônico, bem como na duplicidade formal do francês il est nuit, germanicamente contaminado. Entretanto, não há razão que prevaleça contra o fato de que a estrutura é noite representa uma perseverança pós-românica do romano est nox.

A estrutura /202'/ homo est mortalis destinada a noticiar, não um proceder, mas um juízo sobre o procededor, representa um desgaste verbal da estrutura /212'/, fruto categórico da diligência aristotélica, mais fina que a da mente infra-aristotélica, avezada aos juízos comuns, empíricos ou fantasiosos, da sabedoria vulgar. Em vez de “fazer juízos” (esforço de melhor madurez) prefere noticiar fazeres. Contenta-se com dizer ele morre aquém da conclusão judiciária é mortal. Não que viva sem juízos, que podem ser até muitos, mas juízos comuns, lentamente peculiarizados, na forte tradição da sabedoria grupal. Ao repeti-los, usa de uma fala gnômica, onde a frase, quando nominal, tem por molde a estrutura /22'/: homo prudens Fabius. A Igreja preservou para nós e até nós, freqüente nos seus textos, a intenção paremíaca da estrutura /22'/: militia vita hominis super terram - omnis homo mendax - dies irae dies illa .... Foi a Igreja também que desenvolveu, na rotina escolástica, a disponibilidade filosófica da estrutura /202'/, exaurindo até zero no verbo conector a dinâmica subtil do verbo existencial que é mais para entender do que sentir: Deus est bônus - homo est mortalis...

Iniciado, sob a eficácia da helenização, o costume romano de pensar logicamente, séculos de cogitação ordenadora fizeram do verbo esse um verbo conector, lançado como ponte entre o sujeito e o predicado, reduzido a zero como centro semântico. Sob o aval de Aristóteles, a Idade Média o mobilizou para a filosofia do ser, confiando-se ao poder racional de emitir juízos sobre o procededor. Mas a ciência de agora, menos confiada em ajuizar procededores, esmera-se em ordenar procederes.

Para Sanches Brocense, o elipsista, autor de Minerva, uma frase do tipo vita brevis ficou assim por lhe haverem tirado o verbo est. Nos quatro séculos seguintes (Minerva é de 1587) não lhe faltaram sequazes, gente mal informada sobre a fala gnômica e sem notícia da estrutura primeira da frase nominal. Já existia a estrutura gnômica da vita brevis, quando se começou a implantar, diversa na densidade semântica, a estrutura categórica de vita est brevis. São duas vias do dizer, cada uma a seu jeito. Vita brevis não é fruto de elipse na estrutura vita est brevis.


FRUTO PÓS-ROMÂNICO

O tratamento geral da estrutura /212'/ rendeu outros efeitos analógicos, ajudados pela fixação topomorfêmica. Isso rendeu também para o gramático, teimoso caçador de categorias, uma inglória canseira. A semantização negativa, embora sem perfeição de eficácia (como no caso de ser) atingiu outros verbos, esmaecidos no ofício de noticiar procederes. Tenderam para zero mas até lá não chegaram, sustidos ainda por alguma dinamia verbal. Ajudou no transtorno o distanciamento semântico, fruto comum da catacrese, promotora de ruína e esquecimentos em falas metafóricas. Quem pensa no latim stare, ‘estar de pé', motiva palavras nossas como estátua e estante, e vê debilidade e contra-senso etimológico na predicação está sentado. Quem pensa no sentido do verbo andar pode pensar no mesmo contra-senso, ao ouvir dizer, de alguém que não se move, que ele anda distraído.

Na série das frases Caio é bom - está bom - continua bom - ficou bom - parece bom, olhando-se o grau semântico de cada uma, vê-se que a primeira, acabadamente estática, é uma frase nitidamente desverbalizada. Nas outras porém, ainda que mais ou menos apagada, move-se a força de um proceder que se noticia, marcando, no adnominal bom, o fato transitório ou continuado ou mudado ou aparente. Demarcando a minúcia do matiz, fruto de uma assemiação imperfeita, simbolizamos pelo número / l / (cancelado) o respectivo sintagma, componente da estrutura /2l2'/. Admitindo o verbo ser como ligativo, adotamos um meio caminho no caso de estar - continuar - ficar - parecer e no caso dos que sinonimizam com esses.

Com sua morfemação fabular concentrada na desinência, o latim podia evitar a rigidez topomorfêmica, mais ou menos instalada, na estrutura da frase, pela monoptose [59] pós-românica. Um molde como /212'/ podia trocar a sua ordem, com transposições estilisticamente exploráveis: homo stat trémulus / o homem pára trêmulo ; sedet fessus viator /12'2/ senta-se cansado o viajor ; tardus vênit amicus /2'12/ o amigo chegou atrasado.

Na fixação pós-românica, a responsabilidade funcional do sintagma acostumou-se a dadas posições da estrutura. No trinômio /213/, por exemplo, (o menino viu o cão) condicionaram-se às posições /2/ e /3/, respectivamente, as idéias de Nominativo e de Acusativo. O lugar, dentro do molde, por tomar sentido funcional, transformou-se em topomorfema.

No molde /212'/ (trinômio típico) a fixação topomorfêmica gerou um efeito transverbal, fácil de provar numa transposição. O amigo atrasado chegou não repete semânticamente a intenção de quem dissera o amigo chegou atrasado. Uma frase como ele partiu soldado e voltou herói nem mesmo se poderia transpor.

É bom insistir entretanto: os fatos da língua são mais de interpretar e explicar do que de categorizar. Vindos nos atos de fala, mais do que fatos da língua são feitos da fala. Na diacronia das iterações fabulares, sujeitos ao viés pessoal, sofrem efeitos individuais que, manifestados na fala, inter-individualmente se propagam, entrando na língua. Não tem contudo garantia, na densidade e na freqüência, a eficácia dos feitos da fala. O que hoje reinava amanhã já sumiu. Por isso é que os fatos da língua são mais interpretar e explicar, um por um rastreados, no uso e no tempo do grupo.

Falávamos do efeito transverbal, com seu fio de força, capaz de influir adverbalização no adnominal /2'/ do molde /212'/. Referimo-nos à resistência estrutural da frase ele partiu soldado. Tomemos agora a frase o homem pára trêmulo, passando-a porém ao passado, para aumentar a parecença: o homem parou trêmulo. Invertendo-se a ordem /212'/, vê-se que admite inversões. É que existe, no seu quadro semântico, feito um quê não vulgar, um olor sensível de fala estética, bastante para lhe manter a identidade, mesmo numa transposição dos fatores. São coisas dos fatos da língua, mais explicáveis como feitos da fala que como fatos da língua.


UNIDADES

Não fora o vezo vocabulista, Saussure poderia ter identificado o sintagma, dentro da frase, como unidade funcionária, mobilizada para o carreto de unidades semânticas. No veículo sonoro, feito de base vocabular e morfema fabular, a viagem do veiculado, figura vivencial de elaborados mentais. No significante sensível, o estímulo de um significado inteligível.

Poderia tê-lo examinado e classificado como unidade atual da fala e unidade virtual da língua. Mobilizado na fala, sintagma efetivo, carreando um sentido. Desmobilizado na língua, sintagma possível, material desmontado - moldes, vocábulos e morfemas - junto a sentidos veiculáveis.

Poderia ter visto que o sintagma sozinho faz frases (chove - vá - venho - vais) mas que o progresso da economia mental acabou tendo de requisitar frotas de sintagmas (frases polissintágmicas) para que pudesse noticiar o proceder, o procededor, o paciente do proceder, e a situação do proceder, constituídos num só quadro semântico, numa só unidade de expressão.

Poderia ter criado, pelo exame da frase polissintágmica, a teoria do molde fabular, estruturado e firmado pelo uso vernáculo. Trata-se de uma unidade da língua, arrolável no patrimônio de meios, vista a responsabilidade veicular do molde frástico ou topomorfêmico e do molde prolatório ou tono-morfêmico.

Teria resolvido o problema do sintagma-frase, não carecendo de se confundir ante os exemplos oui, non, merci, frases que chama “equivalentes de frases”, atribuídas a um fato que diz, irrefletidamente, “excepcional”, visto que “não falamos por signos isolados” [60]. Esquecera-lhe, no momento, a constante possibilidade econômica de uma sucessão dialogal, diversa da plenitude fabular, de uma seqüência monológica. Se Caio pergunta -vai? e Lúcio responde -sim., temos duas frases: a primeira, concentrada no sintagma verbal, é uma estrutura completa. A segunda, feita com um sintagma nominal, próprio da franja oracional, é um sintagma-frase, próprio da fala econômica. Não se trata de “signo isolado” pois imerge no contexto da sucessão, referido a um centro verbal mentado, presente entre Primo e Secundo. Respondendo sim, Lúcio deixou de responder com a frase toda, vou, que, se reforçada, poderia ser vou sim. Talvez que pudesse gastar menos do que um sim, respondendo com um gesto ou um vozeio pré-fabular hum.

Parece com o sintagma-frase, mas só no fato de ser um sintagma nominal, a frase-sintagma, própria da fala estética. Na sua estrutura infra-fabular, perseverança de estratos arcaicos, anteriores à necessidade do centro verbal, a frase-sintagma noticia, não um proceder ou um juízo sobre algum procededor, mas um estado de alma de quem fala, uma emoção ante um proceder: “que beleza!”

A verdade é que Saussure, engarrafado no vocabulismo, não podia chegar a bom porto. E nem a sua linhagem descendente, afogada no gargalo do fonicismo estruturista. Perderam a chave antes de chegar à porta. Fechar-se ao problema diacrônico, sobretudo à etimologia do poder fabular, foi o mesmo que esterilizar a pesquisa. Foi o mesmo que poder olhar e não ver, repetindo-se o que está em Mateus, 13.4: videntes, vidébitis et non vidébitis / Vendo, vereis e não vereis.


CONTEXTOS

Cumpre recompor a etimologia do ato fabular, na plenitude espacial de sua germinação temporal, desde aquela fase em que mais se falava fazendo, por falta de um melhor falar falando. Estava, nessa fala nascente, o início plástico daquelas estilizações que forjaram a língua, afeiçoando vozeios. Hoje, na hominidade aristotélica, o contexto fabular por excelência é o contexto dos vozeios. Mas antes não era. Para a concentração temporal que o tempera, a diacronia da hominidade progressiva teve de capitalizar muitos juros da espacialidade vital. A fala encontrara, melhor que a serventia espacial da vista, a facilidade portátil e dúctil do ouvido, mais desprendida do meio. Afinava melhor com a expressão de um outrora, inserido no agora como presença mental, mas num ato que ainda não podia dispensar os adminículos gesticulares da visibilidade teatral. Essa fala, sendo pragmática, era mais visual que auditiva. Condensado o teor da fala teórica, numa diacronia de centomilênios, inverteu-se a hierarquia. Vinda a fala escrita, que é uma fala de ausências, foi superada a fala real, que é fala de presenças. A fala escrita não tem gestos nem vozeios, nem presença de interlocutores. É um contexto fabular visualizado, feito de vozeios virtuais e não tem atores nem contexto teatral, nem contexto mímico ou gesticular. Pede a sabedoria do leitor, capaz de atualizar o auditivo, no silêncio visual da simbolização.

Antes da fala escrita (apenas 5 milênios) e do progresso da fala teórica, era pleno o vigor dos contos visuais, entrando no ato o contexto auditivo mais como subvencionante que subvencionado. Mas aos poucos se foi liberando, dispensando as presenças, ganhando madurez auditiva, capaz de se librar, temporizado e leve, nos páramos inespaciais do outrora reminiscente.

A fala coloquial tem três contextos, recitáveis na ordem etimológica: o teatral, o mímico e o fabular:

1 - no contexto teatral (área espacial da encenação) entram as presenças de Primo, de Secundo e de coisas sujeitas a possíveis alusões;

2 - no contexto mímico, entram as atitudes e gestos de Primo (a glotologia não pode esquecer, entre os recursos da língua, o teor expressivo da fala-de-corpo);

3 - no contexto fabular, entram os vozeios de Primo, estruturalmente distribuídos (molde frástico), rítmica e melodicamente dosados (molde prolatório).

Na debilidade homínica primeira, a fala, mais visual que auditiva (mais do 2º que do 3º contexto) devia ser uma fala toda gesticular, apoiada em vozeios emergentes. Só depois, muito depois, começou a hegemonia auditiva, a suficiência do contexto fabular, como na fala escrita, que é sem contextos visuais.

Como prova da hegemonia visual, sintoma atual de hominidade retardada, veja-se nas falas de nativos tribais, havendo mesmo notícia que têm dificuldade de entender-se no escuro, onde o gesto não se vê. Há também a história daquele missionário que, pensando conhecer bem o idioma gentio, entretanto não sendo entendido, quis saber o porquê. Disseram-lhe então que, se não era entendido, era só pela falta dos gestos que não fazia, pois era bom seu contexto de vozeios.


O ANIMAL DIACRÔNICO

A idade do homem na terra vem sendo amplamente alargada pela pesquisa arqueológica, rebuscadora de arquivos geológicos. A humanidade atual, no prazo de seus dez milênios mais ou menos históricos, representa uma faixa mui parca do prazo total. Entretanto, se vistos quanticamente, são dez milênios enormes, densamente homínicos, em contraste com o fato de serem uma diminuta parcela, no tempo antropológico, visto na quantidade. Não passam de ser uma parte centésima, na rampa que emerge, milemilenar, da penumbra do tempo geológico. Nas sombras da suposição evolutiva, os opinadores, sem temer números, abrem créditos milionários. Para o início do poder fabular, definidor da hominidade da espécie, o prazo da hipótese moderna já chega a um milhão, tendo passado rapidamente pelas taxas do centimilênio, geralmente mais aceitas, e que oscilam acima do meio milhão. Entretanto, se em vez de começar na fala, o prazo quer abranger o tempo que passou entre a aquisição do porte vertical e a adoção do uso do fogo, já se admite, para a despesa evolutiva, uma verba de 12 a 20 milemilênios. Para melhor sentir tanta despesa, Herbert Wendt, À procura de Adão, reduzindo o tempo ao limite analógico de um dia terrestre, situou a presença da raça européia atual, no derradeiro minuto da hora 23. Estão nesse rico minuto a pirâmide do Egito, a epopéia de Homero, a sinfonia de Beethoven e a física nuclear. Para trás, ao longo de 23 horas e 59 minutos, ficou o tempo de adquirir a verticalidade ambulatória, o uso da mão, o uso do fogo e o uso da fala.


O MILEMILÊNIO

O início do milemilênio derradeiro, marca a era calendária do homo loquens. Não houve registro cronicário para o primeiro ato fabular, ocorrido alguma vez entre Primo I e Secundo I, inauguradores do comércio mental que então se abriu, entre dois sócios “nascentes”, visto que se começava também, com o ato fabular, o exercício de converter a gregariedade espacial, em que se achavam, na socialidade temporal que iniciavam.

Para tal passo inicial, eis alguns argumentos deduzidos:

1 - cumpre admitir que a hominidade não trocou o seu modo de ser, desde seu início até hoje, admitindo também que coincide, tal início, com o início do poder fabular. A diacronia enriqueceu-lhe o teor mas não lhe modificou a estrutura. Com a fala, veículo de mentados, o homem pôde ordenar, com os reflexos do cosmo, seu endocosmo de idéias. Pôde capitalizar, cooperativamente produzidos, os juros de sua experiência, real ou mentícia. Pôde passar sua riqueza mental, sua teoria do viver, de geração a geração, como um legado tradicional, diacronicamente melhorável. Incerta velocidade temporal o poder da aculturação e a guerra como concentração do esforço coletivo.

2 - para tanto, habilitado para o proceder que inventara, perseverou no exercício do seu sistema de dois procederes:

a) a prática do viver - o proceder vital dos fazeres, vinculado à economia zoológica mas essencialmente transformado pela economia antrópica. Nesse proceder dos fazeres, dentro da equação espacial indivíduo-e-coisa, ic, o indivíduo reage ao estímulo externo da coisa.

b) a teoria do viver - o proceder vivencial dos pensares, sob o estímulo interno da idéia e servido pelo poder fabular, conjuntamente instituído. A origem do pensar, fabularmente movido, começou na equação temporal sócio-e-sócio, ss, fonte cooperativa da superação antrópica, bem como da perseverança no exercício inter-individual das conferências mentais. Entretanto, foi na equação intra-individual Sujeito-e-vivência, Sv, que o pensar prosperou, fecundado pela energia cogitante, elaboradora de idéias.

3 - Se as coisas foram assim, cumpre admitir que a tradição inicial continua. Nos sócios dialogais de hoje, encenadores de outroras mentais, repete-se a mesma situação de Primo I e Secundo I, fundadores do poder fabular, quando daquele transe por que passaram e nos passaram, da fase natural então vigente, para a fase pós-natural que começaram.


O PROBLEMA

Ante o problema da invenção fabular, costuma o lingüista passá-lo à filosofia, procedendo com certa malícia, visto não lhe passar [à filosofia] também uma segura identificação do objeto perqüirendo. Isso, não por gosto de sonegar mas carência de melhor resultado. Falta-lhe [ao lingüista] saber definir bem o que seja fala - frase - língua - linguagem, mostrando-se pois carecedor de luz até para dogmas fundamentais de sua fé.

Nota:
1) malícia: passa objeto mal identificado;
2) falha metódica: requer autonomia da ciência glotológica deixando-lhe os fundamentos em outra ciência;
3) engano metódico: fisicismo para uma ciência do pós-natural.

Iniciada no século passado [século XIX], a glotologia metódica não demorou em se deixar envolver pelo fisicismo do momento, exibido nas ciências do Objeto. Movida pela miragem, dedicou-se à tarefa de mostrar que a língua, produto natural, é um sistema natural sob leis naturais, apesar de ela ser, como invenção pós-natural, uma estrutura de vozeios condicionáveis, hominicamente estilizados, sujeitos à dinâmica transindividual das variações individuais do hábito prolatório, e sujeitos ainda, como expressão do homem, à vária semântica da riqueza homínica, na riqueza diacrônica da espécie.

O século XIX, equacionando aspectos do proceder físico, esteve bem no seu experimentismo, embora andasse mal no cientismo que amadores divulgavam. Se um fervor de surpresa é início de saber, contudo, por ser início ainda não é acabamento. Não é sábio o que se encanta mas o que entende. Quam scientiam incipit admiratio eam pérficit intelligentia [...(a esta) ciência dá início o encantamento e lhe dá remate a inteligência]. Racionalista mas romântico, o século XIX foi um século de encantos, e seu naturalismo científico fascinou o lingüista. Agora, porém, passado o fervor, é tempo de rever os enganos. É tempo de situar bem a glotologia, corrigindo-lhe o seu fisicismo que, saussurianamente agravado, ainda hoje vigora, avalizando as presunções do fonologismo e do estruturismo.


COMO E PORQUÊ

Com sua carência vivencial de motivação, o homem tem fome de porquês, análoga à sua carência vital de alimento. Mesmo antes do como já quer o porquê. Mal se iniciando o vocabulismo ocidental e vendo no vocábulo um signo da coisa, a filosofia grega entrou logo na teoria da causa, ao investigar se o nome (da coisa) era fruto de uma determinação natural (phúsei, fisicismo) ou de uma criação convencional (nómo, nomicismo). Mal se descobria, no comparatismo indeuropeu, o cognatismo dos falares de agora e de antanho, entrevisto em forma de como, vieram logo os teoristas do porquê, traçando leis naturais para uma atividade que, pós-natural, vive na lei da criação mental.

Estudar o como é identificar o objeto. Estudar o porquê é inseri-lo na etimologia do mundo, feito que seduz o gosto racional da inteligência. Isso motiva, no espírito, o seu gosto causal. Mas acontece que a etimologia pede mais que o curioso intuir, fazendo a ciência, quando madura, acertar o passo da madurez com o da modéstia, empenhando-se na endofísica do como, na estrutura dinâmica do proceder observável, mantendo-se na discrição que lhe pede a metafísica do porquê, a metafísica do ser. A ciência endofísica, estudando o proceder do Objeto, encontrou matéria de pleno interesse. Matéria que nos rende, além de nos entreter o gosto lúdico, as férteis conseqüências dos achados práticos, das invenções por que o homem, domesticando a natureza, vai fazendo do mundo a sua casa.

Diversa da Ciência do Objeto, cujo objeto é o Objeto ordenável, tem de ser a Ciência do Sujeito, cujo objeto é o Sujeito ordenador. Não lhe basta conhecer o homem zoológico, espacial, incluído no campo do Objeto. O que vale, no Sujeito ordenador, veio com a superação da cota zoológica, na epifania antrópica da hominidade. Veio na transferência reflexiva da espacialidade cósmica para a temporidade endocósmica. Veio na perseverança da metáfora antrópica, no intuito racional que nos permite definir o homem como sendo uma expressão espacial em busca de tradução temporal. Ante a facilidade lúdica da Ciência do Objeto, é subtil e difícil a Ciência do Sujeito, ciência de qualificação de uma diacronia axiológica, progrediente, oposta, como condensação temporal, reminiscente, à sensoriedade espacial do fenomênico, objetivizável na Ciência do Objeto.

O objetivo da Ciência do Sujeito é o proceder do Sujeito, um proceder não propriamente verificável e sim autenticável, mediante interpretação analógica, por outro Sujeito, mas sobretudo por anamnese, no testemunho do próprio Sujeito. Como objeto de pesquisa, é uma ciência que fornece matéria à Glotologia, à Psicologia, à Sociologia, à História...

A glotologia saussuriana perseverou no engano de considerar a língua um real autônomo ou sibi-sistente, apesar de ela não ser uma coisa, mas apenas o estado virtual de um proceder do Sujeito, condicionado nele, didaticamente, pelo exercício inter-individual da fala. A fala é o exercício atual desse proceder do Sujeito e a língua, pós-fabular, é o fruto potencial de tal exercício. É um estado intra-individual, um patrimônio reminiscente, uma lembrança de moldes e vozeios das falas ouvidas, pronta para se reatualizar, como recurso, nas falas dicendas. Se houvesse refletido melhor, como autor da dicotomia língua e fala, Saussure não teria dito que a língua é social e a fala individual, pois teria visto, ao contrário, que a língua é uma sedimentação intra-individual, uma habilitação individual, formada em cada um pela atividade social da fala. E poderia ter visto mais, se visse que esse pecúlio particular, instrumento de socialidade, através da aculturação inter-individual das falas coloquiais, serve melhor ainda ao progresso da hominidade, soliloquialmente cogitada, nas falas intra-individuais do pensar.

Dada a subtileza da matéria, não admira que esteja atrasada a ciência da linguagem, pois faz companhia às demais ciências do Sujeito. Há muita humanidade ainda que hominizar, num mundo povoado de gente infra-aristotélica, cheio de nativos mais ou menos tribais e analfabetos, capazes de entender um programa escolar, que o próprio idioma não carece de ser estudado, pois cada um já sabe a própria língua. Um homem de hominidade retardada, senhor da posse elementar, ignora que existe, em grau mais alto, a consciência da posse.

Acontece porém que o exercício de conseguir consciência, pressupondo um quanto comum de vivência, pede também sazão de madurez. Somente agora estão querendo apendoar, certas premissas racionais dos gregos, iniciadores aristotélicos da segunda superação, que foi a superação do infra-lógico. Mas começaram, sintomaticamente, na filosofia da substância, deixando, pela metafísica dos porquês, o como acessível dos procederes. Assim, por exemplo, na questão lingüística do nome, geralmente admitido como nomeador da coisa, discutiam se ele convinha com ela naturalmente, ou se por convenção. Havia (d)os do primeiro parecer, como Crátilo, e os do segundo como Hermógenes, figuras do diálogo de Platão. Havia pois o fisicista que, atribuindo à natureza o motivo semântico, admitia receber dela a criação, e havia o nomicista ou convencionista, que admitia a linguagem como criação do homem. Essa dualidade opositiva até hoje ressoa, não clara mas difusa, na insuficiente conceituação da glotologia moderna, porejando o neofisicismo na maioria positivista, enquanto revê neonomicismo a atitude da minoria idealista.

Os antigos, embebidos no porquê e deslembrados do como, não receberam a tentação do comparatismo, apesar de equações sociais como gregos e persas, romanos e cartagineses, gregos e romanos. A inteligência filosófica, navegando porquês antes do tempo, não fez mais que “descomeçar” a teoria da linguagem. Atenas deixara o passo do como para Alexandria, debruçada, na sua biblioteca, sobre seus milhares de textos canônicos, canonicamente retificados. Nos trabalhos do como, embora sem saber como, o filólogo [alexandrino] foi dando figura à gramática, enquanto estudava falas que buscava denormar pelo grau da boa posse.


MOTIVAÇÃO CANÔNICA

Mais não pudera avançar a teoria, até que chegasse o comparatismo oitocentista, o fisicismo neogramático e o sistemismo saussuriano. Entretanto, nem mesmo após dois milênios de racionalidade aristotélica, pôde ainda a glotologia achar o seu método. No século XIX, invejou a exação quantiadora da ciência física, ciência da matéria espacial, embora a matéria prima da língua seja temporal e axiológica. No presente, cheia de ledice pós-saussuriana, ludicamente estruturista, quer imitar, da mesma ciência física, o alto hermetismo algébrico de suas fórmulas, pitagoricamente perfumadas. Como se não fora outra a sua via, i. é, temporal, não quer ficar postergada e já procura a notícia do que é nos computadores eletrônicos, registros meros da via espacial.

Comprometida com os enganos de seu vocabulismo já velho, a glotologia continua enredada, cheia de confusões não resolvidas, incapaz de definir, como já vimos, conceitos fundamentais como “frase” e “vocábulo”. Ciosa de se instalar por conta própria, mete-se no seu equívoco intransitável, ao tomar-se por ciência do Objeto, em vez de se matricular na do Sujeito, aí fazendo-se capítulo, na história dos procederes homínicos, juntamente com a psicologia e a sociologia.

Quando progredir melhor, na pesquisa modal de seu tema, a glotologia, melhor se motivando, refletirá melhor na conseqüência indicial de sintomas como os seguintes:

I

O ato de fala é um proceder inter-individual, ocorrido entre Primo e Secundo. É uma oferta de sintonias mentais, uma conferência de que, veiculáveis no vozeio, já estavam situadas em cada um dos dois pólos fabulares. É um ato plenário, que imerge no tempo, livre da coerção espacial.

Nota 1. para evitar confusões, lembremos a gradação etimológica: na equação ic, espacial e vital, a coisa é um convite vital à resposta vital de um fazer. Entretanto na equação Sv (Sujeito e vivência) a idéia da coisa entra no lugar da coisa. A equação intra-individual Sv é fruto didático da equação ss (temporal e vivencial) em que Primo docente instrui Secundo discente... Tudo isso repete-se para que se compreenda o seguinte: quando parece que Primo falou sob a coerção da coisa (algum apelo ante o perigo) a análise deve olhar a gradação:
a) a coisa estimulando um fazer (vital);
b) a idéia da coisa estimulando um pensar (vivencial);
c) e este manifestando-se na fala.
O impulso temporal (bc) é posterior ao espacial (a) que não entra na fala.

II

A vigência do ato fabular pede dois pólos socialmente nivelados, potencialmente sinérgicos, prontos para a fala comum. Se um dos pólos for defectivo, como no caso doméstico do educando, em vez da fala sinérgica entra em vigor a fala didática. Flui então, de Primo docente a Secundo discente, não a proposta entre dois pólos nivelados, mas a notícia condicionante, instaladora da idéia da coisa. Pela perseverança de tal fala, num dia a dia quase despercebido, vai discriminando-se, na vivência do aprendiz, a figura veicular da língua e a figura veiculada da idéia. Acomoda-se na lembrança a reminiscência da visão fenomênica (uma idéia da coisa vitalmente sentida) junto à reminiscência de um vozeio noticiário. Constitui-se, no todo, um quadro fabular, que se vai firmando, entre retoques, pela iteração convivial dos encontros. O discente vai aprendendo a tomar, das falas ouvidas, o veículo de suas falas dicendas. Assim vai nascendo, das falas de Primo, em Secundo aprendiz, a fala de Secundo Primo: ex fábula língua [da fala (nasce a) língua].

III

A vera situação didática, boa para uma vera fala docente, é uma situação bem encenada. Pressupõe, no espaço teatral, a interpresença de três presenças: Primo, Secundo, e a coisa motivo. Primo representa a notícia tradicional, a doutrina vigente, modulada por sua visão pessoal. Secundo entra como paciente de duas equações:

•  armada no espaço, a equação ic, constituída por ele, indivíduo sensível (estimulado) e a coisa ante ele (estimulante) fonte dos estímulos vitais que recebe. No caso de ele sozinho, sem mais experiência, num encontro primeiro, se ver ante a coisa, o estímulo desta lhe provocaria, desde o fundo vital instintivo, o padrão de uma resposta zoológica. Nessa hora maior é que serve, como lição tranqüilizadora, a experiência de um sócio.

•  armada no tempo, a equação ss, promovendo um contato temporal, oferece uma notícia intelectiva, dada, pelo sócio docente, ao sócio discente.

Sendo assim na situação didática, o paciente Secundo sincroniza duas paciências: a paciência da coisa, que incita um fazer vital, e a paciência da notícia que, excitando um pensar, interpõe, na espacialidade vital, a temporização de um fazer vivencial. Activizado para a reflexão, que o promove a Secundo Primo, o sócio aprendiz incorpora experiências no seu patrimônio, elaboradas no outrora pós-contatual das sucessões, e avaliáveis por sua madurez intelectiva.

Quanto à notícia que Primo transmitira, no agora espacial da equação, não fora ali que a obtivera, de uma presença que para ele era uma iteração. Tal notícia já trazia consigo, vinda outrora de outro sócio, numa outra equação vivencial. Como veículo que depois se individua, na língua do discente, a fala é primeiro figura de um veículo transindividual, passado de portador a portador, em tradição ininterrupta. Ininterrupta mas contingente, pois quando se peculiariza como língua recebe, da genialidade individual, aqueles efeitos que a vão transformando, diacronicamente, entre oscilações de uma perseverança que a aceitação inter-individual vai garantindo.

Explicando o circuito da fala, Saussure fizera de Secundo um parceiro inteiramente passivo. Tendo feito da antinomia um critério de resistência, determinou que se Primo era ativo Secundo tinha de ser passivo. Fundando-se no mito estático de uma sociedade supra-individual, com suas formas de formar indivíduos, fugiu de pensar na dinâmica transindividual da relação inter-individual, fabularmente mobilizável, capaz de atualizar uma sociedade entre Primo e Secundo, e de se condicionar como socialidade em cada um dos dois pólos, dentro da proporção e do sentido docente-discente. Não viu que a socialidade, como saber aprendido, é o fruto didático de uma atividade inter-individual, movida por uma energia intelectiva em cada pólo. No trabalho ativo de Secundo, vai a promessa de sua hominidade e a esperança da hominidade progressiva, diacronicamente melhorável. Se é ativo no agora do entender, mais valor tem ainda, no outrora pós-contactual da continuidade interior, a fertilidade vivencial da cogitação, a fase do ensimesmar-se, então se digerindo melhor a colheita mental oferecida por Primo.

IV

A fala e a língua, a produtora e o produto, só existem no tempo, como um sintoma peculiar da hominidade. Modelando a matéria do vozeio, o ato de fala é um proceder sensível. Mas superou, pela transcendência temporal da intenção, a imanência espacial do vozeio. O substantivo da fala está na intenção e não no vozeio. Por isso constituiu-se em proceder específico, hominicamente peculiar, adaptado como instrumento inter-individual de sintonias mentais, para veículo de condensações temporais.

Por outras palavras, o homem zoológico, posto no espaço, recebe do espaço, nos contactos vitais, a eficácia das coisas. Mas o homem antrópico, situado no tempo, leva consigo, do espaço para o tempo, os mnemiatos da eficácia da coisa, recolhidos na usina do espírito, onde a idéia se elabora, fabularmente sinalizada, recebendo feições que a vivência lhe imprime. Portanto, a glotologia metódica tem de insistir na função vivencial do signo fabular, e de fazer refluir, para sua ordem vital, o fantasma da coisa, antiga assombração do vocabulismo. Hoje, mesmo reduzido a fantasma sub-liminar, ronda sub-liminar o signo de Saussure, freqüenta visões como do binômio “palavras e coisas”, e exibe-se, como elemento de confusão, no tetranômio orgânico de K. Bühler, usurpando um lugar que o mestre vienense devia ter garantido para o trinômio P-s-S (Primo, signo fabular, Secundo) que é o trinômio da fala. Nela não entra a coisa, que é vital, mas apenas a idéia, que é vivencial.

V

A fala, que produz a língua diacronicamente, também diacronicamente a renova, com variações diacronicamente incorporadas. Para Saussure, com seu conceito de língua social, esta era um produto distribuído de fora a cada indivíduo, senhor do poder de uso, sem poder de a mudar. Em nome do poder da massa, que nada pode fazer, excluiu do poder do homem, criador da língua, o poder de a mudar. Que a língua muda, percebe-se. Que a língua é morfia que só aparece no ato da fala, vê-se. Mas que não seja na fala que a língua se muda, isso não se entende. Visto ser a fala um ato do indivíduo, a conclusão tem de ser que o indivíduo muda a língua. Um indivíduo não muda a língua, mas o indivíduo sim. Pelo fato de ser difícil perceber, não se há de alterar a ordem dos fatos.

VI

Basta alguém meditar na continuidade tradicional da fala, para admitir, na idéia de língua, a idéia de um patrimônio comum, passado de pai a filho, no suceder das gerações. Não se pode imaginar grupos humanos inventando línguas de vez em quando. Nas mudanças tribais da diáspora indeuropéia, os que iam levavam consigo a língua que tinham. Não consta que, mudando de espaço, algum grupo criasse outra língua, deixando de lado a materna. Podia passar a outro dialeto, mas isto não é passar a outra língua. Iberos e celtas vencidos aceitaram o latim do Império Romano. Germanos vencedores aceitaram o latim da România vencida. Casos de aculturação que contar não são exemplos de línguas que recensear. Por vício rotineiro, chama-se de “língua neolatina” um idioma neolatino. Entretanto, sendo um tratado metódico, deve mostrar que não são línguas mas dialetos, os dialetos da língua indeuropéia. Falta rigor metódico, por exemplo, na expressão línguas indeuropéias . Tecnicamente, ninguém pode demarcar e dizer que daqui para cá é francês e daqui para lá é latim. Contra a presença diacrônica da identidade, presença substantiva, não pode prevalecer, por adjetiva, a não presença da ipsidade. A língua muda e tem de mudar, tem de perder a ipsidade, pois a lei da deveniência é universal. Basta ser para mudar. Por isso muda a língua e muda a hominidade, sendo de notar, como boa nota, na lenta diacronia, o fato de seu caráter progressivo, de seu regime capitalizante. Se melhora o teor da hominidade, melhora também o da língua, meio de expressão da hominidade.

A língua é um patrimônio tradicional, enfiado no tempo. Sob a precária aparência do sincrônico, exibe a longa sedimentação vertical de sua perspectiva diacrônica, feita de perseveranças e mudanças. É pois uma instabilidade que se dialectiza, movida por tendências metassêmicas e metamórficas.

Para motivar o que dissemos e o como dissemos, é verdade que só existe, suficientemente histórica, a língua indeuropéia. Para o mais tem de funcionar a analogia, a confiança na mesmice antrópica, ante a língua sem tempo nem história, veículo da expressão de almas aorísticas, flutuando na hipocronia, aderidas às adjacências do agora. A língua indeuropéia porém, com 40 séculos de identidade, não deixou de ser a língua, embora se fracionando em muitos idiomas e sub-idiomas (ou dialetos e sub-dialetos).

É tempo de a glotologia corrigir a facilidade com que admite o plural do nome língua, evitando a possibilidade de alimentar, no campo metódico, uma antiga vaidade nativista.

VII

Quem arma um plano sincrônico, identificando um momento precário, constrói a perspectiva de um estado de língua. Mas longe ainda, com tal ato preparatório, de poder explicar a língua de tal estado, de lhe motivar a razão de ser, de lhe apreender a responsabilidade veicular. Enfim, limitando-se à posse do atual, está longe de chegar à consciência, não podendo portanto afirmar que esteja fazendo ciência. Contudo, ordenando planos sincrônicos sucessivos, poderá examinar-lhes a perspectiva diacrônica, mediante o confronto de tais sucessivos estados-de-língua. Imagine-se o português, em mapas sincrônicos sotopostos, revelando diferenças como as que há entre os séculos XX e XV, XV e X, X e V, V e I, I e menos V.... Cobriria tal pesquisa, além de uma área dialetal da península, todo um setor mediterrâneo da língua indeuropéia.

Dizia Saussure, com os enganos de seu tempo, que a lingüística propriamente dita tem de ser um estudo sincrônico. Mas a glotologia tem de afirmar que a lingüística é, por definição, um estudo diacrônico.

VIII

O lingüista tem de admitir, sobre a língua, este fato: a fala que a vai mostrando a vai mudando. Para isso, a fala admite consigo, no decurso diacrônico:

a) efeitos metamórficos da alteração prolatória

b) efeitos metassêmicos da mudança mental

c) efeitos mutuários da aculturação inter-individual.

aculturação inter-individual pode ser entre regiões grupais da fronteira intra-idiomática, ou provir de além fronteira, com seu efeito inter-grupal e inter-idiomático. Os contatos inter-gentilícios costumam ceder empréstimos fabulares, importados por seu prestígio ou recebidos por contingência do convívio. Conforme o cognatismo, o empréstimo pode ser:

homodialético (entre, por exemplo, francês e português)

alodialético (inglês e português) e

aloglótico (tupi e português).

Além dessa aculturação, que se define como temporal, mas que tem procedência espacial ou sincrônica, existe outra, bem mais valiosa, própria da hominidade aristotélica. Referimo-nos à aculturação do gosto histórico. Busca renovação no próprio passado do povo e no passado dos povos. É uma aculturação repristinante ou diacrônica. Basta lembrar, do século XV em diante, como se enriqueceram de latim e de grego, todos os idiomas europeus.

IX

Pelo que temos dito, a glotologia não deve imitar as ciências do Objeto, que são ciências do espacial. A glotologia tem por objeto um proceder do Sujeito, que é o seu proceder fabular. Deve encardinar-se [listar-se, enumerar-se] nas ciências do Sujeito, que são ciências do temporal. Coordenam-se num mesmo campo a Glotologia, a História, a Sociologia e a Psicologia.


A REVISÃO

A glotologia carece de uma reforma de base, motivada em princípios fundamentais como os seguintes:

•  a fala é uma invenção pós-natural, fruto cooperativo de um proceder que condensou, na temporidade vivencial da idéia, a espacialidade vital do mundo;

•  a fala é uma expressão do homem, não da coisa. Na fala viaja a idéia não a coisa. Fica esta na equação vital ic, como estímulo de um proceder natural, isto é, espacial e zoológico. Mas a fala permitiu, dando-lhe um transporte temporal, que se pós-naturalizasse, na vivência, elaboradora de idéias, enquanto filtra mnemiatos sensórios da colheita vital;

•  a ciência da linguagem humana é um capítulo das ciências do homínico. Entra pois, historicamente, na Ciência do Sujeito, ciência de identificação, não de verificação. Não pode confundir-se com a Ciência do Objeto, que é a ciência da coisa ordenada, pois a Ciência do Sujeito é a ciência do ordenador do Objeto.

Insistimos pois nos seguintes corolários:

1 - A fala é uma expressão de Primo, ante Secundo, ou ante si mesmo. Se é fala ao outro, fala-colóquio, oferece uma sintonia mental, abre uma conferência de idéias. Para o mesmo veículo são dois os ofícios: manifestar a idéia de quem fala e despertar a idéia de quem ouve. A fala afina idéias existentes em dois pólos. Não é correto que introduza a idéia lá dentro, na mente do outro. Não é trocadeira de idéias. Ajuda na comunicação mas não é comunicação. Para haver comunicação, há de haver suficiência de abastecimento nos dois pólos. E este vem a seu tempo, como efeito mutuário do convívio, como fruto vagaroso da vivência, analógica e empática. Nutre-se mais dos fazeres que dos falares de outrem. Por isso é que costuma surgir contrabando no comércio da idéia, recebendo-se conteúdo que não pagara porte fabular, entendendo Secundo o que Primo não dissera. (para provar o fato, basta supor no discente uma idéia ignorada do ouvinte. Li num jornal a anedota da esposa que cansava o marido com o pedir de um casaco de pele. A certa hora ele desabafou: “ainda acabo virando uxoricida”: mas a tanto a mulher respondeu: “quando fizer isso, você me dá o dinheiro para comprar o casaco?”).

2 - A fala é o manancial diacrônico da língua, pois a língua nasce da fala, e a fala nasce, não da língua, mas de outra fala, ouvida antes por quem depois ficou sabendo falar.

3 - Se dos atos de fala nascem os fatos da língua, intra-individualmente condicionada na lembrança, então a língua é um recurso pessoal, um pecúlio individual, cabendo à fala, como proceder do sócio Primo ante o sócio Secundo, aquele caráter social que se quis atribuir à língua.

4 - A unidade da língua não é o vocábulo mas a frase, um molde veicular acabado, que a fala de Primo vai condicionando em Secundo, mediante iterações que a tradição inter-individual vai repetindo. A frase não se fez de vocábulos. Antes pelo contrário: na frase é que se fez o vocábulo, morfia virtual que a cogitação vai identificando, vivencialmente, enquanto desmonta frases. A frase é um valor fabular e o vocábulo é um valor pós-fabular. O vocábulo vem da frase e a frase vem de outra frase.

5 - A língua, patrimônio fabular de cada um, vernaculamente se adquire, desde a infância. É uma adestração costumeira e espontânea, ciosa e forte. Tão ciosa e tão forte que, instalado no seu vernáculo, o indivíduo tem dificuldade de se instalar bem numa segunda língua. Mas a primeira vem de si. Vem na lição dos maiores, cheia de sua feição prolatória, de seus talvezes fônicos peculiares. Pelo nível da posse que transmite, avalia-se a riqueza de sua integração social, ora no limite infra-lógico da tribalidade infra-aristotélica, ora na cota racional da socialidade aristotélica. Dentro do mesmo vernáculo, ora a modéstia rural da fala roceira, que um dia a escola corrige, ora a leveza e primor da fala urbana.

A língua, sendo coisa que se aprende, fica acima das concessões naturais da economia zoológica. É natural a etimologia do vozeio, bem como o limite anátomo-fisiológico do poder prolatório. Mas isso não é a língua. Se houvesse parado aí, seria apenas um vozeio animal. Ela não está no vozeio: está sim na estilização que o transfez em signo fabular. Para tanto, mudou a espacialidade visu-auditiva de um proceder vital, na temporidade reminiscente dos procederes vivenciais.

Portanto a fala, sendo criação pós-natural, escapa ao regime natural dos sistemas naturais. Toda a sua franja de estilizações fônicas pertence ao domínio da invenção humana. Velejou em mar de enganos, com seu veleiro de “leis fonéticas”, o fisicismo neogramático, precursor do fonicismo de hoje que, com ritos de mágica, embevece homens sérios, parecidos com bugres fazendo magia.

6 - Movendo-se a fala, move-se a língua, nos portadores. Na lembrança dos indivíduos do grupo é que se colhe a figura de um estado-de-língua da língua. O confronto de estados sucessivos deixa ver o feitio analógico das mudanças, a feição estratiforme das persistências, a contribuição mutuária das aculturações. Na diacronia passada, como sintomas de outrora, a presença de singularidades arcaicas, bem como o viés de certas tendências neoplásticas, promessas indiciais da diacronia em marcha. A língua, movendo-se no tempo, no tempo se deve estudar. Carece de sentido maior o dogma da lingüística sincrônica. A lingüística tem de ser diacrônica. Tem por objeto um objeto dinâmico.

O método estático ou sincrônico, próprio da gramática normativa, transmissora da posse costumeira, pode servir ao exercício didático. Mas não pode concatenar motivações. Esquece a etimologia dos fatos. Não há vera motivação ou dado científico, nem no fundamento saussuriano de certos princípios, nem tão pouco [sic] nas deduções estruturistas do agora, marcadas de ludicidade infantil.

Para ordenar os fatos, a lingüística tem de ser uma tomada de consciência, fundando a posse racional na tradicional que, distribuída na existência diacrônica, historicamente se rastreia, restaurando painéis etimológicos, nos moldes etimológicos de A. Meillet [61].

7 - Dentro da economia vernácula, sujeita a primaveras e invernos, o patrimônio fabular é um patrimônio que melhora e piora, conforme o progresso grupal, no seu ritmo oscilatório de prosperidade e decadência. A língua tem um celeiro de persistências e esquecimentos, de inovações e renovações, entre efeitos de uma aculturação interna e externa (intra-grupal e inter-grupal).

8 - O homem é espacial no corpo mas é temporal no espírito. Movendo-se no espaço, corporalmente, move-se no tempo, mentalmente: aonde vai, leva consigo o poder fabular. Uma expressão como “lingüística espacial” é uma expressão metafórica. Espacial não é a língua mas o portador. No espacial do grupo vige o temporal de suas afinidades homínicas. No estofo inespacial do Sujeito, recortado no tempo, estão modulações que se manifestam na fala, imprimindo-lhe efeitos que a diacronia da língua incorpora.


A CIÊNCIA DO SUJEITO

A glotologia procurou regime, em leis do Objeto ordenado, para uma ciência do Sujeito ordenador. Fascinara-se por efeitos de um século que mergulhara nas origens da espécie e não tivera tempo de voltar à tona da hominidade. Anantropizava um ser que não mais era símio. Contaminado pela saudade zoológica, o homem começou a desmotivar a razão de viver. Começou a diluir, na perspectiva naturalista de um novo cosmo zoocêntrico, a visão pós-natural de seu cosmo antropocêntrico, vinda de um cosmo sobrenatural e teocêntrico.

Tudo que a ciência apreende, nem sempre compreendendo, vem resumido em procederes. Procede espacialmente, ante o sujeito ordenador, o Objeto ordenável. Procede temporalmente, ante o Objeto ordenável, o Sujeito ordenador. O homem, como corpo e alma, procede como Objeto no vital dos fazeres, e procede como Sujeito, no vivencial dos pensares.

Estudar o Objeto é ordenar-lhe os procederes espaciais. São procederes vitais, no sentido de que repercutem, sensoriamente, no viver do ordenador. São procederes vistos em nós, não em si. Economicamente iterativos, fazem-se experimentalmente verificáveis.

Estudar o Sujeito é autenticar a função diacrônica do ordenador do Objeto. Capitalizada e capitalizável na essência antrópica de cada indivíduo.

Na Ciência do Objeto, capitula-se o fenômeno físico estimulante e o fenômeno fisiológico do estímulo, provocador de respostas vitais. Essa a matéria prima dos mentados que a vivência constrói, nos procederes vivenciais.

Na Ciência do Sujeito, capitula-se a vivência do pensar, com diacronia da função reminiscente. Ela estiliza o fruto das atividades vitais. Pensar, que é “ponderar” idéias, sinonimiza com cogitar, que é “mover” idéias. A idéia chama outra idéia, não sob estímulos de fora, mas sob estímulos internos, recolhidos outrora, de algum momento anterior. Está na propriedade temporal do outrora intenso, recolher abstrações do agora extenso. Caso não houvesse vencido a clausura espacial, e continuasse fechado na circunstância (como na fase de sua cota meramente zoológica) o homem teria de viver só de alteridade. Certa vez entretanto, conquistou o poder de, captando estímulos externos, transmudá-los em estímulos internos. Passou a fundir, com mnemiatos recolhidos, a idéia das respostas vitais, industrializadas no espírito. Fazendo-se capitalizador e capitalista, foi aprendendo a destilar a teoria do viver, enquanto ia aprendendo a filtrar, da matéria, um conteúdo semântico. Armado com o poder de temporizar-se, foi progredindo no exercício de trocar a velha resposta reflexa, própria da sabedoria zoológica, pela resposta reflexiva, própria do saber antrópico. Fomentando, como novo poder, o seu novo poder axiológico, foi conseguindo sobrepor, aos valores espaciais da economia animal, os valores temporais da economia humana. Para ele, a presença temporal da coisa na lembrança ficou sendo melhor que a presença espacial da coisa na circunstância.


NÃO É SISTEMA

Se o pensar é um proceder mental do Sujeito e a fala é o veículo do pensar, então a ciência da linguagem tem de incluir-se nas ciências do Sujeito. Ela não trata o proceder natural da matéria, desenvolvido no espaço, mas o proceder pós-natural de criação, capitalizada no tempo. Por esse proceder, fautor da hominidade, a humanidade se foi tornando capaz de adaptar o mundo, reformulando-o no espaço, depois de reformulado no espírito.

O Objeto, no espaço, é matéria de uma ciência natural. O Sujeito, no tempo, é matéria de uma ciência pós-natural, uma ciência histórica, destinada a identificar não a verificar. Entretanto, busca subvenção na Ciência do Objeto, pelo fato de o Sujeito estar encarnado num corpo, centro zoológico ou base, que toma sua etimologia na função biológica.

Crescem no tempo, em lei de criação pós-natural, a hominidade, a fala e a língua, a qualidade humana, a expressão dessa qualidade em cada homem, e o recurso ou patrimônio dessa expressão.

No seu esforço de naturalizar a língua, o século XIX sentiu faltar-lhe aquela objetividade das outras ciências, mas achou que lhe podia atribuir autonomia bastante, servida num sistema de leis suas. Não viu que a idéia de língua não se aduna com a idéia de sistema.

Ter sistema é ter de proceder por trâmites predeterminados, entre necessidades predirigidas. É um atributo etimológico da matéria, nas criações espaciais da natureza. Ela rege o criado, distribuindo-lhe energias germinais functoras do ciclo físico do existir.

A língua entretanto, criação temporal do homem, é uma coisa que vai sendo, não por iteração espacial previsível, mas por uma estilização diacronicamente imprevisível.

A idéia de sistema lembra a fórmula servil do pré-fixado, isenta a prazos da liberdade criadora, na estrutura espacial de sua divina geometria.

Em contraste com isso, vige na língua a plasticidade da invenção. Na oscilante estrutura das falas, o precário dos moldes e vozeios, a cada hora tonaliza, de matiz pessoal, os momentos de uma expressão que traduz, não o mundo vital de todo mundo, mas o mundo vivencial de cada um.

O homem zoológico é uma estrutura espacial de sistemas, destinados a procederes que são sistemas de proceder. Na economia da simbiose com o meio, a natureza pôs, como sistema substantivo, o primeiro sistema de proceder. Na equação ic, o indivíduo reage, com sua resposta natural, ao estímulo natural da coisa.

Mas admite também, como sistema adjetivo, um segundo sistema de proceder, que Pavlov estudou. Para excitar a resposta, em vez do estímulo fundamental, basta um estímulo concomitante ou implicado, infundido no procededor. É o sistema da equação ic'. Finalmente, como corolário pós-natural do segundo sistema, o terceiro sistema de proceder. Desenvolveu-se no exercício da equação ss, não mais espacial mas temporal, não mais vital mas vivencial.

Esse terceiro sistema de proceder é o sistema do proceder fabular, sujeito não ao ritmo de uma necessidade zoológica mas ao ritmo, diacronicamente progressivo, da invenção que o criou. Por isso a fala, exercício de tal proceder, é um ato de criação emergente e não um sistema. Por isso a língua, fruto de falas exercidas, não é tão pouco [sic] um sistema, como não o é também a hominidade, fruto mental de uma capitalização diacronicamente progressiva.

Motivado na ipsidade do proceder físico, o cientista ordena, quantiador, um sistema natural. Motivado na racionabilidade da natureza, o filósofo ordena, abstrator, sistemas analógicos de interpretação do Objeto. Contudo, ante a secreta identidade do Eu, perde a confiança metódica. A hominidade, condensada no tempo reminiscente, não se desenha no espaço físico. Não dá geografia nem biologia mas biografia. O Eu de Lúcio, procurado por Caio, tem de ser visto analogicamente, sob fiança de uma suposta ipsidade geral da hominidade. A identidade particular dessa ipsidade, existente no observador e no observado, tem de ser rastreada, prudentemente, nos fazeres e nos pensares do outro. Aí se consegue, em edição não definitiva, sob reserva diacrônica do venturo, um esboço de imagem daquele homem antrópico, portador de sua hominidade cogitante, vivencialmente engajado em fazeres mentais, inventor de teorias do viver. O melhor é mesmo não julgar para não julgar mal: ne iúdices ne male iúdices [não julgues para não julgares mal].

Nas iterações da ipsidade sistemática, a Ciência do Objeto mede a morfia dos procederes, fisicamente estruturados. Mas a Ciência do Sujeito, focalizando a hominidade, filtra um destilo diacrônico de criação e liberdade, informado vivencialmente por uma prudência que a experiência vital insinua, através de lições que a história define.

A coisa, no que faz, confere-se, para entender, com o sistema a que pertence. Quem procura entender o homem, confere o que ele faz com o que ele diz. Mede então a possível distância entre a prática e a teoria. O que pensa pode vir no que faz ou através do que diz. Mas em nada se tem, sobretudo na fala, a garantia metódica de uma expressão natural. O que Primo nos diz pode vir de outras águas, numa lagoa de fingimento, engano e fantasia. Por sempre desconfiar da alteridade, em milênios de ignorância e de medo, o homem prefere o cuidado com o outro, cave álterum [cuidado com o outro], à fecunda prudência do nosce teipsum [conhece-te a ti mesmo], mesmo sabendo que conhecer-se é capitalizar ensimesmamento ou identidade.

Ao revelar o sistema do proceder fenomênico, a Ciência do Objeto ordena o sistema do cosmo enfísico. Mas a Ciência do Sujeito, ao imergir no endocosmo do Espírito, imerge numa subtileza temporal cuja etimologia recede, na via endofísica, para sua encardinação metafísica.


A ETIMOLOGIA

A seqüência do fenômeno fabular compõe três aspectos etimológicos:

a) etimologia do ingresso, no início animal de seu condicionamento fisiológico

b) etimologia do ingresso antrópico, na invenção do signo fabular

c) etimologia homínica da capitalização na diacronia da tradição fabular.

O homem já foi definido como animal que fala. A definição vale, se explicada em paráfrase: animal que quando fala manifesta idéias. Animal que fala com intenção. Animal que diz. De animais que falam, animais palradores, há exemplos de outros.

Apontaram-no ainda como sendo o animal que ri. De fato: o animal comum sabe gostar, sabe responder ludicamente aos agrados, mas não sabe achar graça. É que não sabe avaliar. É biológico feito nós mas não é axiológico feito o homem. Entretanto mesmo o ser humano, que ainda infante já sorri, para rir tem de aprender. Antes da sua temporização etimológica, o rir e o falar já estavam na mesma linha genética, na mesma franja expansiva e reflexa de interjeição, no mesmo estrato pré-fabular. Daí tirou proveito a incipiente hominidade, estilizando sintomas de sua expressão axiológica. Por exercício do poder antrópico, tirou do ricto facial o rir e do grito zoológico o falar.

É um fato diacronicamente perceptível que a língua afina com o poder mental do grupo, na marcha do infra-lógico para o lógico. Outro fato é a continuidade do não hiato, na constância tradicional do uso fabular. Para admiti-lo, basta receder de pai a filho, na linha substantiva da hominidade. A ntes da língua de Secundo discente, temos de supor a fala de Primo docente. Se não se chega ao pai Adão, nosso Primo I, é só por falta de documento, não por falta de via deducente. Quem pudesse chegar até ele, chegaria ao final do regresso diacrônico, fim de linha e início da linhagem. Chegaria ao momento etimológico do ato fabular, triplo começo de três etimologias: a etimologia da fala, a etimologia do tempo e a etimologia da hominidade, não em sucessão mas em composição, embora cada uma a seu modo e com seu destino. Na etimologia da fala, começou a expressão da hominidade iniciada em cada indivíduo. Na etimologia do tempo, começou a nascença do poder reminiscente. Na etimologia da hominidade, a estratificação temporal da qualidade antrópica.

Naquela fase dilucular e remota, desesperadoramente vagarosa, podemos supor Primo I e Secundo I, iniciando cooperativos o movimento da superação hominizante. Com os primeiros passos da lalice com que se ultrapassavam, rompia-se a intransitividade em que a condição da mudez os detinha. Subia aí de condição um animal fabro mas álalo, ens fabrum sed álalum. 24 Subia à condição de homo lalus ou homo loquens, definido candidato a homo sapiens.

Imaginemos, no espaço teatral de um fazer, entre iterações vitais da receita zoológica, dois indivíduos ainda hominicamente vazios, pávidos e gregários ainda, mas capazes de emitir certos vozeios concomitantes, em sincronia com os fazeres. Foram tais vozeios que, adquirindo uma intenção iterativamente condicionada, em dois pólos devidamente carregados, acabaram assumindo o poder de excitar, numa sintonia mental, a centelha semântica da idéia.

Era mais um luor do que uma luz. Era mui raso o tempo reminiscente. Era pobre o teor infra-fabular do teor auditivo, sensoriamente implicado na espacialidade visual do teatro presente. Na débil sintonia mental temporizante, vigorava espacial a empatia gregária do convívio.

Mas era o começo. Ia acrescer ainda, semanticamente adensada, na paciência dos centimilênios, a figura do signo fabular. Iria melhorar, no circuito entre dois pólos temporais, a sinergia veicular do vozeio e a intenção inter-individual do proceder. A dieta zoológica da equação natural ic iria ceder mnemiatos vitais à dieta hominizante da equação pós-natural ss, negociadora de mentados.

Então se começou a reformular, num comércio inter-individual didaticamente aparelhado, a espacialidade cósmica, reduzida a estímulos mentais temporizáveis. Começou a definir-se, na horizontal da continuidade gregária, a rampa socializante do pensar, movido pelo exercício intelectivo.

Chegara-se ao pataréu da superação, à conquista de uma habilidade que infundira, dinamicamente, num piteco evolutivo, a promessa do homem progressivo.


A FLOR TEMPORAL

A experiência foi crescendo, no lento e anônimo subir. Da iterativa submissão vital, posta no proceder meramente reflexo, filtraram-se as contingências vivenciais da criação reflexiva. A diacronia foi capitalizando, na faixa do outrora, frutos do agora vital, analogicamente reduzidos. A presença espacial da coisa, na fatoração vital ic, dobrava-se, prorrogada, na presença temporal da idéia. Fabularmente sinalizada, era capaz de mover, mesmo na ausência material da coisa, ora a cogitação intra-individual do solilóquio, ora a conferência inter-individual do colóquio. Pelo exercício dos contatos vivenciais, a socialidade ia vencendo a intransitividade gregária dos contatos vitais.

A conversão antrópica não foi uma destruição do zoológico, pois apenas o converteu e sublimou, estilizando o saber natural. Instalou um pavimento homínico, superior, no pavimento animal. Não veio para mudar a besta em anjo, mas para libertá-la da imanência. Fez que germinasse, na gleba espacial do corpo, a flor temporal do espírito. Vinda como privilégio, veio como eficácia que afeiçoa e aperfeiçoa. Mas não procede por igual nem hominiza todos de uma vez. Vai trabalhando um por um, cada um de per si e devagar. Seu metro crônico, além de quântico, tem dupla escala: marca a diacronia geral do meio humano, portador genérico de hominidade tradicional, e marca, dentro de cada grupo, a diacronia pessoal do indivíduo, portador de sua hominidade peculiar, variamente afinada com a comum. Em proporção com a riqueza do meio social e com o proveito da leiva tratada, almas de toda espécie vão florindo, para o opróbrio dos Neros ou para a glória dos Sócrates.


O SIGNO ZOOLÓGICO E O SIGNO ANTRÓPICO

Funciona entre os animais um vário exercício de avisos. Servem de ‘fala' concomitante, nos procederes de ataque e fuga, ou de espera e convívio. Movido da própria empatia zoológica, o homem interpreta essas 'falas' animais. Na sua forma de vozeio ou de gesto, de atitude e expediente, é todo um proceder corporal, envolvido na técnica de um quadro vital. Podendo vir no início, no decurso ou no fim, são signos prodrômicos, sindrômicos ou apodrômicos. Variam segundo a vária situação: perceber o perigo, iniciar o ataque, vigiar o ensejo, denunciar o encontro, chamar um companheiro, prevenir um fazer, exibir cortesia pré-nupcial...

Codificar uma gramática da fala zoológica será um lento e miúdo trabalho, tanto nos procederes conviviais intra-específicos, quanto nos inter-específicos. É geralmente visual, auditivo e olfativo. Fisiologicamente nutrido e ciclicamente regulado, provê-se na economia biológica da espécie.

Há no proceder do homem, sobretudo na cota infra-lógica, muitas lembranças de tais signi-ficações (sic) zoológicas. Para que nos venham, desde as reservas instintivas, e surjam num modo de ser, basta sobrevir-lhe uma angústia de medo, o sobressalto de um momento vital vivencialmente ignorado. Como fixação de tais atitudes pré-fabulares, prorrogadas no homem, podem servir de exemplo, como num filme japonês, os gestos e ameaços bélicos de um samurai combatendo. De Catão Maior, também fero guerreiro, conta-se que mandava o soldado romano fazer, contra o inimigo, vozeios e caretas pavorosas. Restaria saber, de tais atitudes, e para cá da persistência filogênica, até onde seriam fruto de lição tomada às feras.

Entre o signo zoológico, original, e o signo antrópico, derivado, o importante é a qualidade ser espacial no primeiro e temporal no segundo. O zoológico é espacial vital natural. O antrópico é temporal vivencial pós-natural.

Essa diferença leva em si a própria diferença entre zooidade e antropidade. O signo zoológico fica na economia do sentir natural, continuada na economia do fazer natural. O signo antrópico subiu para a economia pós-natural do pensar, amadurada no entender. Contra a expansão agorista do primeiro, a expressão outrorista do segundo.

O primeiro, posto na concomitância vital, fica na espacialidade estimulária do signo aderido. O segundo, passando à sub-seqüência pós-vital, ganhou sua temporidade estimulária de signo liberado. Como parceiro da idéia que carreia, assumiu a habilidade que tem, de se librar no outrora, mesmo longe do agora. Levando consigo juros da experiência vital, definiu a hominidade progressiva.

O primeiro, fechado na sua base espacial de signo externo, funciona como adjetivo de um proceder substantivo. O segundo, mesmo externado ou sensório, como veículo da sintonia mental, trabalha com seu estímulo temporal de signo interno. Tendo nascido inter-individual, foi promovido a signo intra-individual, como signo da idéia, dotado de poder substantivo, no proceder substantivo do pensar.

Um contato zoológico, meramente vital, desenvolve-se no espaço. O contato humano, vivencial, imerge no tempo. Entretanto a hominidade, longe de o excluir, pressupõe o zoológico. Diacronicamente capitalizada, somou sintomas que se opõem como sentido mas se compõem como fato.

Eis algumas contraposições, do limite zoológico para a superação antrópica:

a)

o proceder vital de um fazer

e

o proceder vivencial de um pensar

b)

o saber infuso do fazer reflexo

e

o saber adquirido do fazer reflexivo

c)

o signo concomitante e vital

e

signo liberado e vivencial ou pós-vital

d)

o estímulo externo ou da coisa

e

o estímulo interno ou da idéia e seu nome

e)

o signo sensível ou zoológico

e

o signo inteligível ou antrópico

f)

a função natural do ens álalum

e

a função pós-natural do homo loquens

 

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