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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Da Vida à Vivência - Conceitos de Lingüística Fabular

ESPAÇO E TEMPO [*]

 
 

"O homem é uma expressão espacial
em busca de tradução temporal".
Lourenço.

 

Sujeito e Objeto

Para a razão humana existe o Eu e o Não-Eu.

O Eu é o Sujeito ordenador do Objeto.

O Não-Eu é o Objeto ordenado pelo Sujeito.

O Objeto é o Real, que repercute no Sujeito e vai sendo internado em consciência, não como Real em si, pois este é inapreensível, mas como representação, imagem, como real com erre minúsculo.

O real é a nossa representação do Real, vivencialmente recebido, na lenta conferência plurimilenar entre um Sujeito progressivamente desenvolvido no homem e um Objeto progressivamente visto, um Objeto discriminado em objeto.

O Sujeito confere o Objeto através do espaço e dentro do tempo.

No Objeto inclui-se o homem biológico, suporte físico do Eu.

 

Espaço e Tempo

O Sujeito, vendo a coisa, vê também a não-coisa, que é o espaço. É uma não-coisa diáfana, cheia de luz, que funciona como veículo da coisa, como campo de sua presença e exercício.

O espaço, condição necessária da coisa, é uma categoria intuitiva, saturada, externa: vem do Objeto ao Sujeito.

O Sujeito, recebendo as repercussões do Objeto, aprendeu a sentir a duração e a projetar no espaço a categoria do tempo.

O tempo é uma categoria progressiva, subtil, vivencial, interna: vai do Sujeito ao Objeto.

O Objeto impõe o espaço ao Sujeito e o Sujeito impõe o tempo ao Objeto.

O espaço é uma coisa dada, ou melhor, uma não-coisa dada. Fazendo lugar para o Objeto, que resiste, ele porém não resiste e deixa entrar os olhos por si afora. Cresce quantitativamente, a olhos armados.

Já o tempo não é uma coisa dada.

O tempo está na duração do Sujeito, no ritmo sucessório do processo vivencial.

O espaço não só não acaba mas acaba dando vertigem à imaginação, com seu infinito continuar para além do Objeto, sua infinita quantidade de não-coisa. Olhando nele, a imaginação vê a quantia monótona, estendendo-se além, sempre além. É um estender-se de não-coisa, de coisa que não resiste, e que não está no Sujeito. O sempre além sugere infinidade.

Já o tempo está sempre acabando e acabando-se, pois é categoria dosada no Sujeito, criada num ser vitalmente uno, por ontogênese, mas vivencialmente múltiplo e progressivo, por filogênese. O tempo não é vital mas vivencial.

Pensando nele, a imaginação não sente o tempo como infinito. A idéia de eternidade não dá vertigem. Para admitir-se, ela carece vir aderida à idéia de um ser eterno, este ser por excelência que é Deus.

 

O Tempo está no Sujeito

O tempo não é, como o espaço, uma condição do Objeto. Ele está no Sujeito, aí paulatinamente gerado, projetando-se em imagens espaciais, conforme aquele jeito que tem o Sujeito de tudo especializar e deter, para exame.

O sentimento do tempo deve ter nascido das vistosas sucessões da natureza: manhã dia noite, primavera inverno, sol chuva, começar continuar acabar, presente ausente, etc.

O espaço é do Objeto e o tempo está no Sujeito, mas foi nutrido nele por repercussões do Objeto.

O tempo é uma extração do movimento e da mudança. Essa mineração, parece, é um monopólio racional. O asno, do mover e do mudar, o que tira é estimulo para reações procedimentais.

O tempo, instalando-se no Sujeito, começou pela cronestesia elementar do homem arcaico. O homem arcaico tinha muito Objeto recebido na alma e pouca elaboração na fantasia. Homem ainda muito sem Eu, muito sem Sujeito. Inexperto para a elaboração discriminadora, era tomado pela invasão do Objeto, que lhe impunha simbiose.

A cronestesia é um atributo que pede nível mais hominizado, bem acima daquele antigo hic-nunc-ismo, o aqui-agora do homem anterior, esse homem agarrado às presenças, homem tolhido pela curta desaderência do signo representativo e pela curta perspectiva da sedimentação reminiscente.

Esse homem era fraco para o exercício de se afastar, aquele fecundo distanciar-se que não perde a coisa, mesmo quando ausente, pois a tem captada no espírito, em forma de objeto, que é a nossa representação do objeto.

 

O Tempo como Espaço Interior

O espaço é o lugar do Objeto no mundo. O tempo é o lugar do objeto no Sujeito. É o espaço interior do objeto, objeto que é a nossa imagem do Objeto.

O tempo é a nossa condição do real.

As coisas do Objeto estavam aí fora, desde o início do mundo. Na medida em que as foi captando, o homem se foi também hominizando.

Assim foi melhorando seu internamento de consciência, ao coordenar a Vivência em vivências, nelas aperfeiçoando a representação do mundo.

Assim cresceu o espaço interior do Sujeito, o tempo do Sujeito, tornado cada vez mais capaz de compreender as repercussões do Objeto.

A hominização do homem foi ampliando e modalizando o mundo interior, espaciado em tempo, assim como a força de ver, aumentada, foi ampliando o espaço do Objeto.

 

O Tempo do Homem Arcaico

Para o homem anterior, que é um ser hic-nunc-ista [aquiagorista], o tempo é um agora dentro de um não-agora muito curto, um não-agora sem ordenação vivencial.

Denominando vivência aquela sintonia aqui-agora, do Eu e do Real, chamaremos de vivência elaboração da Vivência recebida, prorrogável para outro lugar e hora, álibi et ólim [alhures e outrora].

Uma vivência pede extensão temporal, pede duração.

Disso era menos capaz o homem primeiro, parecido à criança que não sabe esticar os minutos de uma atenção. O homem primeiro era um homem infantil e atônito, que é o mesmo que tonto. Era um homem desarmado, espiritualmente, para as siderações com que o Real o inundava. Homem descogitado ou descuidado, logo absorvido na simbiose do Objeto avassalador.

Passando de Vivência indigerida para outra Vivência indigerida, ia ele transfazendo em mitos a indigestão do mundo.

Na verdade, é isto que faz o Eu, quando posto entre os limites da carência racional e os efeitos da energia hominizante: ele mitiza o não compreendido Objeto, que lhe entra pela alma. Sob os efeitos do Real, faz dele um mito e projeta esse mito no Objeto, como explicação.

O mito que encheu os desvãos interiores do homem primeiro devia ser, no Sujeito invadido, uma expansão global do Objeto. Era uma expansão não carteada, fantasiosamente admitida, sem aquelas cotas e sinais bastantes da experiência vivencial.

A experiência vivencial é um fruto, no Sujeito, que só amadura quando se faz representação elaborada. Ela rege-se de seus ritmos internos, ajeitada às condições de um espaço interior, feito de tempo.

 

Vivência Inefável e Vivência Fabular

Na marcha hominizante da espécie, a fase do homem velho, homem pré-aristotélico, está sempre vizinha da simples Vivência, essa inefável sintonia do Eu e do Real.

A Vivência, inefável em si, era mais inefável ainda para aquele homem de parco recurso fabular, homem submisso à indiscreta imagem globalizada de seu mundo interior.

Ser parco em recurso fabular é o mesmo que ser parco em vivências, entendida esta como elaboração espiritual. A vivência representa o que há de transitivo na Vivência, pois esta só como todo é intransitiva. Naquilo em que se deixa filtrar e armar por representação, nisto ela se faz vivência. Por isso é que o real representa, não o Real em si, o Objeto inapreensível, mas as repercussões dele no Eu.

Sendo, como é, veiculável, a representação veicula-se nos atos de fala entre Primo e Secundo. A repercussão do Real, representada, é o real de Primo.

Cheio de Vivência, mas parco em vivências, o homem pré-aristotélico vive ludicamente, segundo o espontâneo vegetar do momento. Vive ainda empaticamente, segundo a confusão do Eu e do Não-Eu, invadido o Sujeito por míticas representações do Objeto.

Sua empatia funde-se nas simpatias muitas com que procede um homem que se confunde com o mundo e não o sabe internar na consciência. Um homem que, longe de ser a medida das coisas, ainda é o medido das coisas. Nele, em vez de o mundo vir ao Eu, o Eu é que vai ao mundo, em busca da comunhão propiciatória.

Sob o jeito paradisíaco da feliz inocência que lhe vemos, floresce um trabalhoso rito de simpatias, uma dura. servilidade ao tótem e ao tabu, capaz de desenganar a paciência de qualquer aristotélico. É um miúdo procedimento de gestos endotrópicos e apotrópicos, gestos que atraem ou repelem, no invocar do que se deseja ou no afastar do que se foge.

Entretanto, uma coisa o conforta: na área de seu mundo destemporalizado e mítico, reina crença no poder eficiente da simpatia, no poder mágico do vocábulo ritual e do fazer ritual: o meio de invocar a coisa é igual à coisa.

Nessa invasora confusão da Vivência, Sujeito e Objeto se equivalem.

 

A Vivência Fabular

Ao longo dos milênios, o homem aprendeu a filtrar as vivências, fazendo-se homem aristotélico, homem que ordena e mede as repercussões do Real.

Analisando a simbiose, foi discriminando-se do Objeto e instalando-se como Sujeito.

Observando a deveniência e a movência das coisas, foi descobrindo o antes, o durante e o depois. Além do inexpressivo justaposto, enxergou a sugestiva sucessão dos eventos, o encadeamento seqüencial da causa e do efeito.

De homem descogitado foi passando a meditado, estendendo em duração o tempo criador.

O Eu, entes invadido de mitos, passou a classificador do Real que invadia.

O Sujeito passou a medir o Objeto, visto em suas categorias.

Construiu-se no espírito o lugar do real, um espaço feito de tempo.

 

O Tempo do Homem

Ao espaço do Objeto responde um espaço do Sujeito, que é seu tempo. O espaço é a não-coisa visualmente sensibilizada. O tempo é uma coisa vivida, construída.

O espaço, essa oposição da coisa, já vem perfeito, estendido em quantia. O tempo, geração vivencial, que se aperfeiçoa com o Sujeito, contrai-se em qualidade.

Categoria subtil, criação vivencial, o tempo foi projetado no Objeto pelo Sujeito. Mas o homem, em vez de o ver como projeção do Sujeito, quis vê-lo como coisa dada, emparelhando-o com o espaço. Espaço e tempo se entreconvocaram, jungidos como um sintagma que o Real tivesse ordenado. A forte sugestão de nosso antropomorfismo transferiu para o Objeto, predicando-lhe idade, aquilo que está no sentimento de nossa duração vivencial.

Juntado ao espaço, que é vistoso, o tempo ficou na sombra. Por derradeiro, a ciência os conjugou, inventando o espaço-tempo, depois que o tempo já fora assassinado e reduzido, anatomicamente, a unidades cronométricas somáveis, em acervos assépticos e mecânicos de segundos, minutos, ou milhões de anos-luz.

Fique o tempo sem alma, para a ciência do Objeto. Tempo materialista, tempo matemático. O tempo do Sujeito é o tempo do homem, tempo psíquico, tempo vivencial.

Tempo aristotélico, augustiniano, bergsoniano. Tempo residual em que o presente, não acabando de ser passado, já quer ser futuro.

Tempo que o relógio não conta, pois ele não sabe medir a qualidade. Somar o tempo por minutos matemáticos é uma grosseira analogia prática, serviço de intenções econômicas.

Na mítica do homem primeiro, está que ele buscou integrar-se, como Sujeito, na simbiose do Objeto. Na mítica da física, a ciência, fundindo o espaço-tempo, integrou no Objeto uma coisa do homem, o seu tempo.

Isso é técnica da Ciência do Objeto. Entretanto, na Ciência do Sujeito, cumpre discriminar bem: o espaço é uma categoria do Objeto, mas o tempo é uma categoria do Sujeito. O espaço é sensível mas o tempo é vivencial.

O espaço abre-se à frente e não resiste. O espaço dá vertigens: ele é o abismo de Pascal.

O espaço já estava aí, do lado de fora, quando o homem surgiu no mundo. Mas o tempo, não. O tempo vem de dentro, desenvolvido no espírito. Dimana como um fluxo de surdina sinuosa, vário e diverso como um rio silencioso. Flui por dosagens que o cronômetro não mede.

O tempo é capaz de ser como naquela história de Manuel Bernardes, num comentário ao salmo 89, onde se diz que mil anos ante Deus são como o dia de ontem que passou.

Entre uma e outra hora do divino ofício, conta Bernardes, andara um frade até o silvedo de seu convento, sempre considerando naquele mistério do salmista, quando lhe começou um pássaro a gorjear. Embevecido no canto, esteve um pouco ouvindo: um simples intervalo de tempo. Quando achou que era chegada a hora da hora seguinte, recolheu rumo à capela. Mas então caiu em si e fez cair o convento em grande confusão, pois ali tudo mudara e ninguém se reconhecia. Turvados todos na estranheza, mandou o abade rever poentos livros. Aí ficou visto que aquele frade era um que havia desaparecido da comunidade trezentos anos antes. Trezentos anos, num breve espaço de entre prima e terça!

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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