DÍVIDA
Desde 1952 que estávamos
devendo uma nota comemora tiva a uma gramática publicada
em Lisboa em 1752: o Novo Método de Gramática
Latina para uso das escolas da Congregação do Oratório,
na real casa de Nossa Senhora das Necessidades, pelo padre Antônio
Pereira de Figueiredo, da mesma Congregação.
Assim como em Espanha foi preeminente, durante
séculos seguidos, a primeira gramática latina dos
tempos modernos, que é a de Nebrija, publicada em 1481,
assim foram preeminentes em Portugal duas gramáticas sucessivas:
a do padre Manuel Álvares, publicada em 1572, e a do padre
Antônio de Figueiredo, publicada em 1752. Havíamos
projetado celebrar-lhe o bicentenário, mas a realização
foi sendo procrastinada. Entretanto, o ano de 1956 ainda se acha
dentro da oitava de tão largo ciclo. Vai pois em tempo
a homenagem de hoje, na qual associamos o Novo Método
a uma latinista brasileiro bem mais moço do que o
pe. Antônio Pereira de Figueiredo - o professor Ernesto
Faria, cuja data qüinquagenária estão celebrando
amigos e admiradores. Não tendo podido fornecer, na ocasião
certa, uma contribuição da poliantéia que
honrosamente nos pedira o professor Serafim da Silva Neto, ficou
o nosso tributo esperando hora. Valha a vontade com que foi preparado,
já que pouco valem estas informações mal
informadas, a respeito da ars grammatica. É uma
notícia que toca de leve, e com pouca certeza, nas origens
da gramática latina e em sua história através
da idade romana, românica e pós-românica, até
os tempos de agora.
1. ETIMOLOGIA
A tradição ocidental da arte gramática
tem sua origem conhecida, na filosofia grega. Desde o séculos
sexto e quinto a. C., a inteligência helênica, meditando
na etimologia
do homem e do mundo, logo se achou em presença de uma realidade
subtil: o fato do discurso, da intercomunicação
mental. Entretanto, indagando de onde lhe vinha a capacidade da
fala, entrou, de saída, em aporia ou desvio, por querer
ver no "logos", não uma expressão do homem
e sim uma expressão da realidade. Mas cumpre ressaltar
que essa curiosidade helênica representa um alto grau de
sublimação abstrativa, na marcha discriminante entre
o mundo egocêntrico e o mundo alterocêntrico.
O homem arcaico ou pré-aristotélico
não tem curiosidade lingüística: as coisas
são e ele é com as coisas. A vida é um procedimento
que se repete e que reage contra a mudança, em nome da
continuidade avita [herdada]. É como na definição
caricatural da liberdade inglesa: cada um pode fazer o que quer,
contanto que faça o que os outros já fizeram. A
tradição é fortemente encadeada e o meio
amolda o indivíduo na simbiose indesviável. Cada
infante se vê homem num dia que chega rápido, e que
lhe sobrepôs na alma a alma dos avós. Aprendeu convivendo,
passivo e plástico. Chegado a homem, vê que sabe
e que está senhor da imagem do seu mundo. A quem lhe propõe
alteração e melhora num modo de ser ou fazer, ele
mostra seu espanto. Se lhe dizem que pode estudar e aprender a
língua da terra, fica estarrecido, pois é insensato
querer aprender alguém o que já sabe. Assim aconteceu
na África britânica, quando ali se iniciou o esquema
da alfabetização: o nativo aceitara, ressabiado,
o plano de estudar inglês e aritmética, mas ficou
perplexo ante a tolice de se incluir no programa o ensino da língua
materna, uma coisa que já sabiam.
Por isso é que o racionalismo helênico,
no primeiro contacto com o objeto "língua", em
vez de buscar saber "o que" era, desejou saber "de
onde" era, pois o que era estava no sentimento de cada um,
na vantagem cotidiana da expressão. Por esse motivo é
que foi logo pedindo resposta à grande pergunta sobre as
origens. Resposta que ainda não veio. Resposta julgada
tão difícil que a "Societé de Linguistique
de Paris", em 1866, ao constituir-se, eliminou de seu temário
um tal assunto, havendo-o por matéria extralingüística.
Se em vez do grande "porquê", o
heleno tivesse começado por um "como" espacial,
ordenando os fatos da língua e abrindo senda ao "como"
temporal, então se teria visto ante a perspectiva bidimensional
que o século XIX revelou.
Outra conseqüência de se tomar o "logos"
por expressão da realidade foi o engano de haver começado
pelo estudo da língua, em vez de começar
pelo estudo da fala. Tomar o "logos" por expressão
da realidade é apoiar-se num sintoma de preexistência,
autonomia e substância, como no mundo platônico. Tomá-lo
porém como expressão do homem é poder ver
que da "fala" nasce a "língua". Da
fala se abstrai a língua e na fala se cria, ao depositar-se
na consciência do indivíduo e no sentimento do grupo,
sob forma de patrimônio expressivo. Por isso, do exame da
fala sai a figura e imagem da língua, esta concentração
fugaz e persistente, aninhada no espírito. Força
de exibição do mundo íntimo, veículo
da mensagem que vai da boca de Primo ao ouvido de Secundo, na
sintonia
do diálogo. A língua é uma virtualidade,
um estado interior, sonegado à observação
de fora. A fala é que é um valor exteriorizado,
acessível à curiosidade alheia.
Psicologicamente, a atitude do heleno pode explicar-se
pelo fato de que o primeiro objeto que se oferece à consideração
de quem vá meditar sobre a comunicação humana
é a capacidade expressiva do próprio meditador.
Esta capacidade é a sua língua, vale dizer, aquele
estado interno, virtual, dissociado. A língua é,
portanto, um estado intra-individual. Mas a "consciência
da língua" abrange alguma coisa mais, porque admite,
em Primo, a crença de que existe em Secundo
um estado semelhante, um outro pólo de sintonia, na sintonia
interindividual da comunicação. Neste sentido
é que a língua é um valor supra-individual,
um valor de coesão e sociedade, um patrimônio
coletivo. É feito uma energia obscura e estática,
distribuída em pilhas, capaz de se fazer em luz, no circuito
da fala, à hora dinâmica dos intercâmbios.
Se o estado de língua, natural de cada indivíduo,
é um estado interno, virtual, dissociado, cumpre, quem
deseje fazer idéia de uma língua, surpreender os
indivíduos no momento da fala - momentos de exteriorização,
associação, realização dos valores
da língua. Acontece porém que o estado individual
deixa de ser constante ou igual a si mesmo: cresce por aquisição,
decresce por esquecimento e muda por evolução. Além
disso, ninguém vai recensear, a um por um, os recursos
de todos os indivíduos do grupo. Tira-se u'a média
persistente de valores e admite-se que cada pessoa tem sua língua,
nutrida na interpretação e consciência da
irrecenseável consciência coletiva. A fala é
uma expressão do homem; e nunca se ouviu dizer que seja
fácil de abstrair, catalogar e sistemar, uma coisa tão
vã, tão instável, tão cheia de mudança.
Também historicamente se pode desculpar
o engano helênico. Em vez de só admitirem o homem
com sua capacidade de comunicação, eles acreditam
na língua em si, na sua realidade exterior, vista
como se fosse uma espécie de alma das coisas. Essa atitude
não admira, pois a mitologia ainda continua, persistente
e vivaz, depois de haver resistido à metódica do
século XIX. Saussure foi o genial focalizador da mais verdadeira
e fecunda discriminação até hoje feita em
lingüística: a
discriminação entre língua e fala. Mas
ele não teve tempo de lhe explorar as formidáveis
conseqüências, agarrado como estava aos efeitos de
seu positivismo e ao esquematismo fisicista dos neogramáticos.
Até para Saussure a idéia de língua está
configurada na imagem de uma realidade exterior, quase
como um deus pessoal e concreto.
A conseqüência do desvio helênico
estendeu-se em dois milênios de confusão. Fora outro
o progresso metódico, se outro fora o começo, partindo
não da língua mas da fala, vista esta como expressão
não da realidade mas do homem. Seria um estudo não
do porquê mas do como, num exame da fala cotidiana, bem
como das falas expressivas dos Homeros. Da visão abrangente,
decorreria uma noticia do molde frástico, da melodia
frástica, do sintagma funcional, do elemento
frástico. Do acervo de observações decorreria
a visão analítica, a visão do estado de língua,
um mero estado de sedimentação interior, que a fala
deposita em cada um. Seria um exame começado pela sintaxe,
pela análise da estrutura frástica. A própria
hierarquia do objeto impõe a hierarquia do método:
IA |
a língua
|
elemento interno
do homem |
IB |
a fala |
elemento da língua
(expressão do homem) |
II |
a frase |
elemento da fala
|
III
|
o molde
a melodia
o sintagma |
elementos da frase
|
IV |
a palavra
|
elemento do sintagma
|
V |
o vocábulo
e o termo |
elementos da palavra
|
VI |
a sílaba
|
elemento do vocábulo
|
VII |
o fonema |
elemento da sílaba
|
Ora, é sabido que o exame grego começou
pelo vocábulo. Quando o sofista do século V a. C.
está indagando se a fala no homem é uma determinada
natural ou uma criação convencional, ele não
está pensando em termos de linguagem ou língua,
mas em termos de "vocábulo". O que ele pergunta
é se os nomes/tà onómata foram dados
às coisas por foiça da natureza/phúsei
ou por força de convenção/nómo.
Quando Platão, aprofundado por Aristóteles,
demarca os elementos da lógica ocidental, repartindo a
frase entre sujeito e predicado, longe de vincar
o sintagmático, o funcional, o abrangido, estão
ambos seduzidos pelo valor individuante do ónoma/nomen
e do rhêma/verbum.
Assim começou, discretamente, a catalogação
"vocabular", que atingirá depois, com Aristarco
Samotrácio, oito espécies gramaticais, oito partes
do discurso (que não coincidem, aliás, com as oito
partes da gramática de hoje).
A conseqüência da má partida
helênica tem sido uma nociva indiscriminação
entre os dois estados da palavra - o estado de fala e o estado
de língua - conforme se apresente como vocábulo
real, na frase, ou como vocábulo virtual, na mente.
Na frase "Platão viajou muito"
cada um dos três elementos dela se acha em estado nominal,
cada um deles é uma palavra; isto quer dizer: cada
"vocábulo" se acha na sua função
real de externar idéias. Estado nominal ou estado
de palavra é um estado de fala. Ao estado de fala opõe-se
o estado de língua, isto é, estado vocabular,
estado de léxico: é o estado em que
o nome se acha no dicionário - cada vocábulo, desflexionado
e seguido de seus termos possíveis.
O estado de língua, estado interno, é
um estado prossim biótico - vocábulo e
termos em dissociação. O estado de fala, estado
exteriorizado, é um estado apossimbiótico, estado
de associação efetiva entre o vocábulo e
um termo. O nome na fala é palavra, na língua
é vocábulo. No estado de lingua, como num limbo,
vivem vocábulos e termos; são como aquelas sombras
à espera de reencarnação, que o pai de Enéias
lhe mostrara, lá nos Campos Elíseos, para além
do Averno e do Tártaro. Internados na mente, aí
ficam na difusão recôndita do espírito, enquanto
não chega a hora da expressão, a hora da fala, quando
Primo os ajunta em palavras que saem ao mundo.
2. FISICISTAS E NOMICISTAS
Apontar a esse primeiro engano subtil não
é minimizar o "milagre helênico", isto
é, aquele esforço de visão clara que Atenas
endereçou, como um feixe de luz, sobre o mundo, em hora
dilucular da espécie, a emergir macia da depressão
an tropóide, aquele ímpeto de hominização
a despontar inquieto, num mundo de simpatias e fantasmas,
a desabrochar em racionalidade - uma racionalidade vernal, cheia
do tepor de forma ainda morna, um divino calor de frágoa
próxima: homines a diis recentes.
Desde os séculos sexto e quinto, ao primeiro
exame, logo se viram dominados pela individuação
vocabular, que os prendeu na área lexiológica, incapazes
de visada abrangente que primeiro ponderasse a expressão
toda e depois o valor de cada palavra.
Heráclito Efésio, ca 540-475,
pôs um misterioso "logos" dentro do seu movediço
mundo de deveniência, de perpétua transiência,
feito de ó e não é. Pretendem alguns que
nesse "logos", base de matafísica panteísta,
ainda se reflete a crença na magia vocabular.
Parménides Eleata, ca 530-444,
para quem o real era unicamente o ser, achava que as palavras
são nomes vazios, pensando embora os homens que contêm
alguma verdade.
Demócrito Abderita, ca 460-400,
vendo nos corpos um agregado de átomos, viu nas palavras
um agregado de sons, dentro de estrutura convencional e humana.
Górgias Leontino, ca 484-375, dizia:
o ser é incognoscível e se fora cognoscível
seria inexprimível e incomunicável.
O século V está na origem ocidental
da idéia de cultura, pensa Iaeger. À luz da individuação
do espírito humano, armou problemas como o da liberdade,
da autoridade, da formação política, enquanto
apóstolos ilustres repetiam na ágora que a virtude
está fundada no saber, pois a energia da "areté"
se busca na preeminência espiritual da "sophía"
e na força moral da "dikaiosúne".
A filosofia pré-socrática armara
equações mecânicas do mundo. Era o sensualismo
jônio
dos milésios - Tales, Anaximandro, Anaxímenes. O
racionalismo dos eleatas - Parmênides, Zénon; e o
atomismo dos abderitas - Leucipo, Demócrito. Eram os físicos
no esforço de reduzir a alguma unidade o cosmos intranqüilo
e múltiplo. A curiosidade do mundo veio juntar-se a curiosidade
do homem, tomado como objeto de pesquisa dos sofistas, assim abrindo
via à inquirição socrática, pertinaz
e amplamente antropológica. Por mal deles e de nós,
o negócio que empreenderam acabou em especulação
de nenhum lucro, devido à inconsistência e manha
do objeto homem. O pior é que, além da falência,
ganharam taxa de impertinentes, mais uma taxa de cicuta, como
bom aviso aos navegantes: a morte para Sócrates, 469-399,
e o exílio para Protágoras, ca 480-410.
A inteligência helênica ordenou o cosmos
aristotelicamente, num começo de ação que
acabou revelando a estrutura da matéria, no palco do mundo.
Com relação ao ator, o máximo que se conseguiu,
até hoje, foi poder catalogar a espécie em dois
tipos de estado humano: o do homem aristotélico
e o do homem pré-aristotélico. O homem
aristotélico
é o homem que chegou a pôr a inteligência em
função, o homem técnico. O homem pré-aristotélico
é o homem anterior, o homem empírico, o homem arcaico,
de inteligência embrionária. No final, porém,
ambos são homens, a oscilar pertemporalmente na base de
sua "hominice", tendo subido de homem mundo a homem
que faz e homem que fala, de homo álalus a homo faber
e homo loquens, alguns ajuntando méritos ao título
de homo sapiens. Este é o homem aristotélico,
animal político, isto é, sociável, e não
meramente gregário. Assim foi o homem do século
V, capaz de refletir o mundo no espelho da inteligência
e capaz de refletir-se no espelho da consciência. A forma
que se reflete na luz daquele século é uma vaidosa
consciência do "eu antrópico", envolvida
na ilusão de haver lobrigado algumas dimensões do
ser humano, em um mundo cujas dimensões já ia demarcando,
segundo uma pauta de centragem cósmica, traduzida por Protágoras
na afirmação de que o homem é a medida
de todas as cousas.
Em vez de filiar os sofistas aos físicos
jônios, melhor se hão de ligar à tradição
literária, pois estudaram o homem e não o mundo.
Cuidavam de cultura e não de ciência. Foram os primeiros
intérpretes metódicos dos poetas. Eram filólogos,
rétores, educadores. Neles é que teve início
o trívio célebre da gramática, da retórica
e da dialética. Delinearam o conceito de "humanidade"
e a estrutura das "humanidades" que o padrão
mediterrâneo conservou.
Do que ensinavam, em matéria de língua,
a mais célebre notícia que se tem é a que
está no Crátilo, de Platão,
427-348. De Crátilo contava Aristáteles ser
ele tão crente na transiência universal e tão
heraclítico na sua fé que, medroso de errar "nomeando"
as coisas, preferia apontá-las com o dedo. Nomear poderia
sugerir idéia de permanência, um pecado contra a
convicção. Fora amigo e talvez mestre de Platão,
que o põe, no celebrado diálogo, a conversar com
Hermógenes e Sócrates, a respeito do objeto "língua",
sua origem, sua função. A grande dúvida era
saber se o nome tem sentido por força da natureza/phúsei
ou por força da convenção/nómo.
Crátilo via justeza natural entre o nome e a coisa.
Hermógenes achava que se juntavam por convenção.
Crátilo era, pois, fisicista e Hermógenes
era nomicista. Sócrates, interpelado, respondeu
que não estava preparado no assunto língua, pois
ainda não pudera ouvir, por ser muito cara ao preço
de 50 dracmas, a lição do sofista Pródico
Ceio. Entretanto, ia dar algumas opiniões. Aí então
ele expõe uma longa série de etimologias. Discute
a conveniência entre o nome e a coisa, o critério
do nomóteto ou legislador que impôs os nomes, a hipótese
da origem divina, o valor fonossêmico dos nomes primeiros
ou mimemas, a suficiência de estudar os nomes a quem deseje
conhecer a realidade, etc. Sócrates tempera de grande malícia
a exposição que faz.
Tem sido difícil interpretar a atitude platônica,
no Crátilo. António Pagliaro, no Sommario di
linguistica, acha que Platão, entre o fisicista e
o nomicista, deriva para um conceito de que a fala é uma
obra humana que se faz lei, sem arbítrio, e que seu valor
convencional está na tradição. Em geral,
porém, se admite que ele ficou na linha pitagórica
e heraclítica da necessidade inerente, pois a conclusão
fisi cista se arranja melhor com a teoria básica da "idéia".
Aristóteles, 384-322, este
sim, é que se pôs na linha de Demócrito, abrindo
lugar ao nomicismo, com a discriminação de fala
e conteúdo: a fala é um vozeio
mecânico a veicular, um conteúdo autônomo,
que não é dela mas do pensamento; uma coisa é
a "phone" e outra coisa é o "logos".
Por isso a língua é uma convenção
ou acordo thésis/sunthéke. Vincou o
ónoma e o rhema como sujeito e predicado,
catalogando os outros elementos como liames ou sindesmas/ súndesmoi.
Aristóteles, em termos de conteúdo
seguiu o critério da estabilidade vocabular, da palavra
que melhor "está" pela coisa, stat pro aliquo.
O nome e o verbo, palavras nocionais, têm
uma larga autonomia semântica; são vocábulos
imaginosos até fora da frase. O mesmo não acontece
com as palavras relacionais, apagadas e ancilares. Daí
o tê-las englobado nos sindesmas. A gramática
especulativa medieval regressou à linha de Aristóteles;
e a lingüística ainda não achou melhor generalização.
Só há duas espécies de vocábulos essencialmente
distintos, nitidamente opostos: a categoria do "nome"
e a categoria do "verbo". O nome da coisa e o nome do
processo. (Cf. Meillet, Ling. génér. I. 175).
Epicuro Gargétio, 341-270, foi
fisicista a seu modo, interpretando com psicologia a relação
natural entre o nome e a coisa: em vez de a colocar entre esta
e aquele, o que via era uma conveniência entre o vocábulo
e a idéia da coisa, a representação dela
no sujeito. Esse entender de Epicuro vinha trazer resposta a uma
objeção outrora formulada por Demócrito,
ao dizer que se o nome era uma voz imposta à coisa então
não devia existir diversidade de línguas. Agora
ficava explicado que a diversidade de índole das gentes,
implicando diversidade de representações e impressões
no sujeito, importava com isso a diferença vocabular. Epicuro
achava que os nomes foram dados às cousas espontâneamente.
Assim discutiam os filósofos enquanto não
chegava a hora do florescimento gramatical, hora não mais
ateniense mas alexandrina, uma hora menos que helênica,
pois era apenas helenística.
Fisicistas e nomicistas, assim como depois analogistas
e anomalistas, iam levados, em caminhada de imaginação
regressiva, ao problema das origens. Dizemos imaginação
por que não sabiam traçar roteiros; e não
sabiam traçar roteiros porque lhes faltou a perspectiva
bidimensional, a visada espácio-temporal. Fizeram muita
etimologia, mas não sabiam fazer etimologia, por
lhes faltar um método, embora não lhes faltasse
alguma intuição, ao perscrutarem "naturalidade"
fisicista ou "convenção" nomicista, na
simbiose
do vocábulo e do termo, segundo a angulagem da primeira
tendência, que era filosófica - ou ao examinarem
a força de constância, analógica para uns,
anomálica para outros, segundo a angulagem da tendência
posterior, que era filológica e de teor gramatical.
Já se pode considerar como boa a receita
etimológica de Platão, quando ensina que basta desbastar
os vocábulos de seus incrementos para que se chegue às
formas primeiras. Aí porém se torna discutível,
ao dizer que estas formas primeiras são mimemas das
coisas, isto é, suas imitações fonossêmicas.
Esta tese fisicista, plantada na raia das origens,
na tangente do humano e do divino, foi o que ressoou melhor, na
comum inteligência e imaginação do problema.
Vindo o cristianismo, ela encontrou harmonias naquele passo do
Gênese em que se narra como Deus concedeu ao homem o dom
de nomear as coisas.
Partindo dessa idéia das "origens"
é que Crisipo Solense afirma a sua tese da "anomalia"
ou desassemelhação: o vocábulo era imagem
da coisa, mas imagem que o uso destemperou, desigualando a primeira
proporção. Também se funda em "origens"
a doutrina de Aristarco Samotrácio, apóstolo da
"analogia", isto é, da consemelhação
que rege a estrutura vocabular.
Vê-se, pois, que a reflexão helênica
se preocupou de um cuidado pertinaz, o cuidado de descobrir qual
era o "verdadeiro" valor, o "étimo', a "etimologia"
das palavras. Na verdade, a motivação vocabular
é uma necessidade psicológica do homem, o qual prefere
os vocábulos "claros", os vocábulos "procedentes".
São vocábulos que podem ajuntar, espontaneamente,
em regimes constelares, com centros de gravidade criados pela
tradição e cotidianidade da vivência. No léxico
de uma língua, há muito efeito de forma e sentido
que é fruto de fatos da ambiência constelar. São
fenômenos de "morfização", e de
"semantização", reações
intervocabulares de procedência etimológica.
O vocábulo imotivado, improcedente, escuro,
é um vocábulo solto no campo, facilmente sujeito
à fantasia das atrações constelares, da incorporação
cognatícia, aos primeiros sintomas de parecença:
O latim periculum significava
"tentativa"; seria uma formação
do tema per - com a mesma idéia "passagem"
que se encontra em por-ta ou por-tus.
Era, pois, uma edição de vocábulo opaco,
embora a lucidez de per-/através, mas somente
como prevérbio ou promorfema. Ora, a consciência
da língua, sentindo o valor de perire/perecer,
viu em "periculum" a mesma idéia de "perire",
como se o tema fosse o de "ire", como se o "per",
em vez de tema, fosse um promorfema: per-i-klom.
Houve atração constelar, fixando-se periculum
com o sentido de "perigo". O vocábulo préiamar
ou maré cheia é uma sintagmação
de plena mar. Devido à evolução
plena-préia e à passagem de "mar",
posteriormente, ao masculino, o vocábulo préiamar
ficou escuro: isso provocou a atração motivadora
"praia", de que resultou a variante popular praiamar.
Atualmente, apesar de "telefone" e "telegrama",
já há os que "vêem" no vocábulo
televisão uma soma de "tela" e
"visão".
A motivação é fator de importância
visível, de ação inesperada, pois varia o
modo de ser de cada indivíduo, com seu grau de densidade
marcadamente pessoal. Imagine-se o número de vocábulos
motivados e imotivados no léxico de um letrado, de um alfabetizado
e de um analfabeto. Pelo fato de a "improcedência"
descontentar o espírito, trabalha em todos a motivação,
buscando-a cada um onde lhe sopra o entender. Portanto é
concluir bem, na história de uma língua, o concluir
pela importância da etimologia
popular, com toda a sua riqueza de elemento exegético.
Admitido que a etimologia
metódica é disciplina recente, pode ver-se que estão
fazendo falta os dicionários de tal etimologia popular,
sobretudo um dicionário que filtrasse, em dois milênios
de mediterraneidade, a variada motivação do patrimônio
ocidental. Não se fez outra etimologia
senão a popular, desde Platão, a quatro séculos
antes de Cristo, até o padre Bernardo de Lima e Melo Bacelar,
dezoito séculos depois de Cristo. Do ponto de vista "etimológico",
os dois se encontram e valem, seja quando Platão explica
"alétheia" "aér", seja quando
o padre Bacelar explica "anágua" "borboleta"
"esbirro". Para Platão, "alétheia"
é uma "ále théia" (caminhada divina)
e "aér" é quase como "aéi
rhei" (o que sempre flui). Para o padre Bacelar, "anágua"
é "saia de andar nágua" "borboleta",
inseto que tem barba" "esbirro", o que tem birra
e prende". Cf. artigo de João Ribeiro sobre o padre
Bacelar.
Os filósofos gregos, os filósofos
alexandrinos, os jurisconsultos e gramáticos romanos, a
Idade Média, a Idade Moderna, tudo fez etimologia
e dessa etimologia. Começou cedo e continuou cedo. Abrindo
Aulo Gélio ou Quintiliano, lá depõem sobre
etimologias de Varrão, de Nigídio Fígulo,
de Labeão, etc. São coisas deste jaez: "avarus
qui avidus aeris est", "soror quod quasi seorsum nascitur",
"frater quasi fere alter", "lepus quasi levipes",
"vulpes quasi volipes" ... Vieram depois Isidoro Hispalense,
a Escolástica, o Humanismo, Ménage, Morais...
A cristalização vocabular, fenômeno
do estado de língua, estado interior de Primo,
cria impedimentos à visão da fala, a
expressão toda do homem. A fala é uma síntese
que a compreensão mental, desfazendo em análise,
desfaz em língua. Esvaziado o molde frástico
e esbatida a melodia que se esvai, cresce no espírito,
sob a ação da energia reminiscente, a imagem do
vocábulo.
Além disto, o vocábulo tem uma outra
preeminência histórica, na dieta
evolutiva da fala e da língua, pois o homem anterior, o
homem arcaico, deve ter começado a sua fala por "palavras-frases",
àquela hora matutina e medrosa, a hora lúdica e
plástica de sua passagem da alalice à loquência.
Nesse tempo, a mensagem de Primo a Secundo
não passava de vozes frasticamente autônomas,
banhadas na sintaxe do gesto e da presença teatral. Na
medida em que a fala progrediu, foi crescendo o alcance representativo
da fonação, o efeito associativo das interações,
a facilidade alusiva das convivências, até que mensagens
complexas pudessem caber numa estrutura feita só de vozes,
numa sintaxe de palavras.
Entretanto, insista-se, a individuação
vocabular continuou guardando preeminência psíquica,
no estado de lembrança ou estado interno, que
é o estado de língua. Por isto, na hora em que um
agrupado humano atingiu maioridade racional, atingindo a sua língua
alturas de plasticidade e abstração, quando lhe
tenta explicar a natureza, então lhe avulta em frente o
vocábulo, todo carregado de idade e mistério. Nele
se tem perdido a curiosidade dos que tem buscado nele o segredo
da linguagem. Na verdade, a língua é um pólo
negativo e oculto da linguagem, sendo a fala o pólo exibido
e positivo. Apoiar-se muito no vocábulo, que é apenas
um dos elementos da fala, postergando os demais, é servir-se
de pouco esteio. Um dos elementos da fala, disse mal: é
apenas um dos elementos da palavra, esta sim, um dos elementos
da fala. É que me envolveu, por um instante, a confusão
vulgar da rotina, que estuda o vocábulo em estado
de língua, estado de léxico, tratando-o como se
estivesse tratando da palavra, que é o vocábulo
"efetivo" na fala.
O engano veio de longe e sem apelo. Foi assim na
experiência ocidental. E assim foi na experiência
oriental dos índios. Balbuciavam ainda os gregos de Platão,
na sua primeira curiosidade gramatical, num tempo em que a "vyakárana"
ou análise do sânscrito era um fruto maduro, cristalizada
em aforismos tersos e mnêmicos - as quatro mil "sutras"
de Pánini, um gramático índio do IV século
antes de Cristo. É sabido que a lingüística
metódica nasceu de um cruzamento entre a curiosidade germânica
e o conhecimento do sânscrito, estudado em Paris, antes
de 1808, por Frederico Schlegel, e entre 1812 e 1816, data de
sua "conjugação compa rada", por Franz
Bopp, o criador da gramática histórica. De então
em diante, o lingüista ocidental tem admirado a minudência
fonética
e mórfica, a exaustão classificatória de
Pánini.
Entretanto, lá também, está
no vocábulo o objeto de tal estudo. A "vyakárana"
índia é um lento labor do zelo religioso, um cuidado
sacerdotal em manter os "vedas" ou conhecimentos de
sua infinita liturgia, principalmente o "veda" tríplice
do louvor do canto e da prece - Rigveda, Samaveda, Yajurveda.
O Rigveda, sozinho, conta quase onze mil versos.
Essa inspiração religiosa da curiosidade
gramatical faz lembrar uma outra causa da preeminência vocabular:
a força de simpatia
que têm os vocábulos, na crença do homem pré-aristotélico:
ritualmente aplicado, o vocábulo tem efeitos mágicos.
Tem força para repelir o que se evita ou atrair o que se
quer, dotado que é de energia apotrópica e endotrópica.
Não admira, após dois milênios
de rotina, que a emenda seja ainda fraca: ainda impera a autonomia
vocabular, na angulagem de nossos métodos de pesquisa.
É verdade que vai esquecendo o império neogramático
das leis e vêm surgindo, tardas, tímidas, a semântica
e a estilística; enquanto isto prolifera, feraz, a lingüística
do vocábulo, entre uma forte vegetação de
fonéticas, fonologias e fonêmicas. Por contingência
e limites da especialização, abre-se ante os olhos
do inspetor de paisagem a difícil perspectiva de um labor
fracionado e miúdo, porventura rescendendo a bizantino.
Há no campo uma ausência de linhas gerais; há
nas almas um anseio de amplitude, uma saudade panorâmica
das abrangências do século XIX.
3. ANALOGISTAS E ANOMALISTAS
Demócrito
Abderita havia oposto uma dificuldade aos fisicistas do V século:
se o vocábulo é imagem fonossêmica, emanação
da coisa, não devia existir polionímia - variedade
de nomes para a mesma coisa - e nem homonímia, variedade
de coisas para o mesmo nome.
A resposta conhecida veio no III século
a.C., formulada pelos estóicos, por Crisipo Solense, 280-204,
corifeu da anomalia. Disse ele que o vocábulo é
uma cópia da coisa mas que a volubilidade humana acaba
delindo os traços da relação, torcendo linhas,
criando "anomalias" ou desassemelhações.
Então se vêem nomes masculinos com desinência
feminina, pluralícios com valor singulativo, verbos médios
com sentido ativo.
Nossa gramática tradicional é obra
dos estóicos, aos quais deve autonomia e estrutura, após
aquela fase embrionária de mero departamento da cogitação
filosófica. Ordenaram-lhe os elementos de sua maioridade,
abrindo-lhe as portas da filologia alexandrina. Varrão
tinha consciência dessa autonomia emergente, conforme se
vê na sua gradação da pesquisa etimológica,
segundo uma accessibilidade possível ao vulgo ou só
ao gramático ou somente ao filósofo, pois é
dos filósofos e não dos gramáticos estudar
a legítima etimologia.
Para o Estagirita, a "ptosis" ou "casus"
era qualquer deflexão de uma forma primeira, fosse declinação
conjugação ou derivação. Por exemplo,
a partir da forma "equus" eram casos dela as formas
"equa" "equile" equitare" etc.: gerava-se,
pois, mediante toda e qualquer apomorfemia.
Com os estóicos. a idéia de ptose
ou caso tomou os limites hoje conhecidos, referindo-se,
portanto, ao endereço funcional dos vocábulos declináveis.
Entretanto, a diferença declinar/conjugar
é mais recente. Diz por exemplo Quintiliano: que os
meninos saibam declinar nomes e verbos. Nomina declinare
et verba in primis pueri sciant(I. O. 1.4.22). Ainda no século
XVI ensinava o Brocense que declinação é
coisa que se entende melhor por uso do que por um definir: "quod
sit declinatio apud grammaticos, melius iam usu intelligitur quam
definitione explicatur" (Minerva 1.8). Uma nota
de Perizônio, feita um século mais tarde, declara
que, já no tempo de Carísio e Prisciano, declinação
por excelência era a nominal: "sed tamen iam illius
et Charisii et Prisciani tempore declinatio kat exokhén
notabat flexionem nominis in suos casus, ut nunc plerumque
accipitur."
O conceito de "caso" gerou o conceito
antitético de inflexibilidade, aplicado pelos estóicos
à conjunção, vocábulo indeclinável
ou aptoto, considerados ptóticos o nome, o artigo e aquelas
formas que, sendo verbais, também se declinam, chamadas
em grego metokhé (participação)
e chamadas em latim participium, nome que é um
simples decalque ou diasse miação do outro, o grego.
Como se vê, estava superada a divisão
ternária de Aristóteles, nome verbo liame. Crescia
a população dos elementos da fala. Mais tarde, meado
o século segundo antes de Cristo, à hora do apogeu
alexandrino, Aristarco Samotrácio catalogará oito
partes do discurso.
Ao considerar o ónoma como sujeito
- em face do verbo, como predicado - Aristóteles não
o opôs a outras deflexões funcionais, não
o considerou ptose ou caso. Mas isto fizeram os estóicos,
discriminando o caso reto/orthé ptôsis e os
casos oblíquos/plagíai ptóseis.
(Tem havido curiosidade sobre as expressões
"caso reto" "caso oblíquo". Figurou-se
uma hipótese de materialização didática
por que o mestre exibia ao discípulo um estilete em posição
vertical, casus rectus, e em sucessivas posições
inclinadas, casus obliqui. A imagem é sugestiva
e consentânea com o logicismo arstotélico. Lembre-se
o fato de Quintiliano lhe chamar prima positio ao nominativo.
É o caso do sujeito, é uma forma preeminente, ponto
de partida do discursivo e ponto de referência para as outras
formas, formas inclinadas).
Também nos verbos foi sensível a
contribuição metódica dos estóicos.
É sabido que a noção cronestética,
assinalada na morfia verbal, é indício de madureza
racional. Por isso ela costuma faltar em língua de homem
pré-aristotélico, afeito à significação
concreta de processos individuados, sensível a discriminações
aspectivas. É uma hora de fala demonstrativa, descritiva,
minuciante, espacial, inabstrativa, atemporal, fraca em projeção
de passado e futuro. Com o subir do sol, vai aquecendo a cronestesia
e a língua vai criando morfemas temporais. Foi assim com
os dialetos indeuropeus. Na conjugação latina, por
exemplo, a filtragem temporal teve de instalar-se num binômio
aspectivo claramente vincado pelo contraste entre formas de ação
acabada e formas de ação inacabada. É o binômio
infectum / perfectum, assim chamado em terminologia tomada
a Varrão, primeiro observador do contraste.
Se é tal a, marcha do homem e de sua expressão,
não admira que seja deficiente a cronestesia
gramatical dos antigos. Eé motivo de encômio os estóicos
haverem assinalado o valor aspectivo de confrontos como baino/vou
bébeka/fui ébainon/ia ebebékein/fora.
(Em Platão e Aristóteles, a noção
do verbo tanto se agarra à de predicado, que ao verbo assemelharam
o adjetivo, posteriormente subclassificado como "nomen"
- nomen substantivum nomen adiectivum. Aristóteles
viu no verbo o matiz temporal, mas não o classificou nem
vincou. Para ele, um verbo no presente é verbo. Mas um
verbo no futuro ou no imperfeito é um caso de verbo, uma
ptôsis rhématos.)
Outra precisão dos estóicos na abrangência
aristotélica foi a que impuseram ao chamado "sindesma",
atribuindo-lhe fronteiras de um conectivo.
(Exceto o nome e o verbo, o mais no Estagirita
eram sindesmas. Esta classificação ampla é,
sem dúvida, prudente. Para além da nobre classe
nocional arrebanhou num redil a inquieta plebe relacional,
uma espécie de proletariado instrumental, de pouca
certeza no ofício e de manifesta mobilidade secessiva.)
O conceito fisicista de relação natural
entre o vocábulo e a coisa, vimos que Epicuro o deslocara
para o de relação entre o vocábulo e a impressão
da coisa no sujeito. Os estóicos, insistindo numa discriminação
aristotélica, separaram o vocábulo e o sentido (o
signo e o conteúdo) chamando a um de significante/sémainon
e ao outro de significado/semainómenon. Vê-se,
por aí, como estava desde antigamente preparada a teoria
sêmica de Saussure.
Era o ano 315 antes de Cristo, quando Zénon
Citieu começou a pregar no Pórtico Pintado, a Stoa
Poikíle, em que ainda ressoavam pela ágora os ecos
do vozeio
falangiário, em sintonia
com o trote marcial do bucéfalo macedônio, em que
um bárbaro do Norte atravessara a divina morada de Palas,
rumo a Leste, inculcando-se mensageiro de um helenismo pré-fabricado,
um helenismo que se desmanchou em helenística, na receita
dos diádocos. Era uma hora muito consoante com doutrinações
como a de Zénon, mais semítica do que ática,
feita de incitações de fraternidade e de desprendimento.
Teve por seus naturais batedores aos diádocos, fossem atálidas
ptolomeus ou selêucidas. Foi fácil de alastrar o
estoicismo, progredindo com ele, na medida em que se espalhava,
o impulso gramatical acima referido. Acumulavam-se elementos para
um corpo de doutrina, sem que surgisse a gramática, apesar
de ensinada, com a retórica e a dialética, desde
os sofistas, no século V, sob a forma cativa da angulagem
filosófica. Finalmente começara, com os estóicos,
a marcha da autonomia. Por toda a parte havia rétores e
filósofos, mas ainda não existia o gramático.
Faltava chegar uma hora que ia continuar faltando, pois depois
do filósofo e do rétor veio primeiro o filólogo
alexandrino.
De Zenódoto Efésio, no III século
a.C., até Apolônio Díscolo, no II século
p.C. nutriu Alexandria aquele estudo de que nasceu, como fruto,
a gramática ocidental. Na competência de cultura
entre os diádocos, venceram os Ptolomeus, que fizeram de
sua capital o foco da helenística. Fundaram o Museu, centro
intelectual meio academia e meio universidade, bem como a notável
biblioteca, onde se foi acumulando a produção de
todo o mundo grego. Ficava a maior no quarteirão régio,
de nome Bruqueio, enquanto a menor ficava no Serapeio, o número
de seus volumes, crescendo ao longo de três séculos,
já houve quem os calculasse em um milhão.
Alexandria brilhou, clareando o Mediterrâneo
por três séculos ptolomeios, numa intermitência
de luz ritmada no vário arbítrio e destino dessa
dinastia macedônia, um dia imposta ao Egito pelo meteoro
chamado Alexandre Magno. Foram três séculos de apostolado
helenístico, numa dieta
de reis que iam passando à História sob cognomes
alusivos como Salvador Sóter, Amigo de seu irmão,
Philadelphus, Benfeitor/Evérgetes, Amigo de seu pai/Philópator,
Amigo de sua mãe/Philométor, Ilustre/Epíphanes...
até chegar ao Flautista Aulétes, o qual, mais do
que músico, foi pai daquela Cleópatra por quem César
e Antônio se perderam, como em sorvedouro da virilidade
romana.
Na livraria da cidade, librários célebres
dirigiam a pesquisa: instauração textual, imersão
histórica, explicação mitológica,
interpretação estilística, resenha léxica.
Numa cidade cheia de gregos, judeus, nativos e vindiços,
foram erguendo, para as letras, um padrão de casticidade
ou pureza vernácula, um "hellenismós"
aticizante, por cuja pauta Zenódoto emendava Homero. Zenódoto
Efésio é logo o primeiro dos grandes librários,
tendo florescido por volta de 280. Depois dele, e com a data de
seu fastígio, podem citar-se: Eratóstenes Cireneu,
234, também matemático, tendo calculado com
boa aproximação a circunferência da terra:
Aristófeves Bizantino, 195, Aristarco Samotrácio,
170.
Classificando e avaliando, constituíram
um cânon de autores modelares, com 5 épicos, 3 jâmbicos,
5 trágicos, 14 cômicos, 4 elegíacos, 9 líricos,
10 historiadores, 10 oradores - num total de 60 nomes, entre os
quais Homero, Hesíodo, Ésquilo, Sófocles,
Eurípides, Epicarmo, Aristófanes, Menandro, Alemano,
Alceu, Safo, Píndaro, Anacreonte, Heródoto, Tucídides,
Xenofonte, Demóstenes, Lísias, Ésquines.
Quando o estoicismo chegou a Alexandria, vigorava
ali, sob o calor recente do mestre falecido em 322, o influxo
peripatético de Demétrio Falério e de Calímaco.
Parece que o ambiente não fora acolhedor
para a doutrina crisipiana da anomalia, segundo a qual
o Solense inculpava as intemperanças da contingência
humana de haverem arruinado a justeza original dos vocábulos.
Além disso, dois séculos de busca filosófica
nenhuma convicção tinham conseguido em favor da
receita platônica que mandava desmanchar vocábulos,
desbastando-lhes excessos, em marcha de recessão etimológica,
para se chegar ao prota onómata ou nomes primeiros,
mimemas da essência, marcados de energia fonossêmica
e justeza original. O mesmo Platão sentira a debilidade
de sua experiência etimológica, desarmada como estava
de meios hábeis. Isto revê da malícia que
põe Socrates nas etimologias do Crátilo, etimologias
que de certo correspondiam à lição vulgar
do tempo.
Armada de outra possibilidade material, iniciada
em rotina diferente, a atitude intelectual de Alexandria pôde
ser outra, ao cristalizar a tese da analogia, criando
um pólo por onde se determinar o sentido de um novo eixo
de oposição, feito da antinomia "anomalistas
e analogistas". Estava exausto, por então, o interesse
"fisicismo e nomicismo".
Lingüisticamente, houve progresso de marcha,
na marcha que vai dos sofistas do século V, via acadêmicos
peripatéticos e estóicos, até à plenitude
alexandrina em fins do II século. Por ela se foi obtendo
melhor contacto e mesmo intimidade com o objeto, graças
a uma tendência mais rasteira de exame empírico,
em vez dos altos vôos abstratos do primeiro ensaio. Seu
roteiro define-se por uma passagem da filosofia à filologia.
Ora, lingüisticamente, não é bem que se comece
a filosofar antes de "filologar". No começo
era o verbo e o verbo se fez fala e só pela fala se pode
ir ao verbo.
Primo, na figura do homem arcaico, é um
homem que sai de si e vai ao mundo, antes por um impulso de comunhão
com ele do que por um desejo de o contemplar. Impressionado com
o mundo, que é todo povoado e simpático, vai armando
a filosofia do externo, do sensível, procedendo como os
físicos jônios, admirados com a fluidez de um todo
que passa - um todo não de seres mas de deveniências.
(É o mundo a que está voltando a física moderna
do procedimento, desancorada agora da substância e do bimilênio
aristotélico.)
Esse Primo que vai ao mundo é o primeiro
Adão. O segundo, porém, é um que não
sai de si, que fica em si e traz o mundo para dentro de casa,
reduzido a conceitos, catalogado em seres. É o homem aristotélico.
Apenas acontece que ainda não acertou com o método
e o lugar das coisas: enquanto para o Aquinatense o espírito
assimila o real, que está fora - para Descartes o espírito
traz em si o real e o reflete na fala, ao passo que para Kant
o espírito fabrica o real e o projeta fora de si.
A fala, expressão de Primo, é uma
projeção geográfica de seu mundo interior,
mundo difícil de cartear, imagem infusa de duas realidades,
crase do externo e do interno, pela síntese reativa do
eu e do não-eu. O homem, como ser de razão, é
animal categórico, plasmador de universais. Postos na base
da fala, os universais baseiam a estrutura da gramática,
geração que se cria na análise da fala, cujos
elementos ela ordena como valores de língua.
Na fala, pois, é que se vê a língua.
O exame sincrônico das falas de um grupo revela a figura
de um estado de língua. O exame diacrônico de falas
sucessivas, testemunhadas por escrito nos monumentos do grupo,
revela a geração dos estados de língua. Este
exame é tarefa da filologia, enten dida como estudo de
toda expressão vocabular, plebéia ou nobre. É
a filologia, que fornece à lingüística os elementos
de suas deduções, ao fornecer-lhe os elementos da
fala. A filo logia é preparatória e a lingüística
é conclusiva. A filolo gia é empírica, a
lingüística é técnica: abrange, aproxima,
reduz, interpreta, no espaço e no tempo. A filologia prepa
ra a matéria-prima, a lingüística pesquisa
a forma em busca da essência comum e necessária,
que é fundo de expressão do próprio ser do
homem. A lingüística é mais filosofia, enquanto
que a filologia é apenas filologia. A prudência alexandrina
esteve nisto: fez filologia.
4. ANALOGIA
Quem olha a língua toma atitude causal,
como um filósofo; quem olha a fala toma atitude modal,
como um filólogo. Arrazoando logicamente, teimando no esforço
de desvendar a essência, a filosofia desgastara energia
não na língua mas sobre a língua. A filosofia
alexandrina, turbada embora por preconceitos da tradição
filosófica, teve o bom senso de se dar ao paciente exame
do texto: e o exame da estrutura revelou a gramática, desde
a hora em que se começaram a impressionar com a mesmice
iterativa das formas vocabulares, erigida em princípio
que tomou o nome de "analogia".
Analogia é assemelhação. É
armar "b" segundo o modelo "a". É declinar
"rosa rosae" por "hora horae". É afeiçoar
os sintagmas, no ato da fala, segundo padrões
catalogados nos fatos da língua. Analogia é
decalque, submissão de forma nova a fôrma velha;
é a força regente dos estados de língua da
língua.
A analogia
é intradialetal ou interdialetal. A analogia
intradialetal é a norma, sobretudo nas línguas fechadas,
por falta de convívio internacional. Por analogia
o creaturo imita o já criado, segundo o princípio
da economia reducente, por força de uma residuação
iterativa. É uma força niveladora, capaz de desarestar
formas importadas, na moenda vernácula, impondo-lhes aquela
ciumenta harmonia doméstica, sem a qual não caberiam
na boca do povo. Confrontem-se com os respectivos originais os
vocábulos "futebol" "esporte" "bonde",
hoje tão nossos. Veja-se ainda, para exemplo, um exemplo
dado por Quintiliano: são paroxitônicas, em latim,
as formas oblíquias de nomes do tipo orator oratóris.
Importado o nome grego Castor Cástoris, foi
vencida a sua exdruxulice, na boca do povo, que dizia "Castóris":
"inde Castórem, media syllaba producta, pronuntiarunt
quia hoc omnibus nostris nominibus accidebat, quorum prima positio
in easdem quas Castor litteras exit" (Quintil. 1.5.58).
A analogia
interdialetal é homodialéctica ou alodialéctica,
próxima portanto ou distante. Exemplo da primeira são
as incorporações latinas de moldes itálicos
vizinhos. Exemplos da segunda vêem-se na adoção
de processos helênicos. É sabido que Cícero
ajudou a vulgarização de abstratos latinos do tipo
"qualitas", ao cunhar esta resposta vernácula
do grego poiótes. Isso não passa de decalque
ou "diassemiação". É um empréstimo
semântico: o "termo" de um nome alodialéctico
vem habitar um "vocábulo" de estirpe nativa.
Mais do que isso é a "transvocabulação",
empréstimo integral, em que vocábulo e termo alodialécticos
se incorporam no acervo doméstico.
Aristarco Samotrácio, 220-143, foi o campeão
alexandrino da analogia. Viu nela uma assemelhação
apomorfêmica, uma reincidência de sufixos e desinências.
Aulo Gélio definiu-a como um declinar por semelhança
que, em latim, alguns chamam de "proporção":
analogia est similium similis declinatio quam quidam latine
proportionem vocant. (N. A. 2.25). Quem o disse,
no II século p. C., Aulo Gélio, havia lido Varrão.
Varrão ouvira Estilão, o Estilão, o Trácio
e o Trácio ouvira o Samotrácio. Cumpre lembrar que
"declinação" aqui há de entender-se
no amplo sentido aristotélico
de ptose: abrange declinação, conjugação
e derivação.
A gramática tradicional é um mero
e exaustivo conato
analógico, uma teimosa redução por semelhança:
padrão dos nomes declináveis, padrão dos
nomes conjugáveis, padrões genéricos, padrões
numéricos, padrões da formação vocabular;
e como as formas não cabem todas em quadros mais ou menos
pré-estabelecidos, depois se alinham as exceções
que confirmam as regras. Foi assim há mais de dois mil
anos, desde o primeiro gramaticógrafo ocidental, Dionísio
Trácio, repetido por Donate, Prisciano, Villadei, Valla,
Nebrija, Manuel Alvares, Lancelot-Arnauld, A. Pereira de Figueiredo,
Condillac, Morais, Eduardo Carlos Pereira. A gramática
tem sido um esforço de sistemação analógica,
uma peleja metódica a sangrar em vícios da sazão,
em preconceitos que romperam séculos.
Dionísio Trácio ou Varrão,
etimólogos da linha fisicista, impedidos pela sugestão
da conveniência fonossêmica, desintegravam palavras,
lidando com um notável flexionismo declinatório,
sem que pudessem chegar, por exemplo, a um conceito como o de
"semantema" e "morfema". Adstritos ao contraste
de duas línguas apenas, desprezando sistematicamente o
falar bárbaro, estavam travados, em tão subtil pesquisa,
pelas aderências míticas de um estado social imaturo.
Os antigos, se analogistas, viam a similaridade ou aequalitas,
produto da lei natural ou ratio. Pelo contrário,
se anomalistas, viam a dissimilaridade ou inaequalitas, um
efeito usual da consuetudo. Caso houvesse refletido em
que o uso procede por analogia, teriam buscado outra síntese
melhor, que não essa filtração antinômica
e sem base.
Mesmo assim andou a gramática, ancorada
em filologia, aliada à retórica, passando, através
de Donato, como ensino da arte de falar, até que a Idade
Média a transformou em verbalismo especulativo, mirando
não à fala mas à arte de pensar.
Menoscabando a escolástica, o Renascimento
ficou preso à idolatria do antigo, reeditando a velha teoria,
enquanto a renovação filosófica, teimando
no logicismo, veio triunfar em Port-Royal, ao passo que a proliferação
da exegese bíblica ia mergulhar no hebráico as origens
das línguas. Faltava o que veio depois: faltava a imersão
histórica do comparatismo boppiano, bidimensivo e referencial,
envolvendo os fatos da língua em coordenadas de espaço
e tempo.
5. ANOMALIA
Enquanto Aristarco Samotrácio, ca 220-143,
librário alexandrino, era campeão da analogia,
o seu coevo Crates Malota, librário pergameno,
era campeão da anomalia. Estóico e filólogo,
dirigia ele, na capital dos atálidas, o movimento cultural
que estes reis fomentaram, na célebre competência
de Pérgamo com Alexandria. Por volta de 170, indo a Roma,
de embaixada, o futuro Átalo II, enviado por seu irmão
e rei, Êumenes II, consigo teria conduzido o Malota. E este,
ali, tendo quebrado a perna, ficou mais tempo do que projetara.
Entretanto, longe de por enfados o perder, aproveitou-o nas lições
que dava à fervorosa curiosidade com que os romanos começavam
a descobrir a luz de Leste. Foi ouvido pelos Cipiões, inclusive
por um rapazinho chamado Públio Cornélio Cipião
Emiliano (o que arrasaria Cartago em 146), depois famoso letrado
e protetor de letras, centro de um grêmio intelectual celebrado
por Cícero e onde brilharam as figuras de Panécio,
Lucílio, Terêncio, Lélio.
Essa visita representa um marco miliário
para a arte gramática, pois ela entrou em Roma com a palavra
de Crates, se é verdade o que alega Suetônio: primus
igitur, quantum opinamur, studium grammaticae in urbem intulit
Crates Mallotes, Aristarchi aequalis.
O "anomalismo" de Crates, pois era estóico,
tinha base em Crisipo Solense. Mas o fato de ter sido chamado
a dirigir a escola dos atálidas poderia interpretar-se
como atitude opo sicionista. Pérgamo seria anomalista porque
Alexandria era analogista.
O "pergaminho" foi o lucro mediterrâneo
de tal rivalidade. A empresa atálida de criar na Ásia
Menor um centro ilustre de helenidade acendera ciúmes em
Alexandria. Como avultasse muito aquela concurrência bibliária,
um dos ptolomeus a golpeou pela proibição de se
exportar "papiro". Talvez tenha sido o V, o Epífanes,
que reinou de 204 a 181. Foi assim que Pérgamo se viu obrigada
a desenvolver a indústria de "charta pergamena"
- uma pele agnina ou vitelina, especialmente curtida para servir
de papel. A vantagem foi notável, pois sendo o "pergamenum"
mais espesso e resistente, capaz de aceitar letras nas duas faces,
ele veio facilitar o formato de "códice" do livro
atual, e a progressiva eliminação do rolo ou "volume",
que era a forma conveniente ao papiro.
Sob os efeitos preceptivos de nosso bimilênio
aristotélico, a palavra "anomalia" se tingiu
da cor que tem, assumindo dimensões de pecado ou irregularidade
grave. Isso foi um resultado do critério paradigmático,
ultimamente repelido em lingüística. O critério
metódico de hoje está pedindo que se estude o fato
por imersão histórica, sob perspectiva de tempo
e de espaço. Devemos aos neogramáticos o miúdo
exame com que estudavam as morfias, segundo a fidelidade de suas
tendências fonéticas ou segundo a emergência
de seus desvios, produzidos por influxo analógico ou procedência
mutuária.
O bom estudo é o que individua cada vocábulo
em ficha abrangente, biográfica, funcional, instruída
de informes normais bem como de informes peculiares, segundo as
contingências químicas do ambiente frástico,
pois só na frase, realizado em "palavra", é
que o "vocábulo" existe, persiste, muda, sob
influições de clima, revelando na marcha os sinais
de sua identidade. É uma ficha de notícia mórfica,
etimológica e semântica.
Não há por onde se falar em "regularidade"
ou "irregularidade", pois não há pontos
de referência canônicos, não há padrões
de plenitude. Não há "leis" como queria
o fisicismo
neogramático, mas apenas "princípios",
na matéria da expressão do homem. O que se dá
são atos de fala, em cada fase de uma seqüência
tradicional, produzindo fatos que se constituem em estados
de língua, estados sucessivos, possíveis de
caracterizar pela aparência, e de explicar pela gênese
social.
As chamadas normas da correção apenas
definem e consubstanciam o esmero expressivo do homem educado,
uma estilização, do gosto urbano, de fatos tão
fatos como os do falar despoliciado e espontâneo: tanto
é realidade um dizer "nós vamos à cidade"
como dizer "nóis vai na cidade".
Cada Primo tem sua língua, seu estado interior,
seu veículo de sintonia
com Secundo. Ele sabe que seu potencial não é privativo
e sim comum aos outros seres do grupo. Sabe por experiência,
mas não costuma refletir no caso. Nasceu e cresceu imerso
na língua, elemento de suas vivências bem como das
vivências do próximo. Tão natural e espontâneo
que lhe parece inato, quando na verdade a língua é
uma coisa que se adquire, pois inato é só o dom
da fala, a capacidade expressiva ou linguagem.
Quem quiser tombar um estado de língua há
de vigiar e filtrar, metodicamente, as falas de cada indivíduo
do grupo; então conseguirá um resultado aproximativo,
nunca exaustivo, pois ninguém pode medir o conteúdo
de uma pessoa humana, quanto mais de um grupo social.
Aqui estará dizendo o neogramaticista: "Essa
língua espontânea, descontada de preconceitos urbanos,é
regida por leis, as "leis fonéticas". Resposta:
- Não são leis e sim tendências. A língua
é uma habituação insensível de talvegues
fonéticos, uma "informação" analógica
do indivíduo pelo seu meio, corado de princípios
e imaginações do homem. (Voltaremos ao assunto.)
Não eram dos antigos tais pontos de vista.
Partindo da "justeza natural" dos nomes, buscaram nos
vocábulos, sem os achar, valores preexistentes. Preocupavam-se
mais com o encadeamento lógico de suas deduções
do que com os aspectos da fala. A progressiva autonomia instituída
pelos estóicos veio possibilitar a visada empírica
do filólogo alexandrino; entretanto, a eficiência
que conseguiram promanou de uma realidade não prevista:
o teimoso estudo do texto. Confrontavam, examinavam, criticavam,
escolhiam, suprimiam, restauravam. Assim como o pastor Saul, quando
saíra à procura de asnas a que o pai o mandara,
primeiro encontrou um reino, assim aqueles rebanheiros alexandrinos,
querendo preconceitos, acharam a "analogia", na constância
iterativa dos morfemas, na mesmice modelar da "ênklisis"
ou "declinatio". Atrapalhava-os, de certo, a rebeldia
das exceções, a oscilação optativa
de alguns valores sufixiais. Ora, foi justamente por aí
que entraram os filólogos de Pergamo, declarando que as
palavras não se conformavam por "assemelhações"
e se faziam meramente pelo "uso". Os nomes primeiros
prôta onómata, se haviam tido justeza natural,
por uso haviam perdido a parecença, caindo em desassemelhação:
anomalia.
Estendido a Roma, o debate continuou, ecoando ainda,
por exemplo, em Aulo Gélio, meado o segundo século
depois de Cristo. Fora aplicada ao latim uma teoria armada em
grego.
Entretanto, analogistas e anomalistas, vivendo
uma hora verde, estavam despreparados para um conveniente equacionamento:
faltava-lhes referência, visada espácio-temporal,
imersão histórica, análise elementar. Ambos
tinham razão e não tinham.
A prudência eclética do romano, quando
enfrentava a subtileza helênica, fez sincréticos
a dois especialistas como Varrão e Estilão, divididos
entre o anomalismo tradicional do círculo cipiônico
e o analogismo, diretamente explicado pelo Trácio ao Preconino
e por este ao Reatino.
Também eclético foi Cícero,
analogista
na hora de agradar a César, mas anomalista por seu amor
ao tradicional e talvez por pendor nobiliário de "homo
novus" a completar, na forte simpatia
das elegâncias cipiônicas, a pobreza de sua historicidade
genealógica.
César, entretanto, foi analogista
e de tal disposição que escreveu um tratado sobre
a matéria. Não o moviam, como a Cícero, fervores
aristocráticos de noviço, mas uma calculada vontade
de "descer", de se nivelar pela praça, demagogicamente.
É lícito, pois, imaginar que seu analogismo podia
ser atitude: mais um jeito de tomar posição do outro
lado, de se confirmar no esquema plebizante da manobra mariana,
já que o anomalismo grassava era nas alturas senatoriais
da granfinagem estóica e cipiônica. Ao escrever o
De analogia, bem como a história de suas campanhas,
fica parecendo que se deu às letras só para exibir
um gênio múltiplo, como quem se valia de um recurso
instrumental, ele, capitão estadista e escritor, empenhado
em tudo que lhe servisse ao plano de afeiçoar politicamente
uma Urbe e um Império.
Em meio a tal meio e tempo, Lucrécio é
uma figura singular. Tão singular que a tradição
alegada por S. Jerônimo lhe passou atestado de loucura,
a quem ousara compendiar o epicurismo, genialmente, e lançá-lo
em rosto à severa gravidade estóica do romano.
Em matéria de língua, ao passo que
os demais intérpretes se perdiam nas ínvias elucubrações
do fisicismo, Lucrécio expõe uma doutrina muito
chegada às concepções modernas, tendo seguido
a um mestre cuja intuição descobrira no vocábulo,
não a coisa, mas nossa imagem da coisa a nascer, espontaneamente,
como "voz", das impressões do objeto.
Depois de ter esboçado a marcha "hominizante"
da espécie, num quadro que até parece obra de um
darvinista do século XIX, Lucrécio imagina as origens
da língua. (Cf De rerum 5.1028). Ali
diz que a natureza levou o homem a emitir suas vozes e que a utilidade
modelou os nomes das coisas: utilitas expressit nomina rerum.
Lembra que o menino, por incapacidade de falar, infantia
linguae, aponta às coisas com o dedo, do mesmo jeito
por que o vitelo investe com chifres que ainda não tem
e o cachorro de leão, com dentes e garras por crescer.
Mais adiante pergunta se é demais admitir que o homem,
na posse da voz e da língua, tenha nomeado as coisas variamente,
conforme suas várias impressões: si genus humanum
cui vox et língua vigeret/ p;ro vario sensu varia res voce
notaret. O cão ora rosna ameaçando, ora enche
de uivos o espaço, ora entreladra carinhoso. Se o animal
é assim, quanto mais o homem...
A anomalia é fruto de persistências
residuais ou de efeitos alodialécticos. Todo estado de
língua é uma sincronia geral, incrustada de persistências
diacrónicas e marcada de promessas de novas diacronias.
A persistência revela-se em cortes geológicos ou
verticais. A promessa, em manifestações eruptivas
de superfície. A persistência é um resíduo
de es tados anteriores, cujo tipo de arcaíce a busca identifica.
São jeitos que já não conseguem afinar com
a dinâmica geral: são formas erráticas, talvez
singulares, passíveis de eventual atração
analógica, fáceis de desaparecer ou mudar, quando
não agarradas ao valor cotidiano ou quando impugnadas por
concurrência inovadora. Tome-se para exemplo o verbo esse:
já no estado romano ou cicerônico, representava ele
um mo mento anterior, um momento pré-romano, atemático,
infes tado de persistências, residuais. No correr da dialetação
românica, pagou juros de sua esquisitice, como se vê
no es tado pós-românico. O infinitivo "esse",
por atração orbitária, foi nivelado com os
outros infinitivos, como prova o francês "être"
e o italiano "essere"; ibericamente, em vez de mudar,
desapareceu, vencido pela concurrência inovadora de "sedêre",
que lhe tomou o conteúdo semântico, representado
no português "ser".
Além da residuação, também
se produz anomalia pelo alodialetismo vocabular, nos empréstimos.
Toda transvocabulação implica importação
tingida de algum valor estranho à genuinidade vernácula;
um nome de morfia aparentemente tão aceitável como,
por exemplo, "madame", proferido à francesa mostra
cores estranhas ao nosso idioma, sujeitas à retificação
incorporante do uso. Mede-se o grau de incorporação
pelo grau de resistência das anomalias aos efeitos assimilatórios.
Historicamente, a perfeição da intimidade pode oscilar,
de acordo com a sociabilidade interdialetal do grupo; em latim,
a crescente familiaridade com o grego permitiu que a urbanidade
romana restaurasse o traço anômalo, em vocábulos
popularmente admitidos antes, no tempo de Plauto: "drachma"
é restituição letrada de "drácuma".
Uma forma deixada a seu destino acaba tratada como as outras nativas,
sujeita aos efeitos comuns da evolução: o nome "paronychium"
era um vocábulo estranho para os ouvidos romanos, incapazes
de receber nele a idéia "unha", que está
no grego. O romano, vendo a coisa e vendo o "inchaço"
("panus" em latim) mudou o "paronychium" em
"panaricium". Usou de metátese que nem carecia
de motivação, pois o povo é capaz de transformar
"phalanx" em "palanca" e "palanca"
em "labanca" e "alavanca". Refere-se Quintiliano
à tendência para dizer Palaemo Télamo
Plato, por não ser latino o final -on. O
grau da intimidade admissiva desses três nomes vê-se
no léxico, ao registrar "Palaemon" cujo "n"
denuncia a posição liminar, ao lado da vacilação
"Télamo/ Télamon" e da completa naturalização
de "Plato".
Entre nós, o dizer "uma telefonema"
acusa a presença do esforço retificador, nivelando
uma anomalia de procedência mutuária e técnica.
Este sintoma revela um alastramento primarizante, uma invasão
vertical, de presença cada vez mais sensível na
fala urbana, ensejada pelo crescimento veloz dos agrupados citadinos.
Houve até um maldoso que classificou de "efeito ptb"
a esse proliferar de prolações proletárias,
como "diguinidade" "téquinica" "adevogado"
e quejandas.
A luta pela redução do anômalo
é uma luta permanente, sob o comando da analogia, a grande
força motivadora, que simplifica e nivela
Tinha toda razão o Samotrácio e quase
nenhuma o Malota. Todo regime de língua é analógico.
Deus fez o verbo, mas o homem fez a analogia: primo die Deus
fecit verbum, secundo die homo fecit analogiam.
6. PELA ANALOGIA
A analogia
é a lógica da fala. Tiveram de respeitá-la
os neogramáticos, estes neofisicistas do século
XIX, quando criaram o código das "leis fonéticas",
impressionados com a mesmice tendencial do fluxo articulatório.
Estavam possuídos de um entusiasmo natural ao primeiro
espanto, embora o sistema fonatório de uma língua
não passe de uma lenta habituação de talvegues,
uma longa modelação inconsciente e insentida, fruto
de paciente exercício. Entretanto, mesmo criando "leis",
dividiram seu império com a analogia.
Se a analogia
é um sistema, a anomalia é uma isenção
de sistema.
Em geral Primo fala mecânicamente. Há
contudo uma hora em que toma consciência do que
diz ou vai dizer. Esta hora é de analogia, hora em que
vocábulos e idéias se agregam, se arrebanham, sob
a compulsão das semelhanças, semelhanças
realmente vistas ou simplesmente imaginadas.
A evolução dos estados de uma língua
deixa uma figura de esquema que o lingüista pode traçar.
Foi no exame de tal esquema que a sistemática do século
XIX sobreavaliou as peculiaridades da produção vocal,
descobrindo-lhe transcendentalidades que erigiu em lei, engrossando
com o matiz da necessidade a meros hábitos de prolação,
um simples adestramento do aparelho vocal, pacientemente conformado
em talvegues
fônicos, já que um aparelho se pode adaptar a qualquer
língua. Um pretinho senegalês, infante, se criado
em Paris, mamando e vivendo a língua da cidade, acabará
falando francês parisiense.
O que há realmente é uma capacidade
vocálica, um dom humano, uma possibilidade original
que o exercício modela em talvegues
por onde fluem os vocábulos. É alguma coisa parecida
com a velocidade rotativa do disco, sob a pressão da agulha
fonográfica, a estriá-lo de sulcos e, nos sulcos,
de talvegues
sônicos. Na fala do homem, primeiro é a capacidade,
depois uma habituação, uma capacidade psicofisiológica,
realizada mediante exercício articulatório, sob
a pressão de vivências e estesias - uma pressão
plástica, lúdica, simbiótica, fantástica.
A instalação do regime articulatório, no
indivíduo, em lugar de ser olhada como produção
"necessária", sob o efeito de "leis",
há de ser vista como fruto espontâneo do mimetismo,
da adestração habitual, sob uma dieta
de intervenções que fogem ao conceito de lei: imaginação
criadora, enganos de trânsito, desvios do talvegue.
As leis que poderia haver, no processo, não serão
leis da língua, e sim da psicologia, leis da vida humana.
A diferença entre o racional e o irracional
está em que o irracional se adapta a seu mundo, ao passo
que o racional, como ser psíquico, adapta a si o mundo,
embora o ser biológico viva sob leis. A fala é expressão
do ser psíquico, o ser que adapta o mundo, elaborando princípios
de que a língua é um reflexo, definida como
estado interno da capacidade expressiva, como sedimento analítico
dos atos da fala. Língua e fala regeneram-se, no decorrer
das vivências, de modo que a fala é uma "realização"
da língua e a língua é uma "virtualização"
da fala.
Há uma economia mecânica da
fala e nela é que se quis ver leis. No fundo, porém,
o poder que a regula é o da "economia psíquica",
segundo um regime que corre entre dois pólos: suficiência
expressiva e ênfase expressiva, a mera clareza
ou a expansão afetiva. Nessa área de oscilação
entre a clareza e a afetividade é que se realizam fenômenos
de economia chamados de assimilação, dissimilação,
metátese, haplologia, epêntese, síncope, etc.,
todos eles contidos em limites de talvegues
pré-estabelecidos, todos eles sob a constante regência
da analogia. A analogia
é estática ou dinâmica. A analogia
estática é uma analogia
tranqüila, analogia
de presença ou catálise, que preserva as harmonias
similares. A analogia
dinâmica é uma analogia
ativa, a promover a química das transmutações,
quando um vocábulo, cruzando campos de gravidade de outros
vocábulos, deprende emanações de semelhança.
Ou quando um vocábulo mutuário, portador de sintomas
estranhos, abre seu contraste anomálico ante a imagem do
que podia ser, configurada por um espontâneo sentimento
da língua, segundo uma analogia
geral. São imprevisíveis, nas intersecções
orbitárias, o desprendimento de emanações
similares e a ação da gravidade, pois tudo se passa
num planetário mental que é o mundo interior de
Primo, todo sujeito a coeficientes de psiquismo e fantasia. Quanto
aos vocábulos mutuários, de fisionomia alodialéctica,
a analogia
trabalha par vesti-los de fonemia vernácula, tanta mais
tratados quanto mais admitidos, numa intimidade maior ou menor,
conforme seja o ingresso doméstico ou apenas vestibular.
O ingresso vestibular é deferente, apoiado naquela urbanidade
comum a pessoas de mais convívio, armadas de alguma experiência
bilíngüe: em vez de transformar, ele apenas afeiçoa
o vocábulo. Tomando ao grego o nome "gymnásio"
adapta-o em "gymnasium". O ingresso doméstico
é nativista: o povo, afeito a seu talvegue
fônico peculiar, sem leitos de emergência para fonemas
estranhos, mói o vocábulo na sua máquina
de vernáculo, desarestando-o de modo que caiba na boca.
O nome "gymnásion" então se faz "guminasium"
gu-mi-nasium ; ("sport" se faz "esporte").
O século XIX erigiu as leis fonéticas
em causa mecânica da evolução morfológica.
Na verdade, esta causa está nos deslizamentos de talvegue,
nos desvios do leito de fluência do fonema. A constância
de tal deslizamento atende, na evolução, a um limite
de contigüidade: não foi de um salto que o nominativo
plural latino chegou a "lupi". Atravessou uma gradação
de vizinhanças, como; lupoi lupei lupi. O português
"céu" está no extremo de uma fieira de
deslizamentos, a partir de "caelum", imaginável
assim: kailu keilu kelu k'elu tcelu celu céu séu.
o francês "roi" admite a escala: rege
rei rói róe rwé rwá.
Uma fieira evolutiva configura um esquema de tendências
dosadas pelo talvegue,
num leito cavado pela habituação prolatória,
com áreas marginais para os desvios que produz o uso, o
tempo e o espaço. A pesquisa revela, no teor da contigüidade,
uma progressão tal que se pode concluir pela existência,
em quem fala, da vontade e intento de "repetir" analogicamente
a forma aprendida. Ninguém pensa que está
alterando uma forma, e sim que a está reproduzindo.
Quem altera não o percebe. Foi assim que, dos séculos
V a X, 500 anos de fermentação românica, sem
que isso fosse notável no momento, acabaram transformando
a fisionomia do latim, sob os efeitos de uma evolução
precipitada por impactos aloglóticos, impactos geradores
de mutação, portadores de mais energia que a simples
energia evolutiva.
Cada estado de língua tem um sistema de
talvegues
em que o vocábulo proferendo, ou cabe nele e flui normal
ou tem arestas anômalas e promete luta com a analogia. Da
luta provirá inteira submissão do corpo estranho
aos limites do regime, vitória da analogia, ou resultará
instalação de novo talvegue,
vitória parcial da anomalia. Seja b a aresta
anômala e seja a o talvegue
nativo. Ou b se reduz ao leito, cabendo em a,
ou b cava para si o talvegue
a'.
Num estado de língua castiço, à
hora das homogeneidades grupais, vale a redução,
pois o sistema é mais travado, rico em talvegues
exclusivos. Os estados de língua mestiços, apropriados
à inovação, deixam-se atingir de influxos
alodialécticos, influxos de outros talvegues,
inseridos no uso por força de um bilingüismo de origem
política (domínio estrangeiro) ou de origem social
(imitação do estrangeiro).
O sistema de talvegues
da língua A não coincide com o da língua
B, nem mesmo em dois estados homodialéticos e parecidos,
como no português e no espanhol. Mais se assemelham na forma
escrita do que quando falados. À hora da prolação,
surgem diferenças auditivas em vocábulos visualmente
iguais.
Talvegues não se mutuam, como acontece aos
vocábulos. Talvegues criam-se.
A dificuldade das arestas anômalas varia
de sistema a sistema. Pode ser maior para A do que para B, segundo
exige maior ou menor esforço de economia analógica.
Teoricamente, nos estados de língua castiços,
a mudança provém dos deslizamentos, da evolução;
enquanto que nas horas mestiças é que aparecem mutações,
inclusive instalação de outros talvegues.
O deslizamento, como fenômeno de contigüidade,
é um fenômeno de franja, progressivo e inconsciente.
Pode ser observado espacialmente, como, por exemplo, o "t"
provincial mineiro da palavra "frete". Apresenta ele
uma fisionomia palatizada, em clara promessa de, no futuro, se
chegar a "freche". Entretanto, ninguém pode garantir
que progressão vai continuar e que o termo previsível
será alcançado. Por aí se vê como é
impróprio o conceito de "lei fonética".
Historicamente, a realidade indeuropéia
revelou uma inquieta existência, cheia de fusões,
confusões, reações, superações,
numa complexa dinâmica de fatos. Não é possível
extremar a evolução, da inovação,
o mero deslizamento e a criação.
Pairando como o espírito sobre as águas,
influíram dois princípios: um é o da economia
psíquica, taxando, em seu registro, ora o "quantum"
necessário à mera clareza, ora o "quantum"
necessário à abundância afetiva. O outro é
a analogia, a grande niveladora automática das
massas vocabulares.
7. OS GRAMÁTICOS
Muitos foram os chamados e poucos
foram os eleitos do tempo, na família dos antigos gramaticógrafos.
A obra da maioria naufragou sem remédio. A quem observa
a estatística da salvação, no volume da produção
intelectual romana, esse naufrágio não admira, pois
em quase 800 nomes catalogados não chega a 150 o número
dos que o tempo respeitou em parte maior ou menor. Para cima de
600 ficaram completamente perdidos.
Da safra gramatical romana o que os séculos
não devoraram está granjeado no Corpus Grammatricorum
Latinorum ex recensione Henrici Keilii, Lipsiae, sete volumes
publicados entre 1856 e 1880. Ali se acham, como em arca de Noé,
os salvados do grão dilúvio: Carísio, Diomedes,
Prisciano, Probo, Donato, Sérvio, Cledônio, Focas,
Aspro, Vitorino, Bássio, Fortunaciano, Mauro, Sacerdote,
Rufino, Teodoro, Escauro, Longo, Agrécio, Martírio,
Albino, Dositeu, Méssio, Frontão.
Na ordem do tempo e segundo méritos avaliados
em influxos perseculares, avultam, na arte gramática, os
nomes de Dionísio Trácio, Varrão, Apolônio
Díscolo, Donato e Prisciano.
Retirado Varrão a seu plano especial de
letrado, sobram dois manualistas gregos e dois manualistas latinos.
A primeira gramática da tradição
ocidental é a do Trácio. A primeira gramática
latina, decalque da grega, é a de Palêmone / Quintus
Rhemmius Fannius Palaemon, quando meava o primeiro século
cristão. Fica pois desocupado o século de Cícero,
embora lhe não faltassem muitos profissionais, cujos nomes
aparecem no meio de mais de 20 referidos por Suetônio, 70-160,
no seu tratado De grammaticis. Hoje são nomes
vazios, mais ou menos sonoros, como Caio Otávio, Lampadião,
Quinto Vargonteio, Sérvio Clódio, Lutácio
Dafne, Aurélio Opílio, Valério Catão,
Labério Hiera, Leneio, Quinto Cecílio Epirota. Este
último foi o primeiro que ousou dar lições
em latim e adotar Vergílio como texto escolar.
A observação que do Epirota faz Suetônio
"primus dicitur latine ex tempore disputasse" é
notícia que merece reparo e relevo, pois relembra situação
que se tem repetido, na humanidade.
Um grupo social de nível pré-aristotélico
geralmente se acha num estado em que só a língua
dele merece nome de língua, se comparada com outras. As
línguas "banto", numa vasta área africana,
são faladas por tribos que mostram seu indício nesse
mesmo vocábulo, porquanto "banto" significa "homens".
Entre nossos tupis e guaranis, as línguas que falavam eram
denominadas "avanhenhém", o que significa "fala
de homem", ou "nhenhengatu", o que significa "fala
boa". Tais classificações louvam o próprio
mérito, excluindo o alheio.
Vencido o estágio das sociedades fechadas,
abrindo-se o grupo a influxos de fora, então, se encontra
em dois planos de vida e de expressão: o plano vernáculo
do cotidiano e o plano das assimilações exógenas,
de veículo aloglótico. É uma hora em que
o nativo, estudando belezas de outro idioma, entanto se admiraria
com a hipótese de ter de estudar a língua materna,
pois isto é coisa que a gente sabe e soube desde menino.
Quando uma ordem régia de 1759 determinou, em Portugal,
que se estudasse o português junto com o latim, nas aulas
de latim, a reação vulgar recebeu mal a medida,
que então não foi cumprida e ainda provocava atitudes
negativas no século XIX.
De como seria o estado de cousas no tempo de Ênio
pode imaginar-se pelo que ainda era no tempo de Cícero:
após ter soletrado as XII Tábuas, passava o menino
às lições do "grammaticus" não
para aprender latim, mas para aprender grego.
É uma pesquisa por fazer a que demarque
a marcha ascensional daquela aplicação gramática
ao latim. O comum era estudar-se o grego e os autores gregos.
Até os autores latinos, quando explicados, eram explicados
em grego. Maduro o primeiro século cristão, vemos
sinal de progresso numa informação de Quintiliano,
30-96, ao declarar que o menino, sabendo ler, estava na hora de
passar à gramática. Não importa, continua,
se primeiro à grega ou à latina, embora convenha
que seja à grega: nec refert de graeco an latino loquor,
quamquam graecum esse priorem placet. 1.4.
No tempo de Sila, os intelectuais preferiam escrever
em grego. Por isso, um dos méritos de Cícero foi
ter erguido sua língua às alturas abstrativas com
que foi sendo capaz de conter o "logos" helênico.
Na idade clássica romana era como na idade
clássica européia. Camões, Vieira, Bernardes,
notáveis vernaculistas, não estudaram o português
"escolarmente", pois na escola se estudava o latim.
Cícero, César, Vergílio, não estudaram
o latim escolarmente, pois na escola se estudava o grego. Um trabalho
como o De língua latina, de Varrão, não
era resposta a algum apelo de utilidade escolar, mas a uma curiosidade
e gosto de erudito. Era talvez um estímulo e convite a
que se aplicasse ao vernáculo o que se fazia com língua
estranha. Era uma situação parecida com a de nossos
velhos gramáticos, Fernão de Oliveira e João
de Barros.
Se a curiosidade gramática entrou em Roma
durante a primeira metade do II século a. C., com a lição
de Crates Malota, a "arte gramática" só
entrou depois de Dionísio Trácio, praticamente no
I século a. C. No fim dos acontecimentos, a teoria que
o mundo antigo nos legou é obra de dois manualistas alexandrinos:
Dionísio Trácio, em morfologia, no segundo século
a.C. e Apolônio Díscolo, em sintaxe, no II século
p. C.
8. DIONÍSIO, 170-90
Dionísio Trácio / Dionysios Thrax
não era trácio, era alexandrino. O apelido foi herança
que o pai lhe deixou. Vivendo entre 170 e 90, foi
discípulo de Aristarco e foi professor de nomeada, principalmente
por lhe deverem os pósteros a primeira gramática
da tradição ocidental.
Estando a 300 anos de distância da miúda
codificação de Pánini, o gramático
índio das quatro mil sutras, o tratado do Trácio
não passa de breve ensaio, de balbuceio infante. O que
dele temos não daria 400 linhas de composição
corrente ou 15 páginas de edição comum. Mas
todos lhe gabam a síntese ordenada, a boa filtragem desse
fruto de três séculos de esforço abstrativo,
iniciado um dia na visão metafísica dos jônios,
dos acadêmicos, dos peripatéticos, melhormente aplicada
à língua pelos sofistas, pelos estóicos e
pelos filólogos.
A primeira coisa que se há de reconhecer
como bem avisada e feliz é a sua definição
de gramática, entendida como sendo um conhecimento
empírico da língua corrente. É a que
convém aos manuais escolares, após dois milênios
de império, dois milênios de repetição
glosada, parafraseada, adaptada. Ela foge, sabiamente, a uma tendência
hodierna de confundir a gramática da língua, vista
como arte, com a ciência da língua. Como arte, serve
ao exercício expressivo, um conhecimento empírico
adquirido na escola. Como ciência, é lingüística,
estética, filosofia, e adquire-se por reflexão madura,
especializada.
A atualidade dos conceitos do Trácio pode
medir-se nas definições das partes do discurso.
Ei-las, em substância:
ónoma / nome: elemento declinável,
significando pessoa ou coisa, geral ou particular;
rhêma / verbo: elemento con jugável, significando
um fazer ou um ser feito;
metokhé / particípio: elemento que participa
do verbo e do nome;
árthron / artigo: elemento declinável,
posto antes ou depois do nome (artigo e relativo);
antonymía / pronome: elemento empregado no lugar
do nome, indicando uma referência pessoal ou específica;
próthesis / preposição: elemento
que pre cede outros, sintaticamente combinado com eles, e que
entra na formação vocabular;
epírhema / advérbio: elemento inflexionado,
especificando de preferência o verbo;
syndesmos / conjunção: elemento conectivo
entre as partes do pensamento.
Como pode concluir-se, ele enxergava tanto quanto
nós, em matéria de definir as espécies gramaticais.
Num estado de língua cheio de morfemas individuados, de
endereços funcionais móveis e vivos, era natural
que os antigos se deixassem tomar pelas aparências sensíveis,
pela declinabilidade. Em meio a tanta fissibilidade
vocabular, até admira que não tenham chegado
a uma conceituação de morfema e semantema. É
que lhes faltou o comparatismo que libera, e mais objetividade.
Estavam presos a uma escura sugestão de sacralidade, fruto
secreto do inevitável fisicismo
com que olhavam os vocábulos.
Tendo adotado um ponto de partida impuro, sem que
dele saísse até agora, a ciência gramatical
continua procurando limites entre as partes do discurso. A matéria
é sem paz nem constância pois é matéria
do homem e de sua expressão. A impureza ou vício
da angulagem provém de uma confusão, até
hoje não bem desmanchada, entre "vocábulo"
e "palavra", entre língua e fala.
O desacordo começa no determinar das partes:
quem se limita à divisão aristotélica de
"nome" "verbo" e "sindesma" parece
que não achou tudo, mas também parece que achou
muito quem se estende ao número oito. Nele tem sido mais
constante a gramática, fiel à octotomia alexandrina,
embora recatalogando as espécies. Em lugar do artigo, ausente
no latim, Rêmio Palêmone havia introduzido a interjeição.
O comum de hoje abrange substantivo, pronome, verbo;
adjetivo, advérbio; preposição,
conjunção; interjeição.
No fim do século XVI, a gramática
de Francisco Sanches Brocense admitia três vozes flexivas
- nome, verbo, particípio - e três vozes inflexivas
- advérbio, preposição, conjunção.
Ao todo, seis partes.
Continua sem remédio a fraqueza lindeira
das demarcações, o migracionismo funcional, o proteísmo
semântico dos vocábulos. Rastreie-se, por exemplo,
na evolução indeuropéia, a figura dos pronomes,
das preposições e das conjunções.
Um estado de língua é um estado interno,
um estado de análise, um estado virtual, oposto à
fala, que é síntese, atualização,
exibição. Na língua, vocábulo e termo
estão dissociados. Na fala, associados. Na língua,
são valores mentais inexpressos. Na fala, valores expressos,
valores de comunicação. E a gramática vive
pelejando para descobrir definições que possam abranger
os dois estados, definições simples de coisas dobres.
9. VARRÃO
A Dionísio Trácio, que ouvira em
Alexandria ao Samotrácio, ouvira em Rodes Lúcio
Élio Estilão Preconino / Lucius Aelius Stilo Praeconinus
que depois, em casa, fora ouvido por Cícero e por Varrão
/ Marcus Terentius Varro Reatinus.
Estilão Preconino, ca 154-74, homem afinado
com o século, já era homem que ia a Leste, afim
de ali temperar a inteligência e a emoção.
Viveu no século II a. C., que é o século
da epifania
helênica, o século da grande manifestação,
preparo da grande páscoa do século I. É uma
ascensão de luz que tivera arrebol na infiltração
sul-itálica do século III.
Desde o século V, num tempo em que o romano
estava ainda imerso no caldo grave e denso de sua concretice,
já soprava no mar um vento helênico de abstração,
um vento semeador de metafísica e de imaginações
estéticas. Demorou muito, no campônio do Lácio,
a curiosidade das letras gregas: serus enim graecis admovit
acumina chartis, Hor., Epist. 2.1.161. Foi u'a marcha discreta,
em ritmo com a expansão imperial: pelo mapa da península,
na medida em que descia a vis romana, ia subindo o espírito,
enquanto iam sendo subjugados Tarento, a Sicília e Cartago,
272, 241, 202. Os juros da expansão vinham na luz do sul
e a luz do sul vinha na auréola dos primeiros poetas: são
eles o tarentino Lívio Andronico, ca 284-204,
o campânio Névio, ca 270 199, o apúlio
Ênio, 239-169, o calabrês Pacúvio,
ca 220-130, o cartaginês Terêncio, 185-159.
A plenitude do sol começou depois da guerra
de Aníbal, com a batalha de Zama em 202, e das guerras
macedônicas, vencido Filipe V por Flaminino, em 197, na
batalha de Cinoscéfalas / Cynoscephalae e vencido Perseu
por Lúcio Emílio Paulo, em 168, na batalha de Pidna
/ Pydna.
No calor dessa plenitude é que se aqueceram
dois corifeus da ação romana de então: o
vencedor de Pidna e, depois dele, seu filho, o que destruirá
Cartago em 146 e esfomeará Numância em 133, o conhecido
Cipião Menor, Públio Cornélio Cipião
Emiliano / Publius Cornelius Scipio Aemelianus, ca 185-129.
Lúcio Emílio Paulo / Lucius Aemilius
Paullus é a gravidade romana em pessoa, aliando-se à
leveza helênica. Nele, o que é romano é simples,
severo, probo, ritual, capaz de fazer o que fez, - arrasar o Epiro
porque o Senado assim determinara. Nele porém o homem helenizado
foi capaz de ser brando com Perseu, de quem quis para si tão
só a biblioteca. O que é romano, embora sabendo
grego, dirige-se em latim aos vencidos. O que é helenizado,
peregrina pelos "santos" lugares da Hélade, escolhendo
filósofos e artistas para domésticos seus e pedagogos
dos seus.
O nome de Públio Cornélio Cipião
Emiliano, tomado pelo filho de Emílio Paulo, foi devido
ao fato de ter passado a neto adotivo do Africano Maior. Entretanto,
sob o influxo da virtude paterna, conseguiu escapar ao temperamentalismo
orgulhoso da família adotiva e pôde viver belamente
rodeado de estóicos, reconhecido como centro de uma atividade
intelectual celebrada por Cícero, naquele cenáculo
que a História denominou "Círculo dos Cipiões",
engrandecido por homens como Lélio, Políbio, Panécio,
Pacúvio, Lucílio, Terêncio. Começa
neles a garantia de que o legado mediterrâneo permanecerá,
com a sobrevivência do homem aristotélico, embora
a diluição helenística, embora, como germe
no fruto, a corrosão parasitária do asiatismo.
Do ponto de vista do estilo, estava sendo preparada
a contenção discreta de Lucrécio, a colorida
plasticidade vergiliana, a densa leveza de Horácio, a luculenta
elasticidade ciceroniana, luzes de um esplendor secular, que sucedeu
à brejeirice plautina, salsa e forte, à primária
expansão aliterante do grande Ênio. Há uma
distância de maciezas que se esbatem ou de arestas que se
exibem, entre os efeitos fonossêmicos de Vergilio e certas
infantilidades tautofônicas do poeta tricórdio, certas
brinquedos seus como: O Tite tute Tati tibi tanta tyranne
tulisti. Que nos perdoe o vate, autor de outros versos tão
belos, mas isto até parece garotice de algum modernista
brasileiro de 1924 ou de algum neótero de 1940!
Enquanto Andronico, Névio e Ênio iam
modelando, pela estética dos poetas imitados, a memória
da grandeza romana, o povo, misturado a escravos e libertos, ia
recebendo na fala os efeitos gregos, enquanto o aristocrata ia
aprendendo, na intimidade, o que o pedagogo ensinava aos filhos,
depois mandados a Leste, em viagem de aperfeiçoamento.
Foi esse polimento da rudeza, essa "erudição",
que afeiçoou clima propício à curiosidade
gramatical, ao cuidado teórico da arte de dizer, tão
grata a um povo de estadistas, afeito, de muito antes, às
atrações do agórico ou forense, às
participações emotivas de uma oratória indígena
e empírica. Ao contato da ordenação racional,
Roma importou a ars grammatica.
Em escala de discípulo a mestre, a tradição
oral regressa de Varrão a Estilão, de Estilão
a Dionísio, deste a Aristarco e de Aristarco a Aristófanes.
Assim fica abrangida, entre o Reatino, o Preconino, o Trácio,
o Samotrácio, o Bizantino, uma tradição direta
que vai do ano 27 a.C., em que faleceu Varrão, até
o ano de 257 a. C., em que nasceu Aristófanes. São
duzentos anos de transmissão conferida, cheia daquele fervor
de iniciação que o tempo admitia, para vaidade do
homem que se aparta e distinque, perdido embora no rebanho ignaro
da plebe indiferente.
A voracidade do tempo, na digestão monótona
das eras, consumiu a obra gramática daquela idade, apenas
lhe sobrevivendo alguns nomes, como vimos. Por sorte nossa, também
escaparam 6 livros (de um tratado de 25) sobre a língua
la tina. Era o De língua latina, de Varrão.
Marcos Terêncio Varrão Reatino, 116-17,
estudara em Roma com Estilão e em Atenas com Antíoco
Ascalonense. Foi polímata e polígrafo, tendo escrito
mais de 600 volumes onde se continha o conhecimento da época,
tratando em prosa e verso, de história, geografia, retórica,
jurística, agricultura, gramática, etc. Escritores
que vieram depois nele se louvam muito. Aulo Gélio está
cheio de sua autoridade, em assuntos de língua. O que nos
ficou de De língua latina, como um salvado precioso,
opinião remota de uma gramática sem quase testemunhos,
vive distribuído em pílulas referenciais, na pesquisa
dos doutos, em obras como o Dicionário de Ernout
e Meillet.
Os comentadores assinalam que Varrão foi
discreto, ao vazar o latim nos moldes gregos: aceitou a analogia,
mas vincou os efeitos anomálicos do uso. Mostra agudeza
de lingüista ao observar que o gênero tem formas discriminadas
para nomes de animais importantes e cotidianos como equus
/ equa, mas se limita a uma forma, quando não há
tal importância, como no exemplo corvus. Frisou
o contraste dos vocábulos declináveis - nome verbo
particípio - com os indeclináveis - conjunção
preposição. Caracterizou o sexto caso ou caso latino,
consagrado depois com o nome de ablativo. Notou, na forma verbal,
o contraste infectum / perfectum, ou seja o contraste
do processo em marcha, infeito, com o processo acabado,
perfeito.
Quando traduziu "aitiatiké ptôsis"
por "accusativus casus", dizem os intérpretes
que se enganou em tal diassemiação, ligando o sentido
à idéia "acusar", em vez de à idéia
"causa", pois é o caso da paciência, caso
do efeito "causado" pelo agente do processo.
Dionísio Trácio estudara fenômenos
intravocabulares, morfologia, examinando o vocábulo em
si, fora da frase, fora das relações intervocabulares.
Do Reatino, sabe-se que além da relação entre
o vocábulo e a coisa (cf. fisicismo/nomicismo) e além
da inflexão vocabular, também estudou o vocábulo
na frase, abrangendo a etimologia,
a morfologia e a sintaxe.
Esse ternarismo divisivo continuou respeitado ainda
no século XIX: a gramática latina de Joaquim Alves
de Sousa, cuja segunda edição é de 1858,
contém etimologia, sintaxe e prosódia.
É a mesma a divisão do Novo Método do
padre Antônio Pereira de Figueiredo, na edição
de 1872, atualizada pelo presbítero "Francisco Rodríguez
dos Sanctos Saraiva". Tanto Sousa como Saraiva diziam estar
seguindo Burnouf, Quicherat, Lhommond, José Vicente Gomes
de Moura e outros mestres do século.
O serviço de incorporar a sintaxe na rotina
gramatical não foi obra de Varrão, porém
sim de uma manualista ale xandrino do II século p. C.,
Apolônio Díscolo, a três séculos de
distância do Trácio. Díscolo, além
de sistemar em base mais metódica a obra do Trácio,
estudou a sintaxe, tendo escrito a mais completa gramática
do tempo antigo. Do que ensinara fez incorporação
latina, entre os século V e VI, o gramático Prisciano
Cesariense.
Varrão não era um gramatista ou litterator
ou ensinador de primeiras letras. Nem era um grammaticus
ou ensinador de segundas letras. Era um letrado, um erudito,
um homem clássico, amigo de Cícero. Fora pompeiano,
segundo o pendor da gente bem ante as inquietações
demagógicas de César. Mas, como Cícero e
tantos outros, também foi envolvido no perdão vencedor
do grande artista político, e convidado por este a organizar
a primeira biblioteca pública de Roma. Assassinado César,
Marco Antônio e Otávio berganharam Cícero,
no leilão do encontro de Módena, em 43. Varrão,
porém, homem de letras, pôde continuar jornada por
muitos anos, até 27 a. C.
10. A TRAÇA DO SÉCULO
Dizia o poeta que o século é "traça
que medra nos livros feitos de pedra". Se é traça
que tanto pode, não podiam resistir-lhe bem os livros de
papel. Ficaram destruídos, de Varrão a Prisciano,
cinco séculos de gramática latina, afora as amostras
da recensão keiliana. Com essas amostras se desenha a figura
do que ela teria sido, mediante informações de Cíceros,
Quintilianos, Suetônios, Gélios, mediante um quadro
da mentalidade romana, do progresso de fermentação
do "efeito oriental", ao passo que a virtus antiga
se diluía, semânticamente, na virtus christiana,
e a estrutura do Império, esvaziada de alma, parecia
aguardar, na posição de esqueleto, as ventanias
bálticas venturas.
No plano da majestade que sonhara, César,
100-44, in cluíra a cultura e a "urbanitas",
vista esta com o sentido que lhe dera Cícero, ao opô-la
à rusticitas: era um modo social, marcado de seu
timbre civil, uma elegância cidadã que amadurava,
uma resposta latina ao casticismo que Alexandria filtrara com
o nome de "hellenismós". Roma, entretanto, por
mais que se afinasse em escrúpulos, fora incapaz de resistir
à pressão do que imitava, incapaz de transfundir
na língua nativa a pletora
"ideal" que recebia: Catulo, 84-54, apresenta uma proporção
de 10%, de grecismos. Vergílio, 70-19, 14% nas Bucólicas.
Pérsio, 34-62, 20%. É uma progressão
significativa.
Com toda a sua plenitude, com todo o seu espírito
de suficiência nacional, faltara a Roma um lastro indígena
do que encontrara na Grécia: a intuição do
"logos" como princípio racional do universo,
a visão do "ethos", na expressão da beleza
moral e intelectual, o sentido do "pathos", na emoção
estética do mundo. Era um patrimônio mediterrâneo,
um patrimônio que, percebido, não se evita. Contrariando
ou favorecido, entrou em Roma como luz por espaço aberto.
Catão lutara contra, mas César lutou a favor: premiara
com cidadania a médicos, rétores, gramáticos
e dialéticos. Planejara abrir no Forum Iulium não
um mercado de gêneros mas um mercado de idéias, quando
incumbira a Varrão de lhe organizar a biblioteca.
Mas César, por outro lado, afirmava a romanidade
de Roma. Se no tempo de Sila, o intelectual romano preferia escrever
em grego, César e Cícero fundiram o melhor latim
da prosa nacional, rivais que ficaram no juizo dos séculos
- Cicero, abundante e persuasivo - César, limpo e claro,
simples e bom. César pôde ter as duas glórias,
mas Cícero, após a falência de sua teimosia
política em favor de uma "ordem" superada, num
mundo insubmisso que a fermentação oriental desagregava,
tudo o que lhe ficou foi ter falado bem, foi ter conseguido instrumentalizar
o latim, para a prática dos doutos, fundindo nele a gratuidade
helênica, desbastando e adaptando. Aliviou o peso da concretice
vernácula, adensando por outro lado a fluidez subtil dos
filósofos e moralistas eleatas, jônios, pitagóricos,
socráticos, acadêmicos, epicúrios, estóicos,
cépticos.
Incorporando o helênico, o romano de então
procedia não como quem recebe mas como quem toma, cheio
de sobranceria. Pelos tratados do Arpinate pode ver-se como cediam,
resistindo, ante a vantagem intelectual do grego de outrora, sem
deixar de afirmar a madurez nativa, quer na continuida de original
do que lhes era seu, quer na reivindicação legatária
de uma cultura que os gréculos desacreditavam com a impotência
nacional. Psicologicamente, é possível discutir-se
a densidade desse menoscabo intelectual, pois o intelectual romano
vivia atento, como político, às oscilações
da opinião vulgar, ao juízo do povo eleitor. E o
povo eleitor, vendo o grego enxamear pela cidade, sob forma servil,
tinha aquele estreito juízo que a massa faz dos metecos,
num sentimento agravado pela solércia e malícia
do oriental, opondo-se como acinte, à lenta gravidade romana.
Já se disse "arranhe um russo que sob a primeira pele
se encontrará um mongol". Pois bem, sob o verniz recente
da urbanidade romana, estava a alma de um campônio latino.
Sob os efeitos do reagente alopsíquico,
a afirmação de romanidade mostrou um dos seus índices
no casticismo idiomático. César, por exemplo, além
de escrever latim puro, fez-se missionário da vernaculidade,
compondo o De analogia
e nele ensinando repulsa ao que não coincidisse com
a genuinidade doméstica, mandando evitar o novo como um
escolho: tamquam scópulum sic fugias inaudítum
et ínsolens verbum. (Cf. Aulo Gélio 1. 10).
Augusto, herdeiro de César, rezava por essa
mesma cartilha gramática, informa Suetônio. Cuidava
de ser simples e claro. Ridiculizava o preciosismo calamistrado
de Mecenas bem como o pedante arcaísmo de Tibério.
Querendo ser romano, chegava a ser plebeizante, preferindo simus
e caldus em lugar de sumus e calidus,
ou apoiando o sintagma frástico em preposições
que a elegância omitia.
Aliás, esse encolhimento da língua
sobre si era sintoma adjetivo, em Augusto, de uma atitude bem
mais substativa: a sua preocupação de restaurar
costumes avitos, num programa de repristinação em
que empenhou a sua vontade fria e branda, o seu calculismo temperado
e lento, convocando a inteligência romana, arregimentando
Vergílios na gloriosa e vã tarefa de relatinizar
um povo definitivamente infecionado com a peçonha oriental.
Também Tibério foi bom latino e bom
letrado grego, mas, diz Suetônio, escurecia o estilo com
exageros de afetação. Aprazia-lhe sobremodo a companhia
dos gramáticos. No Senado, abstinha-se do grego, a ponto
de se desculpar, certa vez, por haver empregado a palavra monopólio.
Recomendava, nos decretos, o vocábulo nativo e, faltando
este, a perífrase, contanto que se evitasse o grego.
Pelo exemplo dos três primeiros césares
pode imaginar se que não só o arbítrio deles
regia Roma: havia um forte regime gramático e a cidade
tomara o ceptro a Alexandria.
É do tempo de Augusto um mestre de seus
netos que, além de bem pago, chegara a alcançar
honras de estátuas. Seu nome é Vérrio Flaco
e escrevera um tratado sobre a signi ficação das
palavras, De verborum significatione, o qual Pompeu Festo
resumiu em 20 livros, dois ou mais séculos de pois, e Paulo
Diácono ainda compendiou, no século VIII, ao tempo
de Carlos Magno.
É do tempo de Cláudio, e autor de
"ars grammatica", Quinto Rêmio Fânio Palêmone.
Não adianta repetir nomes vazios. Partindo
de Varrão, através da idade romana, a busca de sobreviventes
vai encontrar, no quarto século, Élio Donato, mestre
de S. Jerônimo e de toda a Idade Média. Ia já
meado o século, tonalizado numa luz que foge, àquela
hora de entre lobo e cão, mais românica do que romana.
Com um século mais, chega-se a Prisciano Cesairense, ensinador
de gramática latina em Constantinopla, entre 491-518, autor
de uma obra em 18 livros, inspirada em Apolônio Díscolo,
autor que fazia 300 anos sistemara Dionísio Trácio,
autor que fazia 300 anos escrevera a primeira gramática
da tradição ocidental.
Somando morfologia e sintaxe, Donato e Prisciano
se completam, como se completavam o Trácio e o Díscolo.
Em meio a tanto naufrágio e sumiço, os dois encontraram
uma pervivência persecular gloriosa. Ocuparam de tal jeito
a Idade Média que os principiantes de gramática
eram chama dos de "donatistas" e, de Prisciano, foram
encontradas mais de mil cópias nas bibliotecas da Europa.
Romperam até as barreiras que o Renascimento começara
a opor à Idade Média e a substância da preceptiva
deles continua armando o corpo da gramática escolar: somos
a rotina de Donato e Prisciano.
No ano de 529, enquanto Justiniano fechava, no
Oriente, a última escola filosófica de Atenas, Bento
de Núrsia, no Ocidente, fundava a abadia de Montecasino.
Findara a idade romana, exaurida e pagã, fluindo como um
rio crepuscular para a idade românica, em trânsito
torvo e túrbido, castigado na pesada digestão da
bruteza nórdica. Após a primeira vez, que corresponde
aos tempos homéricos, novamente se encontravam, em crase
difícil, a força báltica e o espírito
mediterrâneo, temperado agora com o fermento do cristianismo.
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