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Lingüística e Filosofia da Linguagem
Livro Conceitos de Lingüística Fabular
Vida: 1957

ARS GRAMMATICA

 
 

Publicado na revista Kriterion. Vol. IX, n.°s 37-33. 1957. Republicado em Conceitos de Lingüística Fabular. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

 

DÍVIDA

Desde 1952 que estávamos devendo uma nota comemora tiva a uma gramática publicada em Lisboa em 1752: o Novo Método de Gramática Latina para uso das escolas da Congregação do Oratório, na real casa de Nossa Senhora das Necessidades, pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo, da mesma Congregação.

Assim como em Espanha foi preeminente, durante séculos seguidos, a primeira gramática latina dos tempos modernos, que é a de Nebrija, publicada em 1481, assim foram preeminentes em Portugal duas gramáticas sucessivas: a do padre Manuel Álvares, publicada em 1572, e a do padre Antônio de Figueiredo, publicada em 1752. Havíamos projetado celebrar-lhe o bicentenário, mas a realização foi sendo procrastinada. Entretanto, o ano de 1956 ainda se acha dentro da oitava de tão largo ciclo. Vai pois em tempo a homenagem de hoje, na qual associamos o Novo Método a uma latinista brasileiro bem mais moço do que o pe. Antônio Pereira de Figueiredo - o professor Ernesto Faria, cuja data qüinquagenária estão celebrando amigos e admiradores. Não tendo podido fornecer, na ocasião certa, uma contribuição da poliantéia que honrosamente nos pedira o professor Serafim da Silva Neto, ficou o nosso tributo esperando hora. Valha a vontade com que foi preparado, já que pouco valem estas informações mal informadas, a respeito da ars grammatica. É uma notícia que toca de leve, e com pouca certeza, nas origens da gramática latina e em sua história através da idade romana, românica e pós-românica, até os tempos de agora.


1. ETIMOLOGIA

A tradição ocidental da arte gramática tem sua origem conhecida, na filosofia grega. Desde o séculos sexto e quinto a. C., a inteligência helênica, meditando na etimologia do homem e do mundo, logo se achou em presença de uma realidade subtil: o fato do discurso, da intercomunicação mental. Entretanto, indagando de onde lhe vinha a capacidade da fala, entrou, de saída, em aporia ou desvio, por querer ver no "logos", não uma expressão do homem e sim uma expressão da realidade. Mas cumpre ressaltar que essa curiosidade helênica representa um alto grau de sublimação abstrativa, na marcha discriminante entre o mundo egocêntrico e o mundo alterocêntrico.

O homem arcaico ou pré-aristotélico não tem curiosidade lingüística: as coisas são e ele é com as coisas. A vida é um procedimento que se repete e que reage contra a mudança, em nome da continuidade avita [herdada]. É como na definição caricatural da liberdade inglesa: cada um pode fazer o que quer, contanto que faça o que os outros já fizeram. A tradição é fortemente encadeada e o meio amolda o indivíduo na simbiose indesviável. Cada infante se vê homem num dia que chega rápido, e que lhe sobrepôs na alma a alma dos avós. Aprendeu convivendo, passivo e plástico. Chegado a homem, vê que sabe e que está senhor da imagem do seu mundo. A quem lhe propõe alteração e melhora num modo de ser ou fazer, ele mostra seu espanto. Se lhe dizem que pode estudar e aprender a língua da terra, fica estarrecido, pois é insensato querer aprender alguém o que já sabe. Assim aconteceu na África britânica, quando ali se iniciou o esquema da alfabetização: o nativo aceitara, ressabiado, o plano de estudar inglês e aritmética, mas ficou perplexo ante a tolice de se incluir no programa o ensino da língua materna, uma coisa que já sabiam.

Por isso é que o racionalismo helênico, no primeiro contacto com o objeto "língua", em vez de buscar saber "o que" era, desejou saber "de onde" era, pois o que era estava no sentimento de cada um, na vantagem cotidiana da expressão. Por esse motivo é que foi logo pedindo resposta à grande pergunta sobre as origens. Resposta que ainda não veio. Resposta julgada tão difícil que a "Societé de Linguistique de Paris", em 1866, ao constituir-se, eliminou de seu temário um tal assunto, havendo-o por matéria extralingüística.

Se em vez do grande "porquê", o heleno tivesse começado por um "como" espacial, ordenando os fatos da língua e abrindo senda ao "como" temporal, então se teria visto ante a perspectiva bidimensional que o século XIX revelou.

Outra conseqüência de se tomar o "logos" por expressão da realidade foi o engano de haver começado pelo estudo da língua, em vez de começar pelo estudo da fala. Tomar o "logos" por expressão da realidade é apoiar-se num sintoma de preexistência, autonomia e substância, como no mundo platônico. Tomá-lo porém como expressão do homem é poder ver que da "fala" nasce a "língua". Da fala se abstrai a língua e na fala se cria, ao depositar-se na consciência do indivíduo e no sentimento do grupo, sob forma de patrimônio expressivo. Por isso, do exame da fala sai a figura e imagem da língua, esta concentração fugaz e persistente, aninhada no espírito. Força de exibição do mundo íntimo, veículo da mensagem que vai da boca de Primo ao ouvido de Secundo, na sintonia do diálogo. A língua é uma virtualidade, um estado interior, sonegado à observação de fora. A fala é que é um valor exteriorizado, acessível à curiosidade alheia.

Psicologicamente, a atitude do heleno pode explicar-se pelo fato de que o primeiro objeto que se oferece à consideração de quem vá meditar sobre a comunicação humana é a capacidade expressiva do próprio meditador. Esta capacidade é a sua língua, vale dizer, aquele estado interno, virtual, dissociado. A língua é, portanto, um estado intra-individual. Mas a "consciência da língua" abrange alguma coisa mais, porque admite, em Primo, a crença de que existe em Secundo um estado semelhante, um outro pólo de sintonia, na sintonia interindividual da comunicação. Neste sentido é que a língua é um valor supra-individual, um valor de coesão e sociedade, um patrimônio coletivo. É feito uma energia obscura e estática, distribuída em pilhas, capaz de se fazer em luz, no circuito da fala, à hora dinâmica dos intercâmbios.

Se o estado de língua, natural de cada indivíduo, é um estado interno, virtual, dissociado, cumpre, quem deseje fazer idéia de uma língua, surpreender os indivíduos no momento da fala - momentos de exteriorização, associação, realização dos valores da língua. Acontece porém que o estado individual deixa de ser constante ou igual a si mesmo: cresce por aquisição, decresce por esquecimento e muda por evolução. Além disso, ninguém vai recensear, a um por um, os recursos de todos os indivíduos do grupo. Tira-se u'a média persistente de valores e admite-se que cada pessoa tem sua língua, nutrida na interpretação e consciência da irrecenseável consciência coletiva. A fala é uma expressão do homem; e nunca se ouviu dizer que seja fácil de abstrair, catalogar e sistemar, uma coisa tão vã, tão instável, tão cheia de mudança.

Também historicamente se pode desculpar o engano helênico. Em vez de só admitirem o homem com sua capacidade de comunicação, eles acreditam na língua em si, na sua realidade exterior, vista como se fosse uma espécie de alma das coisas. Essa atitude não admira, pois a mitologia ainda continua, persistente e vivaz, depois de haver resistido à metódica do século XIX. Saussure foi o genial focalizador da mais verdadeira e fecunda discriminação até hoje feita em lingüística: a discriminação entre língua e fala. Mas ele não teve tempo de lhe explorar as formidáveis conseqüências, agarrado como estava aos efeitos de seu positivismo e ao esquematismo fisicista dos neogramáticos. Até para Saussure a idéia de língua está configurada na imagem de uma realidade exterior, quase como um deus pessoal e concreto.

A conseqüência do desvio helênico estendeu-se em dois milênios de confusão. Fora outro o progresso metódico, se outro fora o começo, partindo não da língua mas da fala, vista esta como expressão não da realidade mas do homem. Seria um estudo não do porquê mas do como, num exame da fala cotidiana, bem como das falas expressivas dos Homeros. Da visão abrangente, decorreria uma noticia do molde frástico, da melodia frástica, do sintagma funcional, do elemento frástico. Do acervo de observações decorreria a visão analítica, a visão do estado de língua, um mero estado de sedimentação interior, que a fala deposita em cada um. Seria um exame começado pela sintaxe, pela análise da estrutura frástica. A própria hierarquia do objeto impõe a hierarquia do método:

IA

a língua

elemento interno do homem

IB

a fala

elemento da língua (expressão do homem)

II

a frase

elemento da fala

III

o molde
a melodia
o sintagma

elementos da frase

IV

a palavra

elemento do sintagma

V

o vocábulo e o termo

elementos da palavra

VI

a sílaba

elemento do vocábulo

VII

o fonema

elemento da sílaba

Ora, é sabido que o exame grego começou pelo vocábulo. Quando o sofista do século V a. C. está indagando se a fala no homem é uma determinada natural ou uma criação convencional, ele não está pensando em termos de linguagem ou língua, mas em termos de "vocábulo". O que ele pergunta é se os nomes/tà onómata foram dados às coisas por foiça da natureza/phúsei ou por força de convenção/nómo. Quando Platão, aprofundado por Aristóteles, demarca os elementos da lógica ocidental, repartindo a frase entre sujeito e predicado, longe de vincar o sintagmático, o funcional, o abrangido, estão ambos seduzidos pelo valor individuante do ónoma/nomen e do rhêma/verbum.

Assim começou, discretamente, a catalogação "vocabular", que atingirá depois, com Aristarco Samotrácio, oito espécies gramaticais, oito partes do discurso (que não coincidem, aliás, com as oito partes da gramática de hoje).

A conseqüência da má partida helênica tem sido uma nociva indiscriminação entre os dois estados da palavra - o estado de fala e o estado de língua - conforme se apresente como vocábulo real, na frase, ou como vocábulo virtual, na mente.

Na frase "Platão viajou muito" cada um dos três elementos dela se acha em estado nominal, cada um deles é uma palavra; isto quer dizer: cada "vocábulo" se acha na sua função real de externar idéias. Estado nominal ou estado de palavra é um estado de fala. Ao estado de fala opõe-se o estado de língua, isto é, estado vocabular, estado de léxico: é o estado em que o nome se acha no dicionário - cada vocábulo, desflexionado e seguido de seus termos possíveis.

O estado de língua, estado interno, é um estado prossim biótico - vocábulo e termos em dissociação. O estado de fala, estado exteriorizado, é um estado apossimbiótico, estado de associação efetiva entre o vocábulo e um termo. O nome na fala é palavra, na língua é vocábulo. No estado de lingua, como num limbo, vivem vocábulos e termos; são como aquelas sombras à espera de reencarnação, que o pai de Enéias lhe mostrara, lá nos Campos Elíseos, para além do Averno e do Tártaro. Internados na mente, aí ficam na difusão recôndita do espírito, enquanto não chega a hora da expressão, a hora da fala, quando Primo os ajunta em palavras que saem ao mundo.


2. FISICISTAS E NOMICISTAS

Apontar a esse primeiro engano subtil não é minimizar o "milagre helênico", isto é, aquele esforço de visão clara que Atenas endereçou, como um feixe de luz, sobre o mundo, em hora dilucular da espécie, a emergir macia da depressão an tropóide, aquele ímpeto de hominização a despontar inquieto, num mundo de simpatias e fantasmas, a desabrochar em racionalidade - uma racionalidade vernal, cheia do tepor de forma ainda morna, um divino calor de frágoa próxima: homines a diis recentes.

Desde os séculos sexto e quinto, ao primeiro exame, logo se viram dominados pela individuação vocabular, que os prendeu na área lexiológica, incapazes de visada abrangente que primeiro ponderasse a expressão toda e depois o valor de cada palavra.

Heráclito Efésio, ca 540-475, pôs um misterioso "logos" dentro do seu movediço mundo de deveniência, de perpétua transiência, feito de ó e não é. Pretendem alguns que nesse "logos", base de matafísica panteísta, ainda se reflete a crença na magia vocabular.

Parménides Eleata, ca 530-444, para quem o real era unicamente o ser, achava que as palavras são nomes vazios, pensando embora os homens que contêm alguma verdade.

Demócrito Abderita, ca 460-400, vendo nos corpos um agregado de átomos, viu nas palavras um agregado de sons, dentro de estrutura convencional e humana.

Górgias Leontino, ca 484-375, dizia: o ser é incognoscível e se fora cognoscível seria inexprimível e incomunicável.

O século V está na origem ocidental da idéia de cultura, pensa Iaeger. À luz da individuação do espírito humano, armou problemas como o da liberdade, da autoridade, da formação política, enquanto apóstolos ilustres repetiam na ágora que a virtude está fundada no saber, pois a energia da "areté" se busca na preeminência espiritual da "sophía" e na força moral da "dikaiosúne".

A filosofia pré-socrática armara equações mecânicas do mundo. Era o sensualismo jônio dos milésios - Tales, Anaximandro, Anaxímenes. O racionalismo dos eleatas - Parmênides, Zénon; e o atomismo dos abderitas - Leucipo, Demócrito. Eram os físicos no esforço de reduzir a alguma unidade o cosmos intranqüilo e múltiplo. A curiosidade do mundo veio juntar-se a curiosidade do homem, tomado como objeto de pesquisa dos sofistas, assim abrindo via à inquirição socrática, pertinaz e amplamente antropológica. Por mal deles e de nós, o negócio que empreenderam acabou em especulação de nenhum lucro, devido à inconsistência e manha do objeto homem. O pior é que, além da falência, ganharam taxa de impertinentes, mais uma taxa de cicuta, como bom aviso aos navegantes: a morte para Sócrates, 469-399, e o exílio para Protágoras, ca 480-410.

A inteligência helênica ordenou o cosmos aristotelicamente, num começo de ação que acabou revelando a estrutura da matéria, no palco do mundo. Com relação ao ator, o máximo que se conseguiu, até hoje, foi poder catalogar a espécie em dois tipos de estado humano: o do homem aristotélico e o do homem pré-aristotélico. O homem aristotélico é o homem que chegou a pôr a inteligência em função, o homem técnico. O homem pré-aristotélico é o homem anterior, o homem empírico, o homem arcaico, de inteligência embrionária. No final, porém, ambos são homens, a oscilar pertemporalmente na base de sua "hominice", tendo subido de homem mundo a homem que faz e homem que fala, de homo álalus a homo faber e homo loquens, alguns ajuntando méritos ao título de homo sapiens. Este é o homem aristotélico, animal político, isto é, sociável, e não meramente gregário. Assim foi o homem do século V, capaz de refletir o mundo no espelho da inteligência e capaz de refletir-se no espelho da consciência. A forma que se reflete na luz daquele século é uma vaidosa consciência do "eu antrópico", envolvida na ilusão de haver lobrigado algumas dimensões do ser humano, em um mundo cujas dimensões já ia demarcando, segundo uma pauta de centragem cósmica, traduzida por Protágoras na afirmação de que o homem é a medida de todas as cousas.

Em vez de filiar os sofistas aos físicos jônios, melhor se hão de ligar à tradição literária, pois estudaram o homem e não o mundo. Cuidavam de cultura e não de ciência. Foram os primeiros intérpretes metódicos dos poetas. Eram filólogos, rétores, educadores. Neles é que teve início o trívio célebre da gramática, da retórica e da dialética. Delinearam o conceito de "humanidade" e a estrutura das "humanidades" que o padrão mediterrâneo conservou.

Do que ensinavam, em matéria de língua, a mais célebre notícia que se tem é a que está no Crátilo, de Platão, 427-348. De Crátilo contava Aristáteles ser ele tão crente na transiência universal e tão heraclítico na sua fé que, medroso de errar "nomeando" as coisas, preferia apontá-las com o dedo. Nomear poderia sugerir idéia de permanência, um pecado contra a convicção. Fora amigo e talvez mestre de Platão, que o põe, no celebrado diálogo, a conversar com Hermógenes e Sócrates, a respeito do objeto "língua", sua origem, sua função. A grande dúvida era saber se o nome tem sentido por força da natureza/phúsei ou por força da convenção/nómo. Crátilo via justeza natural entre o nome e a coisa. Hermógenes achava que se juntavam por convenção. Crátilo era, pois, fisicista e Hermógenes era nomicista. Sócrates, interpelado, respondeu que não estava preparado no assunto língua, pois ainda não pudera ouvir, por ser muito cara ao preço de 50 dracmas, a lição do sofista Pródico Ceio. Entretanto, ia dar algumas opiniões. Aí então ele expõe uma longa série de etimologias. Discute a conveniência entre o nome e a coisa, o critério do nomóteto ou legislador que impôs os nomes, a hipótese da origem divina, o valor fonossêmico dos nomes primeiros ou mimemas, a suficiência de estudar os nomes a quem deseje conhecer a realidade, etc. Sócrates tempera de grande malícia a exposição que faz.

Tem sido difícil interpretar a atitude platônica, no Crátilo. António Pagliaro, no Sommario di linguistica, acha que Platão, entre o fisicista e o nomicista, deriva para um conceito de que a fala é uma obra humana que se faz lei, sem arbítrio, e que seu valor convencional está na tradição. Em geral, porém, se admite que ele ficou na linha pitagórica e heraclítica da necessidade inerente, pois a conclusão fisi cista se arranja melhor com a teoria básica da "idéia".

Aristóteles, 384-322, este sim, é que se pôs na linha de Demócrito, abrindo lugar ao nomicismo, com a discriminação de fala e conteúdo: a fala é um vozeio mecânico a veicular, um conteúdo autônomo, que não é dela mas do pensamento; uma coisa é a "phone" e outra coisa é o "logos". Por isso a língua é uma convenção ou acordo thésis/sunthéke. Vincou o ónoma e o rhema como sujeito e predicado, catalogando os outros elementos como liames ou sindesmas/ súndesmoi.

Aristóteles, em termos de conteúdo seguiu o critério da estabilidade vocabular, da palavra que melhor "está" pela coisa, stat pro aliquo. O nome e o verbo, palavras nocionais, têm uma larga autonomia semântica; são vocábulos imaginosos até fora da frase. O mesmo não acontece com as palavras relacionais, apagadas e ancilares. Daí o tê-las englobado nos sindesmas. A gramática especulativa medieval regressou à linha de Aristóteles; e a lingüística ainda não achou melhor generalização. Só há duas espécies de vocábulos essencialmente distintos, nitidamente opostos: a categoria do "nome" e a categoria do "verbo". O nome da coisa e o nome do processo. (Cf. Meillet, Ling. génér. I. 175).

Epicuro Gargétio, 341-270, foi fisicista a seu modo, interpretando com psicologia a relação natural entre o nome e a coisa: em vez de a colocar entre esta e aquele, o que via era uma conveniência entre o vocábulo e a idéia da coisa, a representação dela no sujeito. Esse entender de Epicuro vinha trazer resposta a uma objeção outrora formulada por Demócrito, ao dizer que se o nome era uma voz imposta à coisa então não devia existir diversidade de línguas. Agora ficava explicado que a diversidade de índole das gentes, implicando diversidade de representações e impressões no sujeito, importava com isso a diferença vocabular. Epicuro achava que os nomes foram dados às cousas espontâneamente.

Assim discutiam os filósofos enquanto não chegava a hora do florescimento gramatical, hora não mais ateniense mas alexandrina, uma hora menos que helênica, pois era apenas helenística.

Fisicistas e nomicistas, assim como depois analogistas e anomalistas, iam levados, em caminhada de imaginação regressiva, ao problema das origens. Dizemos imaginação por que não sabiam traçar roteiros; e não sabiam traçar roteiros porque lhes faltou a perspectiva bidimensional, a visada espácio-temporal. Fizeram muita etimologia, mas não sabiam fazer etimologia, por lhes faltar um método, embora não lhes faltasse alguma intuição, ao perscrutarem "naturalidade" fisicista ou "convenção" nomicista, na simbiose do vocábulo e do termo, segundo a angulagem da primeira tendência, que era filosófica - ou ao examinarem a força de constância, analógica para uns, anomálica para outros, segundo a angulagem da tendência posterior, que era filológica e de teor gramatical.

Já se pode considerar como boa a receita etimológica de Platão, quando ensina que basta desbastar os vocábulos de seus incrementos para que se chegue às formas primeiras. Aí porém se torna discutível, ao dizer que estas formas primeiras são mimemas das coisas, isto é, suas imitações fonossêmicas.

Esta tese fisicista, plantada na raia das origens, na tangente do humano e do divino, foi o que ressoou melhor, na comum inteligência e imaginação do problema. Vindo o cristianismo, ela encontrou harmonias naquele passo do Gênese em que se narra como Deus concedeu ao homem o dom de nomear as coisas.

Partindo dessa idéia das "origens" é que Crisipo Solense afirma a sua tese da "anomalia" ou desassemelhação: o vocábulo era imagem da coisa, mas imagem que o uso destemperou, desigualando a primeira proporção. Também se funda em "origens" a doutrina de Aristarco Samotrácio, apóstolo da "analogia", isto é, da consemelhação que rege a estrutura vocabular.

Vê-se, pois, que a reflexão helênica se preocupou de um cuidado pertinaz, o cuidado de descobrir qual era o "verdadeiro" valor, o "étimo', a "etimologia" das palavras. Na verdade, a motivação vocabular é uma necessidade psicológica do homem, o qual prefere os vocábulos "claros", os vocábulos "procedentes". São vocábulos que podem ajuntar, espontaneamente, em regimes constelares, com centros de gravidade criados pela tradição e cotidianidade da vivência. No léxico de uma língua, há muito efeito de forma e sentido que é fruto de fatos da ambiência constelar. São fenômenos de "morfização", e de "semantização", reações intervocabulares de procedência etimológica.

O vocábulo imotivado, improcedente, escuro, é um vocábulo solto no campo, facilmente sujeito à fantasia das atrações constelares, da incorporação cognatícia, aos primeiros sintomas de parecença:

O latim periculum significava "tentativa"; seria uma formação do tema per - com a mesma idéia "passagem" que se encontra em por-ta ou por-tus. Era, pois, uma edição de vocábulo opaco, embora a lucidez de per-/através, mas somente como prevérbio ou promorfema. Ora, a consciência da língua, sentindo o valor de perire/perecer, viu em "periculum" a mesma idéia de "perire", como se o tema fosse o de "ire", como se o "per", em vez de tema, fosse um promorfema: per-i-klom. Houve atração constelar, fixando-se periculum com o sentido de "perigo". O vocábulo préiamar ou maré cheia é uma sintagmação de plena mar. Devido à evolução plena-préia e à passagem de "mar", posteriormente, ao masculino, o vocábulo préiamar ficou escuro: isso provocou a atração motivadora "praia", de que resultou a variante popular praiamar. Atualmente, apesar de "telefone" e "telegrama", já há os que "vêem" no vocábulo televisão uma soma de "tela" e "visão".

A motivação é fator de importância visível, de ação inesperada, pois varia o modo de ser de cada indivíduo, com seu grau de densidade marcadamente pessoal. Imagine-se o número de vocábulos motivados e imotivados no léxico de um letrado, de um alfabetizado e de um analfabeto. Pelo fato de a "improcedência" descontentar o espírito, trabalha em todos a motivação, buscando-a cada um onde lhe sopra o entender. Portanto é concluir bem, na história de uma língua, o concluir pela importância da etimologia popular, com toda a sua riqueza de elemento exegético.

Admitido que a etimologia metódica é disciplina recente, pode ver-se que estão fazendo falta os dicionários de tal etimologia popular, sobretudo um dicionário que filtrasse, em dois milênios de mediterraneidade, a variada motivação do patrimônio ocidental. Não se fez outra etimologia senão a popular, desde Platão, a quatro séculos antes de Cristo, até o padre Bernardo de Lima e Melo Bacelar, dezoito séculos depois de Cristo. Do ponto de vista "etimológico", os dois se encontram e valem, seja quando Platão explica "alétheia" "aér", seja quando o padre Bacelar explica "anágua" "borboleta" "esbirro". Para Platão, "alétheia" é uma "ále théia" (caminhada divina) e "aér" é quase como "aéi rhei" (o que sempre flui). Para o padre Bacelar, "anágua" é "saia de andar nágua" "borboleta", inseto que tem barba" "esbirro", o que tem birra e prende". Cf. artigo de João Ribeiro sobre o padre Bacelar.

Os filósofos gregos, os filósofos alexandrinos, os jurisconsultos e gramáticos romanos, a Idade Média, a Idade Moderna, tudo fez etimologia e dessa etimologia. Começou cedo e continuou cedo. Abrindo Aulo Gélio ou Quintiliano, lá depõem sobre etimologias de Varrão, de Nigídio Fígulo, de Labeão, etc. São coisas deste jaez: "avarus qui avidus aeris est", "soror quod quasi seorsum nascitur", "frater quasi fere alter", "lepus quasi levipes", "vulpes quasi volipes" ... Vieram depois Isidoro Hispalense, a Escolástica, o Humanismo, Ménage, Morais...

A cristalização vocabular, fenômeno do estado de língua, estado interior de Primo, cria impedimentos à visão da fala, a expressão toda do homem. A fala é uma síntese que a compreensão mental, desfazendo em análise, desfaz em língua. Esvaziado o molde frástico e esbatida a melodia que se esvai, cresce no espírito, sob a ação da energia reminiscente, a imagem do vocábulo.

Além disto, o vocábulo tem uma outra preeminência histórica, na dieta evolutiva da fala e da língua, pois o homem anterior, o homem arcaico, deve ter começado a sua fala por "palavras-frases", àquela hora matutina e medrosa, a hora lúdica e plástica de sua passagem da alalice à loquência. Nesse tempo, a mensagem de Primo a Secundo não passava de vozes frasticamente autônomas, banhadas na sintaxe do gesto e da presença teatral. Na medida em que a fala progrediu, foi crescendo o alcance representativo da fonação, o efeito associativo das interações, a facilidade alusiva das convivências, até que mensagens complexas pudessem caber numa estrutura feita só de vozes, numa sintaxe de palavras.

Entretanto, insista-se, a individuação vocabular continuou guardando preeminência psíquica, no estado de lembrança ou estado interno, que é o estado de língua. Por isto, na hora em que um agrupado humano atingiu maioridade racional, atingindo a sua língua alturas de plasticidade e abstração, quando lhe tenta explicar a natureza, então lhe avulta em frente o vocábulo, todo carregado de idade e mistério. Nele se tem perdido a curiosidade dos que tem buscado nele o segredo da linguagem. Na verdade, a língua é um pólo negativo e oculto da linguagem, sendo a fala o pólo exibido e positivo. Apoiar-se muito no vocábulo, que é apenas um dos elementos da fala, postergando os demais, é servir-se de pouco esteio. Um dos elementos da fala, disse mal: é apenas um dos elementos da palavra, esta sim, um dos elementos da fala. É que me envolveu, por um instante, a confusão vulgar da rotina, que estuda o vocábulo em estado de língua, estado de léxico, tratando-o como se estivesse tratando da palavra, que é o vocábulo "efetivo" na fala.

O engano veio de longe e sem apelo. Foi assim na experiência ocidental. E assim foi na experiência oriental dos índios. Balbuciavam ainda os gregos de Platão, na sua primeira curiosidade gramatical, num tempo em que a "vyakárana" ou análise do sânscrito era um fruto maduro, cristalizada em aforismos tersos e mnêmicos - as quatro mil "sutras" de Pánini, um gramático índio do IV século antes de Cristo. É sabido que a lingüística metódica nasceu de um cruzamento entre a curiosidade germânica e o conhecimento do sânscrito, estudado em Paris, antes de 1808, por Frederico Schlegel, e entre 1812 e 1816, data de sua "conjugação compa rada", por Franz Bopp, o criador da gramática histórica. De então em diante, o lingüista ocidental tem admirado a minudência fonética e mórfica, a exaustão classificatória de Pánini.

Entretanto, lá também, está no vocábulo o objeto de tal estudo. A "vyakárana" índia é um lento labor do zelo religioso, um cuidado sacerdotal em manter os "vedas" ou conhecimentos de sua infinita liturgia, principalmente o "veda" tríplice do louvor do canto e da prece - Rigveda, Samaveda, Yajurveda. O Rigveda, sozinho, conta quase onze mil versos.

Essa inspiração religiosa da curiosidade gramatical faz lembrar uma outra causa da preeminência vocabular: a força de simpatia que têm os vocábulos, na crença do homem pré-aristotélico: ritualmente aplicado, o vocábulo tem efeitos mágicos. Tem força para repelir o que se evita ou atrair o que se quer, dotado que é de energia apotrópica e endotrópica.

Não admira, após dois milênios de rotina, que a emenda seja ainda fraca: ainda impera a autonomia vocabular, na angulagem de nossos métodos de pesquisa. É verdade que vai esquecendo o império neogramático das leis e vêm surgindo, tardas, tímidas, a semântica e a estilística; enquanto isto prolifera, feraz, a lingüística do vocábulo, entre uma forte vegetação de fonéticas, fonologias e fonêmicas. Por contingência e limites da especialização, abre-se ante os olhos do inspetor de paisagem a difícil perspectiva de um labor fracionado e miúdo, porventura rescendendo a bizantino. Há no campo uma ausência de linhas gerais; há nas almas um anseio de amplitude, uma saudade panorâmica das abrangências do século XIX.


3. ANALOGISTAS E ANOMALISTAS

 Demócrito Abderita havia oposto uma dificuldade aos fisicistas do V século: se o vocábulo é imagem fonossêmica, emanação da coisa, não devia existir polionímia - variedade de nomes para a mesma coisa - e nem homonímia, variedade de coisas para o mesmo nome.

A resposta conhecida veio no III século a.C., formulada pelos estóicos, por Crisipo Solense, 280-204, corifeu da anomalia. Disse ele que o vocábulo é uma cópia da coisa mas que a volubilidade humana acaba delindo os traços da relação, torcendo linhas, criando "anomalias" ou desassemelhações. Então se vêem nomes masculinos com desinência feminina, pluralícios com valor singulativo, verbos médios com sentido ativo.

Nossa gramática tradicional é obra dos estóicos, aos quais deve autonomia e estrutura, após aquela fase embrionária de mero departamento da cogitação filosófica. Ordenaram-lhe os elementos de sua maioridade, abrindo-lhe as portas da filologia alexandrina. Varrão tinha consciência dessa autonomia emergente, conforme se vê na sua gradação da pesquisa etimológica, segundo uma accessibilidade possível ao vulgo ou só ao gramático ou somente ao filósofo, pois é dos filósofos e não dos gramáticos estudar a legítima etimologia.

Para o Estagirita, a "ptosis" ou "casus" era qualquer deflexão de uma forma primeira, fosse declinação conjugação ou derivação. Por exemplo, a partir da forma "equus" eram casos dela as formas "equa" "equile" equitare" etc.: gerava-se, pois, mediante toda e qualquer apomorfemia.

Com os estóicos. a idéia de ptose ou caso tomou os limites hoje conhecidos, referindo-se, portanto, ao endereço funcional dos vocábulos declináveis.

Entretanto, a diferença declinar/conjugar é mais recente. Diz por exemplo Quintiliano: que os meninos saibam declinar nomes e verbos. Nomina declinare et verba in primis pueri sciant(I. O. 1.4.22). Ainda no século XVI ensinava o Brocense que declinação é coisa que se entende melhor por uso do que por um definir: "quod sit declinatio apud grammaticos, melius iam usu intelligitur quam definitione explicatur" (Minerva 1.8). Uma nota de Perizônio, feita um século mais tarde, declara que, já no tempo de Carísio e Prisciano, declinação por excelência era a nominal: "sed tamen iam illius et Charisii et Prisciani tempore declinatio kat exokhén notabat flexionem nominis in suos casus, ut nunc plerumque accipitur."

O conceito de "caso" gerou o conceito antitético de inflexibilidade, aplicado pelos estóicos à conjunção, vocábulo indeclinável ou aptoto, considerados ptóticos o nome, o artigo e aquelas formas que, sendo verbais, também se declinam, chamadas em grego metokhé (participação) e chamadas em latim participium, nome que é um simples decalque ou diasse miação do outro, o grego.

Como se vê, estava superada a divisão ternária de Aristóteles, nome verbo liame. Crescia a população dos elementos da fala. Mais tarde, meado o século segundo antes de Cristo, à hora do apogeu alexandrino, Aristarco Samotrácio catalogará oito partes do discurso.

Ao considerar o ónoma como sujeito - em face do verbo, como predicado - Aristóteles não o opôs a outras deflexões funcionais, não o considerou ptose ou caso. Mas isto fizeram os estóicos, discriminando o caso reto/orthé ptôsis e os casos oblíquos/plagíai ptóseis.

(Tem havido curiosidade sobre as expressões "caso reto" "caso oblíquo". Figurou-se uma hipótese de materialização didática por que o mestre exibia ao discípulo um estilete em posição vertical, casus rectus, e em sucessivas posições inclinadas, casus obliqui. A imagem é sugestiva e consentânea com o logicismo arstotélico. Lembre-se o fato de Quintiliano lhe chamar prima positio ao nominativo. É o caso do sujeito, é uma forma preeminente, ponto de partida do discursivo e ponto de referência para as outras formas, formas inclinadas).

Também nos verbos foi sensível a contribuição metódica dos estóicos. É sabido que a noção cronestética, assinalada na morfia verbal, é indício de madureza racional. Por isso ela costuma faltar em língua de homem pré-aristotélico, afeito à significação concreta de processos individuados, sensível a discriminações aspectivas. É uma hora de fala demonstrativa, descritiva, minuciante, espacial, inabstrativa, atemporal, fraca em projeção de passado e futuro. Com o subir do sol, vai aquecendo a cronestesia e a língua vai criando morfemas temporais. Foi assim com os dialetos indeuropeus. Na conjugação latina, por exemplo, a filtragem temporal teve de instalar-se num binômio aspectivo claramente vincado pelo contraste entre formas de ação acabada e formas de ação inacabada. É o binômio infectum / perfectum, assim chamado em terminologia tomada a Varrão, primeiro observador do contraste.

Se é tal a, marcha do homem e de sua expressão, não admira que seja deficiente a cronestesia gramatical dos antigos. Eé motivo de encômio os estóicos haverem assinalado o valor aspectivo de confrontos como baino/vou bébeka/fui ébainon/ia ebebékein/fora.

(Em Platão e Aristóteles, a noção do verbo tanto se agarra à de predicado, que ao verbo assemelharam o adjetivo, posteriormente subclassificado como "nomen" - nomen substantivum nomen adiectivum. Aristóteles viu no verbo o matiz temporal, mas não o classificou nem vincou. Para ele, um verbo no presente é verbo. Mas um verbo no futuro ou no imperfeito é um caso de verbo, uma ptôsis rhématos.)

Outra precisão dos estóicos na abrangência aristotélica foi a que impuseram ao chamado "sindesma", atribuindo-lhe fronteiras de um conectivo.

(Exceto o nome e o verbo, o mais no Estagirita eram sindesmas. Esta classificação ampla é, sem dúvida, prudente. Para além da nobre classe nocional arrebanhou num redil a inquieta plebe relacional, uma espécie de proletariado instrumental, de pouca certeza no ofício e de manifesta mobilidade secessiva.)

O conceito fisicista de relação natural entre o vocábulo e a coisa, vimos que Epicuro o deslocara para o de relação entre o vocábulo e a impressão da coisa no sujeito. Os estóicos, insistindo numa discriminação aristotélica, separaram o vocábulo e o sentido (o signo e o conteúdo) chamando a um de significante/sémainon e ao outro de significado/semainómenon. Vê-se, por aí, como estava desde antigamente preparada a teoria sêmica de Saussure.

Era o ano 315 antes de Cristo, quando Zénon Citieu começou a pregar no Pórtico Pintado, a Stoa Poikíle, em que ainda ressoavam pela ágora os ecos do vozeio falangiário, em sintonia com o trote marcial do bucéfalo macedônio, em que um bárbaro do Norte atravessara a divina morada de Palas, rumo a Leste, inculcando-se mensageiro de um helenismo pré-fabricado, um helenismo que se desmanchou em helenística, na receita dos diádocos. Era uma hora muito consoante com doutrinações como a de Zénon, mais semítica do que ática, feita de incitações de fraternidade e de desprendimento. Teve por seus naturais batedores aos diádocos, fossem atálidas ptolomeus ou selêucidas. Foi fácil de alastrar o estoicismo, progredindo com ele, na medida em que se espalhava, o impulso gramatical acima referido. Acumulavam-se elementos para um corpo de doutrina, sem que surgisse a gramática, apesar de ensinada, com a retórica e a dialética, desde os sofistas, no século V, sob a forma cativa da angulagem filosófica. Finalmente começara, com os estóicos, a marcha da autonomia. Por toda a parte havia rétores e filósofos, mas ainda não existia o gramático. Faltava chegar uma hora que ia continuar faltando, pois depois do filósofo e do rétor veio primeiro o filólogo alexandrino.

De Zenódoto Efésio, no III século a.C., até Apolônio Díscolo, no II século p.C. nutriu Alexandria aquele estudo de que nasceu, como fruto, a gramática ocidental. Na competência de cultura entre os diádocos, venceram os Ptolomeus, que fizeram de sua capital o foco da helenística. Fundaram o Museu, centro intelectual meio academia e meio universidade, bem como a notável biblioteca, onde se foi acumulando a produção de todo o mundo grego. Ficava a maior no quarteirão régio, de nome Bruqueio, enquanto a menor ficava no Serapeio, o número de seus volumes, crescendo ao longo de três séculos, já houve quem os calculasse em um milhão.

Alexandria brilhou, clareando o Mediterrâneo por três séculos ptolomeios, numa intermitência de luz ritmada no vário arbítrio e destino dessa dinastia macedônia, um dia imposta ao Egito pelo meteoro chamado Alexandre Magno. Foram três séculos de apostolado helenístico, numa dieta de reis que iam passando à História sob cognomes alusivos como Salvador Sóter, Amigo de seu irmão, Philadelphus, Benfeitor/Evérgetes, Amigo de seu pai/Philópator, Amigo de sua mãe/Philométor, Ilustre/Epíphanes... até chegar ao Flautista Aulétes, o qual, mais do que músico, foi pai daquela Cleópatra por quem César e Antônio se perderam, como em sorvedouro da virilidade romana.

Na livraria da cidade, librários célebres dirigiam a pesquisa: instauração textual, imersão histórica, explicação mitológica, interpretação estilística, resenha léxica. Numa cidade cheia de gregos, judeus, nativos e vindiços, foram erguendo, para as letras, um padrão de casticidade ou pureza vernácula, um "hellenismós" aticizante, por cuja pauta Zenódoto emendava Homero. Zenódoto Efésio é logo o primeiro dos grandes librários, tendo florescido por volta de 280. Depois dele, e com a data de seu fastígio, podem citar-se: Eratóstenes Cireneu, 234, também matemático, tendo calculado com boa aproximação a circunferência da terra: Aristófeves Bizantino, 195, Aristarco Samotrácio, 170.

Classificando e avaliando, constituíram um cânon de autores modelares, com 5 épicos, 3 jâmbicos, 5 trágicos, 14 cômicos, 4 elegíacos, 9 líricos, 10 historiadores, 10 oradores - num total de 60 nomes, entre os quais Homero, Hesíodo, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Epicarmo, Aristófanes, Menandro, Alemano, Alceu, Safo, Píndaro, Anacreonte, Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Demóstenes, Lísias, Ésquines.

Quando o estoicismo chegou a Alexandria, vigorava ali, sob o calor recente do mestre falecido em 322, o influxo peripatético de Demétrio Falério e de Calímaco.

Parece que o ambiente não fora acolhedor para a doutrina crisipiana da anomalia, segundo a qual o Solense inculpava as intemperanças da contingência humana de haverem arruinado a justeza original dos vocábulos. Além disso, dois séculos de busca filosófica nenhuma convicção tinham conseguido em favor da receita platônica que mandava desmanchar vocábulos, desbastando-lhes excessos, em marcha de recessão etimológica, para se chegar ao prota onómata ou nomes primeiros, mimemas da essência, marcados de energia fonossêmica e justeza original. O mesmo Platão sentira a debilidade de sua experiência etimológica, desarmada como estava de meios hábeis. Isto revê da malícia que põe Socrates nas etimologias do Crátilo, etimologias que de certo correspondiam à lição vulgar do tempo.

Armada de outra possibilidade material, iniciada em rotina diferente, a atitude intelectual de Alexandria pôde ser outra, ao cristalizar a tese da analogia, criando um pólo por onde se determinar o sentido de um novo eixo de oposição, feito da antinomia "anomalistas e analogistas". Estava exausto, por então, o interesse "fisicismo e nomicismo".

Lingüisticamente, houve progresso de marcha, na marcha que vai dos sofistas do século V, via acadêmicos peripatéticos e estóicos, até à plenitude alexandrina em fins do II século. Por ela se foi obtendo melhor contacto e mesmo intimidade com o objeto, graças a uma tendência mais rasteira de exame empírico, em vez dos altos vôos abstratos do primeiro ensaio. Seu roteiro define-se por uma passagem da filosofia à filologia. Ora, lingüisticamente, não é bem que se comece a filosofar antes de "filologar". No começo era o verbo e o verbo se fez fala e só pela fala se pode ir ao verbo.

Primo, na figura do homem arcaico, é um homem que sai de si e vai ao mundo, antes por um impulso de comunhão com ele do que por um desejo de o contemplar. Impressionado com o mundo, que é todo povoado e simpático, vai armando a filosofia do externo, do sensível, procedendo como os físicos jônios, admirados com a fluidez de um todo que passa - um todo não de seres mas de deveniências. (É o mundo a que está voltando a física moderna do procedimento, desancorada agora da substância e do bimilênio aristotélico.)

Esse Primo que vai ao mundo é o primeiro Adão. O segundo, porém, é um que não sai de si, que fica em si e traz o mundo para dentro de casa, reduzido a conceitos, catalogado em seres. É o homem aristotélico. Apenas acontece que ainda não acertou com o método e o lugar das coisas: enquanto para o Aquinatense o espírito assimila o real, que está fora - para Descartes o espírito traz em si o real e o reflete na fala, ao passo que para Kant o espírito fabrica o real e o projeta fora de si.

A fala, expressão de Primo, é uma projeção geográfica de seu mundo interior, mundo difícil de cartear, imagem infusa de duas realidades, crase do externo e do interno, pela síntese reativa do eu e do não-eu. O homem, como ser de razão, é animal categórico, plasmador de universais. Postos na base da fala, os universais baseiam a estrutura da gramática, geração que se cria na análise da fala, cujos elementos ela ordena como valores de língua.

Na fala, pois, é que se vê a língua. O exame sincrônico das falas de um grupo revela a figura de um estado de língua. O exame diacrônico de falas sucessivas, testemunhadas por escrito nos monumentos do grupo, revela a geração dos estados de língua. Este exame é tarefa da filologia, enten dida como estudo de toda expressão vocabular, plebéia ou nobre. É a filologia, que fornece à lingüística os elementos de suas deduções, ao fornecer-lhe os elementos da fala. A filo logia é preparatória e a lingüística é conclusiva. A filolo gia é empírica, a lingüística é técnica: abrange, aproxima, reduz, interpreta, no espaço e no tempo. A filologia prepa ra a matéria-prima, a lingüística pesquisa a forma em busca da essência comum e necessária, que é fundo de expressão do próprio ser do homem. A lingüística é mais filosofia, enquanto que a filologia é apenas filologia. A prudência alexandrina esteve nisto: fez filologia.


4. ANALOGIA

Quem olha a língua toma atitude causal, como um filósofo; quem olha a fala toma atitude modal, como um filólogo. Arrazoando logicamente, teimando no esforço de desvendar a essência, a filosofia desgastara energia não na língua mas sobre a língua. A filosofia alexandrina, turbada embora por preconceitos da tradição filosófica, teve o bom senso de se dar ao paciente exame do texto: e o exame da estrutura revelou a gramática, desde a hora em que se começaram a impressionar com a mesmice iterativa das formas vocabulares, erigida em princípio que tomou o nome de "analogia".

Analogia é assemelhação. É armar "b" segundo o modelo "a". É declinar "rosa rosae" por "hora horae". É afeiçoar os sintagmas, no ato da fala, segundo padrões catalogados nos fatos da língua. Analogia é decalque, submissão de forma nova a fôrma velha; é a força regente dos estados de língua da língua.

A analogia é intradialetal ou interdialetal. A analogia intradialetal é a norma, sobretudo nas línguas fechadas, por falta de convívio internacional. Por analogia o creaturo imita o já criado, segundo o princípio da economia reducente, por força de uma residuação iterativa. É uma força niveladora, capaz de desarestar formas importadas, na moenda vernácula, impondo-lhes aquela ciumenta harmonia doméstica, sem a qual não caberiam na boca do povo. Confrontem-se com os respectivos originais os vocábulos "futebol" "esporte" "bonde", hoje tão nossos. Veja-se ainda, para exemplo, um exemplo dado por Quintiliano: são paroxitônicas, em latim, as formas oblíquias de nomes do tipo orator oratóris. Importado o nome grego Castor Cástoris, foi vencida a sua exdruxulice, na boca do povo, que dizia "Castóris": "inde Castórem, media syllaba producta, pronuntiarunt quia hoc omnibus nostris nominibus accidebat, quorum prima positio in easdem quas Castor litteras exit" (Quintil. 1.5.58).

A analogia interdialetal é homodialéctica ou alodialéctica, próxima portanto ou distante. Exemplo da primeira são as incorporações latinas de moldes itálicos vizinhos. Exemplos da segunda vêem-se na adoção de processos helênicos. É sabido que Cícero ajudou a vulgarização de abstratos latinos do tipo "qualitas", ao cunhar esta resposta vernácula do grego poiótes. Isso não passa de decalque ou "diassemiação". É um empréstimo semântico: o "termo" de um nome alodialéctico vem habitar um "vocábulo" de estirpe nativa. Mais do que isso é a "transvocabulação", empréstimo integral, em que vocábulo e termo alodialécticos se incorporam no acervo doméstico.

Aristarco Samotrácio, 220-143, foi o campeão alexandrino da analogia. Viu nela uma assemelhação apomorfêmica, uma reincidência de sufixos e desinências. Aulo Gélio definiu-a como um declinar por semelhança que, em latim, alguns chamam de "proporção": analogia est similium similis declinatio quam quidam latine proportionem vocant. (N. A. 2.25). Quem o disse, no II século p. C., Aulo Gélio, havia lido Varrão. Varrão ouvira Estilão, o Estilão, o Trácio e o Trácio ouvira o Samotrácio. Cumpre lembrar que "declinação" aqui há de entender-se no amplo sentido aristotélico de ptose: abrange declinação, conjugação e derivação.

A gramática tradicional é um mero e exaustivo conato analógico, uma teimosa redução por semelhança: padrão dos nomes declináveis, padrão dos nomes conjugáveis, padrões genéricos, padrões numéricos, padrões da formação vocabular; e como as formas não cabem todas em quadros mais ou menos pré-estabelecidos, depois se alinham as exceções que confirmam as regras. Foi assim há mais de dois mil anos, desde o primeiro gramaticógrafo ocidental, Dionísio Trácio, repetido por Donate, Prisciano, Villadei, Valla, Nebrija, Manuel Alvares, Lancelot-Arnauld, A. Pereira de Figueiredo, Condillac, Morais, Eduardo Carlos Pereira. A gramática tem sido um esforço de sistemação analógica, uma peleja metódica a sangrar em vícios da sazão, em preconceitos que romperam séculos.

Dionísio Trácio ou Varrão, etimólogos da linha fisicista, impedidos pela sugestão da conveniência fonossêmica, desintegravam palavras, lidando com um notável flexionismo declinatório, sem que pudessem chegar, por exemplo, a um conceito como o de "semantema" e "morfema". Adstritos ao contraste de duas línguas apenas, desprezando sistematicamente o falar bárbaro, estavam travados, em tão subtil pesquisa, pelas aderências míticas de um estado social imaturo. Os antigos, se analogistas, viam a similaridade ou aequalitas, produto da lei natural ou ratio. Pelo contrário, se anomalistas, viam a dissimilaridade ou inaequalitas, um efeito usual da consuetudo. Caso houvesse refletido em que o uso procede por analogia, teriam buscado outra síntese melhor, que não essa filtração antinômica e sem base.

Mesmo assim andou a gramática, ancorada em filologia, aliada à retórica, passando, através de Donato, como ensino da arte de falar, até que a Idade Média a transformou em verbalismo especulativo, mirando não à fala mas à arte de pensar.

Menoscabando a escolástica, o Renascimento ficou preso à idolatria do antigo, reeditando a velha teoria, enquanto a renovação filosófica, teimando no logicismo, veio triunfar em Port-Royal, ao passo que a proliferação da exegese bíblica ia mergulhar no hebráico as origens das línguas. Faltava o que veio depois: faltava a imersão histórica do comparatismo boppiano, bidimensivo e referencial, envolvendo os fatos da língua em coordenadas de espaço e tempo.


5. ANOMALIA

Enquanto Aristarco Samotrácio, ca 220-143, librário alexandrino, era campeão da analogia, o seu coevo Crates Malota, librário pergameno, era campeão da anomalia. Estóico e filólogo, dirigia ele, na capital dos atálidas, o movimento cultural que estes reis fomentaram, na célebre competência de Pérgamo com Alexandria. Por volta de 170, indo a Roma, de embaixada, o futuro Átalo II, enviado por seu irmão e rei, Êumenes II, consigo teria conduzido o Malota. E este, ali, tendo quebrado a perna, ficou mais tempo do que projetara. Entretanto, longe de por enfados o perder, aproveitou-o nas lições que dava à fervorosa curiosidade com que os romanos começavam a descobrir a luz de Leste. Foi ouvido pelos Cipiões, inclusive por um rapazinho chamado Públio Cornélio Cipião Emiliano (o que arrasaria Cartago em 146), depois famoso letrado e protetor de letras, centro de um grêmio intelectual celebrado por Cícero e onde brilharam as figuras de Panécio, Lucílio, Terêncio, Lélio.

Essa visita representa um marco miliário para a arte gramática, pois ela entrou em Roma com a palavra de Crates, se é verdade o que alega Suetônio: primus igitur, quantum opinamur, studium grammaticae in urbem intulit Crates Mallotes, Aristarchi aequalis.

O "anomalismo" de Crates, pois era estóico, tinha base em Crisipo Solense. Mas o fato de ter sido chamado a dirigir a escola dos atálidas poderia interpretar-se como atitude opo sicionista. Pérgamo seria anomalista porque Alexandria era analogista.

O "pergaminho" foi o lucro mediterrâneo de tal rivalidade. A empresa atálida de criar na Ásia Menor um centro ilustre de helenidade acendera ciúmes em Alexandria. Como avultasse muito aquela concurrência bibliária, um dos ptolomeus a golpeou pela proibição de se exportar "papiro". Talvez tenha sido o V, o Epífanes, que reinou de 204 a 181. Foi assim que Pérgamo se viu obrigada a desenvolver a indústria de "charta pergamena" - uma pele agnina ou vitelina, especialmente curtida para servir de papel. A vantagem foi notável, pois sendo o "pergamenum" mais espesso e resistente, capaz de aceitar letras nas duas faces, ele veio facilitar o formato de "códice" do livro atual, e a progressiva eliminação do rolo ou "volume", que era a forma conveniente ao papiro.

Sob os efeitos preceptivos de nosso bimilênio aristotélico, a palavra "anomalia" se tingiu da cor que tem, assumindo dimensões de pecado ou irregularidade grave. Isso foi um resultado do critério paradigmático, ultimamente repelido em lingüística. O critério metódico de hoje está pedindo que se estude o fato por imersão histórica, sob perspectiva de tempo e de espaço. Devemos aos neogramáticos o miúdo exame com que estudavam as morfias, segundo a fidelidade de suas tendências fonéticas ou segundo a emergência de seus desvios, produzidos por influxo analógico ou procedência mutuária.

O bom estudo é o que individua cada vocábulo em ficha abrangente, biográfica, funcional, instruída de informes normais bem como de informes peculiares, segundo as contingências químicas do ambiente frástico, pois só na frase, realizado em "palavra", é que o "vocábulo" existe, persiste, muda, sob influições de clima, revelando na marcha os sinais de sua identidade. É uma ficha de notícia mórfica, etimológica e semântica.

Não há por onde se falar em "regularidade" ou "irregularidade", pois não há pontos de referência canônicos, não há padrões de plenitude. Não há "leis" como queria o fisicismo neogramático, mas apenas "princípios", na matéria da expressão do homem. O que se dá são atos de fala, em cada fase de uma seqüência tradicional, produzindo fatos que se constituem em estados de língua, estados sucessivos, possíveis de caracterizar pela aparência, e de explicar pela gênese social.

As chamadas normas da correção apenas definem e consubstanciam o esmero expressivo do homem educado, uma estilização, do gosto urbano, de fatos tão fatos como os do falar despoliciado e espontâneo: tanto é realidade um dizer "nós vamos à cidade" como dizer "nóis vai na cidade".

Cada Primo tem sua língua, seu estado interior, seu veículo de sintonia com Secundo. Ele sabe que seu potencial não é privativo e sim comum aos outros seres do grupo. Sabe por experiência, mas não costuma refletir no caso. Nasceu e cresceu imerso na língua, elemento de suas vivências bem como das vivências do próximo. Tão natural e espontâneo que lhe parece inato, quando na verdade a língua é uma coisa que se adquire, pois inato é só o dom da fala, a capacidade expressiva ou linguagem.

Quem quiser tombar um estado de língua há de vigiar e filtrar, metodicamente, as falas de cada indivíduo do grupo; então conseguirá um resultado aproximativo, nunca exaustivo, pois ninguém pode medir o conteúdo de uma pessoa humana, quanto mais de um grupo social.

Aqui estará dizendo o neogramaticista: "Essa língua espontânea, descontada de preconceitos urbanos,é regida por leis, as "leis fonéticas". Resposta: - Não são leis e sim tendências. A língua é uma habituação insensível de talvegues fonéticos, uma "informação" analógica do indivíduo pelo seu meio, corado de princípios e imaginações do homem. (Voltaremos ao assunto.)

Não eram dos antigos tais pontos de vista. Partindo da "justeza natural" dos nomes, buscaram nos vocábulos, sem os achar, valores preexistentes. Preocupavam-se mais com o encadeamento lógico de suas deduções do que com os aspectos da fala. A progressiva autonomia instituída pelos estóicos veio possibilitar a visada empírica do filólogo alexandrino; entretanto, a eficiência que conseguiram promanou de uma realidade não prevista: o teimoso estudo do texto. Confrontavam, examinavam, criticavam, escolhiam, suprimiam, restauravam. Assim como o pastor Saul, quando saíra à procura de asnas a que o pai o mandara, primeiro encontrou um reino, assim aqueles rebanheiros alexandrinos, querendo preconceitos, acharam a "analogia", na constância iterativa dos morfemas, na mesmice modelar da "ênklisis" ou "declinatio". Atrapalhava-os, de certo, a rebeldia das exceções, a oscilação optativa de alguns valores sufixiais. Ora, foi justamente por aí que entraram os filólogos de Pergamo, declarando que as palavras não se conformavam por "assemelhações" e se faziam meramente pelo "uso". Os nomes primeiros prôta onómata, se haviam tido justeza natural, por uso haviam perdido a parecença, caindo em desassemelhação: anomalia.

Estendido a Roma, o debate continuou, ecoando ainda, por exemplo, em Aulo Gélio, meado o segundo século depois de Cristo. Fora aplicada ao latim uma teoria armada em grego.

Entretanto, analogistas e anomalistas, vivendo uma hora verde, estavam despreparados para um conveniente equacionamento: faltava-lhes referência, visada espácio-temporal, imersão histórica, análise elementar. Ambos tinham razão e não tinham.

A prudência eclética do romano, quando enfrentava a subtileza helênica, fez sincréticos a dois especialistas como Varrão e Estilão, divididos entre o anomalismo tradicional do círculo cipiônico e o analogismo, diretamente explicado pelo Trácio ao Preconino e por este ao Reatino.

Também eclético foi Cícero, analogista na hora de agradar a César, mas anomalista por seu amor ao tradicional e talvez por pendor nobiliário de "homo novus" a completar, na forte simpatia das elegâncias cipiônicas, a pobreza de sua historicidade genealógica.

César, entretanto, foi analogista e de tal disposição que escreveu um tratado sobre a matéria. Não o moviam, como a Cícero, fervores aristocráticos de noviço, mas uma calculada vontade de "descer", de se nivelar pela praça, demagogicamente. É lícito, pois, imaginar que seu analogismo podia ser atitude: mais um jeito de tomar posição do outro lado, de se confirmar no esquema plebizante da manobra mariana, já que o anomalismo grassava era nas alturas senatoriais da granfinagem estóica e cipiônica. Ao escrever o De analogia, bem como a história de suas campanhas, fica parecendo que se deu às letras só para exibir um gênio múltiplo, como quem se valia de um recurso instrumental, ele, capitão estadista e escritor, empenhado em tudo que lhe servisse ao plano de afeiçoar politicamente uma Urbe e um Império.

Em meio a tal meio e tempo, Lucrécio é uma figura singular. Tão singular que a tradição alegada por S. Jerônimo lhe passou atestado de loucura, a quem ousara compendiar o epicurismo, genialmente, e lançá-lo em rosto à severa gravidade estóica do romano.

Em matéria de língua, ao passo que os demais intérpretes se perdiam nas ínvias elucubrações do fisicismo, Lucrécio expõe uma doutrina muito chegada às concepções modernas, tendo seguido a um mestre cuja intuição descobrira no vocábulo, não a coisa, mas nossa imagem da coisa a nascer, espontaneamente, como "voz", das impressões do objeto.

Depois de ter esboçado a marcha "hominizante" da espécie, num quadro que até parece obra de um darvinista do século XIX, Lucrécio imagina as origens da língua. (Cf De rerum 5.1028). Ali diz que a natureza levou o homem a emitir suas vozes e que a utilidade modelou os nomes das coisas: utilitas expressit nomina rerum. Lembra que o menino, por incapacidade de falar, infantia linguae, aponta às coisas com o dedo, do mesmo jeito por que o vitelo investe com chifres que ainda não tem e o cachorro de leão, com dentes e garras por crescer. Mais adiante pergunta se é demais admitir que o homem, na posse da voz e da língua, tenha nomeado as coisas variamente, conforme suas várias impressões: si genus humanum cui vox et língua vigeret/ p;ro vario sensu varia res voce notaret. O cão ora rosna ameaçando, ora enche de uivos o espaço, ora entreladra carinhoso. Se o animal é assim, quanto mais o homem...

A anomalia é fruto de persistências residuais ou de efeitos alodialécticos. Todo estado de língua é uma sincronia geral, incrustada de persistências diacrónicas e marcada de promessas de novas diacronias. A persistência revela-se em cortes geológicos ou verticais. A promessa, em manifestações eruptivas de superfície. A persistência é um resíduo de es tados anteriores, cujo tipo de arcaíce a busca identifica. São jeitos que já não conseguem afinar com a dinâmica geral: são formas erráticas, talvez singulares, passíveis de eventual atração analógica, fáceis de desaparecer ou mudar, quando não agarradas ao valor cotidiano ou quando impugnadas por concurrência inovadora. Tome-se para exemplo o verbo esse: já no estado romano ou cicerônico, representava ele um mo mento anterior, um momento pré-romano, atemático, infes tado de persistências, residuais. No correr da dialetação românica, pagou juros de sua esquisitice, como se vê no es tado pós-românico. O infinitivo "esse", por atração orbitária, foi nivelado com os outros infinitivos, como prova o francês "être" e o italiano "essere"; ibericamente, em vez de mudar, desapareceu, vencido pela concurrência inovadora de "sedêre", que lhe tomou o conteúdo semântico, representado no português "ser".

Além da residuação, também se produz anomalia pelo alodialetismo vocabular, nos empréstimos. Toda transvocabulação implica importação tingida de algum valor estranho à genuinidade vernácula; um nome de morfia aparentemente tão aceitável como, por exemplo, "madame", proferido à francesa mostra cores estranhas ao nosso idioma, sujeitas à retificação incorporante do uso. Mede-se o grau de incorporação pelo grau de resistência das anomalias aos efeitos assimilatórios. Historicamente, a perfeição da intimidade pode oscilar, de acordo com a sociabilidade interdialetal do grupo; em latim, a crescente familiaridade com o grego permitiu que a urbanidade romana restaurasse o traço anômalo, em vocábulos popularmente admitidos antes, no tempo de Plauto: "drachma" é restituição letrada de "drácuma". Uma forma deixada a seu destino acaba tratada como as outras nativas, sujeita aos efeitos comuns da evolução: o nome "paronychium" era um vocábulo estranho para os ouvidos romanos, incapazes de receber nele a idéia "unha", que está no grego. O romano, vendo a coisa e vendo o "inchaço" ("panus" em latim) mudou o "paronychium" em "panaricium". Usou de metátese que nem carecia de motivação, pois o povo é capaz de transformar "phalanx" em "palanca" e "palanca" em "labanca" e "alavanca". Refere-se Quintiliano à tendência para dizer Palaemo Télamo Plato, por não ser latino o final -on. O grau da intimidade admissiva desses três nomes vê-se no léxico, ao registrar "Palaemon" cujo "n" denuncia a posição liminar, ao lado da vacilação "Télamo/ Télamon" e da completa naturalização de "Plato".

Entre nós, o dizer "uma telefonema" acusa a presença do esforço retificador, nivelando uma anomalia de procedência mutuária e técnica. Este sintoma revela um alastramento primarizante, uma invasão vertical, de presença cada vez mais sensível na fala urbana, ensejada pelo crescimento veloz dos agrupados citadinos. Houve até um maldoso que classificou de "efeito ptb" a esse proliferar de prolações proletárias, como "diguinidade" "téquinica" "adevogado" e quejandas.

A luta pela redução do anômalo é uma luta permanente, sob o comando da analogia, a grande força motivadora, que simplifica e nivela

Tinha toda razão o Samotrácio e quase nenhuma o Malota. Todo regime de língua é analógico. Deus fez o verbo, mas o homem fez a analogia: primo die Deus fecit verbum, secundo die homo fecit analogiam.


6. PELA ANALOGIA

A analogia é a lógica da fala. Tiveram de respeitá-la os neogramáticos, estes neofisicistas do século XIX, quando criaram o código das "leis fonéticas", impressionados com a mesmice tendencial do fluxo articulatório. Estavam possuídos de um entusiasmo natural ao primeiro espanto, embora o sistema fonatório de uma língua não passe de uma lenta habituação de talvegues, uma longa modelação inconsciente e insentida, fruto de paciente exercício. Entretanto, mesmo criando "leis", dividiram seu império com a analogia.

Se a analogia é um sistema, a anomalia é uma isenção de sistema.

Em geral Primo fala mecânicamente. Há contudo uma hora em que toma consciência do que diz ou vai dizer. Esta hora é de analogia, hora em que vocábulos e idéias se agregam, se arrebanham, sob a compulsão das semelhanças, semelhanças realmente vistas ou simplesmente imaginadas.

A evolução dos estados de uma língua deixa uma figura de esquema que o lingüista pode traçar. Foi no exame de tal esquema que a sistemática do século XIX sobreavaliou as peculiaridades da produção vocal, descobrindo-lhe transcendentalidades que erigiu em lei, engrossando com o matiz da necessidade a meros hábitos de prolação, um simples adestramento do aparelho vocal, pacientemente conformado em talvegues fônicos, já que um aparelho se pode adaptar a qualquer língua. Um pretinho senegalês, infante, se criado em Paris, mamando e vivendo a língua da cidade, acabará falando francês parisiense.

O que há realmente é uma capacidade vocálica, um dom humano, uma possibilidade original que o exercício modela em talvegues por onde fluem os vocábulos. É alguma coisa parecida com a velocidade rotativa do disco, sob a pressão da agulha fonográfica, a estriá-lo de sulcos e, nos sulcos, de talvegues sônicos. Na fala do homem, primeiro é a capacidade, depois uma habituação, uma capacidade psicofisiológica, realizada mediante exercício articulatório, sob a pressão de vivências e estesias - uma pressão plástica, lúdica, simbiótica, fantástica. A instalação do regime articulatório, no indivíduo, em lugar de ser olhada como produção "necessária", sob o efeito de "leis", há de ser vista como fruto espontâneo do mimetismo, da adestração habitual, sob uma dieta de intervenções que fogem ao conceito de lei: imaginação criadora, enganos de trânsito, desvios do talvegue. As leis que poderia haver, no processo, não serão leis da língua, e sim da psicologia, leis da vida humana.

A diferença entre o racional e o irracional está em que o irracional se adapta a seu mundo, ao passo que o racional, como ser psíquico, adapta a si o mundo, embora o ser biológico viva sob leis. A fala é expressão do ser psíquico, o ser que adapta o mundo, elaborando princípios de que a língua é um reflexo, definida como estado interno da capacidade expressiva, como sedimento analítico dos atos da fala. Língua e fala regeneram-se, no decorrer das vivências, de modo que a fala é uma "realização" da língua e a língua é uma "virtualização" da fala.

Há uma economia mecânica da fala e nela é que se quis ver leis. No fundo, porém, o poder que a regula é o da "economia psíquica", segundo um regime que corre entre dois pólos: suficiência expressiva e ênfase expressiva, a mera clareza ou a expansão afetiva. Nessa área de oscilação entre a clareza e a afetividade é que se realizam fenômenos de economia chamados de assimilação, dissimilação, metátese, haplologia, epêntese, síncope, etc., todos eles contidos em limites de talvegues pré-estabelecidos, todos eles sob a constante regência da analogia. A analogia é estática ou dinâmica. A analogia estática é uma analogia tranqüila, analogia de presença ou catálise, que preserva as harmonias similares. A analogia dinâmica é uma analogia ativa, a promover a química das transmutações, quando um vocábulo, cruzando campos de gravidade de outros vocábulos, deprende emanações de semelhança. Ou quando um vocábulo mutuário, portador de sintomas estranhos, abre seu contraste anomálico ante a imagem do que podia ser, configurada por um espontâneo sentimento da língua, segundo uma analogia geral. São imprevisíveis, nas intersecções orbitárias, o desprendimento de emanações similares e a ação da gravidade, pois tudo se passa num planetário mental que é o mundo interior de Primo, todo sujeito a coeficientes de psiquismo e fantasia. Quanto aos vocábulos mutuários, de fisionomia alodialéctica, a analogia trabalha par vesti-los de fonemia vernácula, tanta mais tratados quanto mais admitidos, numa intimidade maior ou menor, conforme seja o ingresso doméstico ou apenas vestibular. O ingresso vestibular é deferente, apoiado naquela urbanidade comum a pessoas de mais convívio, armadas de alguma experiência bilíngüe: em vez de transformar, ele apenas afeiçoa o vocábulo. Tomando ao grego o nome "gymnásio" adapta-o em "gymnasium". O ingresso doméstico é nativista: o povo, afeito a seu talvegue fônico peculiar, sem leitos de emergência para fonemas estranhos, mói o vocábulo na sua máquina de vernáculo, desarestando-o de modo que caiba na boca. O nome "gymnásion" então se faz "guminasium" gu-mi-nasium ; ("sport" se faz "esporte").

O século XIX erigiu as leis fonéticas em causa mecânica da evolução morfológica. Na verdade, esta causa está nos deslizamentos de talvegue, nos desvios do leito de fluência do fonema. A constância de tal deslizamento atende, na evolução, a um limite de contigüidade: não foi de um salto que o nominativo plural latino chegou a "lupi". Atravessou uma gradação de vizinhanças, como; lupoi lupei lupi. O português "céu" está no extremo de uma fieira de deslizamentos, a partir de "caelum", imaginável assim: kailu keilu kelu k'elu tcelu celu céu séu. o francês "roi" admite a escala: rege rei rói róe rwé rwá.

Uma fieira evolutiva configura um esquema de tendências dosadas pelo talvegue, num leito cavado pela habituação prolatória, com áreas marginais para os desvios que produz o uso, o tempo e o espaço. A pesquisa revela, no teor da contigüidade, uma progressão tal que se pode concluir pela existência, em quem fala, da vontade e intento de "repetir" analogicamente a forma aprendida. Ninguém pensa que está alterando uma forma, e sim que a está reproduzindo. Quem altera não o percebe. Foi assim que, dos séculos V a X, 500 anos de fermentação românica, sem que isso fosse notável no momento, acabaram transformando a fisionomia do latim, sob os efeitos de uma evolução precipitada por impactos aloglóticos, impactos geradores de mutação, portadores de mais energia que a simples energia evolutiva.

Cada estado de língua tem um sistema de talvegues em que o vocábulo proferendo, ou cabe nele e flui normal ou tem arestas anômalas e promete luta com a analogia. Da luta provirá inteira submissão do corpo estranho aos limites do regime, vitória da analogia, ou resultará instalação de novo talvegue, vitória parcial da anomalia. Seja b a aresta anômala e seja a o talvegue nativo. Ou b se reduz ao leito, cabendo em a, ou b cava para si o talvegue a'.

Num estado de língua castiço, à hora das homogeneidades grupais, vale a redução, pois o sistema é mais travado, rico em talvegues exclusivos. Os estados de língua mestiços, apropriados à inovação, deixam-se atingir de influxos alodialécticos, influxos de outros talvegues, inseridos no uso por força de um bilingüismo de origem política (domínio estrangeiro) ou de origem social (imitação do estrangeiro).

O sistema de talvegues da língua A não coincide com o da língua B, nem mesmo em dois estados homodialéticos e parecidos, como no português e no espanhol. Mais se assemelham na forma escrita do que quando falados. À hora da prolação, surgem diferenças auditivas em vocábulos visualmente iguais.

Talvegues não se mutuam, como acontece aos vocábulos. Talvegues criam-se.

A dificuldade das arestas anômalas varia de sistema a sistema. Pode ser maior para A do que para B, segundo exige maior ou menor esforço de economia analógica.

Teoricamente, nos estados de língua castiços, a mudança provém dos deslizamentos, da evolução; enquanto que nas horas mestiças é que aparecem mutações, inclusive instalação de outros talvegues.

O deslizamento, como fenômeno de contigüidade, é um fenômeno de franja, progressivo e inconsciente. Pode ser observado espacialmente, como, por exemplo, o "t" provincial mineiro da palavra "frete". Apresenta ele uma fisionomia palatizada, em clara promessa de, no futuro, se chegar a "freche". Entretanto, ninguém pode garantir que progressão vai continuar e que o termo previsível será alcançado. Por aí se vê como é impróprio o conceito de "lei fonética".

Historicamente, a realidade indeuropéia revelou uma inquieta existência, cheia de fusões, confusões, reações, superações, numa complexa dinâmica de fatos. Não é possível extremar a evolução, da inovação, o mero deslizamento e a criação.

Pairando como o espírito sobre as águas, influíram dois princípios: um é o da economia psíquica, taxando, em seu registro, ora o "quantum" necessário à mera clareza, ora o "quantum" necessário à abundância afetiva. O outro é a analogia, a grande niveladora automática das massas vocabulares.


7. OS GRAMÁTICOS

Muitos foram os chamados e poucos foram os eleitos do tempo, na família dos antigos gramaticógrafos. A obra da maioria naufragou sem remédio. A quem observa a estatística da salvação, no volume da produção intelectual romana, esse naufrágio não admira, pois em quase 800 nomes catalogados não chega a 150 o número dos que o tempo respeitou em parte maior ou menor. Para cima de 600 ficaram completamente perdidos.

Da safra gramatical romana o que os séculos não devoraram está granjeado no Corpus Grammatricorum Latinorum ex recensione Henrici Keilii, Lipsiae, sete volumes publicados entre 1856 e 1880. Ali se acham, como em arca de Noé, os salvados do grão dilúvio: Carísio, Diomedes, Prisciano, Probo, Donato, Sérvio, Cledônio, Focas, Aspro, Vitorino, Bássio, Fortunaciano, Mauro, Sacerdote, Rufino, Teodoro, Escauro, Longo, Agrécio, Martírio, Albino, Dositeu, Méssio, Frontão.

Na ordem do tempo e segundo méritos avaliados em influxos perseculares, avultam, na arte gramática, os nomes de Dionísio Trácio, Varrão, Apolônio Díscolo, Donato e Prisciano.

Retirado Varrão a seu plano especial de letrado, sobram dois manualistas gregos e dois manualistas latinos.

A primeira gramática da tradição ocidental é a do Trácio. A primeira gramática latina, decalque da grega, é a de Palêmone / Quintus Rhemmius Fannius Palaemon, quando meava o primeiro século cristão. Fica pois desocupado o século de Cícero, embora lhe não faltassem muitos profissionais, cujos nomes aparecem no meio de mais de 20 referidos por Suetônio, 70-160, no seu tratado De grammaticis. Hoje são nomes vazios, mais ou menos sonoros, como Caio Otávio, Lampadião, Quinto Vargonteio, Sérvio Clódio, Lutácio Dafne, Aurélio Opílio, Valério Catão, Labério Hiera, Leneio, Quinto Cecílio Epirota. Este último foi o primeiro que ousou dar lições em latim e adotar Vergílio como texto escolar.

A observação que do Epirota faz Suetônio "primus dicitur latine ex tempore disputasse" é notícia que merece reparo e relevo, pois relembra situação que se tem repetido, na humanidade.

Um grupo social de nível pré-aristotélico geralmente se acha num estado em que só a língua dele merece nome de língua, se comparada com outras. As línguas "banto", numa vasta área africana, são faladas por tribos que mostram seu indício nesse mesmo vocábulo, porquanto "banto" significa "homens". Entre nossos tupis e guaranis, as línguas que falavam eram denominadas "avanhenhém", o que significa "fala de homem", ou "nhenhengatu", o que significa "fala boa". Tais classificações louvam o próprio mérito, excluindo o alheio.

Vencido o estágio das sociedades fechadas, abrindo-se o grupo a influxos de fora, então, se encontra em dois planos de vida e de expressão: o plano vernáculo do cotidiano e o plano das assimilações exógenas, de veículo aloglótico. É uma hora em que o nativo, estudando belezas de outro idioma, entanto se admiraria com a hipótese de ter de estudar a língua materna, pois isto é coisa que a gente sabe e soube desde menino. Quando uma ordem régia de 1759 determinou, em Portugal, que se estudasse o português junto com o latim, nas aulas de latim, a reação vulgar recebeu mal a medida, que então não foi cumprida e ainda provocava atitudes negativas no século XIX.

De como seria o estado de cousas no tempo de Ênio pode imaginar-se pelo que ainda era no tempo de Cícero: após ter soletrado as XII Tábuas, passava o menino às lições do "grammaticus" não para aprender latim, mas para aprender grego.

É uma pesquisa por fazer a que demarque a marcha ascensional daquela aplicação gramática ao latim. O comum era estudar-se o grego e os autores gregos. Até os autores latinos, quando explicados, eram explicados em grego. Maduro o primeiro século cristão, vemos sinal de progresso numa informação de Quintiliano, 30-96, ao declarar que o menino, sabendo ler, estava na hora de passar à gramática. Não importa, continua, se primeiro à grega ou à latina, embora convenha que seja à grega: nec refert de graeco an latino loquor, quamquam graecum esse priorem placet. 1.4.

No tempo de Sila, os intelectuais preferiam escrever em grego. Por isso, um dos méritos de Cícero foi ter erguido sua língua às alturas abstrativas com que foi sendo capaz de conter o "logos" helênico.

Na idade clássica romana era como na idade clássica européia. Camões, Vieira, Bernardes, notáveis vernaculistas, não estudaram o português "escolarmente", pois na escola se estudava o latim. Cícero, César, Vergílio, não estudaram o latim escolarmente, pois na escola se estudava o grego. Um trabalho como o De língua latina, de Varrão, não era resposta a algum apelo de utilidade escolar, mas a uma curiosidade e gosto de erudito. Era talvez um estímulo e convite a que se aplicasse ao vernáculo o que se fazia com língua estranha. Era uma situação parecida com a de nossos velhos gramáticos, Fernão de Oliveira e João de Barros.

Se a curiosidade gramática entrou em Roma durante a primeira metade do II século a. C., com a lição de Crates Malota, a "arte gramática" só entrou depois de Dionísio Trácio, praticamente no I século a. C. No fim dos acontecimentos, a teoria que o mundo antigo nos legou é obra de dois manualistas alexandrinos: Dionísio Trácio, em morfologia, no segundo século a.C. e Apolônio Díscolo, em sintaxe, no II século p. C.


8. DIONÍSIO, 170-90

Dionísio Trácio / Dionysios Thrax não era trácio, era alexandrino. O apelido foi herança que o pai lhe deixou. Vivendo entre 170 e 90, foi discípulo de Aristarco e foi professor de nomeada, principalmente por lhe deverem os pósteros a primeira gramática da tradição ocidental.

Estando a 300 anos de distância da miúda codificação de Pánini, o gramático índio das quatro mil sutras, o tratado do Trácio não passa de breve ensaio, de balbuceio infante. O que dele temos não daria 400 linhas de composição corrente ou 15 páginas de edição comum. Mas todos lhe gabam a síntese ordenada, a boa filtragem desse fruto de três séculos de esforço abstrativo, iniciado um dia na visão metafísica dos jônios, dos acadêmicos, dos peripatéticos, melhormente aplicada à língua pelos sofistas, pelos estóicos e pelos filólogos.

A primeira coisa que se há de reconhecer como bem avisada e feliz é a sua definição de gramática, entendida como sendo um conhecimento empírico da língua corrente. É a que convém aos manuais escolares, após dois milênios de império, dois milênios de repetição glosada, parafraseada, adaptada. Ela foge, sabiamente, a uma tendência hodierna de confundir a gramática da língua, vista como arte, com a ciência da língua. Como arte, serve ao exercício expressivo, um conhecimento empírico adquirido na escola. Como ciência, é lingüística, estética, filosofia, e adquire-se por reflexão madura, especializada.

A atualidade dos conceitos do Trácio pode medir-se nas definições das partes do discurso. Ei-las, em substância:

ónoma / nome: elemento declinável, significando pessoa ou coisa, geral ou particular;
rhêma / verbo: elemento con jugável, significando um fazer ou um ser feito;
metokhé / particípio: elemento que participa do verbo e do nome;
árthron / artigo: elemento declinável, posto antes ou depois do nome (artigo e relativo);
antonymía / pronome: elemento empregado no lugar do nome, indicando uma referência pessoal ou específica;
próthesis / preposição: elemento que pre cede outros, sintaticamente combinado com eles, e que entra na formação vocabular;
epírhema / advérbio: elemento inflexionado, especificando de preferência o verbo;
syndesmos / conjunção: elemento conectivo entre as partes do pensamento.

Como pode concluir-se, ele enxergava tanto quanto nós, em matéria de definir as espécies gramaticais. Num estado de língua cheio de morfemas individuados, de endereços funcionais móveis e vivos, era natural que os antigos se deixassem tomar pelas aparências sensíveis, pela declinabilidade. Em meio a tanta fissibilidade vocabular, até admira que não tenham chegado a uma conceituação de morfema e semantema. É que lhes faltou o comparatismo que libera, e mais objetividade. Estavam presos a uma escura sugestão de sacralidade, fruto secreto do inevitável fisicismo com que olhavam os vocábulos.

Tendo adotado um ponto de partida impuro, sem que dele saísse até agora, a ciência gramatical continua procurando limites entre as partes do discurso. A matéria é sem paz nem constância pois é matéria do homem e de sua expressão. A impureza ou vício da angulagem provém de uma confusão, até hoje não bem desmanchada, entre "vocábulo" e "palavra", entre língua e fala.

O desacordo começa no determinar das partes: quem se limita à divisão aristotélica de "nome" "verbo" e "sindesma" parece que não achou tudo, mas também parece que achou muito quem se estende ao número oito. Nele tem sido mais constante a gramática, fiel à octotomia alexandrina, embora recatalogando as espécies. Em lugar do artigo, ausente no latim, Rêmio Palêmone havia introduzido a interjeição. O comum de hoje abrange substantivo, pronome, verbo; adjetivo, advérbio; preposição, conjunção; interjeição.

No fim do século XVI, a gramática de Francisco Sanches Brocense admitia três vozes flexivas - nome, verbo, particípio - e três vozes inflexivas - advérbio, preposição, conjunção. Ao todo, seis partes.

Continua sem remédio a fraqueza lindeira das demarcações, o migracionismo funcional, o proteísmo semântico dos vocábulos. Rastreie-se, por exemplo, na evolução indeuropéia, a figura dos pronomes, das preposições e das conjunções.

Um estado de língua é um estado interno, um estado de análise, um estado virtual, oposto à fala, que é síntese, atualização, exibição. Na língua, vocábulo e termo estão dissociados. Na fala, associados. Na língua, são valores mentais inexpressos. Na fala, valores expressos, valores de comunicação. E a gramática vive pelejando para descobrir definições que possam abranger os dois estados, definições simples de coisas dobres.


9. VARRÃO

A Dionísio Trácio, que ouvira em Alexandria ao Samotrácio, ouvira em Rodes Lúcio Élio Estilão Preconino / Lucius Aelius Stilo Praeconinus que depois, em casa, fora ouvido por Cícero e por Varrão / Marcus Terentius Varro Reatinus.

Estilão Preconino, ca 154-74, homem afinado com o século, já era homem que ia a Leste, afim de ali temperar a inteligência e a emoção. Viveu no século II a. C., que é o século da epifania helênica, o século da grande manifestação, preparo da grande páscoa do século I. É uma ascensão de luz que tivera arrebol na infiltração sul-itálica do século III.

Desde o século V, num tempo em que o romano estava ainda imerso no caldo grave e denso de sua concretice, já soprava no mar um vento helênico de abstração, um vento semeador de metafísica e de imaginações estéticas. Demorou muito, no campônio do Lácio, a curiosidade das letras gregas: serus enim graecis admovit acumina chartis, Hor., Epist. 2.1.161. Foi u'a marcha discreta, em ritmo com a expansão imperial: pelo mapa da península, na medida em que descia a vis romana, ia subindo o espírito, enquanto iam sendo subjugados Tarento, a Sicília e Cartago, 272, 241, 202. Os juros da expansão vinham na luz do sul e a luz do sul vinha na auréola dos primeiros poetas: são eles o tarentino Lívio Andronico, ca 284-204, o campânio Névio, ca 270 199, o apúlio Ênio, 239-169, o calabrês Pacúvio, ca 220-130, o cartaginês Terêncio, 185-159.

A plenitude do sol começou depois da guerra de Aníbal, com a batalha de Zama em 202, e das guerras macedônicas, vencido Filipe V por Flaminino, em 197, na batalha de Cinoscéfalas / Cynoscephalae e vencido Perseu por Lúcio Emílio Paulo, em 168, na batalha de Pidna / Pydna.

No calor dessa plenitude é que se aqueceram dois corifeus da ação romana de então: o vencedor de Pidna e, depois dele, seu filho, o que destruirá Cartago em 146 e esfomeará Numância em 133, o conhecido Cipião Menor, Públio Cornélio Cipião Emiliano / Publius Cornelius Scipio Aemelianus, ca 185-129.

Lúcio Emílio Paulo / Lucius Aemilius Paullus é a gravidade romana em pessoa, aliando-se à leveza helênica. Nele, o que é romano é simples, severo, probo, ritual, capaz de fazer o que fez, - arrasar o Epiro porque o Senado assim determinara. Nele porém o homem helenizado foi capaz de ser brando com Perseu, de quem quis para si tão só a biblioteca. O que é romano, embora sabendo grego, dirige-se em latim aos vencidos. O que é helenizado, peregrina pelos "santos" lugares da Hélade, escolhendo filósofos e artistas para domésticos seus e pedagogos dos seus.

O nome de Públio Cornélio Cipião Emiliano, tomado pelo filho de Emílio Paulo, foi devido ao fato de ter passado a neto adotivo do Africano Maior. Entretanto, sob o influxo da virtude paterna, conseguiu escapar ao temperamentalismo orgulhoso da família adotiva e pôde viver belamente rodeado de estóicos, reconhecido como centro de uma atividade intelectual celebrada por Cícero, naquele cenáculo que a História denominou "Círculo dos Cipiões", engrandecido por homens como Lélio, Políbio, Panécio, Pacúvio, Lucílio, Terêncio. Começa neles a garantia de que o legado mediterrâneo permanecerá, com a sobrevivência do homem aristotélico, embora a diluição helenística, embora, como germe no fruto, a corrosão parasitária do asiatismo.

Do ponto de vista do estilo, estava sendo preparada a contenção discreta de Lucrécio, a colorida plasticidade vergiliana, a densa leveza de Horácio, a luculenta elasticidade ciceroniana, luzes de um esplendor secular, que sucedeu à brejeirice plautina, salsa e forte, à primária expansão aliterante do grande Ênio. Há uma distância de maciezas que se esbatem ou de arestas que se exibem, entre os efeitos fonossêmicos de Vergilio e certas infantilidades tautofônicas do poeta tricórdio, certas brinquedos seus como: O Tite tute Tati tibi tanta tyranne tulisti. Que nos perdoe o vate, autor de outros versos tão belos, mas isto até parece garotice de algum modernista brasileiro de 1924 ou de algum neótero de 1940!

Enquanto Andronico, Névio e Ênio iam modelando, pela estética dos poetas imitados, a memória da grandeza romana, o povo, misturado a escravos e libertos, ia recebendo na fala os efeitos gregos, enquanto o aristocrata ia aprendendo, na intimidade, o que o pedagogo ensinava aos filhos, depois mandados a Leste, em viagem de aperfeiçoamento.

Foi esse polimento da rudeza, essa "erudição", que afeiçoou clima propício à curiosidade gramatical, ao cuidado teórico da arte de dizer, tão grata a um povo de estadistas, afeito, de muito antes, às atrações do agórico ou forense, às participações emotivas de uma oratória indígena e empírica. Ao contato da ordenação racional, Roma importou a ars grammatica.

Em escala de discípulo a mestre, a tradição oral regressa de Varrão a Estilão, de Estilão a Dionísio, deste a Aristarco e de Aristarco a Aristófanes. Assim fica abrangida, entre o Reatino, o Preconino, o Trácio, o Samotrácio, o Bizantino, uma tradição direta que vai do ano 27 a.C., em que faleceu Varrão, até o ano de 257 a. C., em que nasceu Aristófanes. São duzentos anos de transmissão conferida, cheia daquele fervor de iniciação que o tempo admitia, para vaidade do homem que se aparta e distinque, perdido embora no rebanho ignaro da plebe indiferente.

A voracidade do tempo, na digestão monótona das eras, consumiu a obra gramática daquela idade, apenas lhe sobrevivendo alguns nomes, como vimos. Por sorte nossa, também escaparam 6 livros (de um tratado de 25) sobre a língua la tina. Era o De língua latina, de Varrão.

Marcos Terêncio Varrão Reatino, 116-17, estudara em Roma com Estilão e em Atenas com Antíoco Ascalonense. Foi polímata e polígrafo, tendo escrito mais de 600 volumes onde se continha o conhecimento da época, tratando em prosa e verso, de história, geografia, retórica, jurística, agricultura, gramática, etc. Escritores que vieram depois nele se louvam muito. Aulo Gélio está cheio de sua autoridade, em assuntos de língua. O que nos ficou de De língua latina, como um salvado precioso, opinião remota de uma gramática sem quase testemunhos, vive distribuído em pílulas referenciais, na pesquisa dos doutos, em obras como o Dicionário de Ernout e Meillet.

Os comentadores assinalam que Varrão foi discreto, ao vazar o latim nos moldes gregos: aceitou a analogia, mas vincou os efeitos anomálicos do uso. Mostra agudeza de lingüista ao observar que o gênero tem formas discriminadas para nomes de animais importantes e cotidianos como equus / equa, mas se limita a uma forma, quando não há tal importância, como no exemplo corvus. Frisou o contraste dos vocábulos declináveis - nome verbo particípio - com os indeclináveis - conjunção preposição. Caracterizou o sexto caso ou caso latino, consagrado depois com o nome de ablativo. Notou, na forma verbal, o contraste infectum / perfectum, ou seja o contraste do processo em marcha, infeito, com o processo acabado, perfeito.

Quando traduziu "aitiatiké ptôsis" por "accusativus casus", dizem os intérpretes que se enganou em tal diassemiação, ligando o sentido à idéia "acusar", em vez de à idéia "causa", pois é o caso da paciência, caso do efeito "causado" pelo agente do processo.

Dionísio Trácio estudara fenômenos intravocabulares, morfologia, examinando o vocábulo em si, fora da frase, fora das relações intervocabulares. Do Reatino, sabe-se que além da relação entre o vocábulo e a coisa (cf. fisicismo/nomicismo) e além da inflexão vocabular, também estudou o vocábulo na frase, abrangendo a etimologia, a morfologia e a sintaxe.

Esse ternarismo divisivo continuou respeitado ainda no século XIX: a gramática latina de Joaquim Alves de Sousa, cuja segunda edição é de 1858, contém etimologia, sintaxe e prosódia. É a mesma a divisão do Novo Método do padre Antônio Pereira de Figueiredo, na edição de 1872, atualizada pelo presbítero "Francisco Rodríguez dos Sanctos Saraiva". Tanto Sousa como Saraiva diziam estar seguindo Burnouf, Quicherat, Lhommond, José Vicente Gomes de Moura e outros mestres do século.

O serviço de incorporar a sintaxe na rotina gramatical não foi obra de Varrão, porém sim de uma manualista ale xandrino do II século p. C., Apolônio Díscolo, a três séculos de distância do Trácio. Díscolo, além de sistemar em base mais metódica a obra do Trácio, estudou a sintaxe, tendo escrito a mais completa gramática do tempo antigo. Do que ensinara fez incorporação latina, entre os século V e VI, o gramático Prisciano Cesariense.

Varrão não era um gramatista ou litterator ou ensinador de primeiras letras. Nem era um grammaticus ou ensinador de segundas letras. Era um letrado, um erudito, um homem clássico, amigo de Cícero. Fora pompeiano, segundo o pendor da gente bem ante as inquietações demagógicas de César. Mas, como Cícero e tantos outros, também foi envolvido no perdão vencedor do grande artista político, e convidado por este a organizar a primeira biblioteca pública de Roma. Assassinado César, Marco Antônio e Otávio berganharam Cícero, no leilão do encontro de Módena, em 43. Varrão, porém, homem de letras, pôde continuar jornada por muitos anos, até 27 a. C.


10. A TRAÇA DO SÉCULO

Dizia o poeta que o século é "traça que medra nos livros feitos de pedra". Se é traça que tanto pode, não podiam resistir-lhe bem os livros de papel. Ficaram destruídos, de Varrão a Prisciano, cinco séculos de gramática latina, afora as amostras da recensão keiliana. Com essas amostras se desenha a figura do que ela teria sido, mediante informações de Cíceros, Quintilianos, Suetônios, Gélios, mediante um quadro da mentalidade romana, do progresso de fermentação do "efeito oriental", ao passo que a virtus antiga se diluía, semânticamente, na virtus christiana, e a estrutura do Império, esvaziada de alma, parecia aguardar, na posição de esqueleto, as ventanias bálticas venturas.

No plano da majestade que sonhara, César, 100-44, in cluíra a cultura e a "urbanitas", vista esta com o sentido que lhe dera Cícero, ao opô-la à rusticitas: era um modo social, marcado de seu timbre civil, uma elegância cidadã que amadurava, uma resposta latina ao casticismo que Alexandria filtrara com o nome de "hellenismós". Roma, entretanto, por mais que se afinasse em escrúpulos, fora incapaz de resistir à pressão do que imitava, incapaz de transfundir na língua nativa a pletora "ideal" que recebia: Catulo, 84-54, apresenta uma proporção de 10%, de grecismos. Vergílio, 70-19, 14% nas Bucólicas. Pérsio, 34-62, 20%. É uma progressão significativa.

Com toda a sua plenitude, com todo o seu espírito de suficiência nacional, faltara a Roma um lastro indígena do que encontrara na Grécia: a intuição do "logos" como princípio racional do universo, a visão do "ethos", na expressão da beleza moral e intelectual, o sentido do "pathos", na emoção estética do mundo. Era um patrimônio mediterrâneo, um patrimônio que, percebido, não se evita. Contrariando ou favorecido, entrou em Roma como luz por espaço aberto. Catão lutara contra, mas César lutou a favor: premiara com cidadania a médicos, rétores, gramáticos e dialéticos. Planejara abrir no Forum Iulium não um mercado de gêneros mas um mercado de idéias, quando incumbira a Varrão de lhe organizar a biblioteca.

Mas César, por outro lado, afirmava a romanidade de Roma. Se no tempo de Sila, o intelectual romano preferia escrever em grego, César e Cícero fundiram o melhor latim da prosa nacional, rivais que ficaram no juizo dos séculos - Cicero, abundante e persuasivo - César, limpo e claro, simples e bom. César pôde ter as duas glórias, mas Cícero, após a falência de sua teimosia política em favor de uma "ordem" superada, num mundo insubmisso que a fermentação oriental desagregava, tudo o que lhe ficou foi ter falado bem, foi ter conseguido instrumentalizar o latim, para a prática dos doutos, fundindo nele a gratuidade helênica, desbastando e adaptando. Aliviou o peso da concretice vernácula, adensando por outro lado a fluidez subtil dos filósofos e moralistas eleatas, jônios, pitagóricos, socráticos, acadêmicos, epicúrios, estóicos, cépticos.

Incorporando o helênico, o romano de então procedia não como quem recebe mas como quem toma, cheio de sobranceria. Pelos tratados do Arpinate pode ver-se como cediam, resistindo, ante a vantagem intelectual do grego de outrora, sem deixar de afirmar a madurez nativa, quer na continuida de original do que lhes era seu, quer na reivindicação legatária de uma cultura que os gréculos desacreditavam com a impotência nacional. Psicologicamente, é possível discutir-se a densidade desse menoscabo intelectual, pois o intelectual romano vivia atento, como político, às oscilações da opinião vulgar, ao juízo do povo eleitor. E o povo eleitor, vendo o grego enxamear pela cidade, sob forma servil, tinha aquele estreito juízo que a massa faz dos metecos, num sentimento agravado pela solércia e malícia do oriental, opondo-se como acinte, à lenta gravidade romana. Já se disse "arranhe um russo que sob a primeira pele se encontrará um mongol". Pois bem, sob o verniz recente da urbanidade romana, estava a alma de um campônio latino.

Sob os efeitos do reagente alopsíquico, a afirmação de romanidade mostrou um dos seus índices no casticismo idiomático. César, por exemplo, além de escrever latim puro, fez-se missionário da vernaculidade, compondo o De analogia e nele ensinando repulsa ao que não coincidisse com a genuinidade doméstica, mandando evitar o novo como um escolho: tamquam scópulum sic fugias inaudítum et ínsolens verbum. (Cf. Aulo Gélio 1. 10).

Augusto, herdeiro de César, rezava por essa mesma cartilha gramática, informa Suetônio. Cuidava de ser simples e claro. Ridiculizava o preciosismo calamistrado de Mecenas bem como o pedante arcaísmo de Tibério. Querendo ser romano, chegava a ser plebeizante, preferindo simus e caldus em lugar de sumus e calidus, ou apoiando o sintagma frástico em preposições que a elegância omitia.

Aliás, esse encolhimento da língua sobre si era sintoma adjetivo, em Augusto, de uma atitude bem mais substativa: a sua preocupação de restaurar costumes avitos, num programa de repristinação em que empenhou a sua vontade fria e branda, o seu calculismo temperado e lento, convocando a inteligência romana, arregimentando Vergílios na gloriosa e vã tarefa de relatinizar um povo definitivamente infecionado com a peçonha oriental.

Também Tibério foi bom latino e bom letrado grego, mas, diz Suetônio, escurecia o estilo com exageros de afetação. Aprazia-lhe sobremodo a companhia dos gramáticos. No Senado, abstinha-se do grego, a ponto de se desculpar, certa vez, por haver empregado a palavra monopólio. Recomendava, nos decretos, o vocábulo nativo e, faltando este, a perífrase, contanto que se evitasse o grego.

Pelo exemplo dos três primeiros césares pode imaginar se que não só o arbítrio deles regia Roma: havia um forte regime gramático e a cidade tomara o ceptro a Alexandria.

É do tempo de Augusto um mestre de seus netos que, além de bem pago, chegara a alcançar honras de estátuas. Seu nome é Vérrio Flaco e escrevera um tratado sobre a signi ficação das palavras, De verborum significatione, o qual Pompeu Festo resumiu em 20 livros, dois ou mais séculos de pois, e Paulo Diácono ainda compendiou, no século VIII, ao tempo de Carlos Magno.

É do tempo de Cláudio, e autor de "ars grammatica", Quinto Rêmio Fânio Palêmone.

Não adianta repetir nomes vazios. Partindo de Varrão, através da idade romana, a busca de sobreviventes vai encontrar, no quarto século, Élio Donato, mestre de S. Jerônimo e de toda a Idade Média. Ia já meado o século, tonalizado numa luz que foge, àquela hora de entre lobo e cão, mais românica do que romana. Com um século mais, chega-se a Prisciano Cesairense, ensinador de gramática latina em Constantinopla, entre 491-518, autor de uma obra em 18 livros, inspirada em Apolônio Díscolo, autor que fazia 300 anos sistemara Dionísio Trácio, autor que fazia 300 anos escrevera a primeira gramática da tradição ocidental.

Somando morfologia e sintaxe, Donato e Prisciano se completam, como se completavam o Trácio e o Díscolo. Em meio a tanto naufrágio e sumiço, os dois encontraram uma pervivência persecular gloriosa. Ocuparam de tal jeito a Idade Média que os principiantes de gramática eram chama dos de "donatistas" e, de Prisciano, foram encontradas mais de mil cópias nas bibliotecas da Europa. Romperam até as barreiras que o Renascimento começara a opor à Idade Média e a substância da preceptiva deles continua armando o corpo da gramática escolar: somos a rotina de Donato e Prisciano.

No ano de 529, enquanto Justiniano fechava, no Oriente, a última escola filosófica de Atenas, Bento de Núrsia, no Ocidente, fundava a abadia de Montecasino. Findara a idade romana, exaurida e pagã, fluindo como um rio crepuscular para a idade românica, em trânsito torvo e túrbido, castigado na pesada digestão da bruteza nórdica. Após a primeira vez, que corresponde aos tempos homéricos, novamente se encontravam, em crase difícil, a força báltica e o espírito mediterrâneo, temperado agora com o fermento do cristianismo.

 

 

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